O Coração de Jesus no interior do Coração de Maria

Na época histórica em que o Sagrado Coração de Jesus aparecia com doçuras de mãe para com o gênero humano, Nossa Senhora apresentava-Se geralmente como a Rainha da Contra-Revolução. A nós foi dada a tarefa de fazer uma síntese e encontrar o Sagrado Coração de Jesus no Coração Imaculado de Maria.

 

Nós, seres humanos, estamos colocados na junção entre o mundo material e o mundo espiritual; vemos abaixo de nós o mundo material em várias gamas e sabemos pela Fé da existência do mundo espiritual em muitas outras gamas. Temos ciência de que participamos do grão de areia, como da própria vida divina pela graça. Percorremos com nossa natureza todas as escalas.

Superioridade participada

Se temos um senso do ser inocente, este nos dá uma noção de nossa própria dignidade que nos faz medir, em nós mesmos, a superioridade de nossa alma sobre nosso corpo, e tudo quanto temos de mais digno por possuirmos alma, sem que sintamos vergonha por termos corpo. Mas notamos tudo quanto há de belo em possuirmos uma alma, e como ela é um céu em comparação com nosso corpo.

Nós sentimos a superioridade de nosso corpo sobre os animais, as plantas e os minerais. Percebemos que é uma superioridade participada. Eles e nós temos algo de tudo quanto existe, mas estamos no ápice da matéria, a tal ponto que somos uma montanha no alto da qual arde a chama denominada alma.

Estamos, portanto, num ápice, mas por cima dessa chama há o céu inteiro. Então a montanha é ao mesmo tempo altíssima, porém se medirmos a distância com as estrelas veremos que é um “formigueiro”. Tendo o senso do ser reto a pessoa sente ordenadamente tudo isso em si, todas essas grandezas, como todas essas pequenezes, proporcionando-lhe uma espécie de maravilhamento discreto, interno.

Lembro-me de que isso se deu em mim, por exemplo, quando pela primeira vez comecei a pensar a respeito do olhar humano, o que é o olho humano e tudo quanto confere de dignidade ao corpo o fato de ter olhos.

Acho que realmente a parte mais sensivelmente nobre do corpo humano são os olhos. Não se pode negar. E como o olho é bonito, quanta coisa exprime! É o único traço que o homem tem o qual nunca é feio! Pode existir um olho machucado, doente, mas um olho feio não há! A fisionomia, o porte, o passo e tantas outras coisas são reflexos da alma no corpo; os olhos espelham a alma.

Consideremos os bichos. Deus quer que alguns animais inferiores a nós sejam mais bonitos do que nós; mas são de uma beleza de segunda classe. De beleza de primeira classe somos nós.

O pavão, por exemplo, como ele é distinto, diplomata, se mexe com jeitos! Um certo modo que tem o pavão de jogar para trás a cabeça e o pescoço; os olhos  quase que se dilatam, e ele olha de frente e de cima, com nobreza. Ele de certo modo finge não estar vendo bem as coisas que se encontram diante dele, como se estivessem distantes. Depois ele se volta bem devagarzinho para receber o aplauso das multidões… É muito bonito!

As mais marcantes diferenças existentes entre os homens

Possuindo um senso do ser bem construído, nós sentimos essas hierarquias e compreendemos que umas estão para as outras numa forma de relação que deve encher de admiração as menores, porém de uma admiração grata! Porque sempre que a maior toca na menor não a humilha, mas a beneficia e honra.

Prestando bem atenção, ao considerarmos a relação entre nós e os Anjos, põe-se muito clara a seguinte pergunta: Como é o Anjo em face de quem é superior a ele? Ora, superior a ele, enquanto natureza, só Deus. Como natureza, Nossa Senhora não é superior ao Anjo, e nem sequer a humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo.

As mais marcantes diferenças que há entre os homens são de ordem sobrenatural. É o batizado para o pagão, depois o clérigo para o leigo. São relações como que divinas.

Somos membros do Corpo Místico de Cristo e em nós vive a graça de Deus; somos templos do Espírito Santo, escravos de Maria Santíssima, filhos d’Ela, portanto, a um título e de um modo todo particular.

Nós estamos para um pagão, na ordem da graça, mais ou menos como na ordem da natureza o Anjo está para nós. Somos “anjos” para um pagão. E um pagão que dissesse a um de nós: “Vou dar-lhe uma bofetada porque você é batizado”, ele esbofetearia em nós o sacramento do Batismo conferido indelevelmente. Sobretudo o bispo, que possui a plenitude do sacerdócio, é como que Deus para nós. Ele ensina, governa e santifica. Todos os sacramentos, toda verdade, a direção de nossos passos no rumo da vida eterna vêm por ele. É como que Deus presente entre nós, e algo de divino habita o bispo.

Na ordem natural há algo disso na relação pai-filho. Mas a Doutrina Católica sempre entendeu que honrar pai e mãe é honrar adequadamente todas as autoridades, na medida em que elas tenham um poder análogo à paternidade, por exemplo, o patrão, enfim, todos os superiores devidamente. Porque quando a autoridade é de um certo gênero, ela participa, na ordem natural, de uma superioridade análoga — não idêntica — à superioridade existente nas relações Deus-homem.

É isto que devemos saber reconhecer nos nossos superiores, e tocá-los, inclusive fisicamente, com respeito, porque neles habita isso.

Respeitabilidades amigas, o contrário da luta de classes

Dou um exemplo claro de ver: o professor e o bedel num colégio. O professor, enquanto está dando aula, tem uma superioridade pura e simples sobre o aluno. O bedel possui uma superioridade, mas uma superioridade que até é um título de inferioridade. Ele é um empregado do colégio para tomar conta dos alunos e, portanto, não imita, a não ser de um modo muito indireto, um vislumbre, o poder de Deus. Mas o poder do professor imita o poder de Deus, e um aluno que esbofeteasse seu professor, enquanto este ensina, pecaria contra Deus.

Sirvo-me, agora, de uma metáfora muito familiar: a nata e o leite.

Uma quantidade abundante de leite de alta qualidade posta numa panela, por exemplo, dá origem, por um lento, discreto e nada artificial processo de diferenciação, à nata que fica acima dele e constitui uma camada. Se cada gota de leite pudesse falar, diria para a dona de casa: “Olhe a nata!” E se a dona de casa sorrisse para a nata, esta falaria: “Mas olhe também de que leite eu fui formada!”

Disseram-me — e me parece bem provável — que as qualidades do ar têm algum efeito para a formação da nata. Logo, o céu atmosférico, a seu modo, age sobre o leite para que destile a nata. Portanto, esta não é puro produto do leite, mas do leite “tocado” pelo céu.

E notem: isso ocorre na ordem meramente natural, mas que nos ajuda a ter uma ideia do que significa essa superioridade divina, do que é Deus em relação a nós, e o que é um de nós perto de Deus, para compreendermos todos os abismos onímodos de inferioridade e de hierarquia e, depois, os graus intermediários como são.

Tomemos outro exemplo: o mármore. Dir-se-ia que o mármore é nata da terra, reservada por Deus em blocos e dada aos homens para fazerem suas igrejas, seus monumentos, palácios etc. Por isso eu falo do mármore com respeito.

Esta visão do mundo como uma espécie de jogo de respeitabilidades amigas, que se perdem quase ao infinito, é o contrário da luta de classes.

Respeitabilidades amigas que a mil títulos reluzem aos olhos do homem, fazendo entender tudo quanto vai desde a pequena respeitabilidade do bedel, quando ele transitoriamente dirige a fila, até a autoridade de um reitor de universidade. Há mil aspectos da superioridade que ficam cintilando como estrelas no céu, cada uma com um brilho próprio e, no fundo, cantando a glória do Superior dos superiores que é Deus.

Resolvendo um problema até o fundo

Tive um professor que, em certa ocasião, pôs a seguinte questão, de um modo inteligente e atraente:

“Nós existimos para Deus, mas hoje em dia não se tem uma ideia clara do que significa existir para alguém. Por isso, vou dar-lhes um exemplo. Se uma galinha tivesse inteligência, ela de tal maneira saberia ter sido criada para ser comida por um homem que, enquanto estivesse no galinheiro, ficaria frustrada de ver as outras galinhas irem para a panela e ela não. Agora, qual seria a reação dessa galinha inteligente quando fosse chamada para a panela? Seria uma reação de pavor, porque nenhum ser escapa ao instinto de conservação; ou uma sensação de alegria, porque afinal seria comida por um homem?”

Ele dizia que a galinha, ao se imaginar comida, sentiria ao mesmo tempo o horror e o gáudio da imolação, e desaparecia num sentimento contraditório.

De fato, ele não resolveu o problema até o fundo. O professor imaginava uma hipótese absurda de um ser que, ao mesmo tempo, é inteligente e mero animal. Daí as reações são contraditórias, porque o ser inteligente existe para Deus, mas não para ser comido por Deus. Aquele que é o fim do ser inteligente é tão superior a este que não o mata, mas lhe dá a vida. Isso o professor não soube dizer; donde um certo mal-estar que a pergunta causava.

Entretanto, este ponto me parece que ele viu bem: se a galinha fosse capaz de conhecer o homem, ela reconheceria nele, com encanto, o seu dono.

Quando o homem, por exemplo, agrada um cachorro, o animal toma, muitas vezes, uma atitude deliciosamente submissa, o que é um símile da posição que tomaríamos em relação a um Anjo. Um vegetal que pudesse sentir e compreender faria o mesmo com um animal, e um mineral a mesma coisa com um vegetal. Há uma regra que forma um certo gênero de relação que, conservadas as proporções, é sempre de sentir-se pequeno, mas repleto de honra.

Subindo ao ápice da Criação, vemos isso até nas relações de Nossa Senhora com Deus. Convidada a um título muito especial para ser Filha do Padre Eterno, Mãe do Verbo e Esposa do Espírito Santo, a resposta d’Ela foi: “Ecce ancilla Domini — Eis a escrava do Senhor” (Lc 1, 38). Ela Se sente muito pequena, porque, de fato, diante de Deus ainda que seja Ela, é-se infinitamente pequeno. Então um gesto, uma postura de respeito deliciado é uma atitude de alma que hoje as pessoas quase não sabem mais medir.

O Menino Jesus vivo no coração de Santa Gertrudes

Ora, o Sagrado Coração de Jesus tem algo que predispõe o espírito em todas as gamas para essa posição.

Evidentemente, as pulsações mais sublimes do Sagrado Coração de Jesus eram quando Ele rezava. As orações d’Ele citadas no Evangelho eu acho tudo quanto há de mais bonito!

Sempre o modo de dizer “Pai” sai com uma grande doçura e, ao mesmo tempo, tão honrado de ser Filho d’Aquele Pai. Ele, como Homem, dizendo “Pai” é quase que rezando para a sua própria natureza divina. É uma coisa tão bonita que prepara a alma para receber essas superioridades genéricas com uma espécie de devoção carinhosa e cheia de veneração.

É interessante notar que no período em que o Sagrado Coração de Jesus aparecia com doçuras de mãe para com o gênero humano, em suas manifestações Nossa Senhora apresentava-Se menos como Mãe de Misericórdia do que como a Rainha da Contra-Revolução e preparando a batalha. Ela é “castrorum acies ordinata”(1).

Com exceção de duas aparições d’Ela no século XIX — uma enquanto Nossa Senhora das Graças, em Paris, para Santa Catarina Labouré, e outra na Igreja do Miracolo, que é uma reversão, corresponde à mesma devoção, mas são dois milagres diferentes —, essa sensação de misericórdia requintada Maria Santíssima dá menos do que manifestava aos medievais, a São Bernardo, por exemplo.

Mesmo em Lourdes, onde a Santíssima Virgem difunde a misericórdia como sabemos, a nota dominante é a apologética. Diante dos séculos de ateísmo, Ela entra em luta contra este produzindo milagres a jorro e confirmando a Imaculada Conceição.

A nós, porém, foi dada a tarefa de fazer uma síntese e encontrar o Sagrado Coração de Jesus no Coração Imaculado de Maria.

Certa ocasião observei uma pintura representando Santa Gertrudes em cujo coração se via o Menino Jesus, o que deveria fazer referência a algum fenômeno místico que se deu com ela.

Se é legítimo apresentar o Menino Jesus vivo no coração de Santa Gertrudes, a um título muito mais literal, muito mais cogente, com outra ênfase, é legítimo mostrar o Coração de Jesus dentro do Coração Imaculado de Maria. É claro! E nós encontraremos tudo quanto estou dizendo — e muito mais — emoldurando o Sagrado Coração de Jesus dentro do Coração Imaculado de Maria.

De todas as boas imagens de Nossa Senhora que conheço, nenhuma delas me satisfaz inteiramente, porque não visam apresentar Jesus vivendo em Maria, concebendo tanto quanto possível a Santíssima Virgem como parecida com Nosso Senhor, fisicamente, mas de uma semelhança que era apenas uma imagem da similitude espiritual.

Sabe-se que muitos cristãos queriam conhecer São Tiago porque era primo de Jesus e muito parecido com Ele. Ora, se assim ocorria com São Tiago, primo em segundo ou terceiro grau de Nosso Senhor, imagine com Nossa Senhora o que era essa semelhança!

Eu me pergunto se não seria uma graça do Reino de Maria algum artista ou algum místico chegar a imaginar, na perfeição, uma imagem de Nossa Senhora inteiramente “cristiforme”, mas conservando toda a delicadeza da natureza feminina. Porque nós vemos isso pelo Santo Sudário: Ele era Varão, no sentido mais nobre da palavra; Ela, Mãe e Senhora, Dama e Rainha. Saber representar essa variedade em uma versão marial de Nosso Senhor!…

Assim, mesmo cenas da vida de Nosso Senhor se tornam muito mais cheias de vida e muito mais explicáveis. Por exemplo, os dois se abraçando na hora do encontro da Via Sacra, com essa semelhança de corpo e de alma entre ambos. Ele com a face como que d’Ela, desfigurada; e Ela com a face como que d’Ele, íntegra. De maneira que se olhava e percebia-se o contraste. Ela nobremente invadida pelo pranto sem que nada A descompusesse, e Ele aviltado pelas bofetadas e pela dor sem que nada Lhe diminuísse a majestade.

Um ósculo de Nosso Senhor na França

Quando falo com calor de Luís XIV e da devoção que ele deveria ter tido ao Sagrado Coração de Jesus, há pessoas que julgam entrar nisso uma espécie de atitude mundana, ou pelo menos terrena. Mas não é. A razão é que eu vejo nele o lampadário perfeito onde a lamparina do Sagrado Coração de Jesus deveria ter sido acesa.

Se ele fosse o devoto perfeito do Sagrado Coração de Jesus, nós teríamos tido uma figura de homem como não houve na História.

Para compreender o “meu” Luís XIV, a “minha” Versailles e o “meu” Ancien Régime é preciso entendê-los enquanto o Rei-Sol tendo sido fiel. E mais: foi no reinado de Luís XIV que São Luís Grignion de Montfort construiu o calvário dele, pregou aos camponeses e que Marie des Vallées(2) fez a troca de vontades com Nosso Senhor. Isso tudo tenderia a uma só coisa.

Então, era preciso concebê-lo criando uma atmosfera pela devoção ao Coração de Jesus, onde a escravidão a Nossa Senhora tivesse voado como uma águia em céu próprio.

É uma coisa maravilhosa! Não se tem ideia do que a infidelidade de meia dúzia de almas rateou na ocasião… Não se tem ideia da oportunidade perdida!

A partir disso fica compreensível também o meu furor contra a Revolução Francesa.

O Dauphin Luís(3) mandou colocar atrás do altar da capela do palácio uma imagem do Sagrado Coração de Jesus. Ele não teve a audácia de colocar na frente…

Mas isso significa durante quantas gerações se manteve a ideia de que uma consagração ainda salvaria a França. E a consagração que Luís XVI fez da França ao Sagrado Coração de Jesus, na Torre do Templo, prova que ele ainda levava no espírito essa ideia de que, se correspondesse, poderia ter salvado o país.

Durante todo esse tempo, a Casa Real e o “Ancien Régime” conservaram uma capacidade de receber. Essa receptividade era um ornato, e aquela possibilidade, naquele tempo, um “lumen”.

O grande pranto pela Revolução Francesa era o da esperança que não se realizaria mais, e pela extinção desse “lumen” que acompanhou a Casa Real até o fim.

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus ficou com uma ligeira nota francesa, é um ósculo de Nosso Senhor na França.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/9/1980)

 

1) Do latim: exército em ordem de batalha (Ct 6, 10).

2) Mística francesa (*1590 – †1656).

3) Luís Fernando de França, Delfim de França (*1729 – †1765), filho de Luís XV e pai de Luís XVI.

Medianeira da Luz

Mês especialmente caro aos devotos de Maria Santíssima, setembro refulge com as comemorações da Natividade de Nossa Senhora e com a festa do seu santíssimo nome. Para Dr. Plinio, o advento d’Aquela que estava predestinada a ser a Mãe do Salvador, “conferiu particular nobreza ao gênero humano, e surgiu neste mundo como a suave e amena luminosidade da lua. Há, sem dúvida, imensa beleza no despontar do astro-rei. Contudo, em certas ocasiões, o aparecimento da lua tem também seu encanto, sua poesia e sua grandeza. Assim a vinda de Nossa Senhora foi, para toda a humanidade, como um magnífico nascer da lua”.

Lua que brilha da luz do Sol da Justiça, Cristo Senhor nosso, e que se compraz em espargi-la sobre a face da Terra, isto é, em distribuir para os homens a superabundância de graças que seu divino Filho depositou nas suas mãos maternais. Ouçamos novamente Dr. Plinio, comentando uma coletânea de textos acerca do papel de Nossa Senhora nos primórdios da Santa Igreja:

“Maria foi o oráculo vivo que São Pedro consultou nas suas principais dificuldades. A estrela para a qual São Paulo não cessou de olhar, para se dirigir em suas numerosas e perigosas navegações.

“Temos, então, esse belo panorama: a Igreja nascente — com todos os lances maravilhosos da história do cristianismo nos seus passos iniciais  — inspirada e dirigida por Nossa Senhora. Sem dúvida, São Pedro era o Papa e detinha o poder sobre a Igreja, que lhe fora conferido por Jesus. Contudo, não deixa de ser igualmente verdade que o Príncipe dos Apóstolos se submetia às disposições de Maria, atendendo-as com devoção e reconhecimento. Por sua vez, São Paulo sempre recorria a Ela, a fim de ser bem orientado nas suas navegações, isto é, no seu apostolado com os gentios.

“É então que Ela preencheu a significação de seu nome simbólico. Pois, diz São Boaventura, o nome de Maria pode traduzir‑se por essas palavras: Maria é a criatura iluminada por cima e que espalha, por todas as direções, a luz que lhe vem do alto. Ela é, verdadeiramente, a medianeira da luz. Toda a sabedoria e toda a luz nos vêm, para todos os homens, através d’Ela.

“Eis, portanto, uma linda interpretação do nome de Nossa Senhora, como sede da sabedoria, como foco da ortodoxia e da boa doutrina. Quem deseja progredir na virtude da sabedoria, deve recorrer a Ela que é, por definição, pelo próprio conteúdo de seu nome, essa fonte de luz celeste que se espalha para a humanidade inteira.

“Se os evangelistas querem recolher os principais fatos da vida de Jesus e seus ensinamentos mais importantes, para transmiti-los nos seus escritos autênticos, eles recorreram a Maria. Foi a Ela que pediram os esclarecimentos necessários sobre a Encarnação, a infância e a juventude do Homem-Deus, assim como sobre o modo perfeito de exprimir os dogmas que Ele trouxe do Céu. Pois, disse o Cardeal Hugo, Ela fez de seu coração o tesouro das palavras e das ações de seu Filho, a fim de os comunicar em seguida aos escritores sagrados.

“Temos, novamente, a figura de Nossa Senhora como o vaso de eleição que recolheu todos os ensinamentos e atitudes de Jesus, para distribuí-los aos Apóstolos, à Igreja nascente e à Igreja de todos os tempos. Foi Ela, não só a informante, mas a inspiradora da mentalidade com que os evangelistas escreveram seus livros sagrados; Ela esteve ao lado de São Pedro, São Paulo, São João Evangelista, deste e daquele, contando-lhes, explicando-lhes, ajudando-os a interpretar as palavras e os atos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ela era uma fonte de aroma divino perfumando a Igreja inteira.

“Tal é o esplendor da alma santíssima de Nossa Senhora, apenas vislumbrado por nós e que nos deve levar a amá-La e imitá-La, cada dia mais e mais.”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 7/9/1965 e 11/7/1967)

 

Elevação e bondade

Pelas descrições do Evangelho se percebe em Nosso Senhor uma elevação tal que ­suas palavras mais breves, seus gestos mais comezinhos externavam uma perfeição, um significado e uma manifestação do divino, indizíveis.

Por exemplo, ao partir o pão diante dos discípulos de Emaús: pelo modo todo característico e nobre como Jesus o fez, os dois O reconheceram. Quer dizer, uma maneira única e sublime, na qual transparecia toda a excelência d’Ele. Mas, compreendamos: essa elevação era, ao mesmo tempo, repassada de tanta bondade, meiguice e acessibilidade, que Nosso Senhor atraía as almas e as elevava consigo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de Conferência em 20/12/1986)

São Mateus, Apóstolo

Quando o Filho de Deus se fez homem e veio a este mundo, tomou o nome de Jesus ou Salvador, porque viera para salvar-nos e não para perder-nos.

O primeiro aos quais fez anunciar pelos anjos a boa nova da sua vinda, foram alguns humildes pastores de Belém. Quando escolheu seus doze apóstolos, ou doze enviados, para espalharem a boa nova a todos os povos da terra, escolheu-os entre os humildes e os pequenos. Primeiramente foram dois irmãos, Pedro e André, que viviam da pesca, assim como dois outros, Tiago e João.

Mais extraordinário ainda é não ter Jesus escolhido seus apóstolos precisamente entre os santos, nem no interior do templo, mas nas praças públicas, entre a classe operária e mesmo entre os empregados da alfândega. Saía da cidade de Cafarnaum e dirigia-se para o mar da Galileia, onde costumava pregar à multidão, quando ao passar, avistou um publicano, Levi, filho de Alfeu, também chamado Mateus, sentado à mesa de cobrança de impostos, e disse-lhe: Segue-me. E aquele, tudo abandonando, levantou-se e seguiu-o. E Levi ofereceu a Jesus um grande banquete em sua casa. Estando este à mesa, chegaram muitos publicanos e pecadores que se sentaram à mesa com ele e com os discípulos, que em grande número o tinham acompanhado.

Mas os fariseus e os escribas, vendo que Jesus comia com os publicanos e os pecadores, murmuraram e disseram aos discípulos: Por que motivo come o vosso Mestre com os publicanos e os pecadores e vós com ele? Malgrado a aparente piedade, de que se jactavam, aqueles homens estavam cheios de desprezo pelos outros. Respondeu-lhes Jesus? Os sãos não tem necessidade de médico, mas sim os enfermos. Ide, e aprendei o que vos digo: quero misericórdia e não sacrifício; porque não vim chamar os justos e sim os pecadores.

Quão grande é a bondade de Jesus Salvador! Quem ainda poderá desesperar, seja por causa de seus pecados, seja por causa de suas más inclinações? Aí está um médico capaz, não apenas de curar os doentes, mas de ressuscitar os mortos; um médico caridoso, que se sobrecarregará com as nossas doenças e as nossas iniquidades; um médico tão bom que se transmuda em remédio para os nossos males.

Mas o publicano Mateus também não merecerá que o amemos e imitemos? Era um homem de negócios e de dinheiro, um burocrata, um financista. Contudo, mal Jesus o chama, levanta-se, tudo abandona e segue-o, testemunha-lhe publicamente a gratidão com um grande banquete. E nós, que talvez nos julguemos muito melhores do que os publicanos, o Senhor chama-nos, o Senhor diz-nos há muito tempo: Vinde e segui-me! E ficamos surdos ao seu apelo. Ah! Roguemos ao bem-aventurado publicano, cuja festa celebramos, que nos seja dado seguir o Senhor, tal como o fez.

De publicano transformado em apóstolo. São Mateus perseverou até o fim. Depois de receber o Espírito Santo com a abundância de suas graças, no dia de Pentecostes, pregou durante vários anos na Judeia às ovelhas perdidas da casa de Israel: em seguida, levou o Evangelho às nações longínquas, Pérsia e à Etiópia, e confirmou com o sangue as verdades que pregava.

Além de um dos doze apóstolos, escolhidos para pregarem o Evangelho por toda a terra, São Mateus também foi um dos homens inspirados para gravá-lo por escrito. Há quatro evangelistas: São Mateus, São Marcos, São Lucas e São João; assim como há quatro grandes profetas: Isaías, Ezequiel, Jeremias e Daniel; e quatro grandes impérios: Babilônia, Pérsia, Grécia e Roma e quatro querubins acima dos quais se eleva o trono de Deus, no qual está sentado o Filho do homem.

O conjunto dos quatro querubins com o trono de Deus suspenso acima deles, não tem a sua representação na terra no conjunto dos quatro grandes impérios, Babilônia, Pérsia, Grécia e Roma, a cujas lutos e a cujos destinos vemos outros tantos espíritos celestes presidir; espíritos que serviram de carro do Filho de Deus para que descesse à terra e nela estabelecesse seu império espiritual, e dos quais tirou seus instrumentos de vingança, pois no capítulo X, de Ezequiel, não vemos um dos querubins apanhar os carvões ardentes, que seriam espalhados sobre a criminosa Jerusalém?

Na Igreja Cristã, não viram os Padres os quatro evangelistas? Na face do homem, São Mateus, que inicia seu evangelho pela genealogia de Cristo enquanto homem; na face do leão, São Marcos, que inicia o seu pela voz de deus clamando no deserto; na face do touro, vítima principal dos antigos sacrifícios, São Lucas, que começa pelo sacerdote Zacarias no ato de desempenhar as funções do sacerdócio num templo; na face da águia, São João que. De início, eleva-se como uma águia acima das nuvens até o seio de Deus. São quatro, mas cada um deles é encontrado nos três outros, e os quatro são encontrados em cada um em particular; há quatro evangelhos, e só há um Evangelho. É o mesmo espírito que os inspira, que os alenta, que os inspira, que os alenta, que os dirige. São cheios de olhos; em tudo, até num ponto e vírgula, cintila a verdade. Contém como que um fogo divino de onde saem as fagulhas, as correntes elétricas da graça, que iluminam os espíritos, toam os corações e renovam a face da terra.

No Evangelho de São Mateus há um belo consumo de todo o Evangelho: é o Sermão da Montanha de todo o Evangelho, que reproduz inteiramente, enquanto os outros evangelistas só citam alguns trechos. É o sermão que se inicia com as oito bem-aventuranças.

O único objetivo do homem é a felicidade. Jesus Cristo veio unicamente proporcionar-nos os meios de realizá-lo. Colocar a felicidade onde deve estar é a fonte de todo bem; e a fonte de todo mal é colocá-la onde não deve estar. Digamos, pois: Quero ser feliz. Vejamos, porém, de que maneira; vejamos em que consiste a felicidade; vejamos quais são os meios para alcançá-la.

A felicidade está em cada uma das oito bem-aventuranças; pois, em todas, sob várias designações, é sempre da felicidade eterna que se trata. Na primeira bem-aventurança, como um reino; na segunda, como a terra prometida; na terceira, como a verdadeira e perfeita consolação; na quarta, como a satisfação de todos os nossos desejos; na quinta, como a última misericórdia que suprime todos os males e concede todos os bens; na sexta, sob seu legítimo nome, que é a visão de deus; na sétima, como a perfeição da nossa divina adoração; na oitava, mais uma vez como o reino dos céus. Eis, pois a felicidade em todas; mas há vários meios de alcançá-la e casa bem-aventurança assinala um; juntos, completarão a felicidade do homem.

Se o Sermão da Montanha é o resumo de toda a doutrina cristã, as oito bem-aventuranças são o resumo de todo o Sermão da Montanha.

Se Jesus Cristo ensina que a nossa justiça deve sobrepujar a dos escribas e fariseus, o ensinamento está contido na seguinte sentença: Bem-aventurados os que tem fome e sede de justiça. Pois se a desejarem como único alimento, se dela estiverem verdadeiramente famintos, com que abundância a receberão, pois que de todos os lados se apresentará para saciar-nos? Então também seguiremos os seus mínimos preceitos, como homens famintos que nada deixam, nem mesmo, por assim dizer, uma migalha de pão.
Se vos recomendam não maltratardes com palavras o vosso próximo é por efeito da brandura, do espírito pacífico ao qual foi prometido o reino e qualidade de filho de Deus. Não olhareis uma mulher com más intenções: Bem-aventurados os puros de coração; e o vosso coração só será inteiramente puro, depois que o tiverdes purificado de todos os desejos sensuais. São mais felizes os que passam a vida em lutas e numa tristeza salutar do que no meio de prazeres que embriagam. Não jureis; digais: É verdade, não é verdade. É ainda um efeito da brandura: quem é manso e humilde não se apega excessivamente aos sentidos, o que faz o homem afirmar com muita facilidade; diz simplesmente o que pensa, dentro do espírito de sinceridade e de mansidão. Perdoaremos facilmente todas as ofensas se estivermos possuídos por esse espírito de misericórdia, que atrai para nós numa misericórdia bem mais ampla. Mansos e pacíficos, não resistiremos à violência, deixar-nos-emos mesmo levar além do que prometemos. Amamos nossos amigos e inimigos, não apenas porque somos mansos, misericordiosos, pacíficos, mas também porque somos famintos de justiça e queremos vê-la reinar dentro de nós mesmos, melhor do quo reina no coração dos fariseus e dos gentios. Essa fome de justiça também nos leva a desejá-la por necessidade e não por ostentação.

Amamos o jejum quando encontramos nosso principal alimento na verdade e na justiça. Por meio de jejum, nosso coração se purifica e nos livramos dos desejos dos sentidos, Temos o coração puro quando reservamos para os olhos de Deus o bem que praticamos; quando nos contentamos em ser vistos apenas por ele; e quando não nos servimos da virtude como de uma máscara para iludir o mundo e atrair os olhares e o amor das criaturas. Quando nosso coração é puro, temos o olhar luminoso e a intenção reta. Evitamos a avareza e a busca dos bens, quando somos verdadeiramente pobres de espírito, Não julgamos, quando somos mansos e pacíficos; porque a mansidão expulsa o orgulho. A pureza de coração faz com que nos tornemos dignos da Eucaristia, e que nunca recebamos sem unção o pão celestial.
Quando temos fome e sede de justiça, rezamos, imploramos, suplicamos: pedimos a Deus os verdadeiros bens e confiamos em que nos atenda, quando só aspiramos ao seu reino e à mansão dos vivos. De boa vontade entramos pela porta estreita quando nos consideramos felizes na pobreza, no pranto, nas tribulações que sofremos pela justiça. Quando temos fome de justiça, não nos contentamos de dizer a boca: Senhor, Senhor! Mas nos alimentamos intimamente com a sua verdade. Então edificamos sobre o rochedo e o achamos suficientemente firme para servir de apoio à nossa construção.

As bem-aventuranças constituem, pois o resumo do sermão inteiro, mas um resumo aprazível, porque a recompensa está ligada ao preceito; o reino dos céus, sob vários nomes admiráveis, à justiça; a felicidade, à prática.

No ano de 1080, Santo Alfano, arcebispo de Salerna, lá descobriu as relíquias de São Mateus, apóstolo e evangelista. Apressou-se em comunicar o achado ao Papa Gregório VII, que o felicitou, e com ele a toda a Igreja Católica, numa carta datada do dia 18 de Setembro, na qual recomenda ao bispo as preciosas relíquias sejam dignamente veneradas.

(Vida dos Santos, Padre Rohrbacher, Volume XVI, p. 350 à 357)

Meu filho, pare e contemple

Momento precioso é aquele em que, a propósito de algum reflexo criado da incriada beleza divina, a graça nos toca e nos dirige este convite: “Meu filho, pare e contemple! Através dessa maravilha, Deus toma contato com sua alma, lhe diz algo, e é todo um mundo do sobrenatural que se lhe torna sensível. Na consideração e na degustação deste mundo você terá, meu filho, os melhores instantes de sua existência. Viva para essa contemplação, esperando encontrar na eternidade a plenitude dela.

“Do amor a esses esplendores faça suas delícias e seu repouso nesta Terra. Ouça-os, observe-os: eles afirmam verdades que dizem mais do que qualquer palavra; eles brilham de um fulgor que nenhuma luz terrena pode igualar. Junto deles você pode encontrar Deus que o procura, pode escutar a voz de Nossa Senhora que o chama. Pense nisto e se deixe ficar diante dessa maravilha…”

A “Carta circular aos Amigos da Cruz” – III Um nome mais brilhante que o sol

O Amigo da Cruz é um escolhido entre mil, apartado das coisas naturais e entregue à contemplação das sobrenaturais, colocando o seu amor naquilo que todos desprezam: o sofrimento, em união com o Divino Mestre. Dr. Plinio prossegue seus comentários ao opúsculo de São Luís Maria Grignion de Montfort.

 

Com seu fervor característico, São Luís Grignion continua a escrever:

Chamai-vos Amigos da Cruz. Como é grande este nome! Confesso-vos que ele me encanta e deslumbra. É mais brilhante que o sol, mais elevado que os céus, mais glorioso e mais pomposo que os títulos mais magníficos dos reis e dos imperadores. É o grande nome de Jesus Cristo, a um tempo verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, é o nome inequívoco de um cristão.

Exclamações contagiantes

Cumpre considerar que São Luís Grignion escreveu essa obra numa época em que — não tanto como na Idade Média — os títulos ainda tinham muita importância, e por meio deles se definiam as pessoas com o direito de usá-los. Então o Santo utiliza o valor da titulatura, conforme à ordem natural das coisas, para mostrar como o título de amigo da Cruz é elevado. Nesse intuito, registra várias exclamações que traduzem o fogo de sua alma, com possibilidade de um contágio extraordinário.

Como é grande este nome! Confesso-vos que ele me encanta e deslumbra.

Não se trata de expressões lançadas ao léu. Encantar não é o mesmo que deslumbrar. O encanto assemelha-se à ternura, e o deslumbramento, à admiração. O que me encanta, de certo modo me pertence profundamente. E aquilo que me deslumbra desperta em mim admiração, veneração. Talvez sem intenção de fazê-lo, São Luís Grignion de Montfort aponta aqui os dois elementos característicos do enlevo: a veneração e a ternura.

É mais brilhante que o sol, mais elevado que os céus, mais glorioso e pomposo que os títulos mais magníficos dos reis e dos imperadores.

As duas primeiras comparações me parecem muito felizes, e na pena do Santo adquirem um calor, uma força de atração, uma refulgência extraordinários. Como que sentimos a sua alma de insigne teólogo, de inspirado literato, de varão católico, vibrando de emoção diante do título “Amigo da Cruz”.

Ternura e veneração pela Paixão de Cristo

É o grande nome de Jesus Cristo, a um tempo verdadeiro Deus e verdadeiro Homem.

Tal é o valor de ser Amigo da Cruz, que esse título equivale ao nome d’Aquele que é verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Nosso Senhor Jesus Cristo. Pensamento lindíssimo e acertado, pois ao longo de toda a História a piedade católica elegeu a Cruz como símbolo do próprio Redentor.

Nota-se, ainda, que ele não se refere apenas à cruz como sofrimento, aceito e levado até seu termo em união com os méritos infinitos de Nosso Senhor, mas considera filosoficamente a forma de uma cruz como símbolo que traz consigo algo de santo, pelo vínculo que adquiriu com a Paixão. São Luís deseja nos comunicar, assim, ternura e veneração pelo holocausto redentor de Jesus, bem como pela santa Cruz considerada como tal, conforme, aliás, ensina a teologia. E como o ratifica a mesma piedade popular, ao erguer cruzeiros ou plantar cruzes nos mais variados locais, aonde vão em peregrinações, ou simplesmente depositar um punhado de flores junto a elas, num singelo e sincero testemunho de sua devoção.

Escolhidos entre milhares

Continua São Luís Grignion:

Entretanto, se seu brilho me encanta, seu peso não me espanta menos. Quantas obrigações indispensáveis e difíceis contidas nesse nome, e expressas por estas palavras do Espírito Santo: “sois uma raça eleita, um sacerdócio real, uma nação santa e um povo que Deus formou” (1 Pd 2, 9).

Quer dizer, a cada Amigo da Cruz corresponde essa definição: pertence ele a uma raça eleita, possui um sacerdócio real, é filho de uma nação santa e membro de um povo que Deus formou.

Um Amigo da Cruz…

Faço notar que São Luís escreve Amigo da Cruz com “A” e “C” maiúsculos, pois não se refere a todo e qualquer católico, mas especialmente àqueles que se consagraram na associação por ele fundada para propagar o amor à Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. A essa fundação ele fará elogios magníficos, por causa dos seus objetivos. Para nós significa algo pleno de ensinamento, pois nos mostra como o valor de nosso movimento provém igualmente do fato de amarmos a Cruz, e esse amor sobrepuja a qualidade individual de seus membros ou a consistência de sua estrutura jurídica.

Um Amigo da Cruz é um homem escolhido por Deus entre dez mil que vivem segundo os sentidos e apenas da razão, para ser unicamente um homem todo divino e elevado acima da razão, e todo em oposição aos sentidos por uma vida e uma luz de pura fé e um amor ardente à Cruz.

Então, sentir uma vocação especial para uma vida e uma luz de pura fé, bem como de um ardente amor à Cruz, é graça invulgar que Deus concede a um entre dez mil que “vivem segundo os sentidos e a razão”. Já naquele tempo se estabelecia oposição entre a fé e a razão, esta última entendida no sentido do racionalismo cartesiano(1). Donde, aqueles que vivem de acordo com a pura razão natural, recusando o sobrenatural, só têm luzes proporcionadas por aquela. São os racionalistas — que de fato claudicam também em matéria de razão — e os que vivem de acordo com os sentidos.

Espírito metafísico e amor ao sublime

Um homem todo divino e elevado acima da razão, e todo em oposição aos sentidos.

A linguagem de São Luís é frisante: não é contra a razão, mas acima dela. E quanto aos sentidos, refere-se à desordem deles. Está subjacente nessa afirmação a ideia de que o pecado original abalou de modo tão profundo o homem que seus sentidos se tornaram desordenados.

Um Amigo da Cruz é um rei todo poderoso e um herói triunfante do demônio, do mundo e da carne em suas três concupiscências. Pelo amor às humilhações, esmaga o orgulho de Satanás; pelo amor à pobreza, triunfa da avareza do mundo; pelo amor à dor, amortece a sensualidade da carne. Um Amigo da Cruz é um homem santo e separado de todo o visível, cujo coração está acima de tudo quanto é caduco e perecível, e cuja conversa está no Céu (Fl 3, 20); que passa pela Terra como estrangeiro e peregrino; e que, sem lhe dar o coração, a contempla com o olho esquerdo e com indiferença, calcando-a com desprezo aos pés.

Trecho muito bonito, que exprime o amor aos imponderáveis e, de certo modo, ao sublime, ao maravilhoso. Para estar “separado de todo o visível”, ou seja, afastado das coisas materiais e voltado para as invisíveis — mormente as sobrenaturais — importa ter um feitio de espírito contrário ao materialismo, bem como à concepção racionalista e cientificista da existência humana. Para os adeptos dessa mentalidade, apenas o material é atingível pelos sentidos, é confiável e desejável, constituindo a finalidade da vida terrena. Tudo quanto é metafísico, que vai além dos sentidos, deve ser evitado como quimera do espírito e, portanto, inconsistente.

Devido à decadência da civilização, os homens cada vez mais adotaram essa postura de alma, que certas escolas filosóficas do século XIX levaram ao apogeu. São Luís Grignion de Montfort prevenia seus discípulos contra esses desvios. Para ele, o Amigo da Cruz não é apenas o que se enternece com a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas o que possui alguns pressupostos mentais para esse enternecimento, e um deles é o espírito metafísico, interessado no espiritual.

Em suma, para se compreender o valor do sofrimento, a pessoa deve apreciar os bens do espírito e estar desapegada da matéria, o que envolve um padecimento especial, pois significa disciplinar seu próprio ser. Tal disciplina, que exige certa renúncia — e, portanto, dor — é inerente ao autêntico Amigo da Cruz.

Desejar mais o “beau” que o “joli”

Os franceses fazem uma interessante distinção entre “joli” e “beau”. O primeiro vocábulo significa “bonito” e se aplica a coisas pequenas. Já o segundo quer dizer “belo”, um conceito mais elevado e corresponde à beleza da alma. É preciso ter algo de ascese para se conservar a posição do “beau”; querer exclusivamente o joli importa em escravização à matéria. Então nosso Santo mostra que o Amigo da Cruz deve ter como pressuposto uma forma de mentalidade metafísica visando mais o “beau” do que o joli. Este deve ser apenas pequeno acessório daquele.

Somente uma alma assim é capaz de compreender inteiramente a grandeza do sofrimento, da dor e, portanto, da Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.  

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 6/6/1967)

 

 

1) Referência à filosofia do autor francês René Descartes (1596-1650) que, rompendo com a escolástica, coloca como base do pensamento o que ele chama a “dúvida metódica”.  Teve grande influência no racionalismo dos tempos posteriores,  notadamente na França e nos países que ela inspirou culturalmente.

 

Inscrita na História

Costuma-se exaltar o esplendor dos ocasos. E com razão. Quem só conhecesse o meio‑dia não poderia se gabar de conhecer bem o sol, pois este possui belezas de crepúsculo como as possui de aurora, e é o conjunto desses encantos que compõe a beleza global do nosso astro soberano.

Isso que se aplica ao sol, pode-se dizer também dos povos e das nações. Passam eles por períodos que parecem de decadência e não o são: as coisas param, mas vão se revestindo da prestigiosa pátina do tempo, situam-se meio fora do movimento terreno e meio se confundem com a eternidade.

Esse pensamento me veio especialmente ao espírito quando me caíram sob os olhos algumas fotografias de Veneza. Por exemplo, a Catedral de São Marcos, que, a meu ver, é o ponto auge e central da cidade. Mais do que isso Veneza não realizará.

Entretanto, imaginemos a Rainha do Adriático parada na História como ela foi no seu apogeu, antes de ser invadida pelas ondas de turismo inimagináveis que, de um jeito ou de outro, modificaram o seu ritmo de vida.

Imaginemo-la, pois, no seu quotidiano normal, comum e tranqüilo, com aquelas seculares famílias nobres habitando seus palácios, o povinho esparso aqui e ali, as gôndolas deslizando através dos canais. Seis horas da tarde, o campanário de São Marcos toca o Ângelus, as pessoas se persignam, rezam as ave-marias. Uma hora depois, novo toque de sino, a noite já se abraça ao dia, o canal imerge pouco e pouco na neblina, o Palácio dos Doges parece dormir. No interior da igreja acende-se uma vela, outra, depois outra. Em certo momento, todos os sinos e carrilhões repicam festivos: é mês de Maria e haverá uma festa daquele povinho em louvor de Nossa Senhora.

Os fiéis começam a chegar, vêem-se senhoras idosas com suas cabeças cobertas por véus de renda, personagens influentes acompanhados de seu séquito, matronas em liteiras, e todos, calmamente, vão ocupando o recinto sagrado. Mais alguns instantes, e um coro — que já tem 300 anos de existência — entoa com suas vozes quintessenciadas os mais belos hinos em honra da Mãe de Deus.

Mas, ao cabo de algumas horas a cerimônia termina, as luzes se apagam, a praça se cobre de penumbra e cada um se dirige para a respectiva casa.

Como não perceber nisso a pátina do tempo que acrescenta outros aspectos aos esplendores de Veneza e confere a esta uma espécie de nota de eternidade que seria um erro confundir com decadência?

Pelo contrário, é a inscrição de Veneza na História, a saída dela de dentro dos acontecimentos humanos para se tornar um elemento de admiração dos povos, sempre bela e fixada na glória.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 17/2/1989)

Distinção e suavidade

Em todas as coisas que passavam pelos seus sentidos, Dr. Plinio sempre procurava arquetipizá-las, ou seja, imaginá-las no seu máximo grau de perfeição. Comentando o minueto de Boccherini, afirma que o concebe não tanto como uma dança, mas como ondas vaporosas e perfumadas de pessoas, que avançam numa bela galeria. E chega até a supor como seria um arqui minueto medieval.

 

O minueto de Boccherini(1) — que para mim é o minueto por excelência — tem qualquer coisa no sentido de uma revista à tropa, sem o ser propriamente.

Charme, esplendor, graça e beleza

Devemos imaginar uma sala de corte, o rei e a rainha nos seus tronos, os príncipes e as princesas da Casa Real em poltronas, os duques em “tabourets”; ou, como se fazia em Versailles, de um lado e de outro da Galeria dos Espelhos, arquibancadas onde pessoas da nobreza ou da alta burguesia de Paris se postavam para verem dançar o minueto.

Vindos do fundo da sala ou de um compartimento ao lado, entram os pares dançando o minueto, reverenciando-se mutuamente, fazendo a reverência ao rei, quando passavam diante dele, e circulando de novo. Era a corte celebrando um ato lúdico, no qual as pessoas eram passadas em revista no seu charme, no seu esplendor, na sua maior graça, na sua maior beleza, para a corte ter a fisionomia de si mesma, e deleitar-se em ser aquilo. Isso era propriamente o minueto.

É preciso notar que esses minuetos, muitas vezes, eram altamente hierarquizados, e a reciprocidade dos cumprimentos se multiplicava pela sala indicando uma harmonia hierárquica de relações sociais, juntamente com a harmonia dos gestos, das atitudes, a beleza dos trajes, o esplendor das joias, a nobreza das expressões fisionômicas, dos sorrisos, etc.

Seria um pouco como um exército que precisa organizar uma grande revista, para ver-se a si próprio. E o “ver-se a si próprio”, nesse sentido, não é como o de uma pessoa faceira que se olha no espelho para ficar vaidosa, mas é o conhecer a sua própria face para ver que perfeição o Criador pôs nela, e amar a Deus em si mesma. Isso constitui um alto grau de tomar consciência de si e tem, no fundo, um sentido religioso.

Seriedade e sorriso profundamente sério

Na situação cultural do tempo do minueto havia uma necessidade de fazer as coisas com muita solenidade, mas compensar essa solenidade com muita graça, com muito charme. E o minueto perfeito seria o que reunisse o esplendor de uma verdadeira cerimônia de corte com a graça de uma afabilidade, de um sorriso, de uma concepção amena da vida que fosse o contrapeso do grande esplendor, porque a vida tinha chegado a um tal brilho que massacrava o homem se ele não tivesse esse complemento.

Vê-se, então, a coexistência de uma grande seriedade com um sorriso profundamente sério de quem sabe quem é, e que do alto daquilo que é, por gentileza e bondade, sorri como quem diz: “Eu sou tudo isso, e é tudo isso que sorri para você.” Não é, portanto, o sorriso do peralvilho que anda pela rua e, de repente, vê um cachorrinho engraçadinho, mas é o sorriso de quem possui grandeza e oscula aquilo para o que sorri, como uma espécie de comunicação de todos os esplendores que tem dentro de si.

Saint-Simon”(2) quando queria elogiar alguém dotado de muito senso de sua própria dignidade, dizia: “Ele se sentia muito”, quer dizer, sentia muito em si o que ele era, e a sua respeitabilidade. De onde o minueto, assim entendido, ser a música do respeito.

O respeito acompanha a grandeza, o afeto, o carinho, o sorriso. Percorre de ponta a ponta a gama dos possíveis sentimentos humanos. E isto faz do minueto uma obra-prima.

O minueto não é tanto uma dança quanto falanges ou ondas vaporosas e perfumadas de gente que vai avançando ao longo de uma galeria vazia.

Para ouvir bem o minueto de Boccherini, devemos imaginar a Galeria dos Espelhos vazia, e no fundo os primeiros grupos se formando e avançando, eu quase diria em “cordão” de oito, dez ou quinze pessoas, fazendo piruetas umas para as outras e caminhando até o rei. Chegando diante do monarca, fazem uma profunda reverência e depois viram, deixando lugar para outros. Quer dizer, a marcha progressiva está presente no minueto, e um pouco da atitude do respeito feudal diante do rei, de quem diz “senhor, vede quem eu sou, sinto-me e sou uma alta emanação de vós mesmo”, bem como algo de súdito que faz diante do rei uma profunda reverência. As duas coisas existem juntas e são um outro traço da graça do minueto, mais visível em Boccherini do que em todos os outros minuetos que conheço.

Imaginando um super minueto medieval

Eu não chegaria a dizer que esta teoria é válida para qualquer minueto. Talvez seja, mas não ouvi com este senso crítico um número suficiente de minuetos, e nem tive tempo para pensar bastante sobre a questão, a fim de fazer uma afirmação genérica quanto aos minuetos.

A meu ver, para interpretar perfeitamente o espírito do minueto de Boccherini seria preciso sempre conferir à música uma nota grave e altiva que se desfaz no sorriso, e não tanto a continuidade realmente muito harmoniosa e bonita posta em muitas interpretações que, para quem quer fazer música, representam, no gênero, uma obra-prima, mas para quem deseja fazer sociologia a coisa é diferente.

Um minueto precisaria ser tocado num ritmo não tão corrido, e com um intervalozinho entre cada trecho. E, ao chegar ao último do harmonioso, retomar o tema inicial. Tal minueto daria uma interpretação da harmonia, da cultura daquele tempo, feita exatamente de alta distinção e grande suavidade. Considero que um minueto tocado assim interpretaria o tempo e o lugar para os quais Boccherini o compôs.

Para compreendermos ainda melhor quais são as raízes psicológicas, morais e culturais de um minueto, deveríamos imaginar um super minueto medieval.

O rei católico, no seu trono, olhando firme, e sorrindo enquanto a coisa se desfaz numa gentileza. Que tanta gentileza contenha tanta majestade, e tanta majestade contenha tanta gentileza, aqui está o equilíbrio.

Imaginar, portanto, na Idade Média, uma dança desse tipo bailada por senhoras que usavam aqueles chapéus cônicos, altivos, dos quais pendiam véus trazidos do Oriente, levíssimos, que qualquer brisa punha em movimento; chapéus que eram mais ou menos como um reflexo, um símbolo da sabedoria.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 1974)

 

1) Luigi Boccherini (* 1743 – † 1805): compositor clássico italiano, famoso por seus minuetos.

2) Duque de Saint-Simon (* 1675 – † 1755), escritor francês que, em  suas “Memórias”, descreveu com penetração, finura e charme a vida de corte em Versailles, na época de Luís XIV.

A beleza da hierarquia angélica

Dr. Plinio tinha um apreço especial pelo estudo sobre os Anjos e grande devoção a eles. Comentando alguns trechos de um livro de Dionísio Areopagita, analisa a ordem, a atividade dos espíritos angélicos e faz aplicações desse tema aos indivíduos, à sociedade, a áreas de civilização e até mesmo a épocas históricas.

 

Dionísio Areopagita, em seu “Tratado da hierarquia celeste”, descreve uma concatenação dos Anjos, apresentada por ele como a ordenação perfeita do ser criado. O puro espírito criado não teria necessariamente aquela ordenação, mas ele não está longe de dizer — ou até mesmo afirma — que os traços essenciais da ordenação são aqueles.

A multiplicidade das criaturas

O cabide que carrega todo o tema tratado por Dionísio é: uma vez que Deus criou, não poderia deixar de criar vários seres.

São Tomás defende essa tese: O Altíssimo não poderia criar um só ser, porque nenhum ser único tem suficientes qualidades para refletir adequadamente as perfeições do Criador. Ora, a ordem do criado precisa refletir a Deus globalmente e não apenas em um de seus traços.

Então, esquematizando, seria o seguinte:

  1. A ordem do criado tem que refletir a Deus globalmente, e não apenas em uma de suas perfeições.
  2. Refletir a Deus globalmente é algo de tão grande, que não pode ser feito por uma criatura, mas por várias, portanto por um universo, quer dizer, por um conjunto de criaturas que esteja em condições de dar esse reflexo global do Criador.
  3. Deus dispôs que essas criaturas fossem muitíssimas e dotadas de propriedades cujo conjunto, de fato, refletisse a Ele.

Não me parece necessário que o número de seres fosse esse, nem que as criaturas fossem exatamente como são. Podiam ser criaturas numa quantidade diferente, cuja disposição e o inter-relacionamento entre elas adequadamente refletissem a Deus, num modo pelo qual os Anjos não refletem. Mas o Criador dispôs que fossem assim. Isso equivale a julgar que haveria outros universos possíveis. Isso é uma coisa que me parece absolutamente certa.

A ordem na sociedade humana deve ser análoga à existente entre os Anjos

Contudo, uma vez que Deus criou esse número de Anjos com essa natureza, não podia deixar de ser que eles estivessem ordenados como estão. Quer dizer, eles já foram criados assim em vista a refletir o Criador. E a ordenação, o inter-relacionamento entre eles, uma vez que são assim, seria necessariamente esse.

E como a tarefa das criaturas consiste em refletir a Deus não só sendo, mas agindo sobre outros, essas criaturas não podiam existir enclausuradas sem terem contato umas com as outras. Tinham que se relacionar para que essas qualidades, esses predicados divinos se articulassem e representassem um só todo.

Essas criaturas, assim articuladas, teriam que desempenhar um papel que, esquematicamente, é o papel que Dionísio atribui aos Anjos porque, na ordem absoluta do ser, um é aquele conhecimento amoroso dos Serafins, outro é aquela inteligência dos Querubins, outro é aquele poder dos Tronos, e assim por diante.

Como nós, homens, estamos no mesmo universo que os Anjos, fazemos parte da mesma Criação, eles devem nos governar. Em consequência, nossa ordem deve ser análoga e consonante com a deles. E, como tal, o modo de nos relacionarmos e os traços fundamentais de governo da sociedade humana, feitos os descontos da diferença de naturezas, têm que ser análogos aos do mundo angélico.

A força motora do governo legítimo

Entretanto, não pode ser que alguns de nós sejamos apenas cognoscitivos e volitivos, como os Anjos. Vê-se que nossa natureza não comporta isso, mas está menos longe de nossa natureza do que se pode imaginar à primeira vista.

Em muitos trechos dos seus discursos à nobreza romana, Pio XII encaixava o regime democrático, afirmando que as mais autênticas democracias devem ter instituições aristocráticas. Nesta perspectiva e tomando, portanto, a ideia de aristocracia no seu sentido mais amplo, quer dizer, as elites, é mais ou menos certo, a meu ver, que em face da missão de uma sociedade, do que ela é, do que deve fazer, há um maior descortino das classes mais altas do que das mais baixas. E esse descortino deve fazer com que as classes mais altas conheçam melhor o espírito do país, o que este é como um todo, amem-no com mais finura, de maneira tal que elas filtrem isso para as classes mais baixas. E que essa filtração produza, por sua vez, um impulso diretivo do poder sobre as classes mais baixas que é verdadeiramente a força motora do autêntico governo legítimo.

As classes mais baixas, assim iluminadas e impulsionadas, têm uma capacidade de execução muito maior do que numa sociedade onde não haja isso. E disto decorre, propriamente, o vigor e a coesão de um corpo social.

Alguém que inventasse copiar a ordem angélica para a ordem humana — não se inspirar, mas copiar —, faria as coisas mais pesadas, mais tontas que se possam imaginar.

Por exemplo, é de experiência comum que, de vez em quando, saem da classe mais baixa elementos extraordinariamente dotados; mas não correspondem à figura clássica do homem muito inteligente, que vai ficar um “ploc-ploc”(1). São pessoas muito dotadas de dons naturais vivos, capazes de vencer as batalhas da vida e aproximarem-se da aristocracia merecidamente, afinarem-se.

As raízes de uma árvore e a nobreza

As raízes de uma árvore pegam matéria inerte nas capilaridades, assimilam-na e a transpõem para o estado de matéria viva, passando a circular dentro do fluxo vital da árvore. A matéria morta que passa a ter vida lembra um pouco uma ressurreição. Isto é uma maravilha que ocorre nas raízes de todas as plantas a todo momento.

Há um fenômeno parecido com esse pelo qual a nobreza suga continuamente da plebe — uma sucção generosa, bondosa, honorífica para a plebe — os elementos aproveitáveis e os eleva, ejetando de si outros que, muitas vezes, se jogam eles mesmos para baixo.

Nesse sentido, tenho certa reserva contra algumas instituições que, sob o pretexto de manter longevas as famílias, amarram-nas nos seus próprios tronos, de tal maneira que quando elas estão apodrecendo, ainda se mantêm sentadas ali.

A inalienabilidade de certo bem em determinada família, enquanto o mundo durar, revela o propósito de evitar que ela seja despojada imerecidamente de alguma coisa. Mas denota também a intenção de assegurar aquilo para a família, mesmo quando as mãos débeis dela não forem mais capazes de agarrar e sustentar.

O Anjo não pode ser promovido para uma categoria superior, nem rebaixado a uma inferior. O homem pode. Se o anjo for um Querubim, sê-lo-á até no Inferno.

Portanto, é preciso saber entender como se inspirar nisso.

A esse respeito, poder-se-ia dar a seguinte regra:

Para nos inspirarmos no mundo angélico, seria preciso ver como isso foi modelado pelo surto de vida natural e sobrenatural do começo da Idade Média até a Revolução Francesa, feitos os descontos da decadência que houve naquele período. Depois procurar ver no que aquilo, sem a intenção de imitar os Anjos, de fato imitava, para assim compreender como esta semelhança pode jogar, e como devemos fazer no Reino de Maria.

A coisa errada, “ploc-ploc”, seria: vem o Reino de Maria, consultamos nossos especialistas em matéria de Anjos, eles nos dão os esquemas e organizamos uma sociedade. Não é isso! Precisamos ver como o bom impulso natural e sobrenatural vai movendo as coisas. E procurar interpretar esse impulso à luz do exemplo angélico, para em algum ponto retificar, apoiar, fazer o que executa o jardineiro com a planta.

Ele não faz o plano da planta e puxa o vegetal para ser daquele jeito, mas toma as possibilidades de progresso da planta e a orienta, poda de cá, de lá, leva-a para o lugar onde incide mais sol, enfim, manobra, segundo uma ideia que ele tem da planta, o que há de autêntico e orgânico dentro dela.

A pulcritude da abstração

Para isso serve enormemente o estudo dos Anjos, porque, desde que se compreenda em que sentido aquele surto está imitando-os — e que as pessoas tenham consciência de que, deixando-se tocar por esse impulso, elas estão fazendo uma coisa angélica —, o surto fica ainda mais forte e toma mais autenticidade.

Se, por exemplo, sou professor e percebo que é em virtude de um tal influxo angélico que estou agindo de determinado modo, compreendo como aquilo que surge em mim, como de minhas raízes, é “angeliforme”. Então, sou capaz de dar instintivamente àquilo uma espécie de perfeição que, se eu não soubesse isso, não daria.

O exemplo dos Anjos faz sobre nós o papel do exemplo do Sol sobre a planta. Não se trata tanto de raciocínio, mas é um “heliotropismo” rumo aos Anjos, estando Deus acima. O Anjo aqui é um hífen para Deus.

Seria preciso termos teólogos e artistas da sociedade que vai nascendo, capazes, antes de tudo, de senti-la no seu fluxo providencial, natural e sobrenatural. E saber apenas iluminar esse fluxo com o exemplo dos Anjos, e outras coisas tiradas da Teologia.

Imaginemos uma sociedade que tivesse toda a atenção posta sobre aqueles que são de algum modo os maiorais dela, os Anjos, e sobre o fato de que tudo o que existe na Terra, provavelmente, é reflexo de algo de angélico para depois tocar algo em Deus e ser reflexo d’Ele. Por exemplo, o modo de o homem ver as coisas abstratas, que é o píncaro do pensamento humano por vários lados — e depois contemplar as coisas simbólicas que é também esse píncaro sob diversos aspectos —, levaria o homem a ser capaz de perceber na abstração um “pulchrum”, que é parecido com o “pulchrum” das abstrações do Dionísio.

Quando ele fala de criaturas espirituais, que nem sequer podemos conceber, e desenvolve toda esta “ordenação com beleza” das coisas espirituais que acabamos de ver, dá-me a impressão de que em muitos dos trechos dele a abstração toca violino.

O que há de encantador em muitos trechos do Dionísio?

Ouvindo a leitura deles, várias vezes eu procurava ver se, além de acompanhar o pensamento, poderia apanhar no que estava essa beleza.

Na pura abstração há certo modo de concatenar as ideias e de ver o “pulchrum” delas, bem como um certo senso do “pulchrum” que se desperta de vez em quando; isso é, penso eu, algo de parecido com o que o homem sentiria se visse um puro espírito. Mas infinitamente ainda mais se visse Deus, porque Deus é absoluto e o absoluto é a personificação de muita coisa que conhecemos como abstrato, visto por certo lado.

Sentindo o belo da vida interna de Deus

Outro dia, estávamos numa das nossas sedes em que se entoou o Credo. Em determinado momento cantou-se “Deum de Deo, lumen de lumine, Deum verum de Deo vero, genitum non factum, consubstantiálem Patri”(2). Nós todos já ouvimos isso mil vezes, mas no momento em que foi cantado me pareceu sentir o belo desta vida interna de Deus, por onde Ele toca e não é tocado, e tudo se passa sem que Ele decaia ao tocar nas coisas.

Não podemos dizer que Deus seja uma abstração, mas nossa noção sobre Deus tem algo do abstrato, porque não corresponde a nenhuma imagem do sensível. Mas foi um momento em que de repente apareceu a beleza disso.

Se tivéssemos o espírito inteiramente adestrado, seríamos capazes de ver nas abstrações todo o belo musical delas, que daria ao homem uma fome e uma sede de abstração, que tenho a impressão de que os povos do Oriente possuíam.

De onde vinha exatamente o fato de eles se interessarem tanto pela manutenção da ortodoxia contra essa ou aquela heresia; e depois torcerem pela propagação dessa ou daquela heresia contra a ortodoxia, como alguém hoje poderia torcer por uma partida de futebol. A meu ver, porque eles pegavam isso e a mudança de qualquer matiz os tocava a fundo. Eram povos que estavam numa clave muito superior à nossa.

E acrescento: só as almas capazes de verem isto assim compreendem o píncaro de uma cultura, de uma nação. Não digo que um aristocrata precisa ter necessariamente esta visão de espírito, mas afirmo que se não houver gente como estou dizendo para tocar esse fogo sagrado na mente do aristocrata, não teremos aristocracia.

Se tivéssemos isso bem organizado e posto no espírito, compreenderíamos muito melhor algo da luz primordial(3) e até do senso do ser de cada um de nós, que fica preso no porão de nossa própria personalidade, como uma mercadoria no porão do navio, e que levamos do berço até a sepultura sem nunca desembalar esse tesouro, para fazê-lo tomar ar e procurar, enfim, adornar-se com ele.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/4/1984)

 

1) Expressão onomatopeica criada por Dr. Plinio para designar o defeito de certas pessoas que, desprovidas de intuição e bom senso, querem explicar tudo por meio de raciocínios desenvolvidos de modo lento e pesado, à maneira de um paralelepípedo que, ao ser girado sobre o solo, emite o ruído “ploc-ploc”.

2) Trecho, em latim, do Credo Niceno-Constantinopolitano: “Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai”.

3) Termo cunhado por Dr. Plinio para significar a aspiração existente na alma de cada pessoa, ou num povo, para contemplar a Deus de um modo peculiar, refletindo d’Ele determinada perfeição. Ver Dr. Plinio, n. 54, p. 4.

Uma joia dotada de asas

Quem não se encanta ao contemplar o voo de um beija-flor?  Tão pequenino e tão belo, ele nos dá a ideia de uma pedraria voando, uma joia dotada de asas.

 

Há animais que podem ser muito frágeis, mas na sua fragilidade são também muito ágeis. E a agilidade lhes dá uma capacidade de avançar, de fugir e de voltar, que constitui a sua força. Uma ave que me dá muito essa impressão é o beija-flor.

Analisando um beija-flor

Lembro-me de uma vez em que eu estava trabalhando num terraço e, de repente, um beija-flor parou e começou a sugar o néctar que ele encontrava nas flores de uma trepadeira. Era um beija-flor de muito bom gênio e que se contentava com pouco, porque não parecia haver muito néctar naquelas esquálidas flores. Mas, enfim, o beija-flor sugou flor por flor. Interrompi o que eu estava fazendo e fiquei, em silêncio, olhando o beija-flor, com o cuidado de não o atrapalhar.

Ele, tão inflexível em voar, na hora de sugar tremia e avançava, com mil movimentos, em torno da flor, tirando todo o néctar que podia e batendo com as asas de tal maneira que nenhum dos movimentos imitava exatamente o outro, e nenhuma das vibrações repetia a outra; parecia um instrumento tocando uma música sempre nova.

Eu pensava: “Ele tem lá suas regras, que não conheço, mas afinal quando ele vai acabar?” Então sugava, sugava, e, de repente, da maneira mais inopinada, tomando conhecimento de que não havia nada, ou quase nada, a aproveitar da flor, deixava-a de um modo tão completo que era como se nunca aquela flor tivesse existido para ele; e, sem vacilação, ia direto para outra flor.

Então eu refletia: “É a própria imagem da decisão. Quando é hora de sugar, faz força e suga; quando é hora de partir, abandona, rejeita e deixa a coisa reduzida a bagaço”.

Aquele beija-flor não conhecia o sentimento brasileiro de saudade: ele abandonava cada flor sem rancor, mas também sem saudade. Eu tinha a impressão de que depois de tirar o último néctar ele ficava meio liberado, e então voava e recomeçava em outro lugar.

Uma joia preciosa criada por Deus

O voo do beija-flor tem certa beleza, mas é tão rápido que não dá tempo de se contemplar. Porém, quando ele para junto a uma flor, movimenta as asas e começa a sugar o néctar, a beleza de suas penugens, a riqueza das penas furta-cor são ainda mais ressaltadas.

Ele fica parecido a uma joia preciosa que Deus criou para o homem poder olhar e nunca segurar, e ter o encanto da coisa fugidia que passa, a qual, neste vale de lágrimas, é para nós uma esperança do Céu.

Uma outra característica do beija-flor é que ele foi feito para ser fugaz. A Providência criou nesta Terra de exílio uma porção de coisas fugazes ótimas — que deixariam de ser ótimas se não fossem fugazes —, para nos dar uma tinta do Céu. Sendo aqui Terra de exílio, elas não podem dar essa impressão estavelmente. Mas Deus teve pena de nós e mandou um vaga-lume do Céu para a Terra, para acender e apagar, fazendo-nos entender algo do Céu.

O momento auge da vida do beija-flor

Quando o beija-flor começa a sugar o néctar de uma flor, em primeiro lugar se percebe o tamanho do bico, o qual é propriamente bonito quando imerso na flor. O ponto máximo, o auge da vida do beija-flor é o momento em que ele suga o néctar de dentro da flor.

De maneira que aquela agilidade de estar o tempo todo voando e absorvendo o néctar, aquele poder de conquista com que ele mete o bico na flor, e, de outro lado, a beleza do movimento de suas asas, fazem dele uma espécie de joia volátil.

É o relacionamento dele com a flor que o põe nessa postura. Quer dizer, no momento em que ele faz aquilo para o que foi criado, todo o seu esforço faz ver o que há de excelente dentro dele e o apresenta no seu melhor aspecto; o mais louvável que há no plano de Deus a respeito do beija-flor se vê ali.

Voo radical

Seu voo é parecido com uma seta: depressa e reto. Dir-se-ia que o bico dele fende os ares, as distâncias, e chega direto ao ponto onde, de longe, o beija-flor já viu o que deve atingir.

Ele se aproxima da flor, enfia o bico na corola e dali tira o que quer. Sai cheio de coisas doces que estão na natureza da flor; e sai vitorioso porque foi radical. Ele voa leve, rápido, forte e depressa: é um voo radical.

Mais ainda: ele escolhe o que deve querer e acerta o material necessário para fazer aquilo que está na sua natureza fazer. Uma vez que se lança sobre uma flor, tira de dentro dela todo o seu suco delicioso, fica com um aroma de flor e uma beleza de pedra preciosa. Uma verdadeira maravilha!

Mais do que tudo, o beija-flor é radical no seguinte: ele dá vários voos a diversas plantas da mesma natureza, em todas elas mete o bico e sai levando as mesmas doçuras para se alimentar, ficar com um colorido mais bonito, um movimento mais ágil. Ele ganha em todos os sentidos da palavra; e ganha à força de radicalidade.

Todo o trabalho do beija-flor — quer o voo, quer a sucção — é feito com tanta leveza, delicadeza e distinção que até parece uma dança. Entretanto, é muito mais do que dança: é um voo. Porque o homem, quando dança, mostra seu encanto com o voo. Mas quem dança mesmo são os pássaros no céu.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 31/1/1980, 20/1/1990, 5/4/1990 e 28/1/1994 )