São Jerônimo

Num período onde o patriciado e a nobreza romana ganharam novo brilho devido à influência monástica, São Jerônimo mostrou-se um zeloso apóstolo e um exímio lutador pela glória virginal de Maria. Dotado por Deus com o carisma da polêmica, ele apontou o mal que há na heresia para depois falar a respeito da verdade.

 

A respeito de São Jerônimo, Confessor e Doutor da Igreja, Dom Guéranger, no “L’Année Liturgique(1), diz o seguinte:

Estranho fenômeno para o historiador sem fé: eis que em torno deste dálmata, na hora onde a Roma dos Césares agoniza, se irradiam subitamente os mais belos nomes da Roma antiga. Crer-se-ia que eles estavam extintos, desde o dia onde se tornou obscura entre as mãos dos “parvenus” da glória a cidade rainha.

Nos tempos críticos em que, purificada pelas flamas que os bárbaros incendiaram, a capital que eles deram ao mundo vai retomar seus destinos e reaparece, como por seu direito de nascimento, para fundar novamente a cidade eterna. A luta se tornou outra, mas seu lugar continua à testa do exército que salvará o mundo. Raros são entre nós os sábios, os poderosos, os nobres, dizia o Apóstolo, quatro séculos antes. Numerosos eles são em nosso tempo, protesta Jerônimo, numerosos entre os monges.

O patriciado e a nobreza ganham novo brilho na Roma Eterna

O pensamento está expresso com uma complexidade um pouco século XIX e, portanto, creio que não muito clara para a geração atual. Mas, em duas palavras, quer dizer o seguinte:

Roma estava decaindo. As antigas famílias, às quais Roma devia a sua antiga glória política, não a estavam mais dirigindo devido ao seguinte fenômeno: o pessoal adventício, que dominara Roma, havia deixado numa certa penumbra as famílias antigas; mas essas famílias — que no começo do Cristianismo, quando elas dirigiam a sociedade civil, eram pouco numerosas entre os católicos —, na época de São Jerônimo, no fim do Império Romano, eram muito numerosas entre eles.

Quer dizer, a nobreza e o patriciado romanos tinham um papel de vanguarda na direção dessa segunda Roma, que não era mais a Roma dos Césares, que estava morrendo, mas a Roma dos Papas, que estava nascendo. E eles se encontravam na liderança da vida religiosa e da expansão católica no mundo.

A falange aristocrática constituiu o melhor do exército monástico.

Ou seja, o melhor das vocações para monges era de nobres.

Nesses tempos de sua origem no Ocidente…

Em que o monaquismo, que já existia no Oriente, começou a nascer no Ocidente.

… ela lhe deixará para sempre seu caráter de antiga grandeza.

O caráter da antiga grandeza nobiliárquica comunicou algo para a dignidade do monaquismo.

Mas nas suas fileiras, a título igual de seus pais e de seus irmãos, se veem a virgem e a viúva, ao mesmo tempo o esposo e a esposa. É Marcela, que será para ele o auxílio na tradução das Escrituras. E, como ela, Fabíola, Paula e outras que lembram os grandes ancestrais, os Camilii, os Fabii, os Scipiones.

Camilos, Fábios e Cipiões eram grandes famílias nobres. E, em linguagem mais simples, Dom Guéranger menciona nobres — como viúvas, virgens, ou esposo e esposa, sendo separado o casal — que iam viver no estado monástico, conferindo-lhe algo de sua antiga grandeza.

São Jerônimo, vingador da glória virginal de Maria

Nesta altura, a refutação de Elvidius, que ousava pôr em dúvida a perpétua virgindade da Mãe de Deus, revelou em Jerônimo o polemista incomparável, do qual Joviniano, Venâncio, Pelágio e outros ainda teriam que experimentar o vigor.

Eram hereges que São Jerônimo fustigou vigorosamente.

Como recompensa, entretanto, de sua honra vingada, Maria conduzia a ele todas essas almas nobres. Ele as dirigia no caminho da virtude e, pelo sal das Escrituras, as preservava da corrupção da qual morria o Império Romano.

Então, aqui se completa esse bonito pensamento que explica a tarefa de São Jerônimo.

Um apóstolo da alta aristocracia

Ele não era apenas o grande herói que lutava contra os hereges, mas também salvava da podridão o que Roma tinha de melhor, as antigas famílias aristocráticas, e as conduzia para a conquista do mundo, para a Roma dos Papas, e não mais para a Roma dos Césares. O santo realizava isto por meio de assistência espiritual à alta aristocracia romana, que já não tinha poder político, mas ainda era fabulosamente rica naqueles tempos.

Qual é a consideração que isto nos traz ao espírito?

São Jerônimo tinha em mente a importância das elites para a direção da sociedade. E ele soube compreender que um movimento católico que vise levar o mundo inteiro para a Igreja, a cristianização do mundo, deve contar com todas as classes sociais, levando cada uma a dar o contributo que lhe é específico. Portanto, a classe aristocrática deve prestigiar a expansão apostólica com o valor do nome, da fortuna, mas sobretudo com o valor de certo prestígio indefinido, que se ligava merecidamente às grandes famílias da aristocracia romana.

Quer dizer, ele compreendeu que, acionando as classes mais influentes, havia um meio para acionar toda a sociedade e para obter a cooperação dela para a luta pelo Reino de Cristo.

Austero, polemista e zeloso pela glória de Deus

No breviário antigo consta um elogio a São Jerônimo, que convém comentar:

Molestou os hereges com acérrimos escritos.

Existiram santos dotados de carismas extraordinários para a posição polêmica. Um deles foi São Jerônimo. De fato, ele representa, por excelência, na Igreja, o espírito da polêmica. Os seus escritos são de uma energia, para não dizer de uma violência, que pareceria desabotoada se não fosse ele um santo. E para as menores questões ele dava respostas de fogo tremendas, e deixava todo mundo tremendo diante dele.

Certa ocasião, Santo Agostinho chegou a escrever-lhe uma carta muito engraçada, dizendo que, com metade da energia empregada, já cederia diante de São Jerônimo. Li uma missiva de São Jerônimo a uma dirigida dele, uma santa, que lhe mandou, aliás, um lindo presente: pombinhos e cerejas; e ele respondeu perguntando se ela queria corromper a austeridade dele, e afirmou que imediatamente deu aquilo para os pobres, porque era um homem penitente.

Isto é o zelo da Casa de Deus, que devora o homem, uma das formas mais características, portanto, das mais santas, mais legítimas dessa virtude. Desde que seja feito por amor de Deus, e não por ressentimentos pessoais — porque com ressentimentos a coisa muda de aspecto —, isto é uma coisa santíssima, é ser um gládio vivo de Deus. Não conheço elogio maior do que dizer de alguém que ele é a espada viva de Deus.

A polêmica visa sobretudo influenciar os indecisos

Em matéria de polêmica, é preciso sempre prestar atenção no seguinte: os espíritos modernistas consideram a existência de duas figuras, uma que diz “A” e outra que diz “B”; eles não tomam em consideração um terceiro elemento, que é talvez o mais importante no caso: o público que assiste à discussão.

Toda polêmica, ainda que seja feita a portas fechadas, vai repercutir fora e atuar sobre pessoas que estão na dúvida, e que se trata de convencer.

Quando se discute, por exemplo, com um pastor protestante, o mais importante não é convertê-lo, mas evitar que os católicos fiquem protestantes. Em segundo lugar, converter os protestantes menos empedernidos que ali estão. E por fim converter o pastor.

Ao homem em risco fala-se usando a linguagem do medo

Imaginemos que um amigo nosso esteja se debruçando perigosamente sobre um parapeito pequeno que dá para um abismo. Nós não lhe diremos: “Fulano, venha para cá, porque o chão é de mármore!” Mas falaremos: “Cuidado! Caindo nesse abismo você arrebenta a cabeça!” Porque o modo de afastar um indivíduo imediatamente do perigo e da imprudência é mostrar-lhe o mal que lhe sucederá e não o bem.

Quem de nós haveria de dizer para uma pessoa que, por exemplo, está brincando com um revólver imprudentemente: “Fulano, você quer ir jogar xadrez?”, para ver se ele tira o dedo do gatilho e depois lhe tiramos o revólver. Seria de nossa parte uma atitude idiota. Poderíamos falar-lhe: “Fulano! Olhe esse revólver! Você pode se ferir gravemente ou me ferir!”

Quer dizer, normalmente, ao homem em risco, tentado, deve-se falar usando a linguagem do medo. Isto é, sobretudo, verdadeiro no que diz respeito à Doutrina Católica, porque os homens, pela sua maldade, são mais fáceis de se mover pelo medo do Inferno, do que pela apetência do Céu; pelo temor das más consequências, do que pelo bem que pode acontecer. E é preciso, portanto, como remédio de urgência, apontar o mal, a falsidade, que há no erro para depois falar a respeito da verdade.

Assim se compreende a posição polêmica de São Jerônimo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 30/9/1964 e 29/9/1966)

1) GUÉRANGER, Prosper. L’Année Liturgique. 14. ed. Tours: Alfred Mame et fils, 1922, v.V, p. 327-339.

Beleza perfeita, alegria do mundo inteiro

Uma das mais lindas relíquias da Idade Média francesa é, sem dúvida alguma, a Catedral de Notre-Dame de Paris. Dificilmente alguém olhará o esplendor religioso desse monumento gótico, sem sentir por ele verdadeira veneração. Quer nos seus aspectos externos, quer nos internos, é uma tal obra-prima de bom gosto, de ordem, de sobriedade, que sempre me leva a parafrasear em seu favor as palavras da Escritura: é a igreja de uma beleza perfeita, glória e alegria do mundo inteiro!

Perfeita em cada pormenor, em cada seqüência de suas colunatas e arcarias góticas, assim como nas suas galerias de imagens de reis ou de santos, dispostos em tamanhos, alturas e distâncias irretocáveis. Perfeita na grande rosácea central de sua fachada, que outra coisa http://p1.storage.canalblog.com/17/89/1178853/102576262.jpgnão é senão uma auréola magnífica para a mais magnífica de todas as criaturas, Maria Santíssima, cuja imagem ali se apresenta à devoção e contemplação do povo fiel.

Maravilhosa na profusão de grupos esculturais espalhados ao redor de todo o seu gigantesco corpo, talhados em pedra que, de longe, mais parece tingida de ouro, e tão cuidadosamente cinzelados que mereciam maior realce: cenas da vida de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, o Natal, a Apresentação no Templo, a matança dos inocentes, a fuga para o Egito, a Coroação da Rainha do  Universo…

Episódios do quotidiano medieval, fatos edificantes daquela época incomparável da Cristandade, como a história do Monge Teófilo, ludibriado pelo demônio e socorrido pela Mãe de Misericórdia, etc., etc. Bela, ainda, a nos tolher a palavra, na riqueza de seu interior recortado de colunas e ogivas, resplandecente na gloriosa policromia de seus vitrais, ou nos encantadores frisos de baixos relevos que ornam o coro, os quais, numa exuberante sinfonia de cores e detalhes, retratam os mais significativos momentos da vida de Jesus. Só por esse Evangelho esculpido em madeira já  valeria a pena viver em Notre-Dame!https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcSFdxH5gJZe3I2fXOqtbGmAtK1nCFLbEoPuqBdXVgvv_Zx0vD1r

E o requinte da arte cristã, acentuado pelo “savoir-faire” único da alma francesa, transborda para os jardins que envolvem o maravilhoso templo, para os canteiros bem calculados e bem cuidados, para a vegetação que serve de moldura às enormes ogivas e à elegante, fabulosa agulha central que se lança para o céu. É a célebre flecha concebida por Viollet-le-Duc no século XIX, numa espécie de realização saudosa, nostálgica, do acabamento perfeito que não estava inteiramente na consciência dos medievais, mas foi explicitado pelos seus descendentes, homens de uma post-Idade Média baseada na História. E sempre me pareceu sublime a ideia de acrescentar essa flecha a Notre-Dame, coroando a silhueta de uma catedral  imortal.

No seu conjunto, a beleza de Notre-Dame refulge de uma luz excelente, completa, contínua e tranquila, que cativa nossa admiração e eleva nosso espírito à seguinte reflexão: o amor e o entusiasmo que temos pelos tesouros da Civilização Cristã seriam incompreensíveis, se não partissem da consideração de Nosso Senhor padecendo e morrendo por nós na Cruz.

Sim, na Paixão e nos acerbíssimos sofrimentos d’Ele, a cada lanho que os flagelos cruéis arrancavam de seu corpo sagrado, a cada gemido que Ele exalava, estava-se preparando todas as pulcritudes que a alma católica engendraria ao longo dos séculos. Sem o holocausto de Jesus, a Europa medieval não teria tido virtude nem elevação de espírito para realizar monumentos tão extraordinários como esse.

Lembremo-nos então disso: quando as carnes e o sangue preciosíssimos do Divino Redentor caíam e se derramavam pelos chãos de Jerusalém, Ele estava construindo a beleza do reino d’Ele na terra, como Profeta que realiza sua própria profecia, pensando num Carlos Magno, numa Sainte-Chapelle, numa Notre-Dame de Paris…

Plinio Corrêa de Oliveira

Espelhos da quintessência divina

Ao lado da bonomia e da doçura de viver que fazem dele um dos encantos desta terra de exílio, envolto por uma natureza risonha, bela e amiga, que parece cantar ao som das célebres melodias dos seus gênios musicais, o povo austríaco se caracteriza de modo muito particular pela grandeza de alma com que conserva os esplendores aristocráticos herdados de seu passado.

Como nostálgica dos gloriosos dias da monarquia dos Habsburgs, a pompa imperial ainda lateja em muitos monumentos, edifícios, costumes e instituições dessa Áustria que não nos cansamos de admirar.

Por exemplo, o Castelo do Belvedere ou o Palácio de Schoenbrunn, construções de linhas clássicas e majestosas, refletindo-se plácida e feericamente nos seus “bassins”, evocam a Viena das galas e requintes do “Ancien Régime”.

Mais recuado no tempo, o Paço Municipal da metrópole austríaca ostenta sua magnífica arquitetura gótica, podendo ser contemplado através de folhagens tingidas de um verde delicado e bonito, circundado por canteiros em que flores variegadas abrem suas lindas pétalas para receberem as gotas de água que respigam de elegantes chafarizes. No secular edifício nota-se toda a força e leveza do gótico: nas torres erguidas sem dificuldades para o céu, nas janelas e arcarias ogivais, na beleza do teto, na nobreza das pedras e em muitos outros de seus extraordinários aspectos.

O que há de velho e perene no prédio é harmonicamente completado pelo que há de novo e fresco em toda a vegetação e nos jorros de água ao redor dele. Enfim, poder-se-ia mesmo adorná-lo com este título: “Tradição sempre viva”…

Mencionemos também a Hofburg, contemporânea, no seu estilo, do Belvedere e de Schoenbrunn, marcada de maneira especial pela presença de dois soberanos que, jovens, mais pareciam personagens de um conto de Fadas. Apesar dos seus defeitos e frivolidades para os quais não se deve fechar os olhos, Francisco José e a Imperatriz Elizabeth — a legendária Sissi — eram entretanto símbolos vivos do que a Civilização Cristã havia engendrado de mais excelente. Daí terem escrito uma das páginas imorredouras da história austríaca.

Daí, igualmente, o aroma de suas personalidades arquetípicas ainda se fazer sentir naquele esplêndido edifício imperial, impregnando os salões que se sucedem de modo agradável e acolhedor, iluminados ora pela luz intensa que atravessa suas largas janelas, ora pela incidência tamisada dos raios de sol contidos por delicados voiles.

Vastos espaços ornamentados com móveis nas cores austríacas — vermelho, branco e dourado —, harmonizando-se belamente com o ouro das molduras, das “boiseries”, das pinturas que cobrem seus tetos.

Os assoalhos são verdadeiros mosaicos de madeira, engenhosamente traçados, formando lindo conjunto com a suntuosidade dos salões ou com a simplicidade e o bom gosto de muitas daquelas salas, apenas com suas mesas de tampo envernizado, uns poucos vasos, algumas cadeiras, castiçais dourados e, a um canto, o aquecedor revestido de porcelana branca com apliques folheados a ouro. Nada é excessivo, nada sobrecarregado nem empetecado. Nos salões mais frequentados pela Imperatriz domina qualquer coisa de graça feminina, distinta, suave, com ornamentos bem apropriados e lustres que dão quase a ideia de uma flor de cristal suspensa ao teto… Facilmente imaginamos ali a delicada soberana, num daqueles momentos informais em que ela recebia suas amigas para o chá da tarde ou para conversar na intimidade com seu esposo, o Imperador. Este também tinha seus salões reservados, com decorações mais adequadas ao gosto masculino, sóbrias, com molduras menos trabalhadas, lustres menos floridos e o dourado mais discreto.

Graça, aconchego, sobriedade e majestade que iam se reunir, todas, na sala dos grandes banquetes que o casal imperial oferecia a monarcas, dignitários e personalidades da Europa e do resto do mundo. Acomodados nas cadeiras de veludo vermelho, sentavam-se à mesa reis e rainhas, ministros e chefes de Estado, cardeais e bispos, diplomatas e altas patentes militares, nos seus trajes suntuosos realçados por alamares, jóias e condecorações. A refeição solene transcorria à luz das velas cintilando em candelabros de ouro e nos imponentes lustres de cristal, sob o olhar dos personagens estáticos nas telas imensas que dominam as paredes. Quadros de tonalidades profundas, contrastando com aquilo que a sala poderia ter de etéreo e ligeiro, e lhe conferindo, por isso mesmo, a gravidade mais condizente à majestade imperial.

Imagine-se uma orquestra tocando numa sala vizinha, de maneira que os seus sons harmônicos tornassem ainda mais agradável o banquete, enquanto os servidores enchiam as taças com um vinho capitoso do Reno e guarneciam os pratos com incomparáveis “pâtisseries” vienenses — e então nos é dado compreender que esplendor se reunia nesta sala!

* * *

Cumpre considerar como essas belezas nos falam de um poder régio, augusto, tão seguro de si que pode viver na alegria de ser o que é. Ao mesmo tempo, um poder que se encontra nas mãos de gente ultracivilizada, ultra quintessenciada, a quem fica bem a prática de todas a virtudes. Trata-se, pois, de uma forma de majestade que não é apenas o mando, mas o direito de governar por causa da posse de qualidades super-eminentes, entre as quais os predicados morais devem ter a primazia absoluta.

E nisso vemos um reflexo da própria majestade de Deus imersa na segurança eterna de sua felicidade perpétua, inteiramente garantida na despreocupação e na alegria perfeitas do Céu.

Em suma, a contemplação desses esplendores nos deve fazer pensar no tipo humano para o qual eles foram feitos. Esse tipo humano atrai a nossa atenção para a superioridade que foram chamados a representar. E esta superioridade, por sua vez, deve elevar nosso pensamento até Deus, criador e fonte de todas as majestades e belezas.

Vínculo entre Anjos e homens “angelizados”

Quando os medievais se referiam aos Anjos, falavam muitas vezes da Cavalaria Angélica. Diziam que os espíritos celestes foram os primeiros cavaleiros porque lutaram contra os primeiros maus: os anjos revoltosos.

Não nos é fácil compreender como foi o “prœlium magnum”, esse grande combate travado no Céu entre os Anjos e os demônios. Como um puro espírito luta contra outro? Quais são os recursos de um espírito para vencer o outro, a ponto de precipitá-lo no Inferno? Como se dá a expulsão de um espírito por outro, de um determinado lugar?

Por certo, esta guerra deu-se de um modo intrinsecamente muito mais nobre do que as Cruzadas. Aqueles espíritos angélicos, no momento em que se punham em luta contra os demônios, eram confirmados em graça e conquistavam para todo o sempre a coroa eterna.

O chefe dessa Cavalaria Celeste é o Arcanjo São Miguel que, constituído o patrono dos cavaleiros, resume em si todo o espírito das Cruzadas, da Cavalaria e, consequentemente, todo o espírito da Idade Média.

Nós achamos tão nobre alguém derramar seu sangue por uma grande causa. Mas a nobreza de um espírito como São Miguel, desdobrando toda a sua força contra o demônio, é inimaginável! É tal a beleza do Príncipe da Milícia Celeste que o intelecto humano não é capaz de captar, mas de algum modo pode suspeitar, entrever, conjecturar, à maneira de um degrau para imaginarmos a infinita perfeição de Deus.

Sem dúvida, também nessa guerra incruenta em que estamos engajados – guerra psicológica, de graças e carismas contra as tentações e insídias diabólicas; de um espírito de inocência contra o de cumplicidade e toda espécie de indecência, de crime e de fraude da Revolução – há muito maior nobreza do que na própria Cavalaria terrena.

Contudo, não poderemos contrarrestar a ofensiva revolucionária se não formos tais que os Anjos se reconheçam afins conosco e nossos naturais aliados; sem que estabeleçamos com a Cavalaria Angélica essa consonância por onde os celestiais guerreiros venham lutar conosco e dentro de nós com uma naturalidade como se o abismo que nos separa deles não existisse.

Este vínculo entre Anjos e homens, e de homens por assim dizer “angelizados” entre si, agindo sobre a opinião pública no sentido contrarrevolucionário, em continuidade com a Cavalaria Celeste, é isto que deve nos caracterizar(*).

* Cf. conferências de 16/10/1970, 12/2/1978 e 6/10/1981.

Luta espiritual cheia de amor, amor cheio de doçura

O Arcanjo São Gabriel é aquele que mais conhece a Deus e comunica melhor este conhecimento. Daí o papel dele na Encarnação. Seu conhecimento não é meramente abstrativo, teórico, doutrinário, mas é evidentemente todo amoroso, com um amor que se manifesta na luta entendida assim: Luta espiritual cheia de amor, amor cheio de doçura. Há, portanto, uma espécie de “prœlio” no qual está, como ponto de origem e ponto terminal, o amor.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 5 e 12/12/1976)

Guerreiros implacáveis contra o demônio e seus sequazes

Pode-se afirmar que todas as grandes almas que combateram as diversas heresias, ao longo dos séculos, foram especialmente suscitadas por Nossa Senhora. É o que insinua de modo muito bonito o brasão dos claretianos, onde figura, além do Imaculado Coração de Maria, São Miguel Arcanjo e, no alto, a divisa: “Os seus filhos se levantaram e A proclamaram bem-aventurada”.

Essa presença de guerreiros que, como soldados de São Miguel Arcanjo, levantam-se para combater os inimigos de Deus, proclamando bem-aventurado o Coração de Maria, não é também uma forma de irrupção da Santíssima Virgem, como magnífica aurora, nas tramas da História? Portanto, os verdadeiros devotos de Nossa Senhora devem desejar e pedir a Ela a graça de serem esses guerreiros de ferro, indomáveis e implacáveis contra o demônio e seus sequazes que, em nossos dias, procuram conspurcar a glória da imortal Igreja de Cristo.

(Extraído de conferência de 8/9/1963)

Beato Carlos de Blois: Patrono dos guerreiros

A índole das instituições feudais, as quais eram hierárquicas, conduzia à santidade, enquanto as instituições que pressupõem uma igualdade completa levam ao contrário da santidade, que é o espírito da Revolução.

A respeito do Beato Carlos de Blois, o General Silveira de Mello, no livro “Os Santos Militares”, diz o seguinte:

Herda o Ducado da Bretanha

Carlos de Blois era filho do Conde de Blois, Guy I, e da Princesa Margarida, irmã de Filipe de Valois.
Recebeu educação esmerada e foi muito adestrado militarmente.

Casando-se com Joana, filha de Guy de Penthièvre e sobrinha de João III da Bretanha, por morte deste último, Carlos de Blois recebeu, com sua esposa, o ducado como herança, no ano de 1341. Assumiu o governo dessa província com grande entusiasmo dos nobres e dos seus vassalos mais humildes.

O povo do seu ducado da Bretanha, olhando para ele, pensando nele, admirando-o, venerando-o, tinha nele um reflexo de Deus na Terra.

Batalha de La Roche-Derrien
Biblioteca Nacional da França

Entretanto, o Conde de Montfort, irmão do Duque falecido, reclamou o direito à sucessão e pegou em armas para reivindicá-lo. Foi apoiado pelos ingleses, enquanto a França tomava o partido de Carlos.

O jovem Conde de Blois fez frente ao seu contendor. 23 anos durou essa luta que os ingleses sustentavam de fora.

Em 1346, no combate de La Roche-Derrien, Carlos sofreu um revés e caiu prisioneiro. Encerraram-no na Torre de Londres, onde permaneceu encarcerado durante nove anos. As orações que rezou neste cativeiro foram de molde a assegurar a continuidade do governo da Bretanha.

Nunca afrouxou seus exercícios de piedade

A Princesa Joana, sua enérgica esposa, assumiu a direção dos negócios públicos e da guerra e manteve atitude de energia pela libertação do marido.

Livre, Carlos prosseguiu com maior denodo as operações militares.

Sucederam-se reveses e vantagens de parte a parte, até que por fim, em 1364, aos 29 de setembro, festa do Arcanjo São Miguel, o santo e bravo duque caiu morto na Batalha de Auray. Esta jornada heroica, última de sua vida, iniciou-a Carlos com a recepção dos Sacramentos da Confissão e da Eucaristia.

Morreu como vivera, pois, em meio a todas as lutas que enfrentava, nunca afrouxou seus exercícios de piedade e austeridade, assim como nunca deixou de empreender obras de interesse para a Religião e para seus súditos.

Tão evidentes foram as suas virtudes, que logo após sua morte, em 1368, deram início ao processo de beatificação. São Pio X confirmou o seu culto em 14 de dezembro de 1904. É venerado no dia de sua morte, 29 de setembro.

Luta contra um vassalo infiel e revoltado

Trata-se de um Santo que é, de um modo especial, o patrono dos guerreiros. Há dois modos de ser patrono dos guerreiros: um, considerando o guerreiro enquanto guerreiro da Fé, lutador pela Doutrina e pela Igreja Católica. Mas neste caso é a função do guerreiro com um acréscimo que lhe é extrínseco e não necessário à condição do guerreiro. Quer dizer, o guerreiro realiza a maior sublimidade de sua vocação quando ele luta pela Fé, mas nem todo guerreiro luta necessariamente pela Fé.

O próprio do guerreiro é lutar, e o normal dele não é lutar apenas pela Fé. Mas o guerreiro pura e simplesmente, que não acrescenta a seu título essa auréola de cruzado, é aquele que luta na guerra justa pelo seu país, para defender o bem comum, ainda que seja o bem comum temporal daqueles que estão confiados à sua direção.

Temos aqui o exemplo do Bem-aventurado Carlos de Blois. Como vimos, ele era Duque da Bretanha, em virtude de uma herança recebida de sua esposa. Mas o tio desta, contestando a  legitimidade desse título, revoltou-se e moveu uma guerra contra ele. Ele era, portanto, a legítima autoridade em luta contra um vassalo infiel e revoltado.

Além disso, tratava-se da integridade do reino da França, porque o tio da Princesa de Blois era ligado aos ingleses, que queriam dominar a França. E ele lutava então pela integridade do território francês, batalhando pela independência da Bretanha em relação à Inglaterra.

Combate com um remoto significado religioso

Essa luta pela França, por sua vez, tinha um remoto significado religioso, mas que ele não podia prever, não estava nas suas intenções. A França era a nação predileta de Deus, a filha primogênita da Igreja. A Inglaterra era nesse tempo uma nação católica, mas futuramente haveria de tornar-se protestante. E se ela tivesse domínio numa parte do território francês, daí a alguns séculos isso seria muito nocivo para a causa católica.

Entretanto, esta consideração de ordem religiosa, que nos faz ver o caráter providencial da luta, não estava na mente desse Beato. Ele tinha em vista, como Duque, lutar pela integridade do  território de sua pátria próxima, que era a Bretanha, e de sua pátria mais genérica que era a França.

Ele levou nesta luta uma vida inteira. Foram perto de 30 anos de reveses, nove dos quais ele esteve preso. Mas o Beato soube comunicar o seu ardor guerreiro à sua esposa que, durante os nove anos em que ele ficou encarcerado na Torre de Londres, também lutou valentemente para conservar o ducado.

Ao beatificá-lo, a Igreja quis elevar à honra dos altares o senhor feudal perfeito, governador e patriarca de suas terras, aristocrata e, além disso, batalhador que sabia derramar o sangue pelos seus. Esta é a síntese do senhor feudal.

Para determinados revolucionários que vivem falando contra o feudalismo, e apresentam o cargo e a dignidade de senhor feudal como intrinsecamente má, o exemplo do Beato Carlos de Blois e o  gesto da Igreja beatificando-o constituem um desmentido rotundo, porque mostram bem que o cargo pode e deve ser exercido digna e santamente, e que através dele se pode chegar à honra dos altares.

Mostra-nos, com mais um exemplo, quantas pessoas de alta categoria da hierarquia feudal se tornaram santas.

Vemos também por este exemplo a índole das instituições. As instituições têm uma índole, uma psicologia, uma mentalidade como os indivíduos. A índole das instituições feudais levava à  santidade, enquanto que, de outro lado, as instituições que pressupõem uma igualdade completa levam ao contrário da santidade, que é o espírito da Revolução.

Acabando com as desigualdades, se elimina a ideia de Deus

Algum tempo atrás, tive a oportunidade de ler um livro de um dos chefes do Partido Comunista Francês, chamado Roger Garaudy, que sustentava a seguinte tese: É ridículo nós querermos fazer  suprimir no povo, por meio das perseguições, a ideia de Deus. A ideia de Deus, o povo a tem por causa das desigualdades. É considerando pessoas desiguais que o homem inferior pensa, concebe a  ideia de um Deus, o qual é a perfeição daquilo de que o seu superior lhe dá certa noção. Por causa disso — diz ele — nós não devemos primeiro exterminar a Religião, para depois acabar com a hierarquia política e social. Precisamos eliminar as desigualdades políticas, sociais e econômicas, para depois então exterminarmos a Religião. E afirma ele que, implantada por toda parte a igualdade, os símbolos de Deus desaparecem, e a ideia de Deus morre na alma dos povos.

O exemplo do Beato Carlos de Blois nos faz pensar nisto. O povo do seu ducado da Bretanha, olhando para ele, pensando nele, admirando-o, venerando-o, tinha nele um reflexo de Deus na Terra. A duplo título, porque o santo é um reflexo do Criador na Terra, e o general, o governador, o chefe, o mestre é um superior que representa a Deus. Assim, olhando para ele, a ideia de Deus se tornava mais clara na mente de seus súditos.

O gesto da Igreja beatificando Carlos de Blois mostra bem que o cargo pode e deve ser exercido digna e santamente, e que através dele se pode chegar à honra dos altares.

São Tomás abençoa a desigualdade, Garaudy blasfema contra ela

Aliás, é precisamente o que ensina São Tomás de Aquino quando trata da desigualdade. Ele diz que deve haver desiguais, para que os maiores façam às vezes de Deus em relação aos menores, e  guiem os menores para o Criador. É o pensamento do Garaudy, a mesma concepção a respeito da relação entre a desigualdade e a ideia de Deus. Entretanto, enquanto São Tomás de Aquino  abençoa essa desigualdade, porque ela conduz a Deus, Garaudy blasfema contra ela, por esta mesma razão.

Assim, nós vemos bem como a hierarquia feudal encaminhava as almas para Deus, e como este Santo brilhou como a luz colocada no lampadário, iluminando a França e a Europa do seu tempo com sua santidade.

Essas considerações conduzem a uma oração especial para ele.

Nós estamos numa profunda orfandade! Neste mundo de ateísmo, nesta época em que o igualitarismo fez por toda parte devastações tão tremendas, podemos olhar para o Bem-aventurado Carlos de Blois como verdadeiros órfãos que não têm o que ele representou para os homens do seu tempo.

Então, podemos pedir a ele que se apiede de nós nesta situação em que estamos, e que pelas suas orações faça suprir em nossas almas essa deficiência. Que o amor à desigualdade, à sacralidade, à  autoridade, o gosto de venerar, a necessidade de alma de obedecer, de se dar, de ser humilde brilhem em nossas almas de maneira tal que possamos dizer que verdadeiramente é a Contra-Revolução que vive em nós.

Beato Carlos de Blois, rogai por nós!

(Extraído de conferência de 28/9/1968)

Escudo e gládio da Santa Igreja

São Miguel comandou a luta contra os demônios e os precipitou no Inferno. Ele é, pois, o chefe dos Anjos da Guarda dos indivíduos e das instituições. E é ele mesmo o Anjo da Guarda da Instituição por excelência, a Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Nele, portanto, duas missões se concatenam. Deus quis servir-Se dele como seu escudo contra o demônio, e quer que ele seja também o escudo dos homens e da Santa Igreja. Mas o Príncipe da Milícia Celeste não é meramente escudo, é também gládio. Não se limita a defender, mas ele derrota e precipita no Inferno. Eis a dupla missão de São Miguel Arcanjo.

Por causa disso ele era considerado, na Idade Média, o primeiro dos cavaleiros, o cavaleiro celeste, leal, forte, puro, vitorioso como deve ser o cavaleiro que põe toda a sua confiança em Deus e em Nossa Senhora.

Esta é a figura admirável de São Miguel, que nós devemos considerar nosso aliado nas lutas.

(Extraído de conferência de 28/9/1966)

3 Arcanjos

Numa hipotética analogia com aspectos da vida humana, seríamos levados a atribuir aos três arcanjos — Miguel, Gabriel e Rafael — predicados pelos quais eles reluzem na história sagrada. Assim, São Gabriel é o anjo da contemplação, do ideal, da chama que leva a alma a embevecer-se com o Espírito Santo, como o fez diante da Santíssima Virgem, ao representar junto a Ela o seu Divino Esposo. São Miguel, o anjo da justiça, paladino da supremacia de Deus sobre todas as criaturas, o anjo da luta vitoriosa pelo bem. E São Rafael, o anjo da caridade, da confiança, protetor dos desvalidos, dos Tobias da vida de todos os dias, amparando-os com requintes de bondade e misericórdia.

Plinio Corrêa de Oliveira

Intercessor celeste de alta categoria

Temos em São Rafael um intercessor celeste de alta categoria que leva nossas preces a Deus, porque é um dos sete espíritos mais elevados que assistem junto do Altíssimo e, portanto, são os canais naturais das graças que desejamos.

Houve uma mística que, ao lhe ser dado ver seu Anjo da Guarda, ajoelhou-se em adoração, pensando tratar-se do próprio Deus, tão elevada, nobre e excelsa era a natureza daquele ser. Ora, sabemos que os Anjos da Guarda pertencem à hierarquia menos alta do Céu. Em comparação com isso, é inimaginável um Anjo das mais altas hierarquias. De que alegria vamos estar inundados no Céu quando pudermos contemplar um Arcanjo como São Rafael, e tudo quanto nele veremos de Deus!

Peçamos a ele para termos essa contemplação, e que a consideração dessa ordem angélica ideal e realmente existente nos conforte para uma esperança do Céu e do reinado de Maria, dissipando toda a tristeza crescente destes dias em que os castigos previstos por Nossa Senhora em Fátima vão se aproximando tão rapidamente de nós.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/10/1964)