Senhorio, patriarcado e profetismo

Muitos afirmam que o quarto Mandamento se aplica tão somente aos filhos em relação aos pais. Entretanto, ele se refere também a toda autoridade legítima, a qual deve ter algo de paterno e precisa ser honrada; a tintura-mãe de todas as autoridades é o patriarcado.

 

Pediram-me que falasse sobre o senhorio do ponto de vista sobrenatural, e depois profético.

A ser dada uma definição filosófica do senhorio, provavelmente se diria o seguinte:

Senhorio e tendência para o mais elevado

Todo ser, para sustentar-se na própria existência, tende à consideração de um outro ser mais elevado, que é mais plenamente ele, e representa aquilo que ele deveria ser.

E na constatação de que encontrou um mais pleno, o indivíduo que está abaixo recebe uma espécie de corroboração de todo o seu ser e, melhor dizendo, de todas as suas profundidades. Ele, por assim dizer, floresce e frutifica com mais riqueza, mais abundância, etc., por causa desse contato. E, com isso, é levado naturalmente ao respeito e à obediência. Porque o menos que encontra a plenitude é levado ao respeito desta. Respeito se define como sendo a atitude, a disposição de alma daquele que é menos em relação àquele que é mais.

E aquilo que quem é mais possui não ficou amaldiçoadamente ingurgitado dentro de si, mas ele soube dar de acordo com a ordem que é interna nele, como ele de outrem recebeu. Aquilo que recebeu, ele entende que deve dar, que, na ordem do ser, ele deve fazer isto.

De maneira que, falando de um modo inteiramente teórico, isso chega até ao trabalho manual, onde o homem, que é senhor da natureza, acaba fazendo a esta o bem que recebeu de um que, na ordem das relações humanas, é superior a ele. E, no tapete da natureza, podemos deixar essas relações paradas; de fato, elas não morrem, mas, para nossa análise no momento, como que morrem.

O patriarca e a primogenitura

Consideremos o patriarca, que deve ser em tese o ponto de partida genealógico da tribo. Aí ele é patriarca no sentido pleno da palavra. E num sentido menos pleno, mas real, digno, autêntico, quando ele é primogênito de uma série de primogênitos.

Qual é a razão pela qual o patriarca deve ser a plenitude dos que dele descendem? Pelo fato de ele ser a origem genealógica. Além de outras superioridades, ele deu a transmissão da vida, a qual é uma ação que tem semelhança com a criação e, portanto, enquanto tal, é análoga, semelhante a Deus de um modo esplêndido.

Naturalmente, o patriarca tem por isso uma plenitude a um título especial. Mas, acho que há um carisma ou uma graça especial no patriarca, por onde ele fica com uma plenitude maior do que todos os outros, pelo fato de ser fundador daquela família. Há algo que parte dele e se distribui aos outros pelos desígnios da Providência, e que não é apenas na hereditariedade física, mas também nas relações das almas, por onde ele é a pessoa por excelência da raça que ele fundou. E na qual os outros se miram como na sua plenitude, ainda na ordem natural, mas de um matiz vivo muito especial.

Sente-se bem isso considerando a questão dos primogênitos.

O primogênito é o elemento mais nobre da família porque, com a primogenitura, entra uma participação mais nobre no patriarca, e há uma espécie de herança patriarcal que, de fato, é uma fonte de plenitude e de nobreza maiores por essa razão.

No episódio narrado no “Êxodo”, aquilo que o Egito tinha de mais nobre, inclusive os primogênitos dos escravos, foi dizimado. E para mostrar como existe algo de físico nisso, até os primogênitos dos animais foram exterminados. Quer dizer, há uma certa excelência na primogenitura até enquanto animal, que coexiste no homem com outras excelências. Isso torna o patriarca especialmente sagrado, do sagrado natural.

Toda autoridade deve ter algo de paterno

A autoridade do patriarca não encontra na autoridade do rei senão a plena expressão de si própria, como o Estado e a sociedade humana são expressões inteiras da tribo primitiva. Mas, todas as autoridades têm alguma coisa de paterno. A autoridade que não tenha algo de paterno não é verdadeira autoridade.

Neste sentido é que honrar pai e mãe significa honrar toda autoridade. Segundo o que corre por aí, honrar pai e mãe só se aplica aos pais, de maneira que quem tratar, por exemplo, o prefeito, o delegado ou o diretor do colégio como se trata um colega, não pecou contra o quarto Mandamento. Essa é a interpretação miserável, a versão simplista que se propaga.

Mas de tal maneira o princípio “princeps” está no patriarcado, que a tintura-mãe de todas as autoridades está no patriarcado. E toda autoridade é, por si, paterna.

O sobrenatural é um reflexo do esplendor de Deus

Podemos agora passar para o plano sobrenatural.

O sobrenatural é uma participação na vida divina, que nos foi obtida mediante a Redenção feita por Nosso Senhor Jesus Cristo. Esta participação eleva o homem a um grau de vida que ele não tem, mais ou menos como se um animal tivesse participação na inteligência do homem.

Não é um grau de vida a mais, como a participação da condição angélica, mas é participação na vida de Deus, que tem uma perfeição maior do que qualquer outra; é a suma perfeição. Nosso Senhor disse: “Eu vim para que tenham a vida, e para que a tenham abundantemente”(1). Então, o sobrenatural confere ao homem um esplendor de vida, uma irradiação, uma força que o comum não tem, e que é um reflexo do esplendor de Deus.

Originariamente falando, o patriarcado teria dois sentidos: o patriarcado de Pedro, o qual, por razões óbvias, tem o poder das chaves e está na regulação de toda economia que diz respeito à salvação dos homens, através da Igreja. Depois o do bispo, do vigário, da Hierarquia Eclesiástica.

Assim como a ordem sobrenatural é lesada por qualquer violação da ordem natural, ela é propícia a toda observância da lei natural. E as obrigações naturais entre o patriarca católico e o membro de sua grei, também católico, passam, portanto, a ter um caráter sobrenatural porque são operações que a graça favorece; a má ordenação dessas operações pode determinar a cessação do estado de graça, e sua boa ordenação pode ocasionar o incremento da graça. E, portanto, isso se envolve completamente com a graça e tem algo de participativo na graça, como toda ação moral do homem é um elemento de sua moralidade. E isso transparece nas relações.

O patriarca católico de uma tribo católica

Então, tomando, por exemplo, um patriarca antigo que, em virtude dos meros princípios da revelação primitiva e da lei natural, é um patriarca, ele pode ser muito venerável, mas não é um patriarca naquela plenitude em que o é um patriarca católico de uma tribo católica. É completamente diferente.

Esse poder patriarcal como que deixa transluzir, aparecer, a graça em tudo, mais ou menos como muitas vezes se nota numa igreja a presença do Santíssimo. Assim também é essa graça nas relações patriarcais.

Depois, por transposição, tudo isso se diz de todas as outras autoridades. Daí a unção do rei — a qual é um sacramental ­­— ou de quem governa o Estado em outras formas de governo; este último não é ungido, mas poderia ser se ele fosse pelo menos vitalício. Aliás, certos sacramentais não são vitalícios. Daí o caráter patriarcal e nobre de todas as relações superior-súdito dentro da Cristandade.

O Fundador de uma família de almas

O que é Cristandade?

É uma sociedade na qual as relações sociais têm essa infusão do sobrenatural e reluzem com esse esplendor sobrenatural a um título especial. Aqui entra a questão da chave de prata, e tudo que consta do livro sobre a Cristandade(2). E a um outro título é patriarca quem funda uma família de almas. É até mais nobre do que ser patriarca, no sentido genealógico da palavra.

Eu acabo de fazer os maiores elogios do patriarcado, no sentido genealógico. Mas ser ocasião para que se forme uma família de almas e atrair essas almas para esta família, é muito superior. Basta ver as cartas dos jesuítas do tempo de Santo Inácio — São Francisco Xavier, por exemplo —, a seu Fundador, para se compreender bem o que representava e o que representa o patriarca de uma família espiritual.

A respeitabilidade suma de São Bento…

Qual é o papel do senhorio dentro disso? É o mesmo sobre o qual falei no começo; a irradiação dessa plenitude, desse vínculo patriarcal, leva ao respeito e à obediência. É por excelência o senhorio.

Profetismo

Profeta não é apenas, nem principalmente, aquele que prevê o futuro, mas quem abre uma via pela qual os povos devem seguir, porque ele recebe de Deus uma missão para isso. Neste sentido, ele prevê o futuro, quer dizer, intui, discerne, ainda que passo a passo, o que tem que ser feito no momento em que cada parcela do futuro vai se tornando presente; ele sabe qual é o passo que deve ser dado.

Profetismo, no que diz respeito à salvação, é um carisma sobrenatural. É, digamos, a plenitude do patriarcado espiritual quando o patriarca é profeta também. Porque nesse caso ele abre as vias, na ordem espiritual, muito mais do que o simples patriarca. E o profetismo tem, evidentemente, a tal título, um senhorio ainda maior do que a paternidade espiritual, quando ela não é acompanhada do profetismo.

No profeta, ainda que seja um homem não bom, mas se tem o carisma profético, nele, enquanto profeta, reluz algo especial de Deus. Portanto, daquela plenitude venerável, que é senhorial e ocasiona o senhorio.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/2/1981)
Revista Dr Plinio 186 (Setembro de 2013)

 

 

1) Jo 10, 10.

2) Cristandade, a chave de prata. Obra cuja redação foi iniciada por Dr. Plinio em 1950. Ver Revista “Dr. Plinio” n. 18, p. 18-21; n. 32, p. 5; n. 45, p. 23-26; n. 46, p. 19-24.

Oração para pedir o sofrimento restaurador

Ó Mãe do Bom Conselho, tende compaixão de mim nos desacertos e nas perplexidades em que minha alma culpada se encontra. No meio de todas as minhas misérias, vossa graça me dá a convicção de que é melhor qualquer sofrimento a continuar como estou. E se, portanto, a condição para deixar este infeliz estado é me fazerdes sofrer, com os joelhos dobrados em terra e com as mãos postas, de toda a alma, ó minha Mãe, peço-Vos que me deis o sofrimento que seja necessário para eu ser inteiramente vosso e, ao mesmo tempo, a força para suportá-lo.

Nesse sentido suplico-Vos que, se for possível, eu me una inteiramente a Vós sem ser necessário esse sofrimento, e que afasteis de mim esse cálice. Mas se não for possível, a exemplo de vosso Divino Filho, digo: Faça-se em mim a vossa vontade e não a minha. A “vossa vontade”, Mãe de misericórdia, pois Vós sois o canal necessário, por desígnio de Deus, para subirmos a Ele e para que as graças venham até nós.

Mãe do Bom Conselho, mais uma vez eu Vos peço: tende piedade de mim!

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Si fieri potest…

Nossa Senhora das Dores, Vós sofrestes por mim. Que o mérito de vossas lágrimas afaste tanta dor que ameaça cair, a justo e a lindo título, sobre mim, porque não me sinto capaz de carregá-la. Sei que em algo a afastareis, mas compreendo que vossa oração pode encontrar a barreira que vosso Divino Filho encontrou, quando Ele disse: “Si fieri potest…” Então, se em algo não puder ser, dai-me forças! Tanto quanto possível, me refugio da merecida cólera de Deus junto aos vossos braços de Mãe. Contudo, se esses braços tiverem que me entregar, e eu sofrer esse holocausto por outros ou por mim, adoro essa cólera! Dai-me forças, e a suportarei.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/9/1981)
Revista Dr Plinio 186 (Setembro de 2013)

A Cruz, glorioso símbolo da vitória

As  festas litúrgicas, sabiamente instituídas pela Santa Igreja, nunca carecem de profundo significado e inestimável riqueza. Dessa forma, a doutrina católica explica que mais valem as cerimônias do que até mesmo os documentos pontifícios, alegando serem elas mais marcantes e benéficas às almas que nelas tomam parte.

Entre tais cerimônias, distingue-se a da Exaltação da Santa Cruz. A cruz, na qual morriam os condenados por graves delitos, era por esse motivo símbolo de ignomínia e repulsa por parte dos antigos, como bem expressou São Paulo em sua carta aos Coríntios: “escândalo para os judeus e loucura para os gentios” (Cf. Cor. 1,23). Foi esse o instrumento pelo qual o Redentor abriu ao gênero humano as portas do Céu, transformando-a em sinal de nossa Fé.

Vejamos o significado e a riqueza dessa festa, como explica Dr. Plinio a seguir:

“Hoje, 14 de setembro, comemora-se uma das mais bonitas festas como título e significado: a Exaltação da Santíssima Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

“Exaltar quer dizer tornar alto. E neste dia a Igreja proclama e lembra ao mundo que Ela levanta acima de todas as coisas, pondo na maior de todas as alturas possíveis, a Cruz de Nosso Senhor.

“A Cruz é o símbolo da Paixão de Cristo, de todo sofrimento que o católico carrega nesta vida, com o qual ele abre para si, em união com o Redentor, as portas dos Céus.

“Colocar a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo no ponto mais alto foi uma constante preocupação da Civilização Cristã. Antigamente, os edifícios mais elevados de uma cidade eram as igrejas, em cujas torres colocava-se a cruz; o mesmo se fazia no alto das coroas dos reis. Quando se queria elaborar um documento muito importante, em seu início se inscrevia a cruz. Enfim, em tudo aquilo que o homem concebia de mais elevado, estava a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, a qual trazia consigo a ideia de que a missão d’Ele, não se esgotando na Cruz, tinha, entretanto, nela o seu ponto central; e entre todas as coisas que o Divino Salvador tinha feito, o mais admirável e adorável era ter sofrido e morrido na Cruz.

“A aceitação do sofrimento é uma imolação e representa um ato de fidelidade do homem à sua própria vocação, em função da qual ele enfrenta as lutas, os tormentos e as dificuldades.

“Nosso Senhor Jesus Cristo, para redimir o gênero humano, aceitou a morte. Manteve a luta no Horto das Oliveiras, depois caminhou até o alto do Calvário e foi crucificado, para realizar a sua missão. E a Cruz é a afirmação de que nós, católicos, aceitamos ser humilhados, odiados, combatidos, isolados, escarnecidos, perseguidos de todos os modos, não como um armazém de pancadas, mas caminhando de encontro ao sofrimento como um cruzado.

“A verdadeira alegria da vida não consiste em ter prazeres, mas sim na sensação de limpeza da alma que temos quando olhamos nossa cruz de frente, e dizemos “sim” para ela. Fazemos, assim, como Nosso Senhor Jesus Cristo, o qual não apenas permitiu que o tormento caísse sobre Ele, mas caminhou em direção ao tormento. O Redentor previu, entregou-se porque quis e, com passo valoroso, levou sua Cruz até o alto do Calvário e ali se deixou crucificar.”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/9/1964)

A exaltação da Santa Cruz

Em todos os episódios da Paixão, nota-se o desejo de humilhar Nosso Senhor. A Cruz, de modo especial, representa as humilhações que Ele sofreu. Ela é a primeira das humilhações que, até o fim do mundo, todos os católicos haverão de sofrer por Nosso Senhor Jesus Cristo.

Por esta razão, a Cruz foi tomada como sinal de honra de tudo quanto há de mais sagrado e de mais santo, pois a honra não consiste em não sermos humilhados, mas, isto sim, em receber a humilhação com ufania.

Ter presente a contínua exaltação da Cruz é a graça que devemos pedir na festa da Exaltação da Santa Cruz.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de Conferência de 14/9/1965)

Perfeição do universo: unidade e variedade

Apresentando diversos e significativos exemplos, Dr. Plinio mostra que há duas formas de beleza: uma proveniente da unidade e outra da variedade. Deus, tendo feito a Criação, quis que alguns seres representassem sua unidade, e outros, pela variedade, exprimissem sua beleza. Por isto, a unidade e a variedade são muito bonitas, sobretudo quando se harmonizam entre si.

 

A hierarquia angélica não é formada apenas de uma série de seres distintos, mas esses seres constituem uma escala de poderes, mantendo uma relação de mando entre si. Portanto, tendo criado tantos seres desiguais, Deus os relacionou entre si em uma escala admiravelmente organizada.

Contudo, surgem as seguintes perguntas: Não seria mais perfeito se Deus criasse um único ser? Uma vez que Ele criou vários, não seria melhor tê-los feito iguais?

Nos seres existentes podem-se considerar duas formas de excelência, de beleza ou de perfeição. Há alguns dotados de um “pulchrum” inerente a eles e que reside propriamente na unidade. Existem outros nos quais a beleza não está na unidade, mas na variedade.

Unidade e simplicidade, uma forma característica e inconfundível de “pulchrum”

Por exemplo, um monólito como aquele obelisco localizado no centro da Praça de São Pedro. Ele possui uma forma elegante, mas sua beleza não está apenas na elegância. Imaginem que aquilo fosse constituído de quatro ou cinco pedras cortadas e colocadas uma sobre a outra de maneira a dar aquela configuração. Não perderia o mérito? A excelência do obelisco está em ser uma só pedra daquele tamanho. Logo, o elemento principal de sua beleza é a unidade.

Em Campos dos Goytacazes fui visitar um velho solar, hoje transformado em asilo. O assoalho da sala de jantar, de grandes dimensões, era constituído de tábuas enormes que percorriam a sala quase de ponta a ponta. Cada tábua media cerca de meio metro de largura por quase dez de comprimento. Sem dúvida, isso conferia uma beleza peculiar àquele chão. Se aquelas tábuas inteiriças fossem substituídas por tacos, a majestade daquela unidade ficaria destruída.

Outro exemplo do “pulchrum” inerente à unidade é o Lago Léman, na Suíça. São águas muito paradas, tranquilas, que nunca sofrem agitação, de um azul delicado e permanente, uma placidez absoluta. Aquela uniformidade e invariável serenidade da superfície constitui a beleza específica daquela paisagem.

Nota-se também esse tipo de beleza em panoramas como o de Copacabana ou da Praia Grande – próxima a Santos –, onde a linha do horizonte apresenta uma unidade muito grande. Não se vê o espigão de uma ilha quebrando aquilo. Em certos pontos nem mesmo se divisa a ponta de uma montanha que avance no mar e rompa o paralelismo daquelas linhas. Aliás, o “pulchrum” do Saara está nisto: um areal que não acaba mais.

Na pérola, a formosura está exatamente em sua uniformidade. Se ela tiver algum caroço ou mancha, não será bonita. Ela deve ser de uma esfericidade e brancura invariáveis e perfeitas em todos os seus pontos.

A unidade tem uma beleza característica que pode até ser superada, mas que qualquer enfeite ou modificação prejudica ou elimina.

Imaginemos que alguém quisesse fazer do já referido obelisco da Praça de São Pedro uma coisa feérica e recamasse todo ele com pedras preciosas. Ficaria coruscante de cores, talvez como uma árvore de Natal sem galhos e com bonitos efeitos de luz; mas a majestade própria ao monumento desapareceria. A seu modo, também no Asilo do Carmo, de Campos, se resolvessem serrar aquelas tábuas e substituí-las por um “parquet” lindo, formando desenhos, quiçá ficasse mais bonito e ornamental; porém, perder-se-ia o belo característico da unicidade.

Não estou comparando estilos de beleza, mas mostrando haver na unidade e simplicidade uma forma característica e inconfundível de “pulchrum”. Assim, encontramos certos seres que precisam de uma apresentação muito cuidadosa e simples.

Suponhamos que um joalheiro tenha um lindo brilhante para expor na vitrine. Como deveria apresentá-lo? Ficaria bem colocá-lo numa caixa de brocado todo trabalhado, ou em meio a uma multidão feérica de joias? Para fazer sobressair a simplicidade do brilhante seria melhor arranjar um bonito veludo de fundo sobre o qual se pusesse uma caixa muito simples, e expô-lo sozinho na vitrine. Esta apresentação realçaria a beleza desse diamante único, toda feita de simplicidade. A unidade acentua muito a grandeza, põe em evidência a homogeneidade da substância, regularidade da forma e formosura do aspecto.

Beleza específica da variedade

Outra forma de beleza é a inerente à variedade. Por exemplo, o chão da capela de Versailles para mim é um dos mais bonitos que existem no mundo. É um mosaico de várias cores e formas que dá uma impressão maravilhosa. Alguém poderia sugerir que aquilo fosse substituído por uma imensa uniformidade de mármore branco. Ali não serviria porque a beleza específica do lugar é a da variedade.

No tocante a paisagens, opondo-se à uniformidade de Copacabana, poder-se-ia citar o Flamengo, com sua variedade de montanhas, ilhas, etc.

Já no mundo das pedras, a ágata é avermelhada, cheia de veios, estrias, e o bonito está na diversidade de cores que se confundem e interpenetram. Muito característica também é a diferença entre a opala e a pérola. Esta é toda branca, enquanto aquela é multicolor. A beleza da opala encontra-se na variedade.

Estamos, assim, colocados diante de duas formas de beleza: uma proveniente da unidade e outra da variedade. Alguém poderia levantar o problema sobre qual delas é a mais excelente, e chegar a uma das seguintes conclusões. Se a beleza derivada da variedade é superior, a arte deve tender a extinguir as manifestações provindas da unidade e estabelecer, por toda parte, a variedade. Mas se é verdade que a unidade é a forma de beleza mais perfeita, então se deve perseguir a variedade e estabelecer a unidade.

Encontramos essa dicotomia na arte contemporânea, com a tendência cada vez mais frequente de impor a unidade como a beleza suprema. Não quero dizer que seja esta a tendência de todos os artistas modernos, porque há também algumas variedades desordenadas em certas manifestações da arte moderna. Mas quero afirmar que muito frequentemente esta posição se demonstra. Podemos dizer, portanto, que certos artistas e certo espírito moderno aceitaram esse problema tomando posição frente a ele e afirmando ser a unidade intrinsecamente superior à variedade.

A Criação precisa ter unidade e variedade

Isso se liga à primeira questão posta inicialmente, pois se a unidade é o supremo bem e na variedade existe algum mal, então Deus deveria ter feito uma só criatura ao invés de várias.

São Tomás de Aquino analisa três argumentos a favor da unidade. Parece que Deus deveria ter feito um só ser na Criação:

1) Todo efeito tem as qualidades inerentes à causa. Ora, Deus é uno; logo, o efeito de Deus, que é a Criação, deveria ser uno também. A Criação ser variada enquanto Deus é uno corresponde a fazer com que a ela não seja um reflexo do Criador. Logo, a variedade de seres é um mal.

2) Deus é uno; ora, se o mundo é a imagem de Deus, o mundo deveria ser uno também; se o mundo não é uno, é diferente de Deus. Tudo que é diferente de Deus é ruim; logo, o mundo é ruim.

3) O fim de todas as coisas que existem é Deus. Ora, Deus é uno; logo, todas as coisas deveriam tender para a unidade; se não tendem, elas são más e, portanto, a diversidade não deveria existir porque afasta de Deus.

A estes argumentos São Tomás responde: Deus, de fato, criou o universo para comunicar às criaturas sua bondade e representar-Se nelas. Mas nenhuma criatura, por mais excelente que seja, pode representar em si todas as bondades de Deus. Portanto, por mais que Ele fizesse perfeita uma criatura, criando mais outra além dessa primeira, haveria a possibilidade de a Criação ser mais perfeita, porque teria uma semelhança ainda maior com o Criador.

Digamos que Deus houvesse criado só Nossa Senhora, que é o mais alto de todos os seres na ordem moral; ou então um único Anjo, o qual na ordem ontológica é a mais elevada criatura. Por mais perfeita que fosse a representação de Deus contida nesse ser, ele seria uma mera criatura; assim, caberia sempre uma representação de Deus em outro ser. Portanto, dois seres representam melhor o Criador do que um; três O representam melhor do que dois; quatro, melhor do que três e mil representam melhor do que novecentos e noventa e nove. A variedade, portanto, tem uma representação de Deus melhor do que a unidade; a variedade é um bem.

É certo, diz ele, que a bondade em Deus é simples e uniforme. Mas acontece que Deus é um Ser supremo, perfeitíssimo, n’Ele a bondade pode ser simples e uniforme. Não é o que acontece nas criaturas, que não têm a mesma perfeição de Deus. Por isto, elas não podem ter uma bondade simples e uniforme. Nelas a bondade tem que ser variada. De maneira que, embora a unidade, em si, seja mais perfeita, para as criaturas ela não é assim. É preciso que elas, de fato, tenham a variedade.

Chegamos, então, à conclusão de que a alternativa unidade-variedade é mal posta. Deve haver seres que por sua esplêndida unidade sejam um reflexo da unidade divina; mas também seres que por sua variedade reflitam melhor a Deus do que pela unidade. E propriamente o que a Criação precisa ter é unidade e variedade.

Cores, música e a fachada de Notre-Dame

Todos os modernos que procuram a unidade em tudo andam mal, como andariam mal os que só buscassem a variedade. É preciso que ambas existam, seres excelentes por sua unidade e por sua variedade. É por esta forma que podemos compreender a perfeição do universo.

Isto se torna mais claro quando tomamos certas formas de arte, por exemplo, a pintura. Ticiano(1) pintava quadros de cores maravilhosas. Eu vejo uma beleza dos quadros de Ticiano, se tomar cada cor e analisar. É claro que cada cor é muito bonita. Mas ao lado da beleza de cada cor eu noto que é mais bonito ter várias cores do que uma só. E há uma terceira forma de beleza que não consiste na variedade das cores, mas no contraste e na harmonia entre elas.

Então, temos três formas de beleza: a de uma cor, a pulcritude especial que vem da existência várias cores, e outra proveniente da combinação das cores entre si. Ora, essas formas de beleza vêm da variedade.

A música, por exemplo. O universo musical tem uma particular beleza que corresponde a cada nota. Contudo, é mais bonito que haja sete notas do que uma só; e é mais belo ainda que se possa fazer uma música e um jogo entre essas sete notas. Temos assim três gamas de beleza, que fazem a pulcritude do universo musical.

Deus, tendo feito a Criação, quis que alguns seres representassem sua unidade, e que a variedade de outros significasse sua beleza. Por isto, a unidade e a variedade são muito bonitas, sobretudo quando se harmonizam entre si. Temos assim seres com grande variedade e, ao mesmo tempo, com grande unidade.

É característica disso, por exemplo, a fachada de Notre-Dame: formigando de pequenos desenhos, mas com uma linda unidade nas linhas essenciais. Prova-se por aí que Deus, para fazer o universo com o grau de perfeição que Ele quis, teria que fazer um universo variegado. Não teria atingido esse grau de perfeição se houvesse feito um só ser.

A questão seguinte seria: tendo Deus estabelecido a variedade, deveria estabelecer, necessariamente, a desigualdade? Mas esta é matéria para uma próxima conferência.         v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 1957)

Revista Dr Plinio 258 (Setembro de 2019)

 

1) Ticiano Vecelli (*1488 – †1576). Pintor renascentista veneziano.

 

Glorifiquemos a Cruz com ufania!

Dr. Plinio nunca deixou de denunciar um catolicismo sentimental que se afasta da Cruz, pretendendo que os cristãos vivam uma vida de langor que não segue as vias do Divino Mestre. A festa da Exaltação da Santa Cruz, comemorada a 14 de setembro, deu-lhe certa feita o ensejo para uma dessas importantes admoestações.

 

A cruz era um instrumento de suplício, usado na antiguidade, que representava uma ignomínia para toda pessoa que fosse crucificada. Era uma vergonha tanto para o sentenciado como para sua família.

Os cidadãos romanos não eram sujeitos à crucifixão, por isso São Paulo, tendo direito às honras de cidadão romano, foi em seu martírio decapitado e não crucificado.

A cruz representou o auge de todas humilhações sofridas por Nosso Senhor

Nosso Senhor recebeu tremendas humilhações durante sua vida terrena. Essas correspondiam a um ódio crescente contra ele, e desfecharam na maior de todas as humilhações possíveis, que foi o  sacrifício da Cruz.

Durante a Paixão, a intenção de humilhar a Nosso Senhor ficou evidente, por exemplo, na coroação de espinhos, na túnica de irrisão com que O cobriram e na cana que lhe puseram na mão à guisa de cetro.

As pessoas que O maltratavam revelavam o desejo de atormentá-Lo na sua Alma Santíssima, e não apenas no seu Corpo Puríssimo.

Sendo por fim crucificado, Nosso Senhor Jesus Cristo sofreu uma humilhação tremenda, pois com esse tipo de morte proclamava-se que Ele era um bandido, um ladrão, do mesmo gênero que os dois outros facínoras com os quais Ele foi crucificado.

E é neste sentido que a cruz não foi uma humilhação a mais, mas foi o auge de todas as outras humilhações que Ele sofreu durante a sua existência terrena. A cruz inaugurou também todas as  humilhações que até o fim do mundo os católicos haveriam de sofrer por causa de Nosso Senhor Jesus Cristo. Não há um só católico bom que não tenha sido humilhado por causa de sua fidelidade a Nosso Senhor. Mas isso é uma honra, é exatamente uma das bem-aventuranças: ser perseguido por amor a Jesus Cristo.

Nós, católicos, sofremos essas humilhações e havemos de sofrê-las até o fim do mundo, porque a impiedade nunca cessará de ultrajar a Deus.

Símbolo de glória, para reivindicar a honra de Jesus Cristo

Mas a honra de Deus, a honra de Nosso Senhor Jesus Cristo foi reivindicada pela Igreja. Os católicos adotaram a Cruz como um símbolo de glória, como o símbolo de quanto há de mais sagrado e  santo, e assim tivemos as três manifestações características dos tempos de Fé: a Cruz colocada no alto das coroas; a Cruz como sinal heráldico dos mais nobres galardões das famílias da alta  aristocracia e a Cruz colocada como insígnia das condecorações.

Foi uma exaltação da Cruz o que se deu, para revidar aquela humilhação, e revidá-la com ufania cavalheiresca, com ufania sobrenatural. A honra consiste em receber a humilhação com ufania O aparecimento da Cruz a Constantino na Ponte Mílvia e a promessa: “Com este sinal vencerás!”, significava isto: a Cruz se levantava no céu e ia definitivamente se incorporar ao horizonte do  undo, humilhando por sua vez os ímpios e os demônios.

E ao mesmo tempo, a Cruz passaria a ser o sinal da honra dos católicos. Nossa honra não consiste em não sermos humilhados, mas consiste em receber a humilhação com ufania, gabando-se da humilhação e, mais ainda, com espírito de desafio. Em face daqueles que nos humilham, nós revidamos como cavalheiros e proclamamos com ufania ainda maior a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

A exaltação é a proclamação da glória da Cruz com ufania

Exaltação é propriamente isto: é a proclamação da glória da Cruz, com tal ufania que aniquila as humilhações que o adversário procura mover contra Cristo. Daí vem a palavra exaltar. “Exaltare”, de  ex (em direção a) e “altus” (alto), levar para o alto, ou seja, pôr no alto aquilo que estava humilhado, que estava rebaixado.

A exaltação da cruz é a glorificação da Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

A causa de Deus precisa ser defendida com espírito de Cavalaria. Portanto, se alguém injuria a Cruz diante de nós, devemos redarguir com energia. Porém, não como quem defende a própria honra, porque honra pessoal é coisa muito insignificante, mas como quem defende a honra de Nosso Senhor Jesus Cristo. O amor pela contínua exaltação da Cruz, com esta espécie de espírito de cavaleiro, que está lutando continuamente pela glória da Cruz, é a graça que devemos pedir na festa da Exaltação da Santa Cruz.

Plinio Corrêa de Oliveira

Ladainha de São José

-Senhor, tende piedade de nós.
-Jesus Cristo, tende piedade de nós.
-Senhor, tende piedade de nós.
-Jesus Cristo, ouvi-nos.
-Jesus Cristo, atendei-nos.
-Deus Pai dos Céus, tende piedade de nós.
-Deus Filho Redentor do mundo, tende piedade de nós.
-Deus Espírito Santo, tende piedade de nós.
-Santíssima Trindade que sois um só Deus, tende piedade de nós.
-Santa Maria, rogai por nós.
-São José, rogai por nós.
-Ilustre filho de David , rogai por nós.
-Luz dos Patriarcas, rogai por nós.
-Esposo da Mãe de Deus, rogai por nós.
-Casto Guarda da Virgem, rogai por nós.
-Sustentador do Filho de Deus, rogai por nós.
-Zeloso defensor de Cristo, rogai por nós.
-Chefe da Sagrada Família, rogai por nós.
-José justíssimo, rogai por nós.
-José castíssimo, rogai por nós.
-José prudentíssimo, rogai por nós.
-José fortíssimo, rogai por nós.
-José obedientíssimo, rogai por nós.
-José fidelíssimo, rogai por nós.
-Espelho de paciência, rogai por nós.
-Amante da pobreza, rogai por nós.
-Modelo dos operários, rogai por nós.
-Honra da vida de família, rogai por nós,
-Guarda das virgens, rogai por nós.
-Sustentáculo das famílias, rogai por nós.
-Alívio dos infelizes, rogai por nós.
-Esperança dos doentes, rogai por nós.
-Padroeiro dos moribundos, rogai por nós.
-Terror dos demônios, rogai por nós
-Protetor da Santa Igreja, rogai por nós

-Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo, perdoai-nos Senhor.

-Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo, ouvi-nos Senhor.

-Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo, tende piedade de nós.

  1. Ele constitui-o senhor de Sua casa.
    R. E fê-lo príncipe de todos os seus bens.

Oremos: Deus, que por inefável Providência, Vos dignastes escolher a São José por Esposo de vossa Mãe Santíssima; concedei-nos, Vo-lo pedimos, que mereçamos ter por intercessor no Céu aquele que veneramos na Terra como protetor. Vós que viveis e reinais nos séculos dos séculos. Amém

 

A exaltação da Santa Cruz, em nós e fora de nós

Cada um tome sua Cruz e siga-Me”. Nestas palavras de Nosso Se- nhor estava, para Dr. Plinio, a chave da felicidade humana. Só quem amorosamente aceita as cruzes que Deus lhe envia, encontra paz de espírito. Tema apropriado para este mês em que se comemora a exaltação da Cruz por excelência – a de Cristo.

 

A exaltação da Santíssima Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo é uma das mais belas festas da Igreja, como título e como significado.

Consideremos, antes de tudo, o que a palavra “exaltação” traz consigo.

Segundo a linguagem comum, impregnada de pieguice, o indivíduo exaltado é aquele que facilmente se irrita, derramando sua bílis sobre os outros. A verdadeira exaltação, porém, nada tem a ver com o mau gênio. Do latim “exaltere”, significa tornar-se alto, elevar-se, subir.

A exaltação da Santa Cruz de Nosso Senhor é, portanto, a festa pela qual a Igreja recorda e proclama aos olhos do mundo que ela ergue o símbolo da Redenção acima de todas as coisas, colocando-o na sua devida e suprema altura.

O auge das humilhações sofridas por Jesus

Este louvor se reveste de grandeza e de júbilo ainda maiores, quando consideramos que a cruz, originalmente, era um instrumento de suplício usado em toda a antiguidade, que representava a ignomínia e a vergonha para toda pessoa que sofresse a pena da crucifixão.

Por isso, ao ser pregado na cruz, Nosso Senhor Jesus Cristo sofreu tremenda humilhação. Esta equivalia a dizer que Ele morria como um bandido, um ladrão, equiparado aos dois facínoras com os quais foi crucificado no alto do Gólgota.

Neste sentido, a cruz representa o auge de todos os desprezos e escárnios que Jesus padeceu na sua vida pública, sobretudo nos trágicos dias da Paixão. Essas humilhações correspondiam ao desejo dos algozes de acrescentar aos tormentos físicos um martírio moral, ainda mais doloroso. Então, a coroa de espinhos, a túnica de bobo, a cana à guisa de cetro, as bofetadas, etc., na intenção de atormentar a alma adorável de Nosso Senhor, e não apenas o seu corpo santíssimo.

Mas, sendo verdade que a Cruz de Nosso Senhor foi o ápice de todas as humilhações sofridas por Ele, ela é também o começo de todos os desprezos que até o fim do mundo todos os católicos haveriam de suportar em nome do Filho de Deus. Porque a impiedade não se desarma nunca. Ela visa sempre menosprezar e abater a autêntica moral cristã. Raros, se não inexistentes, são os católicos que não tenham sido humilhados, de uma forma ou de outra, por causa de sua fidelidade a Jesus Cristo. O que constitui, aliás, uma bem-aventurança, pois significa ser perseguido por amor à justiça divina, contra a qual continuamente se erguem os ímpios.

Cumpre, porém, frisar que a Cruz de Cristo, e as cruzes que por Ele carregamos, são igualmente símbolos de nossa honra. Esta consiste em recebermos a humilhação com ufania, gabando-se dela. Mais: com um espírito de desafio. Em face daqueles que nos injuriam, proclamamos com brio e júbilo ainda maiores o supremo símbolo de nossa religião. O que corresponde inteiramente à ideia de exaltação: manifestar a glória da Cruz, com uma altaneria que esmague os ultrajes que os adversários procuram fazer a Cristo.

Vem a propósito recordar que essa ufania já fora ratificada nos primeiros séculos do Cristianismo quando, às vésperas da batalha de Ponte Mílvia, o Imperador Constantino teve uma visão da Cruz, circundada pelas palavras: “In hoc signo vinces — com este sinal vencerás!” Era um anúncio de que a Cruz se levantava no céu e iria ficar definitivamente no horizonte do mundo, humilhando por sua vez os maus.

Essa galhardia é o que falta ao católico piegas. Este, diante de qualquer humilhação, mostra uma cara preguiçosa, baba e foge. Enche de vergonha a causa que deveria proteger. Nossa religião precisa ser defendida com espírito de luta e, portanto, se alguém injuria a Cruz em nossa presença, devemos redarguir com destemor e bravura. Não como quem resguarda a própria honra, mas como quem responde pela honra infinitamente mais preciosa de Nosso Senhor Jesus Cristo e, em união com a d’Ele, a da Santíssima Virgem.

No alto das torres e das coroas

Paralelamente, essa honra do Homem-Deus é também reivindicada pela Igreja. E, por causa disto, os católicos tomaram a Cruz como sinal de distinção, como símbolo de tudo quanto há de mais sagrado e santo. E o colocá-la no alto de todas as coisas foi uma preocupação constante da Civilização Cristã. Vieram então as manifestações características dos tempos de Fé: a Cruz encimando as elevadas torres das igrejas e catedrais; a Cruz no topo das coroas de reis e imperadores, ou adornando os mais nobres galardões das famílias da primeira aristocracia, ou servindo de insígnia nas condecorações. E quando se queria significar a magna importância de um documento, iniciava-o com uma cruz. Enfim, em tudo quanto o homem concebia de supremo, estava a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, trazendo consigo a ideia de que, entre todas as maravilhas por Ele operadas neste mundo, o mais admirável e o mais adorável era o ter sofrido e morrido naquele instrumento de vergonha. Trazendo consigo, ainda, o revide a essa humilhação, um revide cavalheiresco e sobrenatural a exaltação da Santa Cruz!

A Cruz glorificada em nosso interior

Outro ensinamento há, porém, que encontramos na Cruz.

Nosso Senhor Jesus Cristo é o Redentor do gênero humano. Ele tinha de redimi-lo aceitando a morte. Por isto suportou a agonia no Horto das Oliveiras e os flagelos da Paixão, caminhou até o alto do Calvário e se deixou crucificar, a fim de cumprir a missão que O trouxe ao mundo.

A partir desse momento, a Cruz tornou-se a afirmação dos sofrimentos, dos tormentos e das dificuldades que o homem aceita para realizar os desígnios de Deus sobre ele na terra. Então enfrenta tudo, a exemplo de Nosso Senhor, para seguir a superior vontade divina. Tal é a lição que nos dá a Cruz: abraçar a dor, o sacrifício, o holocausto, num ato de fidelidade do homem à sua própria vocação.

Fidelidade esta que implica não só na luta de uma vida inteira para que a religião católica vença e a Cruz de Nosso Senhor seja elevada sobre todas as coisas, como também na vitória em nossos combates interiores. Com efeito, continuamente travamos uma batalha dentro de nossas almas, na qual se opõem virtudes e pecados. Este antagonismo redunda num atrito e numa fricção interna que, em determinados momentos, chega a ser pungente. Pois bem, esta luta, é preciso que a olhemos de frente, e que tenhamos sempre a iniciativa audaciosa de derrotar o pecado. Esta batalha é, de certo modo, a glorificação da Cruz de Nosso Senhor dentro de nós.

A verdadeira alegria está na Cruz

Essa consideração encerra um importante corolário.

Desde os primórdios do cristianismo, os homens se batizaram à sombra da Cruz, casaram-se sob a proteção dela, a colocaram no melhor lugar de seus lares, e, chegados ao derradeiro instante de suas vidas, morreram olhando para ela. Quer dizer, a Cruz tem marcado toda a existência do católico. É mais uma expressão da ideia

fundamental de que o cotidiano terreno foi feito para o sofrimento e para o heroísmo. E quem fala em heroísmo, fala em cruz.

A verdadeira alegria da vida não consiste em desfrutar prazeres grandes ou pequenos, em ter fartura no comer e no beber, nem qualquer outra espécie de conforto. A autêntica satisfação da vida é aquela sensação de limpeza de alma que se possui quando fitamos de frente a nossa cruz e dizemos “sim” a ela. Desse modo, agimos como Nosso Senhor Jesus Cristo que, sem esperar a chegada do sofrimento, previu-o e se dirigiu ao lugar onde haveria de encontrá-lo. Ele se entregou porque quis, e, com passo valoroso, carregou sua Cruz até o cimo da montanha onde seria imolado. Portanto, evitemos a ilusão das alegrias efêmeras, e muitas vezes falsas, que nos prometem as diversões mundanas, as vaidades e os êxitos temporais, porque não constituem a verdadeira essência de nossa existência. “Mititia est vita hominis super terram” a vida do homem é um constante combate, dizia o santo Jó . Como afirmamos, a essência da vida é uma luta dentro e fora de si, aceitando o sofrimento de frente e fazendo dele a sua alegria. Isto é verdadeiramente a exaltação da Cruz em nós.

E não há católico sincero que não seja um ardoroso amigo da Cruz. Que, confiante na misericordiosa assistência de Maria Santíssima, não compreenda e não fique feliz em saber que as dificuldades e penas ocupam parte saliente no seu peregrinar por esta terra de exílio. É conhecendo e aceitando essa condição de batalhador contra seus próprios defeitos, assim como contra a impiedade -, é unindo-se aos méritos infinitamente preciosos da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, que ele abrirá para si as portas da eterna bem-aventurança.

Imitemos Aquela que mais amou a Cruz

Tudo o que acabamos de considerar constitui o espírito de cruz, pelo qual se concebe crucificadamente todas as coisas, pelo qual batalhamos e vencemos, pois os grandes guerreiros da vida foram os que se revestiram desse espírito, desse amor à Cruz, dessa naturalidade no sofrimento, que caracteriza o genuíno filho da Santa Igreja e seguidor de Cristo.

Para adquirirmos esse espírito, nada melhor poderíamos fazer do que suplicá-lo a Nossa Senhora, pedir-Lhe que nos conceda o amor que Ela mesma teve à Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Podemos imaginar, sem ferir os ensinamentos da ortodoxia católica, que passados os tormentosos dias da Paixão, vividas as alegrias da Ressurreição e após a gloriosa partida de Jesus deste mundo duas grandes felicidades restaram a Nossa Senhora na terra: uma, a da presença de seu Divino Filho na Eucaristia; outra, a meditação da Cruz. Que pensamentos, que cogitações e preces fazia a Co-Redentora nas suas horas de solidão e recolhimento, recordando o patíbulo em que se imolou o Cordeiro de Deus?! Quanto Ela reverenciou aquela cruz! Quanto Ela a honrou! E que meditações sublimíssimas Ela fez aos pés do Madeiro, no próprio instante em que nele morria o Salvador! E a que alto grau, inimaginável, elevou-se n’Ela o espírito de sofrimento o espírito de cruz -, tornando-se para nós um luminoso exemplo de alma crucificada! Então, devemos pedir a Maria, em nome dessas meditações solitárias d’Ela diante da Cruz, nas quais talvez Ela tenha tido em vista a cada um de nós, esse mesmo espírito de cruz. Que nos incuta esse respeito, essa admiração e esse entusiasmo pelo verdadeiro sofrimento e, mais ainda, esse desejo heroico de sofrer, que é o característico do verdadeiro católico. Numa palavra, roguemos a Ela a graça dessa contínua exaltação da Santa Cruz em nós, para a exaltarmos continuamente fora de nós.

Errata: Por um problema técnico, no artigo de agosto desta seção faltaram as duas últimas linhas: “… segundo a promessa que fiz em Fátima o Meu Coração Imaculado triunfou!”

 

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Uma síntese do imenso e variegado Brasil

Discernindo a harmonia e a afabilidade nos contrastes geográficos mais surpreendentes, Dr. Plinio apresenta duas fisionomias do Brasil, pouco ressaltadas nos discursos patrióticos, e que nos apresentam uma síntese a respeito deste imenso país, tão rico em variedades.

 

Há um contraste entre a fisionomia espiritual, psicológica, do Brasil marítimo e do Brasil do interior. Quando se presta atenção, nota-se que isto forma dois Brasis diferentes.

A peleja harmoniosa entre as ondas do mar e os rochedos

Um Brasil claro, luminoso, diáfano, branco, cristalino, refulgente com todas as luzes do mar, cujas ondas investem continuamente contra os grandes rochedos. Mas, quando bate no rochedo, a onda se espatifa e dir-se-ia que sorri antes de cair; e o rochedo, ao receber o golpe da onda, parece condescendente com ele.

É uma peleja, mas que peleja! E quanta harmonia nessa peleja! A muralha de pedra resiste, mas quando a onda se esvai, dir-se-ia que aquela tem saudades da maré montante. A muralha fica esperando outra maré e outros impactos.

É algo que precisa ser visto! Essas águas que se movem, mas não chacoalham; essa espécie de doçura dentro da natural e digna ferocidade do mar, de força dentro da doçura do ambiente; a vegetação discreta de fundo de quadro, que timbra em não ser muito grande e não chamar muita atenção — apenas uma moldura verde em torno do panorama para completar o quadro —, e deixando ao mar as honras da sala.

Tudo está feito de modo especial, ao longo de todos os litorais brasileiros que tenho visto. Lembro-me, no Rio, da mata da Tijuca, por exemplo. Que mata linda, encantadora, suave! Que mata que sorri! Acho que é o único matagal sorridente existente no mundo. Na cascata da Tijuca, a água vem deslizando ao longo da pedra… Dir-se-ia os babados de uma cortina! Dali pode-se ver, a certa distância, o mar e a mata, amiga do mar, constituindo com este um só panorama. Pensamos um pouco e dizemos: Brasil!

Serranias majestosas, imponentes, mas afáveis

Como isto é diferente do interior do Brasil! Vastidões enormes, do tempo em que elas me entraram na retina, quando eram ainda desocupadas. Às vezes, planícies e mais planícies a perder de vista, com uma vegetação bastante grande para atestar a fecundidade da terra, mas não tão grande que tolhesse a expansão da vista. Não há um lugar onde não haja o verde em qualquer canto. Tudo dá; tudo corresponde à descrição de Pero Vaz de Caminha: “Senhor, a terra é dadivosa e boa, em se plantando dá”! Porque isso significa futuro indefinido e sem obstáculos. De repente umas montanhas que encrespam, serranias que crescem, se tornam majestosas, imponentes, nem uma vez ameaçadoras, sempre afáveis, amáveis.

Consideremos uma montanha original, a qual todos que estão neste auditório conhecem pelo menos por fotografia, se não viram pessoalmente: o Dedo de Deus, na estrada de Teresópolis, meio irmão do Pão de Açúcar, só que colocado a caminho da região montanhosa. Ele é tudo, mas não arrogante nem ameaçador; não diz a nenhum monte vizinho: “Por que você não chegou até onde estou?” Não empurra o mar com o pé, nem despreza a floresta. Ele se ergue no meio da floresta, como um jato de seriedade e de alegria.  Assim é em geral a serrania brasileira.

Sobrevoei todo o Estado de Minas Gerais, quase de ponta a ponta; Estado de minério e, portanto, muitas vezes com metal no subsolo — a terra é pouco fértil. E acompanhei aquelas ondulações a perder de vista, que caracterizam certa zona do Estado de Minas Gerais. Era dia claro, o sol incidia no solo e eu, num avião particular que me levava, olhava para aquilo com atenção e pensava: “Mas que panoramas! Que cenas bíblicas poder-se-iam ter dado nessas serranias! Que revelações, que acontecimentos, que milagres! Para que foi feito tudo isto?”

Os homens veem o tesouro que isso contém por debaixo, e contam com isto. Está bem, porque lhes foi guardado aí por Deus. Por que eles não veem o tesouro ainda maior, o valor simbólico, a expressão de alma de tudo isto? A única ideia deles é rasgar o solo para tirar o metal que contém. Está bem, digo mais uma vez, mas não está bem que seja só isso. É possível que algum comentador mineiro tenha cantado isto, tenha feito poesias. Não chegou ao meu conhecimento! Portanto, posso dizer, sem presunção, que não é conhecido pela média dos brasileiros. É um valor que deveria estar ao alcance de todos os brasileiros.

A treva verde

Vi alguns matagais. Como são belos! Mas dir-se-ia que a vegetação é tão exuberante que ela procura fugir de dentro da terra; que as árvores estão sem ar e sem espaço para se desenvolver; que elas lutam umas com as outras; que a luz não consegue entrar e há uma treva verde ali, a qual lateja no meio de miasmas, pantanais, madeiras podres, de cobras que silvam, de bichos esquisitos que correm de um lado para outro. De vez em quando, pássaros voam daqui para lá, se fazem ver num raio de sol e de repente fogem para outro rumo.

A pessoa observa aquilo e diz: “Como é verdade que às vezes o deslumbrante, o feérico acompanha o horror!” É uma dura regra da ordem concreta dos fatos. Ali há uma coisa que pulsa, se esconde, ameaça ciladas, e dentro desse bojo parecem saltar agressões; é inimigo da luz e favorável às trevas.

Aquele acúmulo de restos animais e vegetais de séculos e séculos… Se não aconteceu que uma tribo de velozes índios passou de um lado para outro, numa espécie de terrorismo mútuo, tribo contra tribo numa guerra sem fim…; o que foi a desdita daqueles homens, engaiolados dentro dessa treva verde? O que fez com que isso tenha pulsado assim durante tanto tempo e, sob o olhar de Deus, parecia não se mover?

O bandeirante, o missionário, o agricultor

Em certo sentido, o melhor da História da Nação se passou na mata, com o bandeirante, o missionário, o agricultor que se fixa e vai avançando selva adentro, domesticando a natureza, pondo ordem nas coisas, dando fertilidade ao solo. As missões e as bandeiras conquistaram, sem guerra, um território maior do que Napoleão dominou com guerras. Basta pegar um mapa e ver o que Napoleão conquistou, e depois observar o que obtiveram os homens aqui, andando dentro do horror verde, com uma força de impacto não inferior à dos navegadores portugueses.

Quando se pensa no que restou da conquista dos grandes navegadores — tais como Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque — e no que sobrou da conquista dos desbravadores, que diferença!

Não se trata apenas de perguntar quem conquistou tanto, mas quem fez uma conquista tão durável. Qual foi o inimigo desses desbravadores? Conforme acabo de descrever, foi o escuro, a podridão, a agressão, o disfarce, a vegetação tão espessa que — exagerando um tanto — era uma montanha vegetal para ir abatendo, a fim de prosseguir. Quantas e quantas vezes a picada tomava as características de um túnel dentro da vegetação! Era preciso perfurar esse túnel, no tempo em que o mundo quase não conhecia túneis, e ali foi traçada esta enorme fronteira, que todos conhecem. Isto foi uma grande conquista, com a qual se fez uma História que deve prosseguir.

Temos aí dois aspectos do Brasil, que não vejo serem realçados em geral nos discursos patrióticos, com esses matizes e essas circunstâncias. Mas que a mim me satisfazem, não por ser a minha pátria, mas porque é uma tradução, uma expressão fiel da realidade; e toda expressão da realidade encanta quem é filho da luz, de maneira que isso me encanta.

Vejam a diferença entre essas duas fisionomias! A praia fácil, na qual se poderia fazer uma estrada… E se tomarmos a força da serrania e a coordenarmos com a suavidade das praias, o glorioso da luta contra a vegetação e a pujança da natureza, temos uma síntese que nos pode dar uma ideia daquilo que é o Brasil.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/5/1981)