Coliseu – Magnífico Palácio Espiritual

Não é raro visitarmos algum ambiente, monumento ou lugar histórico, e termos a impressão de ali estarem presentes algumas pessoas que muito o marcaram. Além de dar uma dimensão mais pro- funda à nossa visita, essa experiência nos leva a compreender melhor o espírito dessas personagens do que se houvéssemos diariamente convivido com elas.

Esta reflexão me vem à mente, de modo especial, quando me lembro das ruínas do Coliseu romano. Ao penetrarmos nelas, sentimos, por uma ação da graça divina, a presença dos mártires que ali padeceram e verteram seu sangue, para se tornarem – no inspirado dizer de Tertuliano – sementes de novos cristãos. Heróis da Fé, admirados por todo o mundo, em todos os séculos, desde os tempos da Igreja catacumbal até o dia de hoje! E mesmo homens que se vangloriam de seu ateísmo, quando vão a Roma, não deixam de passar pelo Coliseu, para ver de perto o lugar onde aqueles valentes enfrentaram as feras para se manterem fiéis à religião católica apostólica romana.

Que palácio espiritual magnífico! Imenso e faustoso, é uma das matrizes de maravilha nesta terra.

Sua maior beleza aparece à noite, quando as sombras e trevas atenuam o prosaísmo das coisas modernas que o circundam, e o silêncio das altas horas envolve os ruídos cacofônicos da cidade que adormece. Em certo mo- mento, enquanto uma lua graciosa e amiga esparge suas aveludadas cintilações, ouve-se o demorado silvo de uma ave noturna, aninhada sob um dos arcos do Coliseu. Aquela espécie de brado nos faz lembrar o gemido dilacerante de um mártir, a derradeira prece lançada aos céus por uma alma a caminho da suprema imolação…

Contemplar aquele anfiteatro de tragédias e de heroísmos leva nossa imaginação a reproduzir um dos mais belos episódios de martírio que registra a hagiografia católica.

É noite na Roma dos Césares. Aqui e ali, as tochas que a iluminam vão se apagando. Pouco a pouco, esmorecem os barulhos das festas, extinguem-se conversas e risos. Na soberana metrópole do mundo, tudo é calma e tudo repouso. Despertos, em meio a densas trevas, ficam apenas os mártires do Coliseu, orando e se encorajando mutua- mente. Por vezes a noite é borrascosa, o tempo inóspito, tornando ainda mais horrorosa e dorida aquela vigília para a morte.

De súbito, ouve-se o bramido de uma fera ecoando pelos lúgubres porões do grande circo. Rugido de animal faminto, há dias privado de ali- mento para que mais encarniçado se atire sobre sua vítima, na hora do fatídico encontro. E o urro do tigre, do leão, da pantera ou da hiena repercute como um estremecimento de terror nos corpos dos católicos. Alguns choram, com medo de lhes faltar a coragem no momento decisivo. Suplicam a Deus, com toda a alma, forças superabundantes para não cometerem a pior das infidelidades, para não apostatarem da verdadeira religião de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Sereno em meio a tanta apreensão, um dos cativos, já entrado na ancianidade, percorre as fileiras de prisioneiros, dirigindo a cada um palavras de ânimo e esperança. Certamente re- corda-se ele, nesse extremo de vida, daquela voz suave e paternal que – conforme reza a tradição – um dia, em sua remota infância, penetrou no mais íntimo de seu ser: “Deixai vir a Mim as criancinhas, pois delas é o Reino dos Céus”. Agora, imitando o Divino Redentor, promete àqueles ir- mãos de Fé a mesma bem-aventurança eterna.

Aos poucos vão se atenuando as trevas, e a claridade da manhã traz consigo o ponteiro que marca a hora do sangrento suplício. Os rugidos das feras tornam-se mais intensos e aterradores; as súplicas, mais prementes e fervorosas. Soam os clarins, anunciando a chegada do César. Abrem-se as prisões, e os mártires são conduzidos ao local da imolação. Ao vê-los, trôpegos e maltratados, o povo pagão que lota as arquibancadas do Coliseu explode em vaias e apupos.

Libertas de suas jaulas, as feras esfomeadas se precipitam sobre as carnes dos católicos. Exceto uma. Dando provas da autenticidade da Fé que professa, aquele velho cativo detém miraculosamente o leão que cresce para ele. Abre seus grandes braços e eleva aos céus uma extraordinária prece: “Senhor, assim como o trigo é esma- gado para se transformar na Sagrada Eucaristia, assim esta fera triture o meu corpo, por Vós, ó meu Deus!”

Só então, desvencilhado da misteriosa força que o retinha, o animal se atira sobre o mártir, despedaçando-o. O herói foi Santo Inácio de Antioquia, aquele que, quando menino, fora acariciado pelo Mestre Divino, recebendo d’Ele a pro- messa do Reino dos Céus.

E a noite recai uma vez mais sobre a grandiosa mole do Coliseu. As areias do circo pagão, embebidas de sangue católico, transformam-se de novo em campo arado e fértil, de onde germinarão muitos outros filhos da Esposa Mística de Cristo.

O menino e o mar

Na primeira narração auto-biográfica de Dr. Plinio sobre sua meninice, publicada no número passado, deixamo-lo numa praia de Santos, contemplando o mar. Dr. Plinio continua aqui suas  lembranças de como foi discernindo e optando pelo bem, perante as coisas que observava na infância. E como daí surgia o combate ao mal que via em si.

 

Visitando o mar de Santos — a praia do José Menino ou o Boqueirão — lembro-me da impressão que me causavam as ondas quando eu as olhava quebrarem-se a certa altura. Vinham aquelas toalhas de água que se estendiam sobre superfícies mais ou menos amplas, e depois, como por uma força misteriosa, eram atraídas de volta e refluíam, refluíam, refluíam.

Em meu espírito elas evocavam dois outros movimentos que afetavam a sociedade em que eu vivia: o da onda enorme da influência e dos estilos de vida hollywoodianos da década de 30 que avançavam, e o da onda da influência européia que retrocedia. Era a velha Europa da qual eu conservava na retina, na imaginação e no coração alguns aspectos fugazes do tempo em que, com quatro anos, eu a visitara.

Era a velha Europa da qual ouvia falar sempre, nas conversas caseiras; a velha Europa que eu admirava num livro que papai trouxe da Alemanha, quando lá estivemos em 1913. Esplendores da Alemanha militar Esse livro intitulava-se “L’Alemagne Moderne”. Obra de um autor francês que escrevia sobre a Alemanha do tempo do Kaiser Guilherme II, fartamente ilustrado com cenas da  Alemanha daquele tempo. Havia fotografias das regiões industriais e da vida econômica e capitalista da Alemanha que não me interessavam. Mas havia também fotografias dos panoramas alemães e da Alemanha artística — que maravilha! Também da Alemanha de corte — que esplendores!

Eu folheava o livro longamente, embevecidamente, dez vezes, vinte vezes… Depois vinha a Alemanha militar. Eu não posso me esquecer de uma fotografia, colorida com os recursos gráficos do empo, mas que me encantava. Retratava uma parada militar na Berlim kaiseriana, no campo chamado “Tempelhof” (o “Pátio do Templo”), nos arredores de Berlim.

Era uma grande planície à maneira de tabuleiro onde as tropas do Kaiser evoluíam. O Kaiser montava um bonito cavalo, portava um capacete de aço com a águia imperial e passava o bastão de  comando a um general, porque ele devia partir.

Os exércitos do tempo tinham cavalarias magníficas. Não posso me esquecer de uma fotografia um pouco menor, que retratava o “hurrah” da cavalaria: o momento em que todos gritam “hurrah” e os  cavalos avançam contra o adversário de parada, o adversário imaginário. Sabia-se bem que, na mente dos alemães, eram os franceses que estavam do lado oposto.

Mas, com certeza, na tribuna dos diplomatas o embaixador francês assistia aquilo imprevidente, impávido, cético, fingindo achar que esse desfile nada tinha a ver com ele. “Un hurrah de chevalerie”,  lia-se na legenda da foto, na qual a gente via avançar a cavalaria com todos os soldados empunhando espadas. Quanto eu me entusiasmava com essas perspectivas! Alemanha tradicional X Alemanha industrial. Havia no livro fotografias da indústria alemã que tinha aquele quê de metálico, de mecânico, de material, de inanimado no sentido próprio da palavra, isto é, sem alma, inerente a todo ambiente industrial, ainda em nossos dias, e talvez principalmente em nossos dias.

E eu analisava o contraste daquelas fotografias com as cenas de Corte e os retratos do “Kaiser”. Lembro-me de uma fotografia muito bonita: o “Kaiser” e a “Kaiserin” (a Imperatriz) recebendo as  homenagens de seus pajens, numa sala esplendidamente iluminada.

A “Kaiserin” era uma dama simpática, cheia de bondade e distinção. Os dois estavam em pé e os pajens belamente vestidos, em trajes de “Ancien Régime”, formando um quadrilátero diante do Kaiser. Olhava aquilo e achava lindo. Mas havia alguma coisa de que eu não gostava; “algo que já cheirava a indústria ”: de repente, viro uma página e vejo uma fotografia do Kaiser, não mais vestido de  uniforme, como se vestiam os reis daquele tempo, mas em civil, com ar galante e com uma flor no peito. Pouco depois, uma outra fotografia, da célebre, famosa, histórica catedral de Colônia, uma  das mais bonitas do mundo, que foi terminada no tempo do Kaiser e que trazia, do lado de fora, entre as estátuas próprias ao edifício gótico, o Kaiser esculpido como profeta do Antigo  Testamento.

Ficava completamente ridículo! Era indústria de um lado, ridículo de outro, tradição no meio, formando um conjunto objetável. Quando um pouco depois disso assisti, no cinema, a cena do enterro do Imperador Francisco José, da Áustria- Hungria, fiquei deslumbrado. Tudo era como devia ser, exceto num ponto: faltava a força e o empenho que eu admirava no estilo prussiano. Eu me perguntava: “Não há jeito de juntar essas duas coisas? Quão belas, quão nobres são as coisas austríacas! Aqueles uniformes, que coisa esplêndida! Francisco José, que coisa magnífica! Mas essa gente toda, colocada em cima de cavalos, em seu “hurrah ” de cavalaria não é capaz de enfrentar o “hurrah” do Kaiser.

Ora, essas coisas bonitas só são verdadeiramente bonitas quando vitoriosas; e só são vitoriosas quando heroicas; e só são heroicas quando profundamente sérias. Eu percebia que era preciso filtrar, era preciso tamisar o que me vinha dessas nações. Eu não podia aceitar aquilo como um bloco.

De outro lado, que critério usar para filtrar? Que critério para tamisar?

As outras nações da Europa

Extasiava-me também com as outras nações da Europa, cujos produtos me chegavam em abundância, porque ainda não havia as grossas travas de alfândega que depois vieram. Por todo lado  éramos penetrados pela substância européia, enquanto soprava o vento norte-americano.

Nessa contradição, tomando contato com ares franceses, ao mesmo tempo que eu me maravilhava, dizia de mim para comigo: “mas falta seriedade nisso! Em todo esse mimo, em toda essa graça, falta algo”. Eu vejo que essa nação descende de cruzados, mas eu não vejo que cruzados descenderiam dessa nação. Santa Joana d’Arc, que admirável! Godofredo de Bouillon, nem sei o que dizer!

Olhava Versailles cujas carruagens  me tinham entusiasmado tanto; olhava o Trianon, olhava o Petit Trianon, Fontainebleau, as florestas… Como tudo ria e sorria de modo encantador! Mas eu pensava: “isto é o sorriso. Eu quero ver agora a carranca, eu quero ver a força!”

Um trabalho de seleção, com base no critério católico

Era preciso selecionar, era preciso tamisar; não bastava dizer “não” à influência hollywoodiana, mas era preciso rejeitar também a frivolidade francesa e recolher da Europa a pura seiva da Civilização Cristã com base no critério católico. Eu não via que as pessoas de minha época fizessem isso. Notava que, mesmo pessoas de posição na Igreja, pactuavam indolentemente com a influência “yankee” que entrava e olhavam sem saudades para a influência européia que recuava.

Mas quando eu estava sozinho, ao lado da reflexão sobre qualquer coisa — uma concha, um caramujo… —, vinham de modo natural à tona essas considerações que eram longamente analisadas por mim. Eu pesava, comparava, admirava, censurava, e a cada passo que via algo admirável, fazia uma comparação com a Revolução anticristã que entrava e compreendia melhor como esta era rejeitável.

Lembro-me que me sentava sozinho naquelas amuradas de canais que entram pelo mar de Santos. Meu pretexto, para poder me isolar, era pescar siri. Arrumava uma pedra, atava-a de um lado a um pedaço de carne crua que me davam na cozinha da casa de meus tios, e de outro lado a um barbante, e partia com um baldezinho. Era o pretexto para ficar sozinho, pensando. Voltava depois  para casa com três, quatro, cinco siris, que eram jogados fora.

Naquela amurada de pedras que invadia o mar, eu ficava cercado de ondas que vinham e voltavam. Às vezes andava pela praia vazia, ao longo da qual havia casas de família ainda dignas e antigas, e que me pareciam bonitos palacetes agradáveis de serem vistos de longe. E as reflexões começavam a me subir ao espírito. Contemplava o mar de Santos, que a meus olhos parecia grandioso.

Naquela época, o mar conservava algo de ameaçador; os que navegavam pelo oceano ainda tinham medo de alguma coisa. E o medo do mar dava- lhe prestígio…

A alguma distância de mim, do lado do Guarujá, havia uma ilha com uma nota de tragédia, quase colada ao continente. Uma ilha de um granito vagamente rosado, não especialmente bonita, mas agradável de se olhar. Era a ilha das Palmas, onde se dizia que havia um hospital de doenças contagiosas. Eu pensava no infortúnio daqueles que eram colocados fora do convívio humano: “fiquem longe, não queremos contato!” No extremo da terra, isolados, somente ouvindo as ondas do mar…

Esse infortúnio naquele ambiente se me afigurava impressionante. Eu tinha muito medo do contágio, mas considerava fascinantes as meditações que ali se pudessem fazer.

As grandezas do mar, os sorrisos do mar, o rumor do mar… O mar brilhando à luz das quatro horas da tarde, no crepúsculo das cinco ou das seis horas da tarde, e por fim, no ponto último onde no horizonte se encontrava com o céu: olhar aquilo me deixava como que intrigado.

Tudo isso me parecia muito belo. E eu refletia: como isso é diferente  da coisa americana! Como isso convida a pensar! Como, debaixo de vários pontos de vista, pode-se dizer que isso é profundo,  é grandioso, é infatigável, é incessante, é carinhoso, é jeitoso, é discreto. Mas, também, como é solene! Oh, o mar!

Como minha alma que comporta tudo isso é diferente da alma comprimida, achatada, passada na plaina pela Revolução, tão rasa, tão lisa, tão banal, tão corriqueira de tantos daqueles que eu conheço de minha idade! Que mundo está sendo preparado?! Que banalidade!

Combate à tendência para o romantismo

Essa constatação levava-me a deter o olhar não mais na formosura do mar e nas transcendentes belezas a que o mar conduzia, mas a me perguntar: “mas então, como sou eu?

Vou me descrever para mim mesmo

E na hora de me descrever para mim mesmo, o próprio enlevo pela tradição que eu amava, e pela Igreja que eu quase diria adorava, levava-me a perceber o reflexo dessas coisas na minha alma e a ser tentado de enlevar-me comigo. Era a hora exata em que os estampidos sonoros de Wagner, ou melodias ultra-melosas de Chopin me passavam pela memória.

Eu tinha tendência a identificar minha pessoa com a tradição — não por minhas próprias qualidades, mas porque em mim se refletia aquela tradição que eu amava. Ora, nessa identificação, havia o convite para uma posição admirativa e lânguida a respeito de mim mesmo. Era a tentação para o romantismo: a ilusão de ótica por onde a pessoa se põe no centro de tudo, põe-se como foco da  tradição, põe-se como o modelo da Contra-Revolução e já não tem interesse em olhar para o mar a não ser na medida em que o mar se reflete nela. Já não tem interesse em olhar para a História, a não ser na medida em que se sente encaixado  ou relacionado, ao menos pela fantasia, com a História. Pelo peso do pecado original, a pessoa acaba considerando secundário o que antes admirava  e tornando principal aquilo que o pecado original vulnerou, que é o próprio homem.

O mau efeito dessa tentação era como algo lânguido que eu sentia dentro de mim, e pensava: “Não posso consentir nesses pensamentos porque neles há alguma coisa de mau. O que seja, eu saberei depois. Mas o fruto é ruim. Eu preciso ter a serviço dos meus ideais o ímpeto dos ‘hurrah ’ de cavalaria. E tudo o que me afastar desse ímpeto é mau. Tais pensamentos podem ter coisas boas  misturadas, mas fundamentalmente têm algo ruim dentro. Não e não!” Nunca mais ouvi as músicas que eram conexas com esse estado de espírito: nunca mais Chopin, Wagner, Liszt, para não falar de Mendelsohn e Brahms.

Essa introspecção langorosa e derretida de si próprio é a substância do romantismo. Schumann tem uma música chamada “Revêrie”. “Revêrie” quer dizer sonho. A gente vai ver, o tema do sonho é ele,  nquanto se admirando e tendo entusiasmo consigo. O romantismo desnorteou as melhores almas O homem reto nunca se admira a si mesmo, nunca se contempla, nunca se compara, porque  sabe que isso é um poço envenenado, do qual uma gota de água que beba o intoxica. A perfeição nessa matéria, quando se contempla o mar, consiste em evitar ver o reflexos do mar em si, mas pelo contrário procurar vê-lo como simbolizando Deus Nosso Senhor, a Igreja Católica e todas as grandezas.

Ah, se isso tivesse sido feito pelos românticos, quantas almas se teriam salvo e teriam dado resultados esplendorosos! Como teriam sido outras as gerações!

O romantismo tomava as melhores almas daquele tempo, isto é, as que estavam ainda sujeitas à influência européia decadente, e as enleava nessas malhas da auto-contemplação. Enquanto que o dito americanismo hollywoodiano perdia os que eram menos bons. Diante de meus passos, exagerando algum tanto, eu poderia dizer que os caminhos que se abriam eram sendas de perdição.

As frivolidades dos pseudo-tradicionalistas românticos

Nossa Senhora me ajudou a fazer a escolha de tal maneira que do romantismo não ficasse nada e, espero eu, que algo tenha ficado do “hurrah” da cavalaria, da fidelidade à tradição. Aqui se tem, portanto, o que era essa batalha interna, e cada um pode fazer a si mesmo uma aplicação. Eu conheci pessoas bem apreciáveis apaixonadas pela tradição. Com elas acontecia por exemplo que  começavam a estudar história e de repente um inventava que era conde, começava a se vestir de conde, com roupinhas, gravatinhas, colarinhos, anéis — dois, três, quatro ou mesmo cinco anéis diferentes para serem usados conforme o dia — , e adotava modos de falar em que procurava representar um papel histórico. No fundo, tratava-se do egocentrismo. Eram pessoas das quais se ria e que ninguém tomava a sério, que não atraíam ninguém, que não impressionavam ninguém, não arrastavam ninguém. Porque não era a História, não era um ideal, não era um absoluto, não era Deus que estava presente nelas.

Quantas e quantas coisas desse gênero torciam os melhores. Ia-se conversar às vezes com um que tinha o ar mais tradicional, e ouvia-se só bobagens. Eu procurava em vão descobrir a que doutrina, a que pensamento, a que princípio queriam chegar. Nada: o interesse era o anelzinho. Ora, anelzinho não convence!

Havia uma deformação análoga a essa, que era o efeito do romantismo na esfera religiosa.

O que era o romantismo religioso?

Era uma sentimentalidade religiosa que desvirilizava, que afrouxava e debilitava a vontade, que não formava fiéis combativos, mas propunha um ideal de caridade mal concebido, que dava no tipo humano do carola, do beato ou da beata, tão caricatos. Voltemos à praia de Santos. Em meio às reflexões naturais de um menino que se retira sob o pretexto de pescar siri, intervém a Providência.

O Santuário do Embaré começava a ser construído. Uma igreja de um gótico muito provinciano, mas ainda gótico. Da praia, eu olhava para aquela construção e dizia: “Oh, Santa Igreja Católica que não mudas! Tu és fiel ao gótico, que é a morada de minha alma! Tudo muda em torno de ti. Mas tu aqui, diante do mar, em meio à tempestade hollywoodiana, tu ergues as tuas torres góticas aos olhos de Deus e do sol que vai nascer”.

Contemplá-la ajudava-me a discernir entre o bem e o mal, e me enchia de entusiasmo.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 66 (setembro de 2003)

Expressão da alma humana e símbolo de Deus

Se me fosse dado passar uma tarde diante do Mont Saint Michel, ditosos e abençoados seriam para mim esses momentos. Ali me agradaria estar, ora contemplando e analisando o mosteiro, ora pensando em temas elevados que teriam com ele uma certa afinidade, sentindo sempre o calor de sua presença como ponto de referência para o voo variegado da cogitação de alguém que descansa. Por onde enveredariam essas análises e reflexões?

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O Mont Saint Michel é um conjunto de aspectos, uma unidade na variedade, que simboliza de modo muito eloquente determinados valores sobrenaturais, bem como certos movimentos e qualidades da alma humana. Esse simbolismo é mais bem compreendido se considerada a relação entre os diversos elementos que compõem o cenário.

Primeiro, o mar e a elevação rochosa. Para se medir a importância do mar nesse panorama, basta imaginarmos que, depois da praia, não houvesse mais o oceano, mas começasse a se alastrar ali uma megalópole contem porânea. Como tudo mudaria e perderia sua beleza tão singular!

Pelo contrário, como esse conjunto lucra e se enriquece com a presença do mar e seus diversos movimentos! Ora ele vem meio caprichoso, “boudeur”, fazendo um pouco de fronda, inunda a praia,  enche todos os espaços em volta do monte e acaba por se chocar contra os rochedos que ele mesmo talhou, e com os quais construiu uma espécie de muralha natural para conter seu próprio ímpeto. Ora ele se aproxima manso e se retira, deixando seu cartão de visitas nas franjas da areia. Ora são ondas que vêm e vão, lambendo a praia em todas as direções, como se o mar inteiro estivesse se espreguiçando  e  olhando para o mosteiro que, sobranceiro, do alto o observa.

E nisso temos a expressão de um estado de alma. Pois uma das formas de admirar o Mont Saint Michel seria a de alguém que, morando em frente a ele, ao acordar de manhã, e enquanto se  espreguiça, de sua janela o contempla.

A admiração comporta essa atitude de espírito. Considerando o mar, poderíamos ainda ver seus diferentes movimentos se acercando ou não do mosteiro, admirá-lo a distâncias diversas, como um  símbolo dos movimentos — legitimamente vários — da apetência humana.

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Há, depois, a extensa faixa de solo arenoso que aparece junto ao monte, quando as águas refluem e dele se afastam. A pergunta que nos vem à mente é esta: seria mais bonito que o mar tocasse continuamente no mosteiro, e nunca deixasse à vista esse pedaço de terreno?

Certamente, não. Porque, nesse conjunto, a grande praia tem seu papel. Em determinados momentos, ela permite ao mosteiro conter o mar à distância, e como que dominar em torno de si uma periferia, tendo a seus pés areias submissas e rasas.

E nesse aspecto do Mont Saint Michel encontramos também analogia com outro estado de alma do homem, quando este exerce alguma função de mando e senhorio.

Por sua vez, o rochedo lucra bastante em ser único dentro de uma praia lisa e imensa. Parece-me inegável que sua beleza ficaria diminuída se houvesse quinze morros como ele, encostados uns nos outros, formando uma espécie de cordilheira que avançaria para o mar. O fato de ser único quase nos faz esquecer de sua altura. Pois quem está cercado de areia por todos os lados, tem todas as alturas. Ele, nessa planície, não é um anônimo: é supremo.

Ele é ele, envolto por elementos rasos, dominando-os só por si. Muito mais do que sua altura, vale sua unicidade. A esta característica do Mont Saint Michel correspondem também algumas disposições da alma humana.

De fato, há coisas que ela admira quando são únicas e não vêm acompanhadas de outras igualmente belas. Por exemplo, uma joia constituída apenas de uma fina corrente de platina, da qual pende um brilhante grande e claríssimo, posta sobre um fundo de veludo negro, pode ser mais esplêndida do que uma outra emoldurada por cem pedras preciosas. Às vezes é mais bonito ostentar essa valiosa companhia, outras vezes é apresentando-se como único. São estados do belo, que equivalem a estados do espírito humano: ora cada um de nós lucra sendo visto no seu contexto, ora  considerado na sua unicidade.

E para alçarmos logo o supremo voo dessas comparações, digamos que esse aspecto do Mont Saint Michel é uma pequena imagem do por onde o próprio Deus é único. Essa é uma rocha firme e alta, no meio de areias e praias movediças, como Deus é eterno e supremo no meio do movediço das coisas que Ele criou.

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O rochedo e a vegetação. Destruamos esta e veremos como a aparência daquele fica prejudicada. Porque é agradável vislumbrar algum aspecto do mosteiro a perder-se na mata cerrada, a qual imaginamos fresca, coberta de sombras, e talvez umedecida por duas ou três fontes que, nascidas do alto, por ela correm num suave e apaziguante murmúrio…

Sem dúvida, é interessante ver o edifício como que se desfazendo em sombras e mistérios. Tanto ou mais bonito é vê-lo claro, altivo, agarrando-se ao rochedo que lhe serve de alicerce e dominando-o; é contemplá-lo na elegância de suas linhas que avançam para o céu, e na solidez de suas pedras que resistem e se afirmam diante dos elementos adversos.

É bela a alma humana quando, com franqueza, proclama sua personalidade, se exprime e se define. É igualmente bela quando, com discrição, conserva alguma coisa consigo, exclusivamente sua. Ter seus mistérios e suas explicações, ter suas proclamações mas também suas intimidades, constitui um jogo de aspectos muito nobre para o espírito humano. Então, não será algo em nós que  aprecia sua própria penumbra, e se deleita em olhar para o Mont Saint Michel? E não será algo em nós, sedento de proclamar-se, de afirmar-se e de ser uma fortaleza, que se identifica com esse monte que assim se declara à luz do sol?

Sim, em todo homem se encontram essas várias disposições. Temos, em nossa alma, facetas que gostariam de se mostrar inteiras, sem véus; temos zonas delicadas que confiamos a poucos; e outras que, embora façam parte de nossa  riqueza, nem nós conhecemos e tão-só as pressentimos, pois são vistas apenas por Deus.

Resultado, a alma humana encontra na variedade do Mont Saint Michel uma expressão de si mesma, uma semelhança e uma alegria.

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O mosteiro, mais bem um conglomerado de prédios distintos, tem algo de fortaleza, algo de residência e algo de igreja. Ombreando-se por entre as irregularidades do morro, as casas de uma pequena aldeia se eclipsam à sombra do grande e proeminente edifício religioso. No interior deste, um claustro que exprime ordenação e sabedoria extraordinárias, nascidas da piedade medieval, filha ela mesma da ordem e da sapiência da Igreja Católica. Imaginemos a vida entre essas paredes sagradas: monges estudando em magníficas bibliotecas ou cantando o Ofício na igreja; um que se acha recolhido em sua cela, desenhando lindas iluminuras num pergaminho, enquanto outro na oficina entalha um bonito capitel para uma coluna ainda desprovida de ornatos.

Depois, na periferia das construções, há espaços para a luta e a guerra. Confundindo-se com as rochas, erguem-se como que muralhas nas quais podemos figurar monges-cruzados resistindo e expulsando, passo a passo, os invasores que debalde intentam conquistar a fortaleza inexpugnável.

Como tudo se encaixa bem no Mont Saint Michel! Síntese de oração, de estudo, de recolhimento, de arte e de luta. Unicidade que encontra sua máxima expressão na torre do campanário, forte, desafiante, inamovível, como se fora um pesa-papéis colocado sobre papéis diferentes, como quem diz: “O vento não os faz esvoaçar nem os tira daqui!” No alto dessa torre, uma flecha.

No cimo da flecha, a estátua do Arcanjo, que parece proclamar: “A síntese, a correlação de todos esses aspectos é tão vária e tão imensa que se perde nas nuvens, abisma-se no céu!”

E então poderíamos dizer que, no seu conjunto, o Mont Saint Michel é um magnífico símbolo do Sapiencial e Imaculado Coração de Maria, Rainha dos Doutores, Rainha dos Profetas, Rainha dos  Mártires e dos Guerreiros, Rainha de todos os Santos.

Mais. Símbolo d’Aquele que veremos face a face na bem-aventurança eterna, no seu vulto inteiro, embora não na totalidade de cada uma das suas perfeições: Deus Nosso Senhor, infinitamente claro e infinitamente misterioso, pelos séculos dos séculos. Amém!

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 18 (Setembro de 1999)

Confiança na misericórdia de Nossa Senhora

Nas graves circunstâncias de nossa vida, o que a Santíssima Virgem deseja de nós, acima de tudo, é um imenso ato de confiança. Por isso, genuflexo, peço a Ela nos tornar cada vez mais os que —  na tormenta, na aparente desordem, na aflição, na quebra aparente de tudo o que poderia representar para nós a vitória —, sempre confiaram na misericórdia d’Ela.

(Palavras de Dr. Plinio em uma de suas últimas conferências, em agosto de 1995)

Plinio Corrêa de Oliveira

Santa Teresinha do Menino Jesus

Eis que minha amargura transformou-se em paz. (Is 38,17)

“Ecce in pace amaritudo mea amarissima” (Is 38,17). Quem sabe vislumbrar através dos traços de uma fisionomia um estado de alma, não pode deixar de pensar que essas palavras mereceriam estar escritas ao pé desta fotografia, que nos mostra uma figura sorridente mas indizivelmente dolorosa.

O sorriso não procura esconder a dor, mas afirmar-se por um prodígio de virtude, de fidelidade à graça, apesar da dor. Os lábios sorriem só porque a vontade quer que eles sorriam, e a vontade o quer porque essa alma tem fé, e sabe que depois das provações e das trevas desta vida terá como prêmio Aquele que disse de Si: “Serei Eu mesmo vossa recompensa demasiadamente grande” (Gen. 15,1).

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de “Catolicismo”, n° 111, março de 1960)

Santa Teresinha: Vida de epopeia

A respeito da devoção a Santa Teresinha, houve muita incompreensão, pois foi entendida num sentido contrário ao da epopeia: fazer os pequenos sacrifícios para evitar os grandes. E transformar a existência numa vidinha que, levada sempre com um sorrisinho, resultava numa saída muito cômoda para o caminho da cruz do católico.

Sua espiritualidade é muito vasta, tendo  ela defendido duas teses: Uma pessoa pode levar uma existência de epopeia, mesmo quando as circunstâncias não lhe proporcionem gestos de audácia,  ou não  exponha diretamente sua vida.

E, mesmo para as almas fracas,  a realização da epopeia é possível. Isso explica o fato de que ela — uma mulher, carmelita reclusa, vivendo numa França na qual não havia circunstâncias para reproduzir o feito de  Santa Joana d’Arc — realizou tanto quanto esta última.

Por essa razão, embora sendo uma alma não destinada a enfrentar grandes lances, ela transformou, pelo auxílio da graça, em grandes, os pequenos fatos da vida cotidiana. Levou uma existência de tão contínuos sacrifícios que, em seu conjunto, sob esse ponto de vista, foi uma epopeia.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/7/72)

Santa Teresinha, modelo de seriedade no sacrifício

No calendário litúrgico antigo, a festa de Santa Teresinha caía em 3 de outubro, a mesma data em que Dr. Plinio partiu desta vida para receber seu prêmio pelo bom combate. Não é este o único nem o principal vínculo entre eles. Antes de tudo, esse varão devotava grande admiração pela figura e vocação daquela carmelita, conforme manifestou em muitas ocasiões, entre as quais a conferência transcrita nestas páginas.

 

Diversas passagens da Escritura desenvolvem o pensamento de que o eixo da História gira em torno dos justos, e tudo quanto acontece no mundo – desde os fenômenos de ordem natural até os mais altos fenômenos de ordem cultural, espiritual, política, etc. —  é ordenado pela Providência para a salvação daqueles que verdadeiramente querem se salvar. Noutros termos, é em benefício desses bons que tudo se passa. São eles os filhos bem-amados, os prediletos.

Nessas condições, não será difícil compreender como os católicos nada devem temer, se forem almas retas e íntegras como uma espada de aço, que tem ponta e gume para cortar qualquer coisa, retilínea, clara e brilhante. Nada a quebra e ela avança sobre qualquer adversário, a começar por si mesmo, porque os nossos piores inimigos estão dentro de nós.

Modelo de alma assim, justa e séria, foi Santa Teresinha do Menino Jesus, que, por essa razão, pode ser comparada a um gládio.

Desde a sua mais remota infância, a vida dela esteve voltada para as altas questões de caráter metafísico, vistas embora segundo a mente de uma menina, depois, de uma moça, e por fim, de uma religiosa carmelita. Quer dizer, não era uma especialista em metafísica, mas era um espírito repleto de elevadas considerações teológicas, sobrenaturais, etc., as quais constituíam o fogo que ardia continuamente na sua alma.

Vocação abraçada sem hesitações

Por outro lado, desde cedo ela conheceu a sua vocação, e conhecendo-a, adotou-a sem nenhuma espécie de irresolução, hesitação ou moleza. Sabe-se, por exemplo, o quanto ela amava seu pai e suas irmãs. Ora, no último jantar em família que precedia a partida dela para o convento, todos na mesa choravam, exceto a vítima que iria se imolar. Por quê? Por suma seriedade. Se resolveu, se é o caso de fazer, esteja contente, pois chegou a hora de re-alizar a vocação. Se o sacrifício tem de ser consumado, transponha de uma vez os umbrais da dor, sem delongas nem demoras que só prejudicam a decisão tomada.

Entrando na vida religiosa, ela encontrou um ambiente pouco favorável àquela seriedade que a distinguia. Fundamentalmente, encontrou um Carmelo não sério, entre outras coisas, com uma superiora que estimulava nas suas freiras um perigoso mundanismo, trazendo para dentro da comunidade as futricas e os fatos miúdos da pequena nobreza de Lisieux.

A vitória da seriedade

Nessas circunstâncias, Santa Teresinha podia ter pensado: “Este é um convento não sério e, portanto, a única atitude certa é tomá-lo como tal e imitá-lo. Serei também uma freira relaxada!”

Porém, não foi esta a postura que adotou. Pelo contrário, ela conquistou a vitória da seriedade: Neste convento com tantos defeitos, vou considerar que ele, de qualquer modo, é uma casa religiosa, e como tal é algo imensamente sério. De maneira que levarei a seriedade até as últimas consequências. Vou ser seriíssima, vou ser santa, vou oferecer a minha alma como vítima expiatória ao amor misericordioso de Nosso Senhor Jesus Cristo, aceitando tudo quanto Deus me mandar, sem pedir e sem recusar nada.

Um pequeno exemplo dessa seriedade. Certa vez, a freira que lhe ajustava aquela capa creme de carmelita errou na hora de fechar um alfinete de gancho, cravando-o na pele de Santa Teresinha. Esta, até o momento de tirar o hábito para dormir, aguentou o incômodo e a dor sem gemidos, porque tinha resolvido não recusar nenhum sacrifício que Deus lhe enviasse.

Imagine-se o que seja levar um alfinete cravado na carne o dia inteiro! Mas, é a seriedade de uma alma santa, uma alma-gládio: Eu não resolvi aceitar tudo? A palavra tudo comporta exceção? Não. Logo, isto faz parte do tudo. Logo, deixe aqui o alfinete!

Mortificando o anseio do sacrifício

Outra impressionante prova de seriedade, ela deu a propósito de seu oferecimento como vítima expiatória. Entregou a vida nas mãos da Providência e passou a desejar que fosse levada o mais rápido possível. Quantos fazem um oferecimento de vítima expiatória pelas nuvens, e se lhes sobrevém depois um resfriado ficam apavorados de morrer! Santa Teresinha, ao contrário, imolou-se por inteiro, a ponto de mortificar o próprio anseio com que esperava consumar seu sacrifício.

Com efeito, na noite em que teve a primeira hemoptise, ela sentiu que estava expelindo qualquer coisa que talvez fosse sangue. Resolveu não verificar na hora, mas deixar para o dia seguinte, refreando assim a vontade imensa de ver aceita sua imolação. Se fosse sangue, significaria morte próxima. Então, como um pequeno sacrifício a mais, decidiu não olhar naquele instante. Dormiu, e só foi se certificar na manhã seguinte.

Considero essa atitude como a última palavra da seriedade: Eu resolvi entregar minha vida, e chegou a hora. Desejo tanto fazer o que decidi, que a mortificação consiste em não tirar a limpo, e dormir em paz até raiarem as primeiras claridades da aurora, o sino da obediência me despertar, eu abrir os olhos e ver que o pano está vermelho. É o Esposo de minha alma que vem. Levantar-me-ei alegre, porque a morte bateu à minha porta!

De fato o Esposo vinha, a vítima estava próxima do altar, perto de sofrer as piores dores, e de caminhar para elas como Santa Teresinha caminhou até o fim.

Determinada e heroica, de encontro à morte

Estou seguro de não ter havido na História guerreiro que enfrentasse a morte de modo mais determinado e heroico do que Santa Teresinha do Menino Jesus. Na serenidade maravilhosa do olhar dela, existe a limpidez e a firmeza de todas as resoluções. É o calvário e a cruz: Eu planejei, eu resolvi, eu estou decidida. Nada abala essa determinação.

Como é belo, por exemplo, alguém fazer o papel de Santo Inácio de Antioquia, cujo martírio é uma das páginas inesquecíveis da hagiografia católica. Um ancião que se apresenta no meio do Coliseu romano, sob os apupos de uma multidão ululante, e vai de encontro aos leões com os braços abertos: Meu Deus, fazei com que as garras e os dentes destas feras me triturem como é triturado o trigo para formar uma hóstia, de maneira que eu possa ser para Vós, Senhor, uma hóstia, havia dito. E talvez tenha pensado: uma hóstia pura, santa, imaculada. Os leões vieram, ele não recuou, sentiu a dilaceração de todo o ser dele, dores incríveis, mas estava se “hostificando”, transformando-se numa hóstia, e ali morreu.

Mas, que quadro maravilhoso: o circo romano, possivelmente o imperador, os patrícios, a ordem dos cavaleiros, as vestais, é o maior público da maior cidade do mundo de então. É a maior infâmia e a maior glória morrer naquele lugar. Ele, o mártir, pensava em Nosso Senhor Jesus Cristo no alto Calvário, e se sentia como um herói, abrindo os braços para os leões e morrer a  se me fosse lícito empregar a palavra é  numa espécie de apoteose de si mesmo. Que magnífico!

Como magnífica haveria de ser a morte de um cruzado: a cavalo, revestido de couraça e elmos reluzentes, armado de escudo e espada, combatendo os inimigos da fé católica, até que em certo momento ele sente um ferro que lhe entra pela garganta, uma golfada de sangue, e ainda vá, nos últimos estertores da morte, um Arcanjo de cristal que desce do Céu para pegá-lo e levá-lo. Que maravilha!

Bem diferente a morte de Santa Teresinha. Nunca me esqueço do arrepio que tive quando vi fotografias dela em seus últimos dias de vida: um claustro pacífico, tranquilo, uma espécie de cama-de-vento, preparada de um modo muito confortável, colchões, travesseiros, e ela posta ali, bonita e risonha como uma boneca.

Entretanto, pelos escritos que nos deixou, sabemos o horror que ela estava sofrendo. Ser vítima no meio do acolchoado, do conforto, e morrer, não por um inimigo que se combate, mas de uma doença que a vai consumindo, sem permitir o heroísmo e o esplendor do contra-ataque; era ser devorada sem devorar, ser comida por uns bichinhos que não têm consciência de si mesmos e que vão roendo os seus pulmões… Que terrível!

Pior. Não bastassem as dores físicas, tinha ainda a provação moral. Chumbo dentro da alma, trevas, nenhuma consolação. A única voz que se fazia ouvir sensivelmente era a do demônio: Será que há Deus? Será que há outra vida? Tu estás te extinguindo de um modo tão horroroso e tão inglório… Renunciaste a tantas diversões e prazeres, e agora morres pelos micróbios da tuberculose. Depois virão os vermes, e tu não serás mais nada, irás para a sepultura, quando toda a natureza em torno de ti estará em flor… Ah, ah, ah! Uma gargalhada com todos os ecos do inferno.

Tudo isso Santa Teresinha enfrentava nos acolchoados, nos pequenos agrados, na aparência de compota, e ouvindo uma irmã dizendo para a outra, no quarto ao lado: Quando essa irmã Teresinha do Menino Jesus morrer, eu não sei o que nossa madre vai escrever nos anais do Convento, porque ela não fez nada. E assim ela ia se extinguindo, num fim que é pelo pelo menos tão heroico quanto o de Santo Inácio de Antioquia. A resolução estava tomada, com fé e seriedade inquebrantáveis, sem nenhuma concessão ao demônio.

Ela cantava em vida sua própria santidade

De maneira que ela sorveu o cálice até a penúltima gota. A última lhe foi poupada, pois no derradeiro instante, que devia ser o mais cruel, ela teve um êxtase, a tal ponto que se levantou no leito e parecia inundada de luz celeste: sua alma já contemplava a Deus, ela tinha morrido.

Santa Teresinha partiu, e, como ela havia prometido, começou a cair sobre a terra uma chuva de rosas (ou seja, de graças especiais) comprada por um dilúvio de sangue interior. Os mil sorrisos que a devoção dela abriu na terra foram fruto dos mil gemidos de alma e de corpo que ela soltou, porque quis e porque foi séria até o fim.

Tão séria que ela compreendeu não carecer do aparato bélico de um cruzado, nem de quaisquer outras exterioridades do heroísmo, para ser uma heroína. E morreu cônscia de seu heroísmo, de sua santidade. Ela percebia que era como uma árvore de resina preciosa, da qual toda gota que caía tinha um valor extraordinário aos olhos de Deus e dos homens, sendo portadora de insignes graças.

Não entrava nisso nenhum laivo de orgulho nem de vaidade. O fato é que se tratava de uma pessoa tão séria, e seu exame de consciência era tão retilíneo e profundo, que ela tinha confiança na limpidez de sua própria alma, e por isso cantava em vida sua própria santidade.

Para todo homem chega a hora do “consummatum est”

Essa é a seriedade levada até as últimas consequências. Ora, o exemplo de Santa Teresinha é de extrema importância para todos nós. A vida de todo homem na terra é destinada a ser uma grande batalha: ou será a batalha da fidelidade e, portanto, a batalha da cruz; ou será uma grande batalha torta, errada, inglória. Mas, da luta o homem não escapa. Ou se tem os mil tormentos para subir a montanha da santidade e do Céu, ou se tem o tormento da vergonha, da inutilidade, da podridão, quando se rola montanha abaixo.

Todos temos de passar pelos sofrimentos. E em determinado momento chega o sacrifício supremo, aquele em que damos a alma inteira, em que temos de repetir as palavras de Nosso Senhor no alto da Cruz: “Consumma-tum est” tudo está consumado! Tudo que na vida eu poderia dar, eu dei.

Pode parecer trágico, mas a questão é saber o que se entende por tragédia. Se é todo grande sofrimento que resulta em glória, então o Calvário é a tragédia da Cruz padecida com seriedade, que culmina na Ressurreição. Se for apenas a tragédia do sofrimento que deu errado e de nada adiantou, do caminho que não teve fim nem termo, então não é a tragédia da Cruz, mas a de árvores tortas.

Se, seguindo o modelo de Santa Teresinha, somos sérios no abraçar o sacrifício e a santidade, então nossa vida não será trágica, mas heroica e gloriosa, como a dela.

Tão pequena menina e já tão grande santa

Nesta fotografia aos oito anos de idade, Santa Teresinha está olhando para um ponto vago, indefinido, mas com uma espécie de contemplação enlevada, afetuosa, respeitosa. Em última análise, é o olhar próprio de um espírito possantemente contemplativo.

Santo Agostinho disse de si, nas “Confissões”, referindo-se à sua infância: “Tão pequeno menino eu era, e já tão grande pecador”. Dela poder-se-ia dizer: “Tão pequena menina era, e já tão grande santa”. Porque seu olhar tem qualquer coisa que me custa exprimir adequadamente, mas que é aquela impostação da alma em coisas que são inteiramente superiores. Foi uma infância profundamente consciente, meditada e raciocinada.

Aqui está Santa Teresinha do Menino Jesus com todo seu tesouro de meditação que pode existir numa alma de criança; ela viveu a infância fiel a si e continuou a ser ela mesma até o apogeu de sua maturidade. É uma coisa magnífica!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência provavelmente feita em janeiro de 1968)

Santa Teresa do Menino Jesus e a pequena via

Há dez anos Dr. Plinio entregava sua alma a Deus, no tríduo da festa de Santa Teresinha (outrora celebrada no dia do falecimento de Dr. Plinio, 3 de outubro).
Ele próprio fizera o oferecimento de si como vítima do amor misericordioso por aquelas almas e aqueles acontecimentos que esperara, baseado na leitura das obras da Santa de Lisieux (cfr. Editorial, página 4).
Transcrevemos a seguir, um dentre os diversos comentários tecidos por Dr. Plinio à edificante vida e missão de Santa Teresinha.

 

Em fins do século XIX a Divina Providência suscitou Santa Teresinha do Menino Jesus para despertar uma nova forma de espiritualidade própria a conduzir grande número de almas a Nosso Senhor. Foi uma resposta de Deus às manobras feitas para encharcar de Revolução a mentalidade do homem ocidental. Essa réplica consistiu na famosa pequena via a qual conforme afirmação profética da Santa, haveria de levar incontáveis almas ao Céu.

Um caminho para os menos fortes

A pequena via é própria aos espíritos mais débeis, sem meios naturais para realizar extraordinários atos de generosidade interior que marcaram tantos santos do passado os quais se flagelavam de maneira espantosa, faziam penitências terríveis, sofriam cruzes e provações pavorosas, porque eram assistidos pela graça e esta encontrava neles uma natureza capaz de grandes feitos.

Quando Santa Teresinha surgiu, as pessoas já estavam profundamente infiltradas de Revolução e, portanto, sem a coragem e disposição para lances heroicos de virtude. Por desígnio da Providência, ela abriu às “pequenas almas” (como as chamava) o caminho para o Céu.

Trata-se da via do reconhecimento da própria fraqueza e da ausência de coragem, de força de vontade para enfrentar imensos sacrifícios . E da convicção de que Nosso Senhor se compadece das almas fracas, diminutas em comparação com as do passado, e que assiste àquelas com bondade, afabilidade, abundância de graças que substituem nelas, vantajosamente, aquilo que a natureza não lhes proporcionou.

Santa Teresinha já como Carmelita professa

Desde muito jovem Santa Teresinha sentiu o chamado à perfeição, e dedicaria seus breves anos de vida a ensinar às “pequenas almas” o caminho para o Céu.

Quer dizer, para as pessoas dos séculos anteriores atingirem o pleno amor de Deus eram necessários — valendo-me de uma expressão inadequada — tantos quilowatts de sofrimentos. Porém, as do tempo de Santa Teresinha, e a fortiori as de nossa época, são incapazes de suportar tais graus de ascese. Então, a rogos de Maria Santíssima, a graça lhes concede vigor para carregar menores quantidades de cruzes. Porém, elas o fazem com tanta intensidade de amor que acabam suprindo a quota de sofrimentos pelos quais não suportariam passar. Pois aos olhos de Deus, o importante não é o quilowatt da dor, e sim a intensidade de amor com que é padecida.

Dessa sorte, o que as grandes almas conquistavam apenas no fim de sua existência, depois de muitos tormentos, as da  pequena via recebem gratuitamente logo no começo da vida espiritual, unindo-se a Nossa Senhora, à Santíssima Trindade, por uma particular bondade de Deus. Esta graça encurta o caminho e faz   amor nascer cedo, tão veemente que, com uma “quilowatagem” menor de sofrimento, brilha com uma luz fulgurante.

 

Admirável exemplo de Santa Teresinha

O modelo característico dessa via foi a própria Santa Teresinha do Menino Jesus, uma pequena alma típica, cônscia de sua incapacidade de suportar grandes sofrimentos. Entretanto, recebeu ela tal intensidade de amor a Deus que, desde menina, fidelíssima à sua vocação, fazia meditações e amava tanto as coisas do  Céu que sobrepujava em virtude a um número incontável de pessoas.

Levou uma existência de verdadeiro sofrimento no Carmelo de Lisieux, tendo sido acometida por uma provação  muito freqüente no claustro, embora no seu caso se apresentasse mais profunda: a aridez contínua, devido à qual ela não sentia consolações na piedade, nem no imenso amor a Deus que possuía.

“Santa Teresinha solicita autorização de seu pai para entrar no Carmelo” – Buissonnets, Lisieux (França)

Nessa situação, própria a afligir qualquer um, ela sempre manteve confiança cega na Providência, e reafirmava  a cada instante seu desejo de morrer como vítima do amor misericordioso de Nosso  Senhor para com aqueles que seguem a pequena via.

E, de fato, certa noite, quando já se achava deitada para dormir, Santa Teresinha sentiu o peito incomodado e expeliu uma golfada. Veio-lhe logo a idéia de que poderia ser sangue, indício da  fatídica doença daquela época, a tuberculose. Essa enfermidade tornou-se comum em fins do século XIX, e a medicina não lograva combatê-la eficazmente, pois não descobrira ainda os  medicamentos existentes hoje. Assim, grande era o número de vítimas dessa moléstia.

Ora, Santa Teresinha experimentou tal alegria diante da hipótese de estar tuberculosa, que ofereceu a Deus o sacrifício de não examinar de imediato o lenço sobre o qual golfara durante a noite, e fazê-lo apenas na manhã seguinte, à luz do dia. Verificando depois ser mesmo sangue, transportada de júbilo, ela compreendeu que sua derradeira paixão começava.

Manifestou-se desse modo a tuberculose, doença  lenta, trágica sob vários aspectos, sobretudo naquele tempo, quando tantos dela sofriam e morriam. Era, pois, uma via comum, na qual a noite escura e o abandono se tornaram cada vez maiores.

Santa Teresinha passou a ser provada com tentações contra a Fé (também assíduas na vida dos santos), e chegou a afirmar serem estas tão violentas que só acreditava porque queria crer, tanto as razões de fé se tinham obnubilado em seu espírito. Sentia que estava morrendo, e na Terra nada mais havia para ela. Porém, a morte vinha aos poucos, a conta-gotas, no meio do sofrimento e da Dor.

Relíquia de Santa Teresinha – Carmelo de Lisieux

De seu leito, ouviu um dia a conversa entre duas freiras sobre seu fim próximo, e este comentário: “Quando falecer nossa Irmã Teresa do Menino Jesus, e for preciso escrever uma circular às demais comunidades contando como transcorreu a vida dela no claustro, não sei realmente o que será narrado. Porque ela não fez nada. Ao longo dos anos passados aqui, realizou apenas coisas pequeninas…”

Vítima do amor misericordioso, Santa Teresinha ofereceu as dores  comuns do dia-a-dia, bem como as grandes provações durante a doença, com intensa caridade, salvando assim um incontável número de almas.

Nossa Santa sentiu-se consolada ao ouvir essas palavras, pois de fato ela oferecera somente sacrifícios menores a Nosso Senhor, que os recebia por meio de Nossa Senhora. Entretanto, devido ao amor com que eram aceitos, o Redentor os acolhia com sumo agrado. Assim, ela salvava um incontável número de almas. Ela abria dessa forma a pequena via.

Santa Teresinha em seu leito de dor

Então, uma característica da espiritualidade de Santa Teresinha é esse modo de oferecer as dores comuns do dia-a-dia, as quais Deus pede habitualmente a todo mundo. Porém, trata-se de  oferecê-las como o fez a vítima do amor misericordioso de Nosso Senhor.

Uma inundação de graças…

Santa Teresinha nunca se vira favorecida por graças místicas extraordinárias, como visões ou revelações. Até que no último momento de sua vida foi arrebatada num êxtase, ficou transportada de alegria, ergueu-se na cama e disse palavras de entusiasmo diante daquilo que via. Depois, reclinou-se e expirou. Seu corpo jazia nesta Terra, mas sua alma já ingressava na eterna bem-aventurança.

Dentro da extrema pobreza carmelitana, seus funerais foram esplêndidos, porque um quintessenciado aroma de violeta, procedente não se sabe de  onde, dominou literalmente o lugar em que o corpo dela se encontrava exposto à visitação pública. Como uma de suas primeiras intercessões junto à misericórdia divina, obteve a conversão da superiora de seu convento, que tanto a tinha amargurado.

De lá para cá, Santa Teresinha inundou o mundo com graças,sendo considerada a mais solícita em atender os pedidos feitos, inclusive os relativos aos bens terrenos. Nesse sentido, célebre é o caso  passado em um convento na cidade de Galípoli, na Turquia. Essa comunidade se achava em grandes apuros financeiros, sem nenhum dinheiro para pagar suas despesas. A superiora implorou então o auxílio de Santa Teresinha: no dia seguinte, ao abrir o cofre da casa, encontrou a quantia necessária e mais ainda.

Obtendo-lhes donativos materiais, Santa Teresinha atrai s almas para que peçam bens espirituais. E ela as atende.

Destinada a socorrer a Terra

Tinha ela certeza de que seria canonizada, e nos últimos  dias de sua vida recomendava conservassem fragmentos de suas unhas ou fios de suas sobrancelhas, dizendo: “Guardem-nos, porque após minha partida, haverá pessoas que ficarão felizes tendo isso”. Quer dizer, seriam distribuídos como relíquias após sua glorificação nos altares.

Em diversas ocasiões pronunciou ela essa linda frase: “Passarei meu Céu fazendo bem sobre a Terra”. E também afirmou: “Só estarei inteiramente livre das coisas da Terra depois que o número dos eleitos estiver completo”. Se pensamos que esse total dos escolhidos só será atingido no fim do mundo, esse dito significa que ela intervirá em nosso favor enquanto houver homens atuando na Terra.

“Passarei meu Céu fazendo o bem sobre a Terra”, costumava dizer Santa Teresinha, prometendo interceder pelos homens até o fim do mundo”.

Foi, portanto, uma Santa especialmente designada pela Providência para fazer grande bem à Terra. Muitos eleitos há cuja memória, por assim dizer, desaparece, perde-se, devido à versatilidade humana. Algum benefício eles fazem, porém menor se comparado com o realizado por uma Santa que vai para o Céu com o programa de continuar a agir intensamente nos acontecimentos terrenos, apenas repousando quando o número dos escolhidos estiver completo.

Alegria com a felicidade dos habitantes do Céu

Para Santa Teresinha, cada ano que passa é um período de ação, de vitória, de esplendor. Pois no dia de sua festa, a um título especial, comemora-se um aniversário que a torna intensamente feliz e aumenta sua glória no Céu. É verdade que esta, no Paraíso, não cresce após ter terminado o mundo. Mas, enquanto tal não suceder, é passível de aumento. Por exemplo, se um bem-aventurado escreve um livro, e 200 anos depois de sua morte essa obra é ocasião de instrumento para a salvação de alguém, a alegria e a glória dele se avolumam no Céu.

Alguém poderia objetar: “Dr. Plinio, sinto-me um pouco insultado pensando em meus sofrimentos aqui no mundo, nesse vale de lágrimas, e o senhor anuncia que Santa Teresinha, já muito feliz, recebeu uma felicidade a mais no Céu. Parece uma distribuição desigual dos dons divinos…”

Ora, os planos de Deus não são igualitários, e, sobretudo, os relativos aos que estão no Céu e na Terra. Permanecemos aqui para sofrer e expiar, e os santos no Paraíso para desfrutar a verdadeira felicidade. Se padecermos, lutarmos e expiarmos bem, seremos também daqueles que irão para o Céu, felizes por toda a eternidade.

Dessa maneira, há uma inteira proporção, não igualdade, entre a nossa desventura e a ventura de Santa Teresinha.

Mais. Devemos nos rejubilar com todos que se acham no Paraíso, pois nos precederam nesta Terra com o sinal da Fé. Viveram antes de nós com o signo da Cruz. São nossos irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo, em Nossa Senhora, e nos cabe desejar a alegria deles: a felicidade de um irmão interessa a outro irmão.

Por fim, cumpre considerarmos que, ao ver nosso contentamento pela felicidade dela, Santa Teresinha há de se tornar particularmente propensa a nos alcançar graças cada vez maiores. Do Céu, ela nos acompanha com afabilidade, com um sorriso todo dela, e dirige à Santíssima Virgem uma empenhada prece por nós: para que aumente nossa fé, nossa crença, nossa esperança e nosso gáudio com as glórias futuras que nos aguardam na venturosa eternidade, junto a ela e aos Sagrados Corações de Jesus e Maria.

Plinio Corrêa de Oliveira

(REVISTA DR. PLINIO 91, Outubro 2005)

Vítima expiatória

Santa Teresinha tinha uma certeza interior — baseada em indícios muito bem escolhidos, definidos e analisados de sua vida espiritual — de que ela seria uma vítima expiatória do Amor Misericordioso, e de que deveria realizar isto no Carmelo.

Diante dos maiores obstáculos, ela não teve nenhuma dúvida de que entraria para o Carmelo, e de que o Amor Misericordioso a chamaria, em determinado momento, para consumi-la como vítima.

Assim, ela teve ocasião de dizer, no meio de todas as amarguras pelas quais passou, que a taça dos seus desejos estava cheia até os bordos. Essas amarguras eram os desejos dela, os sofrimentos que ela queria ter.

Isto é a confiança! Santa Teresinha tinha uma sólida convicção de que era esta a finalidade dela, e a certeza de que a Providência faria todo o necessário para que se realizasse este objetivo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/8/1973)