Confiança

Nas graves circunstâncias de nossa vida, o que a Santíssima Virgem deseja de nós, acima de tudo, é um imenso ato de confiança.

Por isso, genuflexo, peço a Ela nos tornar cada vez mais os que — na tormenta, na aparente desordem, na aflição, na quebra aparente de tudo o que poderia representar para nós a vitória —, sempre confiaram na misericórdia d’Ela.

(Palavras de Dr. Plinio em uma de suas últimas conferências, em agosto de 1995)

Admiravel perfeição da Igreja Católica

Quem quisesse ver a Igreja compendiada ou espelhada cabalmente no coração de qualquer de seus Santos, Doutores ou Pontífices, erraria. Ela não se deixa conter em nenhuma das múltiplas manifestações de sua fecundidade sobrenatural. Seu espírito não está só no recolhimento dos anacoretas, na sabedoria dos Doutores, na paciência dos Mártires, na pureza das Virgens, na intrepidez dos Cruzados, no ardor dos Missionários, ou na suavidade dos que se dedicam aos enfermos.

Ela é tudo isso ao mesmo tempo. E só com estas e outras justaposições que se pode ter noção da admirável perfeição da Religião Católica.

Plinio Corrêa de Oliveira

Onde está o auge do esplendor: na forma ou na cor?

As civilizações expressam suas peculiaridades e características próprias também através das artes. Assim sendo, a arquitetura constitui outrossim um modo de se compreender pensamentos, inclinações e até mesmo intenções, existentes por detrás de meras pedras.

Quem admira os monumentos góticos se compraz em ver não só as suas linhas definidas e suas harmoniosas proporções, mas também as pedras com as quais foram eles edificados. Em geral granitos, de cor um tanto indefinida, constituem massas enormes e fortes, que parecem jorrar da terra. Assim são catedrais, castelos e torres da Idade Média, que muito impressionam quem se detenha a contemplá-los.

Entretanto, tais monumentos não seriam mais belos caso fossem pintados? Pois,  embora exista uma indiscutível beleza própria ao granito cinzento, poder-se-ia perguntar se numa catedral não seriam cabíveis outras formas de beleza, como a pintura.

Os fanáticos pelo purismo gótico — que nem sempre abarcam todo o seu valor — afirmam não raras vezes: “Pintar? Nunca! Seria uma blasfêmia! Elas devem ser de granito natural; do contrário perderiam completamente sua beleza”.

É bem verdade que o granito, com sua cor natural, é belo, e ademais seria uma lástima que desaparecesse. Dizer, entretanto, que esta é a única forma de beleza possível, contraria, antes de tudo, a realidade histórica dos fatos. Estudos acurados, em outros monumentos, têm demonstrado que as estátuas outrora eram pintadas. Em razão de chuvas, tempestades e neves, as tintas foram, aos poucos, desaparecendo; e devido ao esfriamento da apetência que o povo possuía pelo gótico, não foram renovadas. Isso não impediu, entretanto, que para várias dessas figuras fosse possível reconstituir parte da pintura.

Ora, os homens que conceberam essas maravilhas, fizeram-nas com cores. Assim, não se pode admitir que os sonhos e os hinos de entusiasmo dessas almas foram concebidos na atmosfera de uma blasfêmia.

Por que dissociar a forma da cor?

Foram encontradas, no subsolo de um banco em Paris, há não muito tempo, cabeças das esculturas de reis do Antigo Testamento que ficavam no pórtico de Notre-Dame, formando uma galeria.

Durante a Revolução Francesa foram elas decapitadas e as cabeças jogadas ao chão. Possivelmente uma pessoa piedosa recolheu-as e enterrou-as o mais fundo que pôde.

Deu-se, então, um fato maravilhoso. As cabeças foram retiradas e, ao serem analisadas, verificou-se que partes delas ainda estavam pintadas. Portanto, deve-se conceber a possibilidade e a coerência de monumentos em estilo gótico com pintura: catedrais, edifícios públicos como paços municipais, e castelos evidentemente, na medida em que não eram fortalezas, e sim residências. Mesmo sendo fortaleza, a casa de residência do senhor feudal e a capela no recinto do castelo podem ter sido pintados.

A alma enlevada do medieval não poderia deixar de pensar o seguinte: se a forma é tão linda, não haverá um ornato de cor para ela? Por que dissociar a forma da cor?

O cinzento da pedra é bonito por seu aspecto resoluto e batalhador, e também porque nos permite pensar em qualquer cor. Quando se vê uma catedral cinzenta, o subconsciente nos sugere, sucessiva e vagamente, várias cores para ela.

Esse é um dos encantos do cinzento, como, aliás, das antigas fotografias em branco e preto. Sob certo ponto de vista, eram mais poéticas do que as coloridas, pois subconscientemente era possível imaginar as cores.

É lindo ver o reflexo de um vitral incidir sobre o granito cinzento do interior de uma igreja! A pedra fica momentaneamente, como que, cravejada de pedras preciosas. Não haveria, então, um modo de perpetuar este colorido magnífico?

Orvieto: o gótico colorido

Grande ilustração do gótico policromado, uma das mais famosas catedrais góticas existentes na Itália — onde se costuma dizer que não houve o estilo gótico —, cuja fachada é colorida com mosaicos de alto a baixo, é por certo dos edifícios góticos mais belos do mundo: a Catedral de Orvieto.

Estritamente gótica, traz ela em sua fachada uma feeria de cores. Mesmo a rosácea que está no interior de um quadrado, o qual não se diria exatamente gótico, tem qualquer coisa de clássico; ambos se encaixam perfeitamente no conjunto.

Para a decoração foi escolhida a mais esplendorosa das cores: a do ouro. Em toda a fachada há um fundo dourado. O mosaico é de tal qualidade, tão rutilante e magnífico, que esta igreja, edificada no século XIV, causa a impressão de ter sido finalizada há poucos dias. Ela não apresenta a poesia do granito, que desafia todos os tempos, todas as intempéries e fica mais belo à medida que envelhece. Dir-se-ia que os invernos e as tragédias da História passaram sobre a Catedral de Orvieto sem a atingir em nada. Ela está magnífica, esplendorosa, sem alterações.

O granito fala da eternidade, na medida em que resiste ao tempo. O mosaico de Orvieto evoca a eternidade, no sentido em que ignora o tempo.

Causando viva impressão cromática, as diversas cenas se reportam à vida de Nossa Senhora. Há várias figuras coloridas em ambos os lados da rosácea, no alto das portas laterais, dentro e fora das ogivas, no cume da porta central. No alto do frontispício, a coroação de Maria Santíssima. O colorido pode ser encontrado por toda parte.

São cores ao mesmo tempo temperantes e muito vivas. Quem policromou a catedral não tinha o gosto pelas cores pálidas, ou discretas, que se confundem e se fundem umas com as outras, o que possui sua beleza. Mas o que há nela é a beleza das cores definidas, que têm individualidade e vida própria. Em cada grupo há uma sinfonia de cores.

A beleza que representa essa distribuição colorida sobre a fachada, com as linhas do gótico, proporcionam a ideia do que seria uma síntese entre a forma e a cor. Antiga disputa entre os artistas: o que apresenta mais esplendor, a forma ou a cor? Num quadro, o que é mais notável, o desenho ou o colorido?

Florença ou Veneza: cor ou forma?

Existem duas grandes escolas italianas divergentes a esse respeito: a florentina, toda feita de desenho, intencionalmente pobre em cores, para que o desenho seja ressaltado; e a veneziana, magnífica em coloridos, tendo apenas o desenho necessário a fim de dar pretexto para as cores se mostrarem.

Muito antes das duas escolas se diferenciarem e polemizarem, já havia uma magnífica síntese delas, na Catedral de Orvieto.

Os detalhes são profusos nas colunas, na rosácea, nos florões, nos rebordos, e em todos os outros lugares, pois que seus executores trabalhavam sem pressa de acabar, sem o desejo de serem aplaudidos pelo povo. Morriam em paz diante da igreja inacabada, com a certeza de que as gerações futuras haveriam de completá-la.

Esta catedral representa de um modo proeminente a beleza do gótico, tornando-se inatacável por todo o seu esplendor. Podem-se preferir outras — depende do gosto individual —, mas não é possível fazer alguma reserva ou ter algum desacordo em relação a ela.

 

Continua em um próximo artigo…

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/1/1981)

O Império Romano nos planos de Deus – II

Após discorrer acerca das “continuidades esplendorosas” existentes na História, Dr. Plinio, dotado de profundo senso de reversibilidade, imagina a “esplendorização histórica” do Céu empíreo.

 

Essencialmente falando, eu acho que aquele traço dado de algum modo se projeta no Céu empíreo. Não posso imaginar o Céu empíreo como se os homens tivessem vivido atemporalmente, sem nenhuma civilização, meio parecido com aquelas indecências do Olimpo, onde as pessoas se portavam como índios selvagens…

A meu ver, nossas almas não têm uma plena atração por essas coisas, porque não se sentem inteiramente refletidas.

Pergunto-me se não há infiltrações de Renascença nesses modos de apresentar o Paraíso. Não posso admitir um Céu empíreo onde a Igreja não esteja representada em tudo aquilo por onde ela se materializou, para as delícias dos sentidos humanos. É Igreja Triunfante. Haverá ordens religiosas no Céu? Enquanto tais, não; mas como famílias de almas, sim. Portanto, isso tem que ter continuidades, as quais devem se refletir no Céu empíreo. Eu gostaria de imaginar um Céu empíreo que fosse uma esplendorificação, além de todos os aspectos da natureza, também da História: as intenções de Nosso Senhor com aquilo que ficou em estado potencial, as mostras de coisas que foram de determinado modo, e como poderiam ter sido.

Não concebo — claro que se a Igreja disser o contrário, eu me inclino com delícias — que o Céu empíreo seja simplesmente como ele é apresentado, por exemplo, pelo Cornélio(1): tem-se a impressão de que os anjos produzem sons, emitem cores etc., dando aos bem-aventurados a ideia que são uns artistas convencionais. Tudo isso é verdade, mas deve haver algo a mais.

Que relação existe entre o Céu empíreo e o Paraíso terrestre, que não vai ser destruído? A própria ideia do Céu empíreo precisaria ser muito enriquecida. Talvez fosse missão de nosso Movimento fazer tal enriquecimento, para glorificar a obra total de Deus e também atrair mais as almas para o Céu.

Juízo Final: grande aula de História

Volto a dizer, tenho pânico de não manter a ordenação católica verdadeira — submeto-me de muito bom grado a tudo quanto a Igreja ensine —, mas a História deve ser consoante com o Juízo Final. E o Céu, visto por esse lado, seria uma espécie de condensação da História, não porque fiquem pedaços menos importantes de lado, mas em razão de ser feita de modo denso, de maneira a apresentar um panorama com as várias glórias sucessivas, que Nosso Senhor foi determinando para Si ao longo dos tempos, e que iriam recompondo de algum modo o plano que Ele teve com o Paraíso terrestre, o qual não se realizou. E depois do Juízo Final todas essas coisas ficariam, por assim dizer, paradas, e de algum modo vivendo no Céu o que na Terra não foi vivido.

Alguém poderia dizer ser imprudente ensinar isto assim, porque desvia a ideia daquilo que é a essência do Céu: a visão beatífica. Eu me pergunto se desvia ou encaminha. É uma cogitação de caráter pastoral, e não doutrinário, que se pode pelo menos discutir.

Percebe-se que há no Céu, dentro de todas as fixidezes de uma eternidade perfeita, tal ou qual acontecer que é, creio eu, o festejamento de algumas dessas luzes que aparecem sob algum aspecto especial, em função de Deus que se compraz. Deus atua como a Igreja faz com suas glórias passadas: ela se alegra em remexê-las, extraindo delas sua glória. Quer dizer, a História teria um papel, no plano divino, que não se esgota. Algum teólogo poderia objetar: “Acabou o tempo e agora é a eternidade”. É magnífico, mas o que quer dizer isso? Eu gostaria de lhe dizer: “Não quer estudar um pouco esse assunto, ó teólogo venerável, e condescender com essas minhas babugens de criança envelhecida? Vamos conversar um pouco sobre isso”.

Dou um exemplo com os mistérios da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo. No Céu, Ele está fisicamente presente em sua Humanidade Santíssima, com a idade perfeita que atingiu. Mas o Divino Redentor vive dentro do Céu com os esplendores próprios de cada uma das idades, que se fundem dentro da idade perfeita d’Ele. Há no Céu uma alegria por Jesus Menino, que não é a alegria por Jesus Adolescente.

Quer dizer, seria preciso encontrar um modo, uma forma de exprimir isso, de juntar ao mistério da eternidade. E compreender que, assim como essas coisas, de certa forma, coexistem no Céu, a História tem também, de um modo minor, um existir contínuo no Céu, que explica o Juízo Final, a grande aula de História final! O Juízo não será apenas para separar uns homens de outros, mas a fim de dar a cada um o seu quinhão.

Como seria agradável fazer um simpósio sobre História, para tratarmos a respeito disso! E se quiséssemos, poderíamos estender o quadro até suas últimas consequências.

O pulcro das obras de Deus e o hediondo dos feitos do demônio

Também o demônio engendrou seu plano: fazer que a cada aspecto de Deus corresponda um “hediondum” para o qual ele procura levar o povo de certa época, e que ele pode mostrar à luz do Sol, neste “nunc”, neste agora, com o efêmero brilho de mentira das coisas terrenas. E esse hediondo, como historicamente existiu, é atirado ao inferno, punido permanentemente. Por isso, eu acredito que haja um reflexo celeste do Império Bizantino e também um reflexo infernal da podridão bizantina, do “hediondum” bizantino. E, no que diz respeito aos homens, imagino um inferno historicamente ordenado para tudo quanto Bizâncio teve de podre, de horroroso.

Então, há o inferno dos podres, dos chicanistas, dos sofistas, dos incapazes porque não quiseram ter valor, que são eternamente atormentados por esses vícios.

Essas considerações seriam úteis para uma aula de catecismo. Por exemplo, o inferno de Hollywood, que não forma ali um império, mas o “hediondum” dele traz a lama do que foi esse império. Como os franciscanos no Céu não formarão uma ordem, mas o “pulchrum” deles será o que a Ordem Franciscana teve de belo. Não preciso dividir um fio de cabelo em quatro para fazer compreender o que é isso; uma comparação simples, despretensiosa, o torna claro. Mais ainda, há festas no Céu e tormentos simétricos no inferno.

Às vezes, o Paraíso é representado com anjinhos ridiculamente gordinhos — a ponto de formar dobras nos joelhos. Entretanto, com a visualização que apresentei, todos desta sala tomamos atitudes de quem pela primeira vez está conseguindo respirar até o fundo dos pulmões. Por quê? Não será alguma coisa para indicar que há um caminho nessa direção?

No Reino de Maria a sociedade será semelhante ao Céu

Compreendendo tudo isso se poderá proceder à construção do Reino de Maria, com todo amor e virtudes que são necessários. Aqui está o “tal enquanto tal” de nosso Movimento, quer dizer, temporal enquanto espiritual, espiritual enquanto temporal, expresso por inteiro. E no Reino de Maria uma pessoa bem persuadida de todas essas coisas deve ter certa noção, difusa — que uma boa mãe cozinheira e um bom pai padeiro possuem ao executar seus trabalhos —, mas com verdadeiro espírito sobrenatural, de por onde sopra o Espírito Santo, e da necessidade de construir uma sociedade terrena semelhante ao Céu. É o “pendant” de um Céu algum tanto parecido com a sociedade nesta Terra. No Padre-nosso se pede: “…venha a nós o vosso Reino… assim na Terra como no Céu”. O Céu vem à Terra, mas a Terra está construindo para o Céu.

Como tudo isso é apaziguante para a alma; é distensivo!

É bonita a distinção entre duas coisas: as civilizações que morrem, resultando numa espécie de purgatório dos respectivos povos, e as civilizações que morrem, dando numa espécie de inferno.

Existiram civilizações que pararam, estancaram, ninguém sabe que fim tiveram, onde foram parar seus habitantes; há mistério a respeito delas. Em outras sucedeu algo parecido com o que aconteceu com o Império Romano: vieram os bárbaros, remexeram, passaram o açoite sobre ele, mas aquilo de algum modo revive. Enquanto revive, reassimila o que caiu.

Enfim, os bárbaros fizeram com os romanos o que estes realizaram com a Grécia. Quer dizer, eles mesmos se civilizaram, tiraram daqueles escombros o que era aproveitável, reconstruíram outra ordem. Já com os bizantinos isso não foi feito. Pior, o que deles sobreviveu apodreceu o Ocidente.

Esta é uma distinção que importa: há os povos que desaparecem apodrecendo, os que desaparecem fulminados no isolamento, e os que desaparecem renascendo. São coisas parecidas com o inferno, o purgatório e o Céu; com os demônios que caem no inferno e depois tentam os homens. Civilizações misteriosas que desaparecem, fulminadas não se sabe como, são infernos.

É uma batalha enorme que em seu conjunto, no Juízo, terá sua movimentação e uma retificação. Tudo o que era para ser acabado, embora não idêntico ao que seria se tivesse correspondido, de algum modo se completa. E a obra de Nosso Senhor Jesus Cristo como Rei, Profeta e Sacerdote, chega a seu fim. É o pináculo.

Acho que tudo isso tem “pulchrum” realmente extraordinário!

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/9/1982)
Revista Dr Plinio 161 (Agosto de 2011)

 

1) Cornélio a Lapide (Cornelissen Cornelis van den Steen) exegeta flamengo, pertencente à Companhia de Jesus (18/12/1567 – 12/3/1637).

Onde está o auge do esplendor: na forma ou na cor? – II

Após séculos de esplendor, de feeria de formas e cores, como foi possível abandonar o gótico em favor de outros estilos? Entretanto, apesar de relegado a segundo plano em favor do estilo clássico, das ruínas do “Ancien Régime” ressurgiu a arte gótica.

 

As considerações que fizemos sobre a forma, a cor, em síntese, sobre o estilo gótico existente na Catedral de Orvieto, nos levam a analisar algo colateral, mas que também possui grande importância para a História: Como explicar que, em determinado momento, as almas se tornaram de tal maneira incompreensíveis para com o gótico, que durante séculos não se construíram mais edifícios nesse estilo?

Mais ainda, ergueram-se incontáveis igrejas, mosteiros, abadias, edifícios públicos, residências particulares em estilo clássico, com os antigos arcos em semicírculo ou a linha reta dos pórticos, porém nunca em estilo gótico, o qual permaneceu esquecido durante séculos.

Muitas das obras clássicas revelam incontestável talento — seria errado não reconhecê-lo —, mas também demonstram, de modo espantoso, uma falta de piedade sob vários aspectos. Como realizaram todas essas coisas que parecem ignorar completamente as impressionantes obras da arquitetura medieval?

Tudo quanto a Idade Média realizara em matéria de arte estava esquecido em favor das figuras nada combativas, ou sérias, apresentadas pela Renascença.

Havendo um caminho tão bem trilhado por medievais de inegável gênio, como os grandes da Renascença não pensaram em continuá-lo? E tenham revolvido o pó das ruínas clássicas, arrancadas debaixo da terra, ou esqueléticas em sua superfície, e restaurado uma antiguidade que o Cristianismo havia de muito superado?

Qual é o estado de espírito de quem, passando diante de edifícios góticos, não se encanta, mas se desvanece de admiração para com os monumentos da era clássica? Sem negar de forma alguma a beleza dos monumentos da Renascença, se compararmos uma com a outra…

Das ruínas, um novo gótico

O gótico, incontestável por sua beleza, permaneceu, entretanto, sepultado no esquecimento durante todo o período do “Ancien Régime”, período em que desabrochou a arte barroca.

Suponhamos que houvesse nessa época alguns entusiastas pelo gótico em Orvieto, os quais começassem a fazer propaganda de sua catedral para que o povo a compreendesse, a amasse e passasse a produzir coisas em continuidade com o gótico, e não com o estilo renascentista. Eles procurariam os “medievalizáveis” em Orvieto, para à noite, no reflexo do luar, comentar a igreja.

Imaginemos que eles organizassem um apostolado de difusão, de simpatia por esse estilo e, ao cabo de alguns anos de trabalho, conseguissem, em Orvieto, cinquenta pessoas entusiasmadas pela catedral, e mais umas mil com simpatia por ela. E todos a olhassem com uma saudade sonolenta e risonha: “É mesmo bonita, não é?”

Explode a Revolução Francesa. Aproxima-se o Diretório, surge Napoleão, não obstante volta a realeza na pessoa dos Bourbons, e a História continua seu curso. Entretanto, por coincidência ou não, pela Europa inteira começa a renascer o gosto pelo gótico.

O Conselho de Estado de Luís XVI havia decretado o arrasamento da Catedral de Notre-Dame, para fazer ali uma igreja em estilo grego, como digna de ser a catedral de Paris; pois julgavam o gótico indigno para tal.

Passando pelo palco da História as figuras de Robespierre, Danton, Marat, ouvindo-se nos gongos do passado o “Ça ira”, “La carmagnole”, a “Marseillaise”, o troar dos canhões de Napoleão a derrubar coisas veneráveis pela Europa inteira, e eis que das ruínas emerge um estado de alma simpático ao gótico!

Assistimos, então, à restauração de inúmeros monumentos góticos, e os estudos desse estilo florescerem. Edifícios góticos se constroem, não só na Europa, mas na América, como a Catedral de Saint Patrick, em Nova York, a Basílica de Quebec, como também a própria Catedral de São Paulo, e quantas igrejas, ainda que pequenas, com reminiscências góticas, em terras onde, durante a Idade Média, só havia índios!

Ainda um último aspecto

Vista de lado, percebe-se sob outro ângulo o esplendor da fachada, um pouco menos vistoso, pois a luz dos mosaicos não incide tão diretamente sobre quem está olhando. Por isso, possui uma forma de pulcritude, que não é a evidência viçosa, mas a discrição nobre do belo, o qual não se proclama, mas se insinua. Essa forma de beleza tem o encanto do que é insinuado, enquanto a outra possui o esplendor do que é proclamado.

Nas fotografias da Catedral de Orvieto, sempre há algo que nos chama a atenção: elas procuram isolar a catedral completamente do contexto. Isso é inteiramente compreensível, pois ela não permite vizinhança, exceto de outros edifícios também em estilo gótico.

Pode-se ter uma pequena ideia disso, considerando como os edifícios que existem à sua volta são mesquinhos, e até depreciados em relação à catedral. A catedral, como que, diz a eles: “Vós me ignorais? Mais ainda eu vos ignoro! Se não me quereis olhar e reconhecer minha beleza, ela aqui está de pé para vos julgar. Um dia prestareis conta ao Juiz eterno, deste estado de alma que está no fundo de vós. Quanto a mim, minha conversa é com o sol, com as estrelas e com Deus!”

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de Conferência de 23/1/1981)

São Luís IX

Em tudo correspondendo ao seu título de Rei Cristianíssimo, pleno de zelo pela causa da Santa Igreja, São Luís IX de França foi suscitado por Deus a fim de se tornar um perfeito modelo de governante para o seu tempo e os séculos sucessivos.

Viveu no auge da Cristandade medieval, e com sua combatividade, sua fé, esperança e caridade exemplares, contribuiu para o grande florescimento dos melhores valores da Idade Média.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Rosa das rosas, rogai por nós!

Assim como a rosa detém uma primazia de beleza sobre todas as flores, assim Nossa Senhora sobrepuja em formosura todos os outros seres saídos das mãos do Onipotente.

Por isso, Ela é a Rosa Puríssima, a Rosa Mística, a Rosa de Jericó, a mais bela das almas, a mais linda das criaturas de Deus.

Se nós nos puséssemos de joelhos diante de Nossa Senhora e Lhe ofertássemos uma rosa de esplendor paradisíaco, Ela certamente a tomaria em suas mãos virginais, e em seus lábios afloraria um  sorriso encantador. Porque  o que há no fundo d’Ela entrou em consonância e brilhou com a perfeição da rosa. Mas… quanto o sorriso d’Ela é mais belo e luminoso do que a luminosidade e beleza  da rosa! E quanto, portanto, o que existe no íntimo da alma d’Ela vale mais do que aquilo que A fez sorrir!

E se Ela condescendesse em nos dar de presente a rosa, nós a guardaríamos com todo o cuidado, depois de murcha, numa página de álbum em que escreveríamos: “A rosa diante da qual a Rosa  sorriu”.

E nos lembrando da Senhora desse sorriso, diríamos a Ela: “Rosa Rosarum, ora pro nobis”. — Rosa das Rosas, requinte de rosa, transcendência de rosa, a mais bela rosa do universo, rogai por
nós!

 

Plinio Corrêa de Oliveira

São Bartolomeu

O Protótipo do homem amado por Deus

O elogio de Nosso Senhor a São Bartolomeu é um dos maiores que possam ser feitos a alguém, porque é o filho do povo eleito, protótipo do homem amado por Deus, no qual não há fraude.

Ele era, portanto, o contrário daqueles que se encontravam em decadência, dentro da nação eleita.

A este título, há uma relação muito grande entre ele e um contrarrevolucionário que deseja ser um verdadeiro católico no qual não há fraude e que, por isso, em face da Revolução e do espírito do demônio, não faz concessão alguma, odeia tudo quanto o demônio ama e ama tudo quanto o demônio odeia; odeia tudo quanto a Revolução ama e ama tudo quanto a Revolução odeia.

Nesse contrarrevolucionário não há fraude, e ele merece inteiramente o nome de católico. Assim, é natural que peçamos o auxílio da intercessão de São Bartolomeu.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/8/1965)

São Luís Rei, o Varão Católico

Admitindo que cada santo represente, no firmamento da Igreja, algum aspecto específico — São Bento, por exemplo, o recolhimento;
São Domingos, a pregação; São Francisco, a pobreza; Santo Inácio, a luta pela Igreja, etc. —, o que simbolizou de modo particular São Luís, Rei de França? A fim de compreendermos o brilho especial da alma de São Luís, acompanhemos Dr. Plinio:

A respeito de São Luís, parece-me que uma das coisas mais comovedoras é a tradição que ele deixou atrás de si. Quer dizer, além de ele ter sido um grande santo da Idade Média, e de ter enchido seu tempo com sua personalidade, de maneira tal que se pode dizer que o século em que viveu foi o século de São Luís; além do fato de que as crônicas da Idade Média estão repletas de episódios da vida dele, e sua canonização foi inteiramente regular, tendo a Igreja analisado a personalidade dele e dado os fundamentos pelos quais o achava santo; além de tudo isto, ficou na memória popular dos europeus, e sobretudo dos franceses, uma recordação a respeito de São Luís que não procedeu do conhecimento dessas coisas.

Porque o povo de hoje já não conhece esses fatos, mas tem uma recordação dele, trazida de geração em geração. E essa lembrança, comovida, enternecida, entusiasmada, recolhida, corresponde exatamente aos documentos históricos que de São Luís se possui. Quer dizer, a legenda, ou a tradição, são exatamente iguais à realidade histórica. Não houve um exagero, um dado errado, tudo é inteiramente certo, nenhuma mentira se fez para dourar mais sua coroa de glória. Ele deixou atrás de si um sulco de verdade, de objetividade, e uma imagem que, apesar de tantas revoluções, transformações, de pregação de tantas doutrinas de ódio e de erro, se conserva fiel à realidade histórica.

Em que aspecto brilhou especialmente sua personalidade?

O que o povo francês venera na pessoa de São Luís? O que a História bem narrada, bem estudada, nos ensina a respeito de São Luís? Ele brilhou especialmente pela castidade? Pelo recolhimento? Pela pobreza? Em favor da Igreja? Se considerarmos os feitos externos de sua vida, nada disso se pode afirmar inteiramente.

Que ele brilhou pela castidade, não há dúvida nenhuma. Mas ele brilhou como todos os santos reluziram, inclusive aqueles cuja castidade não foi a virtude mais notável. Todo santo é necessariamente casto. Mas São Luís de Gonzaga, por exemplo, teve um brilho de castidade maior do que alguns outros santos.

São Luís conservou a virgindade até o matrimônio; casou-se, foi um esposo fidelíssimo, mas não teve ocasião — sua vocação não lhe pediu — de guardar uma castidade à maneira de São Luís de Gonzaga.

Foi então o recolhimento que o fez brilhar? Em outros santos, o recolhimento refulgiu muito mais. Porque foram eremitas que se separaram completamente do mundo e passaram a viver em lugares completamente desertos. Ou cenobitas que foram viver em conventos, afastados completamente da civilização, para levar ali uma vida inteira de silêncio, de estudo e de oração. São Luís, não. Ele viveu no meio do mundo, na direção do maior reino da Terra no tempo dele, que era o reino da França, e misturado continuamente com os homens.

Teria sido o espírito combativo? São Luís foi um cruzado, um grande guerreiro, mas houve na Civilização Cristã guerreiros mais bem sucedidos do que ele. As duas Cruzadas que ele empreendeu não alcançaram as vitórias que ele desejava. Houve, portanto, guerreiros que realizaram feitos de guerra, dentro da inspiração católica, maiores do que ele. Houve até guerreiros não santos que alcançaram vitórias maiores do que as obtidas por São Luís.

Por exemplo, Dom João d’Áus­tria, que não foi um santo e até esteve bem longe de o ser, obteve em Lepanto uma grande vitória cristã que São Luís não conseguiu com as suas Cruzadas.

Então, o que em São Luís nos dá um brilho da personalidade dele que, sob certo ponto de vista, se realça mais do que nos outros santos? O que houve em São Luís?

Varão católico na plenitude da expressão

São Luís representou, com uma plenitude que poucas vezes se encontra na História da Igreja, o varão católico como a Igreja deseja que ele seja. O varão leigo vivendo no século a vida de todo mundo, e levando até à mais alta perfeição o cumprimento dos Mandamentos da Lei de Deus. De maneira tal que, misturado com todos, ele, entretanto, superou a todos.

Há um ensinamento profundo da Igreja, quando canoniza santos assim. Ela canonizou vários santos leigos, se bem que nenhum deles tenha talvez brilhado com tanto fulgor como São Luís, no qual esta recordação do santo leigo se prolongou pelos séculos e ficou mais vivaz do que em outros santos. É uma missão histórica de São Luís post mortem, como houve a missão histórica de Santa Terezinha post mortem, que consistiu em derramar uma chuva de rosas em torno dela. E São Luís?

Ele foi o varão na plenitude do termo, para provar que o homem deve ser santo dentro da vida quotidiana. Que a santidade não é apenas o distintivo do padre, do frade, do monge, mas de todos os católicos dos quais Deus espera o cumprimento exato dos Mandamentos. E a muitos ele pede um cumprimento tão perfeito, que depois possam ser levados à honra dos altares. Isso São Luís nos ensinou. Ele foi um homem que provou que o bom católico pode ser varão até onde se deve, mas não lhe é vedado, por causa disto, ter certas qualidades que os espíritos superficiais reputam incompatíveis com a varonia. Assim, podemos analisar agora a figura de São Luís.

Realizou o equilíbrio feudal perfeito

Era um rei que tinha mão firme, e manteve de tal maneira a autoridade em seu reino, que poucos reinados na História da França conheceram a paz interior tão ampla e tão perfeita como se conheceu no tempo de São Luís.

O regime feudal, no meio das admiráveis vantagens que proporcionava, dava, entretanto, oportunidade a uma nobreza ainda muito turbulenta, devido à proximidade dos bárbaros, de se levantar nos seus feudos contra o rei. Por causa disto, muitos reis perseguiram a nobreza e tentaram extingui-la; e afinal quase todos eles reduziram a nobreza a um mero papel de aparato.

Com São Luís, o que se deu? O equilíbrio perfeito. Ele foi um rei que conservou o regime feudal e manteve a nobreza no uso de todos os seus privilégios. Em várias ocasiões ele herdou feudos e poderia tê-los reunido à coroa, mas não quis fazê-lo e nomeou outras famílias para esses feudos; não açambarcando todos os feudos, mas mantendo-os autônomos.

A ideia da sucção de todos os feudos, para formar a monarquia do tipo luís-quatorziano, nem de longe lhe passava pela cabeça. E apesar de ter robustecido de tal maneira o poder feudal — pela firmeza, energia, pelo medo que ele metia, pelo respeito que sua justiça incutia a todo mundo, pela veneração que tinham para com a pessoa dele —, São Luís manteve em paz o reino da França; conseguiu realizar o equilíbrio feudal perfeito.

Mostrou que um homem pode manter a ordem com força, mas que, pelo fato de ser um homem forte, não é necessariamente um tirano. Que para a manutenção da ordem, a bondade, a justiça, a respeitabilidade, têm um papel que a força nunca chega a preencher completamente. E que a irradiação das virtudes é, em muitas ocasiões, uma circunstância indispensável para a manutenção da autoridade.

Ele não foi brutal como Luís XIV para com os nobres. Luís XIV exigia que os nobres morassem todos em torno dele, que abandonassem os seus castelos, perdendo assim sua influência nas várias partes da França. Mandou inclusive destruir vários castelos de nobres, para poder ter a nobreza na mão.

São Luís manteve a nobreza. E o que Luís XIV só conseguia realizar por meio da força e do esplendor da pompa real, São Luís realizou com a força, o esplendor, mas, de outro lado, também com a manifestação de uma justiça, de um equilíbrio, de uma bondade que encantava e atraía a confiança de todos.

Foi o varão ao mesmo tempo forte e bondoso; justo, equitativo, mas, por isso mesmo, ciente de seus direitos; que sabe se fazer temer e respeitar, bem como dar a cada um o que é seu; e que introduz então em torno de si a verdadeira paz, ou seja, a tranquilidade da ordem. Não é a tranquilidade da chibata, mas a da ordem; pôr todas as coisas em ordem para que elas fiquem em paz, e depois castigar quem saltar para fora da ordem. Esta é a verdadeira tarefa do ordenador.

Questão feudal com o Rei da Inglaterra

Outro aspecto: São Luís teve uma questão feudal com o Rei da Inglaterra. Sendo uma questão complicada, nosso Santo propôs no Conselho que ele sugeriria ao Rei da Inglaterra que lhe prestasse homenagem, como feudatário de algumas terras na França; e que, por gentileza e amabilidade, ainda acrescentaria estas e aquelas terras como cláusulas do acordo.

Os conselheiros de São Luís, quando ouviram isso, ficaram arrepiados, e disseram: “Mas senhor, nós poderíamos conhecer a causa dessa liberalidade?” Resposta de São Luís: “Sim, é para que haja amizade entre os meus filhos e os filhos do Rei da Inglaterra, porque são primos-irmãos.” Todos se entreolharam, como que exclamando: “Mas meu Deus, isto é política!? Uma política feita na base da amizade… Depois, nunca o Rei da Inglaterra virá prestar homenagem ao Rei da França!”

São Luís não permitiu discussão e foi enviada a proposta ao Rei da Inglaterra. Este veio à França, ajoelhou-se diante de São Luís e prestou-lhe homenagem, com espanto de toda a Cristandade. E esse donativo feito por São Luís contribuiu para um longo tempo de paz entre as duas coroas.

Armado de couraça dourada, desembarcou no Egito

Recordo-me de outro fato. São Luís passou quatro anos na Terra Santa, tratando com os maometanos. Os historiadores reconhecem que ele foi tão ágil em jogar uns maometanos contra outros e embrulhá-los, que o poder maometano ficou durante muito tempo entrelaçado por querelas, porque ele soube cortar a erva debaixo dos pés desses ou daqueles; e que a obra política de São Luís valeu mais que sua obra militar.

Ele foi o rei sumamente confiante, e confiante até a candura, quando era o caso, sumamente esperto, e esperto até os bordos, sem transpor esses bordos para o maquiavelismo. Embrulha os maometanos e é gentil com um cristão; atrai o coração de um e deixa os outros nas trevas. O varão perfeito como a Igreja Católica o imagina, o forma, como ela lhe dá forças; é um ideal a ser atingido.

São Luís e a majestade. Todo mundo concorda em dizer que ele era um homem de uma majestade extraordinária. Os cronistas descrevem o esplendor da personalidade de São Luís quando ele desembarcou no Egito, em terra de infiéis: estava armado de uma couraça dourada, um elmo, uma alta cimalha dourada também; era o mais alto dos homens do barco no qual navegava, esbelto,”élancé”. Quando a embarcação chegou perto da terra, ele se jogou dentro da água, coberto com armadura, e foi de encontro ao Egito para dominá-lo.

A ideia que temos hoje de um rei é a de um rei de museu: que não fala de medo de dizer bobagem, não se move de receio de ser deselegante, não agride, está perpetuamente sentado num trono, olhando para a frente e pousando para a História.

Ao ver um rei tão “délié”, tão elegante, o mais alto de todos e que salta, ataca, é o primeiro na hora do risco, todo o exército correu atrás dele.

Rei derrotado, mas venerado pelos seus adversários

Esse varão católico perfeito sofre um infortúnio: depois de lutas enormes, é preso. O poder muçulmano é maior do que o dele. O prisioneiro é o humilhado, dependente de todo mundo. São Luís ficou durante muito tempo preso, porque se discutiu o seu resgate; ele impôs tal veneração a todos, que os mouros vinham pedir a sentença dele a respeito dos processos que tinham entre si. Porque confiavam na justiça do rei cristão mais do que na de qualquer outra pessoa. E ele era tratado por todos com veneração.

Ser grande assim na derrota é muito mais do que ser grande na vitória. Ser grande na vitória, qualquer vencedor pode ser. Mas na derrota não é qualquer um que o consegue. Houve Um, que foi maior na derrota do que em todas as outras ocasiões de sua Vida — a respeito do Qual disse São Paulo: “Só sei pregar Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado”(1). Na Cruz, Ele realizou o “summum” de sua majestade, de sua grandeza e de sua glória.

São Luís imitou Nosso Senhor Jesus Cristo: ele realizou o “summum” da majestade humana, provando que um rei pode ser grande e impor-se, não só porque está no trono e cercado de toda a pompa real, mas porque ele é um varão católico.

Ele foi o rei derrotado, porém venerado pelos seus adversários. São Luís volta da Cruzada derrotado. A Cruzada não deu o resultado que ele queria.

O povo todo o aclamou como verdadeiro herói e lhe preparou uma glorificação no seu trajeto através da França, porque compreendia quanto ele tinha sido grande guerreiro, grande homem, apesar da derrota, e porque queria consolá-lo da derrota sofrida; e nunca o prestígio dele foi maior na França do que aureolado com a coroa de espinhos da derrota.

Trato de São Luís com os leprosos

Este rei era um homem extremamente simples, dentro de toda a sua majestade.

Na Idade Média, para evitar o contágio da lepra, a Igreja tinha conseguido persuadir os leprosos de que deveriam viver isolados de todo mundo e, ao andar pelas ruas, precisariam agitar um sino para que ninguém chegasse perto deles. E a polícia apoiava essa atitude, de maneira que o leproso que não cumpria tais normas era punido; tratava-se de um regulamento, mas que só se tornou exequível porque a Igreja convenceu o próprio leproso da necessidade disso.

Podemos imaginar a situação tristíssima de um homem que tem de atravessar uma cidade, pois precisa pedir um pão senão morre de fome e, ostentando uma face chagada, horrorosa, caminha agitando um sino para significar: “Fujam porque sou eu!”; e vê as criancinhas fugirem, as pessoas jogando coisas para ele, de longe. Em que estado de humilhação está um homem assim?

É um dos mais belos feitos da Igreja ter convencido doentes de que eles devem agir desse modo. Porque é difícil imaginar uma situação mais dolorosa do que esta: um homem tocando um sino, como que dizendo: “Fujam e tenham pena de mim; façam o vazio em torno de mim, até que eu atravesse esta cidade carregando algumas coisas para ir num lugar onde ficarei só, causando horror a todos, devorado pela minha própria lepra.” E ele ali permanece anos e anos na dor e na solidão, até quando Deus quiser. É uma coisa tremenda. Essa era a regra geral.

E a Igreja, sempre prodigiosamente sábia, ensinava não só aos leprosos que deviam fazer isto, mas que o povo precisava dar esmolas; e que os leprosos deveriam depois fugir. Esse é o equilíbrio extraordinário da Igreja. E a Igreja suscitava em alguns homens ou mulheres sadios, padres ou freiras, que fossem morar com os leprosos para cuidar deles. Diante de um infortúnio mais pungente, é impossível levar o equilíbrio mais longe.

O que fazia São Luís?

O rei está acima da lei. A uma lei feita por Deus o rei deve obedecer mais do que ninguém; mas se elaborada apenas pelos homens, o rei, estando acima da lei, pode violá-la porque é o autor da lei. Assim, São Luís transgredia a lei; quando por seu caminho passavam leprosos, não era raro ele parar, descer do cavalo, conversar com eles e uma vez chegou até a oscular um leproso. Este rei cheio de glória aproxima-se do homem carregado da maior infâmia — não uma infâmia moral, mas uma espécie de infâmia social, de degradação social.

Podemos imaginar o consolo desse leproso durante a vida inteira, pensando: “O reino todo tem nojo de mim, mas o santo, o homem perfeito, o guerreiro denodado, o varão casto e piedoso, que é a glória e o entusiasmo da nação francesa, esse apeou do seu cavalo e, como um verdadeiro pai dos filhos que mais sofrem, não teve medo de mim. Ele se acercou de mim e não teve receio de que a minha lepra contagiasse as suas carnes régias, aristocráticas, juvenis e sadias. Ele ajudou-me, dirigiu-me algumas palavras de consolo, deu-me ouro, e eu durante a vida inteira, no meio da minha tristeza, direi: ele fez por mim o que não realizou pelos mais altos fidalgos de seu reino.”

Pode haver maior equilíbrio do que este: um homem, que era o mais esplêndido da Europa, descer assim até os últimos degraus da caridade e da humildade?

Nós poderíamos passar uma noite inteira comentando a personalidade de São Luís e mostrando esses contrastes de virtudes que faziam dele uma espécie de sinfonia viva, que entusiasmava a todo mundo.

A personalidade de São Luís expressa na Sainte Chapelle

Sua personalidade se exprimiu do modo mais esplêndido na Sainte Chapelle, que foi a obra dele. A Sainte Chapelle é incomparável, e foi a única coisa no mundo diante da qual fiquei estupefato. Ela possui dois andares; quando entrei no de baixo, exclamei oh! Eu não tinha visto o mais bonito, que é o de cima…

Quando eu estava na Sainte Chapelle, procurava reconstruir a personalidade de São Luís. Imaginem uma capela toda feita de cristal — e que era um relicário! —, com cristais alegres, de cores diáfanas. Entretanto, coisa curiosa, não há nada de frágil, de efeminado, de dulçoroso; é um monumento grave, sério e forte.

De tal maneira que, dentro dela, a pessoa se sente como se estivesse numa fortaleza. Por outro lado, uma majestade régia, não se fica intimidado, mas se tem a sensação de estar dentro de casa. Uma castidade em tudo; percebe-se que um homem impuro não pode sentir-se bem à vontade. Porém tanta suavidade que qualquer pecador envereda pela porta do perdão. Todas as harmonias da alma de São Luís estão lá. E isto nos explica que a humanidade tenha ficado sempre com os olhos postos nele.

“Non est inventus similis illi”

Aí está a figura do rei santo. Quando se olha para ele, tem-se a impressão de que é inigualável. Na Missa de certos santos, a liturgia diz: “Não se encontrou um varão parecido com ele”. Afirma isto de uma série de varões, o que não é uma contradição, porque são homens tais que, quando se os contempla, se exclama: “Como esse, não houve!”

Como São Luís, Rei de França, não existiu outro igual!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/8/1970)

1) 1 Cor 2,2.

Quem encontra um amigo fiel, descobre um tesouro! – II

A verdadeira amizade, baseada no amor a Deus, é capaz de qualquer coisa. Porém, qual é a pessoa que, com sabedoria, sabe apreciar o companheiro quando este o admoesta justamente?

 

O homem, quando sentimental, admira em quem preza como amigo os aspectos nos quais se vê refletido, à semelhança de um espelho no qual se lhe torna possível observar-se. Tais indivíduos se cultuam uns nos outros, egoisticamente; esquecem-se de que onde há egoísmo certamente não haverá amizade.

A equivocada ideia de amizade caracterizava-se por uma afinidade completa de mentalidades. Duas pessoas eram amigas quando pensavam do mesmo modo e tinham uma benquerença proveniente do fato de ser uma o reflexo da outra.

No que consistia a autêntica amizade?

A amizade autêntica existe apenas quando se tem disposição interior para sacrificar-se pelo amigo. Caso contrário — quando o desejo de sofrer por outrem é nulo —, a amizade não será efetiva. Mesmo assim, o anseio de padecer por um amigo possuirá maior intensidade na medida em que seja vigoroso seu amor a Deus.

Por uma amizade fundamentada em tal amor, deve-se ser capaz de todas as formas de sacrifício, como também de perdão a qualquer ofensa ou até mesmo a quaisquer traições recebidas.

A finalidade principal da amizade não é de ser agradado ou bajulado por outrem. Considerando que o aspecto mais louvável de cada homem encontra-se no grau de união com Deus, o correto seria desejar a estima dos outros apenas quando houvéssemos trilhado as sendas do bem. Caso deixássemos de agir corretamente, não deveríamos aspirar à consideração de outrem.

O mito da “alma irmã”

Havia antigamente o mito da “alma irmã”, que consistia numa figura ideal, ou num reflexo perfeito, que as almas sentimentais faziam de si próprias em outrem a quem amavam romanticamente.

Formavam elas, a seu próprio respeito, uma figura irreal, imaginando-se como seres extraordinários, entretanto, mal compreendidos e pouco apreciados. Quando encontravam alguém que havia percebido o seu valor, ansiavam naturalmente a proximidade dessa pessoa, que supunham lhes proporcionar a verdadeira felicidade. Contudo, havia acontecido o mesmo ao outro.

Então, quando eram de sexos distintos, ficavam noivos. No primeiro período de noivado trocavam grandes confidências e incompreensões que sofreram na vida. Isso tudo culminava no casamento.

Desfazendo o mito da “alma irmã”…

Todavia, o mito da “alma irmã” despertava uma pergunta: Será realmente autêntica essa amizade? Caso seja autêntica, será então duradoura?

Pois ainda que sejam semelhantes em alguns pontos, não se diferenciarão em outros? E quando verificarem as diferenças pontiagudas, essa amizade permanecerá?

Ao prestar atenção em jovens casais de noivos, notei que nos primeiros dias de noivado tinham muito para dizer um ao outro. Porém passados os primeiros dias…

Amáveis até a completa decadência

A verdadeira seiva da amizade encontra-se no amor a Deus. Assim, a definição de amigo bem poderia ser esta: aquele a quem se considera, ama-se e estima-se por amor a Deus. O restante não é senão egoísmo. Estimar alguém pela diversão que proporciona, ou pelas vantagens que concede, não é ser amigo. Pelo contrário, é ser egoísta.

Alguém poderia objetar: “Os amigos que tenho são agradáveis, amáveis, e nunca me admoestam por nenhum defeito. Sempre se mostram com disposições de boa acolhida. Prefiro, portanto, estar com quem me seja agradável”.

Perante tal afirmação, poder-se-ia dizer: “É verdade. São estes os amigos que nunca corrigirão seus defeitos, e permitirão ademais sua completa decadência. Enfim, consentirão na sua perdição eterna. E quando não tiver utilidade alguma para eles, ainda o desprezarão. A isso você chama querer bem…?”

Infelizmente, não eram raros os que possuíam esse equivocado conceito de amizade.

“Alter Christus”

Com os autênticos católicos, passa-se algo distinto. São amigos na medida em que partilham a mesma Fé Católica, Apostólica e Romana. Daí provém uma intensa união de mentalidades.

Diferentes, mas não contrários, são os temperamentos e as psicologias dos diversos católicos: representam apenas um aspecto secundário em seu convívio. No convívio entre eles, o que há de mais importante é a Fé que possuem. Analisando-os, vê-se o varão observante dos Mandamentos e frequentador dos Sacramentos, que estima acima de tudo o caráter cristão que discerne em seus próximos.

Desponta, então, uma diferença fundamental no modo de considerar a amizade: não é na admiração de uma qualidade comum a dois amigos que ela consiste, mas, principalmente, em uma semelhança com Nosso Senhor Jesus Cristo.

“Christianus alter Christus”; se é verdade que o cristão é um outro Cristo, nada há de mais gratificante do que poder afirmar: “Ele é como outro Cristo, é meu irmão!”

Na repreensão, o verdadeiro afeto

Segundo o venerável Tomás de Kempis, a verdadeira amizade baseia-se no amor a Deus, tanto para quem estima, quanto para quem é estimado. Deste modo, quando se progride na vida espiritual, não há ninguém mais alegre do que o verdadeiro amigo. Porém, quando se verifica uma decadência, não há ninguém mais temeroso.

O verdadeiro amigo tem por obrigação recorrer aos menores indícios, examinar os mais peculiares aspectos, com o objetivo de prestar algum auxílio no momento de dificuldade. Indicando os devidos cuidados a serem tomados, como também as precauções a serem observadas, ele o repreende a fim de que seu companheiro não venha a soçobrar.

Contudo, muitas vezes tais conselhos são ouvidos com ressentimento, pois atingem diretamente o amor-próprio. Assim, por mais que a retribuição pelo auxilio prestado seja o ressentimento, a consciência permanecerá em paz, pelo bem que foi realizado.

Aquele que admoeste ao próximo, não pelo descabido desejo de corrigir continuamente — que é a mais vil das vaidades —, mas com o sincero desejo de estimular o progresso espiritual, pode-se considerar como verdadeiro amigo.

A Sagrada Escritura afirma sabiamente: “Repreende o justo e ele te amará”. Quem possui a Sabedoria, quando corretamente repreendido, torna-se agradecido sem jamais guardar qualquer ressentimento. Ao contrário, quem se lamenta por ser admoestado, não possui a Sabedoria, pois na repreensão é que se mostra o valor do homem.

Advertência, mais valiosa que a congratulação

Demonstrar afeto na repreensão é inteiramente cabível. Todavia, afirmar que é sobretudo na repreensão que se demonstra a estima, é dificultoso acreditar.

Porém, mais do que se empenhar em mostrar-se alegre ou agradável, o verdadeiro amigo deve ansiar ser útil para a salvação de seu próximo. Obviamente, alegrar-se-á com o progresso daquele a quem deseja o bem. Contudo, alguém pode progredir sem que necessariamente o elogiem; mas, se está retrocedendo, caso não lhe seja apontada sua decadência, ele não prosseguirá em seu processo?

A palavra de advertência torna-se evidentemente mais valiosa do que a de congratulação.

Por isso Nossa Senhora concedeu ao venerável Tomás de Kempis palavras cheias de unção, para admoestar seus irmãos. Também a outros Ela poderá confiar essa edificante missão.

Tanto os que corrigem, quanto os que são corrigidos, que Ela auxilie e proteja nas vias da virtude, rumo à glória no Céu.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 30/8/1968 e 5/4/1986)
Revista Dr Plinio 149 (Agosto de 2010)