Martírio do Beato Inácio de Azevedo e seus companheiros

Com as aventuras além-mar empreendidas pelos portugueses e espanhóis, a Fé Católica expandia-se dia a dia. Entusiasmado pela conquista de novas almas, Inácio de Azevedo empenhou-se na conversão dos indígenas brasileiros.

Baseando no livro “Inácio de Azevedo, o homem e sua época”, de Gonçalves Costa, faremos comentários sobre alguns aspectos puramente sociológicos, e outros hagiográficos, que dizem respeito ao Bem-aventurado Inácio de Azevedo.

Nome tão belo quanto a prataria portuguesa

Ele era membro de uma família muito distinta. E, em todos os lugares onde há certa estratificação social, os nomes das famílias mais tradicionais acabam tomando uma certa sonoridade, em que se tem a impressão de ver a pessoa portadora de um desses nomes, com o estilo da nação a que pertence.

Este é o caso do Bem-aventurado Inácio. Ele se chamava Inácio de Azevedo de Atayde de Abreu e Malafaia. É um nome tradicional, bonito e muito português; sua sonoridade é linda, e dá a impressão da prataria portuguesa, cujos objetos são tendentes ao nobremente bojudo e seguro de si. De fato, esse nome é um pouco de prataria.

Sociedade impregnada pela Igreja

Ingressou na Companhia de Jesus em 1548, sendo anotado a seu respeito no livro da Ordem os seguintes dizeres: “Tem pais vivos. O pai possui benefícios eclesiásticos e suficiência de bens. A mãe é freira num convento do Porto.”

Estamos no século XVI; a Renascença já arrebentou, a Revolução está em curso. Mas como a Igreja ainda estava entranhada na sociedade! É uma família nobre, não de grande nobreza: o pai vivia de rendas eclesiásticas e tinha dado licença à sua esposa para ser freira, e o filho fez-se membro da Companhia de Jesus, a qual, naquele tempo, era a ponta de lança da Contra-Revolução; e tornou-se Bem-aventurado, hoje um dos padroeiros do Brasil.

Como é bonito ver a impregnação da vida eclesiástica na sociedade dessa época.

Desejo de ser herói

O Bem-aventurado Inácio de Azevedo havia sido pajem do Rei D. João III; e, pelo lado materno, descendia de Santa Isabel, Rainha de Portugal.

É bonito haver nele a descendência de Santa Isabel, Rainha de Portugal. Sendo pajem do Rei, ele frequentou o que a corte tinha de melhor.

Em carta ao Padre Geral, Inácio pediu para ser enviado a pontos remotos, pois não queria ficar no mesmo ambiente onde viviam seus pais.

Esse homem foi mandado da corte do Rei de Portugal – naquele tempo marcadamente um potentado, pelo tamanho do império colonial português – para o Brasil, onde havia índios com argolas atravessadas no nariz, canibais, com hálito cheirando a álcool mascado de cana fermentada, uma coisa horrorosa. Podemos imaginar a diferença! Era o que ele queria. Vemos o heroísmo que está presente em seu pedido.

Zelo da Companhia de Jesus pelos novos missionários

Do Brasil chegavam cartas dos Padres Nóbrega e Anchieta, relatando as esperanças e as dificuldades das missões. Dois noviços jesuítas haviam sido repatriados para Portugal, por não se adaptarem às novas terras.

Vê-se como era duro aguentar…

São Francisco de Borja, recém-eleito Geral da Companhia, conhecia as especiais virtudes do Padre Inácio e o indicou para visitador apostólico nas terras do Brasil.

Quão cuidadosa era a Companhia de Jesus. Mesmo sendo poucos os jesuítas no Brasil, mandava-se um visitador apostólico incumbido de visitar a nascente Igreja daquelas terras. Percebemos o rigor da ortodoxia, da disciplina e do método.

Por outro lado, vemos como os santos se encontram nessa história: São Francisco de Borja – Geral da Companhia de Jesus, portanto, o homem que tem nas mãos o leme da Contra-Revolução – escolhe um futuro mártir para vir ao Brasil, o qual, por sua vez, descende da Rainha Santa Isabel. Que beleza!

Ao percorrer o litoral do País, acompanhou a expulsão dos calvinistas do Rio de Janeiro

Em julho de 1566, o colégio jesuíta de Salvador na Bahia, tendo à frente o Padre José de Anchieta e o Padre Manoel da Nóbrega, recebeu festivamente o emissário de São Francisco de Borja, numa visita que se estenderia por dois anos, e ao longo da qual o Bem-aventurado Inácio de Azevedo percorreria as principais vilas nascentes do litoral brasileiro.

Dois anos visitando o Brasil! É preciso dizer que as distâncias enormes se percorriam devagar. Em 1567, acompanhou no Rio de Janeiro a expulsão dos calvinistas.

Que bonita nota deveria ser acrescentada nas narrações dessas nossas Histórias do Brasil, nesses manuaizinhos, quando tratam da expulsão dos franceses: Nesta verdadeira vitória de Cruzada, esteve presente, com seu ardor, um futuro mártir, o Bem-aventurado Inácio de Azevedo. Daria outro conteúdo à narração.

Pelas mãos dos jesuítas o Brasil vai sendo modelado

Em carta que dirigiu de Salvador ao Geral da Companhia, ele pondera: “Também servirão, além dos padres solicitados, os irmãos oficiais, como pedreiros e todos os demais, porque há na terra muita falta deles, e custa muito fazer as coisas. Por esse motivo, em todas as partes onde residem os homens, ouço dizer que há falta de edifícios e abundância de materiais com que se pode construí-los”.

É dessas frases do Português antigo que tem um especial sabor: “há falta de edifícios, mas abundância de material”. Quase dá para ver as pequeninas cidades implorando que as florestas e as pedras sejam utilizadas para serem transformadas em edifícios. É uma coisa épica.

“Muito me consolo nestas partes, e consolar-me-ia nelas toda a minha vida, ainda que importasse ir a Portugal para ajudá-la mais, trazendo gente e oficiais”. Ir a Portugal buscar gente e oficiais, eis o plano do Padre Inácio de Azevedo.

Quer dizer, ele esteve no Brasil e viu que era preciso trazer para cá padres, irmãos coadjutores, pedreiros, carpinteiros, etc.

É muito bonito ver a Igreja Católica, por mãos dos jesuítas, tomando a primeira argamassa da sociedade temporal e modelando-a. Quase como Deus que fez primeiro o boneco de barro, para depois criar o homem.

Assim, para poder fundar aqui uma realidade eclesiástica grande, a Igreja ia modelando a realidade civil na qual ela deveria ser insuflada. Ou seja, cuidando das construções e do progresso temporal, a Igreja empreenderia também o progresso espiritual. O Bem-aventurado Inácio de Azevedo não sabia disso, mas trabalhava com ânimo.

A fim de recrutar novos missionários, o Bem-aventurado Inácio de Azevedo volta a Portugal

Ele então viajou para Portugal a fim de pedir, pessoalmente, que fossem mandados jesuítas para o Brasil. Compreende-se bem sua atitude. Certamente todos tinham medo de vir ao Brasil, tão distante, remoto, vago e ameaçador. Afinal, deixar o aconchegado, bonito e saboroso Portugal, a duras penas conquistado aos árabes, e vir para o Brasil misterioso… Que diferença!

Ademais, sabe-se como o temperamento português é cauto. Ele é capaz de dar passos arriscados, mas depois de saber bem como são as coisas. Por isso eles queriam conversar com a pessoa que vinha do lugar, para depois resolver se viajariam ou não.

Então se entende o passo do Padre Inácio de Azevedo, chegando a Portugal e procurando pessoas a fim de convidá-las para vir ao Brasil.

O encontro com o Rei

De volta a Portugal, em 1568, Padre Inácio dirigiu-se para Almeirim, a fim de encontrar-se com o Rei D. Sebastião. Este ouviu com interesse as notícias que o missionário trazia do Brasil, dando todo o apoio à campanha de recrutamento proposta. Vemos que ele ia direto ao ponto fundamental. Foi falar com o Rei porque de um impulso do monarca dependia o andamento das coisas.

Por sua vez, os reis eram muito desejosos de receberem notícias diretas das pessoas que tinham estado nas terras recém-descobertas, porque não havia os meios de comunicação que existem hoje. O Padre Inácio deu logo início à empresa, através de sermões e visitas, exímio como era na arte de conversar.

Aqui fica consignado um traço curioso. Eu o imagino procurando as pessoas e dizendo:

– Homem, fui eu que estive lá, é assim…

– Mas deveras, estivestes lá? Contai-me…

Padre Inácio fazia a narração e pegava a ganchos os que deveriam vir. Parece-me que tudo isso faz sentir a respiração da antiga História do Brasil, de um modo pitoresco e muito honroso para a Igreja.

Dois personagens tecem a grandeza de Portugal

Seu contemporâneo, Padre Maurício Cerpe, contou a esse respeito: “Tanto que chegou a este reino, foi coisa para dar graças a Deus ver quanta gente se mover para ir ao Brasil. Não falo já de nós da Companhia, porque esses todos queriam ir com ele, mas os de fora. Onde quer que chegasse, logo se moviam de maneira que se alvoroçava a terra e uns se moviam a ir com ele, outros falavam isso como grande novidade muito para ser desejada.”

Quer dizer, ele produzia um alvoroço geral. Vejamos o que custa a grandeza de um povo. Dom Sebastião e o Bem-aventurado Inácio de Azevedo conversam; o futuro de um era morrer no mistério e na tragédia da África, e do outro, morrer na tragédia e no martírio em pleno mar. Conversando, os dois estão tecendo a grandeza de Portugal.

Mas com que homens essa grandeza se tece! Eles tinham conhecimento dos riscos que a vida quotidiana traz. Eram membros de uma nação que estava no seu apogeu.

São Pio V abençoa o apostolado no Brasil

De Portugal seguiu para Roma, a fim de pedir ao Papa São Pio V sua bênção para a empresa do Brasil. O Pontífice quis ouvir uma descrição minuciosa desse novo mundo, onde a Fé cristã começava a iluminar a noite indefinida do paganismo. E, além dos privilégios pontifícios para o Brasil, e mão livre para arregimentar pessoal seleto, o santo Pontífice concedeu indulgência plenária a todos os que acompanhassem, e muitas relíquias, terços, Agnus Dei, e outros objetos devotos.

Não consta que ele tenha ido visitar banqueiros; visitou o Pontífice e o Rei. Não consta que tenha trazido dinheiro; trouxe Agnus Dei, bênçãos, relíquias, e com isso esperava fazer o seu caminho.

Trajetória de preparativos para a viagem

São Francisco de Borja, entrementes, desejava agradecer a Dona Catarina, Rainha de Portugal, a valiosa ajuda que ela concedera ao Colégio Romano, e quis enviar-lhe uma reprodução da célebre imagem de Nossa Senhora, conhecida como pintada por São Lucas, venerada na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma, e incumbiu o Padre Inácio de ser o portador do quadro.

Como Geral da Companhia, São Francisco de Borja morava em Roma. Sabendo que o Bem-aventurado Inácio ia para Portugal, quis que este fosse portador do quadro. A partir de então, a devoção ao quadro de Nossa Senhora, de São Lucas, ficaria intimamente associada ao missionário.

Em julho de 1569, o Padre Inácio partiu para Portugal, passando por Madri. Em Madri, João de Mayorca foi um dos primeiros espanhóis a aderir. E, como era pintor, esse novo missionário aproveitou para fazer várias reproduções do quadro da Virgem, destinando um deles ao Colégio da Bahia.

Quer dizer, esse pintor tirou várias cópias do quadro que era para a Rainha. E uma dessas cópias vai ter importante papel na vida do Bem-aventurado Inácio de Azevedo.

Afonso Fernandes Cançado associou-se à empresa em Portugal, e fez questão de substituir o sobrenome, pois, segundo explicava, para tal tarefa o nome Cançado não lhe caía bem.

Francisco Perez de Godói, canonista formado em Salamanca, também se juntou ao Padre Inácio. Perez de Godói era primo de Santa Teresa de Jesus que, ao tomar conhecimento de sua adesão, ficou muito alegre.

Santa Teresa, a Grande, soube, portanto, que havia um Brasil! E que um primo dela vinha para esse país, tendo ficado muito alegre com isso. Veremos daqui a pouco o papel de Santa Teresa nessa história.

Ferreiros, marceneiros, pedreiros e tecelões também acertavam detalhes para sua viagem ao Brasil. No total, entre religiosos e artesãos, haviam sido reunidos noventa elementos, que foram conduzidos para uma chácara da Companhia no Vale do Rosal a fim de aguardar a partida dos navios para a América. Porém, foram cinco meses de espera.

É preciso recordar que não havia ainda companhia de navegação regular para o Brasil. Isso apareceu apenas no século XIX. De vez em quando havia um navio que vinha para o Brasil: o Rei, a Companhia das Índias mandavam levar alguma coisa; mas era raro. Por isso transcorreram cinco meses de espera.

Durante esse período, é claro que foi feito um vasto simpósio, à la Companhia de Jesus, preparando a ida para o Brasil: direção espiritual, trabalhos, enfim, uma adaptação completa, muito bem feita!

Tendo sido o navio assaltado por calvinistas, o Bem-aventurado Inácio cai no mar agarrado ao quadro de Nossa Senhora

Em maio de 1570, partiram os religiosos na esquadra do Governador Geral, D. Luiz de Vasconcelos. O Bem-aventurado Inácio de Azevedo, com mais 39 companheiros, viajava na nau Santiago. Fizeram escala na Ilha da Madeira, onde o Governador, muito vagaroso, quis prolongar a estadia, enquanto o Comandante da nau Santiago trazia a bordo mercadorias, cuja entrega nas ilhas de Las Palmas era urgente.

Esse homem tem responsabilidade no martírio que se seguiu, porque foi por causa desse atraso que eles cruzaram no caminho com a nau calvinista francesa, que agrediu o navio português e causou as mortes.

Sujeitando-se ao risco de ficar à mercê dos ataques dos piratas, esta nau poderia partir sozinha até Las Palmas, aguardando ali o restante da esquadra. A proposta foi levada a D. Luiz, tendo a ela dado seu assentimento o Padre Inácio de Azevedo.

A nau Santiago seguia avante. Em 15 de julho, já próxima da ilha de Las Palmas, defrontou-se com navio dos terríveis calvinistas franceses.

Efetivamente, esses abalroaram a nau Santiago com forte impacto. Os atacantes atingem a corveia, há tinir de espadas, brados de fidelidade a Cristo e à Igreja, mesclados aos berros e blasfêmias dos hereges; as primeiras gotas de sangue começam a tingir o chão.

O Bem-aventurado Inácio de Azevedo, que se encontrava junto ao mastro central, segurando nas mãos o quadro da Virgem de São Lucas, recebeu na cabeça o primeiro golpe, sendo jogado no mar, agonizante e segurando o quadro que ninguém lhe conseguira tirar das mãos.

Por isso ele é representado, habitualmente, flutuando já meio agonizante nas águas, mas segurando o quadro. É muito digno de nota que, estando agonizante e com a gesticulação de quem naufraga e procura mover os braços para não afundar, já não tendo provavelmente consciência de si, apesar disso ele segurasse o quadro. É claro que a quem de tal maneira segura uma imagem de Maria Santíssima, Nossa Senhora, do Céu, está segurando a alma dele.

O sangue dos mártires foi derramado para que o Brasil viesse a ser católico

O olhar marcado dos tripulantes portugueses continuava a fixar-se nos vultos, e eles foram em seguida jogados também ao mar, entre os quais, sobressaía a figura imóvel de Azevedo. Na Espanha, Santa Teresa de Jesus teve revelação do fato, e afirmou que vira os quarenta mártires, de coroas na cabeça, subindo triunfantes ao Céu.

Vemos que lindo fato da História do Brasil. É evidente que esse sangue foi derramado para que o Brasil fosse católico; era a razão pela qual eles estavam dando as suas vidas.

Somente o irmão João Sanchez não foi morto pelos piratas. Era cozinheiro, e esses resolveram tirar proveito de seus serviços. Foi ele que, retornando depois à Espanha, contou com pormenores todo o ocorrido. Infelizmente, abandonou a Companhia de Jesus. Essa é a criatura humana! Esse homem tinha obrigação de ser bem-aventurado também. Depois se desligou da Companhia de Jesus e voltou ao estado original.

O culto dos quarenta mártires foi autorizado em 1854, pelo Papa Pio IX. Na atual Catedral de Salvador, na Bahia, conserva-se um quadro pintado, que se diz ter sido do Beato Inácio.

Não há nenhuma prova de que o quadro tenha escapado das mãos do Bem-aventurado Inácio de Azevedo e chegado à Bahia.

Na previsão do muito batalhar a favor da ortodoxia, que haveria numa nação a qual, em certo momento da História da Igreja, seria a de maior população católica do mundo, logo no início, para irrigar isso, a Providência dispôs que houvesse quarenta mártires que nem conseguiram chegar até o Brasil – Inácio de Azevedo esteve durante dois anos aqui. O sangue deles não foi vertido no Brasil, o mar dispersou; mas foi derramado com a intenção de servir à causa católica no Brasil.

Esse sangue subiu ao Céu como suave odor, e eles rezam continuamente por nós. No Brasil ficava o Bem-aventurado Anchieta, esperando, rezando e realizando seus feitos para que algum dia o Brasil fosse uma grande nação católica.

Plinio Correa de Oliveira

(Extraído de uma conferência realizada em 3/4/1981)

Nossa Senhora Aparecida

Pode-se dizer que o Brasil é um feudo de Nossa Senhora enquanto concebida sem pecado original, ou seja, da Imaculada Conceição.

O fato dessa imagem ter sido encontrada no Rio Paraíba, no século XVIII, é de grande significado para o Brasil. Naquela época, embora francamente admitido pela maioria dos católicos, o dogma da Imaculada Conceição ainda não estava definido. E fazer uma profissão de Fé nesse augusto privilégio de Nossa Senhora constituía um distintivo de requintada ortodoxia.

Ora, exatamente a partir do aparecimento dessa imagem, mais de um século antes da definição dogmática, foi o Brasil colocado sobre o patrocínio da Imaculada Conceição. Isto indica um chamado especial da Mãe de Deus para nossa Pátria, e é motivo de imenso júbilo para todos os brasileiros devotos da Santíssima Virgem.

(Extraído de conferência de 12/10/1970 )

Nossa Senhora, Rainha do universo

Muito se tem comentado sobre o trecho do Gênesis que descreve a Criação do universo. Nele observamos que, descansando no sétimo dia e apreciando ser boa cada criatura individualmente, Deus considerou que o conjunto era ótimo.  Qual será, entretanto, o papel da Santíssima Virgem nesse primeiro momento da Criação?

Quando a Terra era ainda “inanis et vacua”(1), podemos imaginar, com base nas descrições de astrônomos a respeito das estrelas, os estágios pelos quais teria ela passado antes de tomar seu aspecto atual.

Por exemplo, na etapa em que o globo terrestre não fosse senão uma matéria incandescente com coloridos diversos, estes constituiriam uma pirotecnia celeste, um divino fogo de artifício, o qual só Deus podia contemplar. Seria, de certa forma, um jato de fogo saído das mãos d’Ele para formar a Terra, com todo o “verum, o bonum, o pluchrum”.

Tem-se a impressão de que a Terra, a natureza, ainda em seus primórdios, tinha uma pujança extraordinária. Com o passar do tempo tudo ia se concatenando, se ordenando, e belezas incontáveis se estabelecendo.

Nessas eras primitivas não houve um aspecto dessas transformações que não significasse certa profecia a respeito do Divino Salvador e de Maria Santíssima.

Tudo isso são meras hipóteses, e seria bonito que um astrônomo ou geólogo, repleto de espírito de Fé, estudasse as fases pelas quais passou a Terra, relacionando os aspectos que deveriam simbolizar movimentos de alma de Nosso Senhor Jesus Cristo e da Virgem Maria.

A Terra em formação

Consideremos que, após a Terra ter passado por fases assustadoras e aparentemente desordenadas por sua violência, Deus a foi temperando, fez com que ela se resfriasse e fosse mudando de aspecto.

Já não havia aquelas imensas labaredas, aqueles ruídos estrondosos, aquelas crateras que se abriam. Dir-se-ia que a Terra perdera a grandeza pré-apocalíptica daqueles primeiros tempos. Talvez um anjo, diante daquela transformação, tenha perguntado: “Senhor, por que deixais que isto fique assim? O que aconteceu para que as coisas revelassem menos a vossa magnificência?” E Deus simplesmente disse: “Vereis!”

E, ao verem tudo em ordem, os anjos compreenderam ser essa ordem mais bela do que a magnificência de uma só coisa; o equilíbrio de uma situação global, abrangendo todas as pulcritudes anteriores ordenadas, tinha uma beleza superior, que não tocava tanto os sentidos, porém era mais apreciável pela mente, por isso mais digna dos anjos.

Possivelmente, algum anjo ou todos eles tivessem cantado: “Graças Vos damos, Senhor, porque nós compreendemos agora o dom da inteligência que nos destes para inteligir aquilo que ficou menos chamejante e tonitruante, porém mais compreensível e belo do que tudo quanto Vós fizestes. A ordem global é mais bela do que a dos mais belos elementos, quando não cabem dentro dela”.

E se isso acontecesse, Deus sorriria e responderia: “Vós não vistes nada!”

Então, estando a Terra em ordem, Ele começa a criar vegetais, com exuberância colossal, árvores gigantes etc. Depois, ordena tudo: bosques, flores delicadas, frutos. Estabelecida a ordem entre os vegetais, Deus cria os animais enormes — talvez nessa etapa surgiram os dinossauros. Depois disso começa a pôr em ordem todos eles: os animais vão ficando menos terríveis, tudo vai se ordenando.

Um novo Adão, uma nova Eva…

Suponhamos que um profeta tivesse a revelação de quem seria Carlos Magno, e muito tempo antes mandasse preparar sua coroa, seu castelo, uma esplêndida sala com um imponente trono. Certo dia nascia Carlos Magno.

Foi o que se deu com a Criação: quando a sala do trono estava pronta para receber o rei, Deus cria Adão, para reinar; de certa forma, tudo tinha sido criado em função dele, mas faltava ainda um aspecto do Criador a ser representado, e este não cabia a Adão; então, Deus cria da costela do homem a primeira mulher, Eva.

Estavam criados o homem dos homens e a mulher das mulheres, ambos com dons extraordinários, capacidades incomparáveis. Quem seria capaz de imaginar como seria o homem antes do pecado?

Vemos assim a vastidão de horizontes de Deus no planejar, e a amplitude de poderes ao executar, tudo feito na plenitude da perfeição.

Porém, o primeiro casal deveria ser como a base de uma enorme montanha, que teria no ápice um novo Adão e uma nova Eva. No cimo deste monte estava uma Virgem, que deveria ser a Mãe perfeita e seria Esposa do próprio Deus, na qual Ele geraria o Homem-Deus. Este deveria ser o instante mais belo, mais nobre e mais elevado da Criação.

Quão grandioso não terá sido o momento em que Deus fez do barro um boneco e, soprando em suas narinas, lhe deu vida, criando assim o homem! Muitíssimo mais grandioso foi o instante no qual o Altíssimo tomou uma Virgem, pousou sobre Ela sua virtude, fazendo vir ao mundo o Homem-Deus.

Tudo isso Nossa Senhora conheceu. Porque Maria Santíssima compreendia o que se passava dentro d’Ela, admirava e amava. E sua correspondência à graça dava mais glória a Deus do que tudo o que houve no passado e haverá no futuro. O que dizer diante de tal grandeza?

Pois esse ato mais nobre do que a Criação do universo — a Encarnação do Verbo — se passou n’Ela, com a colaboração d’Ela. Sua alma santíssima e seu Sapiencial e Imaculado Coração tiveram alguma proporção com a Encarnação, enquanto que o Céu não tem proporção. “Hic tacet omnis língua” — Aqui se cala toda língua.

Maria Santíssima e o “Consummatum est”

Um estudo aprofundado desta temática nos ajudaria a compreender certas coisas inconcebíveis pelo espírito humano, como, por exemplo, o que se deu na alma de Nossa Senhora e na humanidade santíssima de Jesus no momento do “Consummatum est”.

Pois a morte é algo sumamente doloroso: o corpo fica em estado cadavérico — creio que a alma tenha consciência disso. Essa consciência deve coincidir com um pináculo de desdita, de infelicidade e de mal-estar no corpo, até a hora em que a alma o deixa e a pessoa morre.

Para se ter ideia do significado dessa separação, imaginemos que arrancassem de nossos dedos as primeiras falanges, depois as segundas e por fim as terceiras. Que dor sentiríamos? No entanto, esta dor seria muito menor do que a causada pela morte!

“Stabat Mater Dolorosa”

Somados aos sofrimentos próprios da morte, teve Nosso Senhor que padecer toda espécie de torturas e atrocidades. E, por não ter as fraquezas do subconsciente, Ele sentiu até a profundidade última de sua alma essa dissociação e ruptura.

Nossa Senhora, por sua vez, conhecendo-O como ninguém e possuindo uma sabedoria superior à de qualquer outra criatura, via todas aquelas dores, o sangue correndo, a respiração arfando, a vida bruxuleando, e percebia inteiramente o tamanho daquele sofrimento.

E em meio a tantas dores Ela nem sequer se sentou, e nem desmaiou. Mas, para o esmagamento do demônio, a redenção do gênero humano e pela glória de Deus, desejou que aquilo se desse, apesar dos sofrimentos causados a seu Divino Filho e a Ela. Que dores Maria Santíssima terá suportado! Que extraordinária força de vontade Ela possuía, para passar por cima dos sentimentos mais pungentes e fazer aquilo que a Fé e a razão indicavam! Isto tudo deveria formar um tumultuar harmônico na alma d’Ela, à semelhança do som de um órgão com todos seus registros ativados. Os fenômenos mais extraordinários da pré-história da Terra dão apenas uma ideia do que foi a força de alma de Nossa Senhora naquele momento.

Quando as águas saíam das entranhas da Terra — assim imagino, pois não estou dando uma aula de Ciência, mas fazendo uma digressão —, precipitando-se e esguichando de todos os lados nos mares, deveria haver um barulho, um burburinho do elemento líquido, fenomenal e cheio de grandeza. Era uma imagem pálida da resolução que brotava do fundo do ser de Maria, ao dizer: “Ele precisa morrer, porque a glória de Deus pede! Se é a vontade do Pai que meu Filho morra, Eu O ofereço!”

Dor pela Morte; indizível alegria pela Ressurreição

Mas há ainda outro momento de incomensurável grandeza: a Ressurreição de Nosso Senhor. O corpo d’Ele trancado, uma pedra, dois guardas romanos boçais, colocados ali com lanças, couraças, para enfrentar qualquer pessoa; uma noite e um silêncio profundos dentro da sepultura, uma escuridão tão completa como igual só havia num outro lugar do mundo: a alma de Maria.

O Filho d’Ela estava morto! Não definitivamente morto, a Santíssima Virgem bem o sabia, mas Ela, que tinha assistido à Encarnação do Verbo, agora presenciava o estraçalhamento! Podemos imaginar o que Nossa Senhora sentiu na hora da Morte de seu Divino Filho. A dor daquele pecado cometido e daquela separação consumada! E o que nunca deveria estar dissociado, ali estava separado, no escuro, abandonado pelos homens.

Nossa Senhora, entretanto, quando chegou a hora decretada pela sabedoria e bondade de Deus, viu uma luz sobrenatural entrando naquelas profundidades do sepulcro, os anjos afluindo às miríades e, de repente, o Corpo de Jesus estremecer…

Não é verdade que isto se parece com a Criação? E que entre o cadáver d’Ele e o corpo de Adão, feito para receber a alma, há analogias celestes?

Podemos imaginar o frêmito, o sobressalto de Maria Santíssima. Creio que nesse momento Ela se tenha levantado alguns passos acima do chão, ficado estática e talvez brilhado com uma luz extraordinária. É perfeitamente possível que tenha cantado o Magnificat!

Nossa Senhora, Rainha do universo

Este é o verdadeiro método para se ter ideia de quem é Maria Santíssima. Ela está no Céu, em corpo e alma, se digna conhecer o que estamos dizendo neste momento e de estar agindo, por meio da graça, na alma de cada um de nós, para inteligir, querer e sentir o que deve.

E Ela conhece incomparavelmente melhor o que está se passando, por exemplo, em mim ou em qualquer um dos presentes neste auditório, do que nos conhecemos uns aos outros, ou até mesmo o que ocorre em cada um.

Através do método de se fazer uma relação entre as coisas estupendas do universo e a Virgem Maria, pode-se, por exemplo, ao ver um rio que calmamente muda de direção, pensar em Nossa Senhora, Rainha do universo, a qual dá o rumo do rio da História e, de vez em quando, de modo sereno altera sua direção para sair uma maravilha maior.

Quando observamos uma cascata, cujas águas se precipitam e assim se purificam, reportamo-nos a Maria Santíssima intervindo nos acontecimentos e fazendo com que o curso da História seja purificado.

Falei do gáudio que teríamos ao ver as combustões do céu; podemos também imaginar nossa alegria se contemplássemos as chamas do Sapiencial e Imaculado Coração de Maria. Enfim, contemplando as criaturas, podemos fazer mil analogias com Nossa Senhora.

Maria e as vitórias da Santa Igreja ao longo da História

E considerar uma operação de Deus sobre as coisas, comparando com a ação da alma d’Ela, nas grandes ocasiões da História.

São Gregório VII excomungando o Imperador Henrique IV. Um a um os liames feudais no Sacro Império Romano Alemão iam se desfazendo. Ninguém empurra o Imperador, aos pontapés, para fora de seu palácio, mas sucede algo muito pior: o palácio se esvazia, de maneira que não havia mais criados para servi-lo. Todo o mundo o abandonou, no meio da sua pompa inútil. E o seu império cessou pela excomunhão do Vigário de Cristo!

Que é o poder das armas? Dois mil, cinco mil, dez mil — os exércitos naquele tempo eram pequenos — cinquenta mil homens em armas… Um ancião — colocado no castelo de Canossa, pertencente à Condessa Matilde, da Toscana — excomunga e declara dissolvidos os vínculos feudais; um império inteiro para de funcionar, porque esse ancião é sucessor daquele a quem foi dito: “Tu és Pedro e sobre essa pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra Ela.”

Então o Imperador consegue convencer alguns para o seguirem, porque explica que vai pedir perdão e precisa de ajuda para poder atravessar os Alpes. Coisa dificílima! Hoje se sobrevoam os Alpes… Ele sai num trenó, durante o inverno, talvez acompanhado de três ou quatro servidores, que têm horror do homem a quem servem, e o conduzem quase como a um leproso com o qual ninguém quer se contagiar. Sobem e descem montes, passam por precipícios, correm riscos de vida e Henrique IV não tem certeza de sua própria contrição; sabe, entretanto, que se ele morrer sem contrição, mas por mera atrição, pode ir para o inferno! E pede Àquela a quem ele ofendeu que o proteja e perdoe, de maneira a poder chegar à fonte de todo o perdão: o ancião venerável a quem ele insultou.

Por fim, Henrique IV chega a Canossa, mas encontra fechadas as portas do castelo. Oh! A grandeza dessas portas fechadas! Oh! A magnificência desta decisão de São Gregório VII: “Não perdoo, não te restaurarei no império! Absolverei a tua pobre alma, quiçá para uma vida de penitente. O diadema imperial, não o terás mais na fronte. Esta fronte pecou e sobre ela a glória máxima da ordem temporal não pousará!”

Durante quatro dias e quatro noites, ele fica ajoelhado na neve e pedindo! Afinal, as portas se abrem e se faz a reconciliação. Entoam-se hinos, há grande alegria e se restabelece a ordem normal das coisas: a vitória da Religião sobre a ordem temporal, a vitória do sobrenatural sobre o natural, a vitória do espírito sobre a matéria. Quantas vitórias mil vezes mais gloriosas do que a de um país sobre outro! Vitórias ordenativas de todo o conjunto humano.

À medida que eu falava, vi os corações de vários de meus ouvintes se encherem de entusiasmo, e Nossa Senhora gostou disso. Como se terá entusiasmado o Coração d’Ela, quando se passou esse fato?

Como seriam as labaredas do Coração dulcíssimo de Nossa Senhora, quando Godofredo de Bouillon e os dele saltaram por cima das muralhas de Jerusalém e entraram?

E vendo os missionários chegando num país onde não há Fé e que começam a pregar a Religião católica e ela começa a nascer?

Anchieta e Nóbrega vêm ao Brasil e iniciam a pregação — estou falando do Brasil, mas poderia apresentar outros exemplos —; o País começa a nascer e a se mover. Mais bela do que a natureza mineral, a vegetal, a animal e do que o próprio homem, era a graça que vinha pelas mãos dos missionários e conduzia as pessoas para a vida sobrenatural.

Maria Santíssima percebeu que isto era mais pulcro do que tudo quanto se tinha passado anteriormente. Anchieta, ameaçado pelos índios, canta as glórias d’Ela, escrevendo em latim um poema e decorando-o. O mar não ousa tocar nas areias sobre as quais o texto estava redigido. Nossa Senhora sorri, vendo o filho bem-amado do qual nasceria a evangelização deste País.

Que labareda, talvez áurea ou azulada, sairia do Coração de Maria!

E gotas de graças caindo! Já não é o dramático, o espetacular e o apocalíptico, mas outra forma de manifestação: o gracioso, o materno, o afável, o leitoso de certas pedras, o suave de alguns cristais, a brisa de auroras que havia no Coração d’Ela. Todas as modalidades possíveis de brisas que sopraram na Terra não têm o encanto de um só sorriso de Maria!

Quantos sorrisos Nossa Senhora dirigiu a Anchieta, que evangelizava este País!

A maternalidade de Maria Santíssima! O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. O Homem-Deus é Filho d’Ela, e Nossa Senhora nos ama por causa disso. Quando sofremos, Ela tem pena de nós. Quanto isto é magnífico! Sobretudo quando pecamos, Ela tem compaixão de nós. E é mais magnífico ainda.

Porque, quando sofremos, o sofrimento não nos torna inimigos de Maria Santíssima. Até, pelo contrário, quebra em nossa alma certa autossuficiência e tendência ao orgulho. Mas, quando pecamos, nós rompemos com Ela de um modo criminoso.

Nossa Senhora previu tudo isso quando estava na Terra e teve dor, porque Ela pensou: “Essa alma, maravilha criada por Deus, que meu Filho resgatou com aquelas gotas de Sangue incomparáveis que Eu vi florescerem n’Ele aos borbotões, agora vai se perder?” De modo semelhante ao gemido de Nosso Senhor: “Quae utilitas in sanguine meo? – Que utilidade tem o meu Sangue?”, Maria Santíssima diz: “Qual a utilidade do Sangue de meu Filho?”

Então Nossa Senhora pede a Jesus, pelo amor d’Ele ao pecador — o Redentor ama aquele que não O ama mais —, que lhe consiga a graça de atender ao que esta diz em sua alma: “Meu filho, converta-se! Meu filho, abra os olhos! Meu filho, tenha juízo! Meu filho, volte a ser meu!” E às vezes com insistências tão prementes que se diria que a alma está literalmente sitiada. Quantas doçuras cabem nisso! Quanto saber fazer! Quanta misericórdia e compreensão! Quanto esgueirar-se pelas anfractuosidades de uma alma, para se adaptar a tudo!

A participação d’Ela na Igreja Militante e na Igreja Penitente

Todas essas operações o Sapiencial e Imaculado Coração de Maria está fazendo no Céu e na Terra. Porque Nossa Senhora conhece, mais do que qualquer bem-aventurado, o que se passa em Deus, e Ela reage no suprassumo da elevação e da perfeição. E preside, dirige, rege tudo quanto sucede no Céu! Sabe o que se passa em todas as criaturas da Terra. Conhece a vida da Igreja Militante e, com esta intensidade, participa de tudo o que acontece.

Mais ainda, Ela conhece a Igreja Penitente e vê todas as dores no Purgatório.

Em tudo isto Nossa Senhora está continuamente presente, à maneira de uma brisa, um vulcão, um céu, um sol, um diamante, uma águia, uma pomba, um cordeiro, um leão. Ela é tudo! Muito mais do que tudo, Ela é a Virgem Maria, Mãe de Deus!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/11/1979)

1) Informe e vazia. Cf. Gen 1,2.

Esplendor áureo

Transportemo-nos com a imaginação até as primeiras eras da humanidade. Indivíduos e comunidades vagueiam pela Terra, ainda despoluída, embelezada por uma natureza virginal, pouco tisnada e desfigurada pelos nossos pecados. Pensemos numa tribo em cujo seio já se nota, em gérmen, a grandeza e a bondade de um povo que deve surgir. Essa tribo cruza as vastidões dos territórios livres, conduzindo seus rebanhos, suas tendas, caminha enfrentando as intempéries e outros perigos, recolhendo‑se em grutas, galgando e descendo montanhas, rezando e cantando.

De súbito, depara-se com novo panorama. Digamos, o mar, estendendo-se à frente daqueles homens numa paisagem maravilhosa. Eles se detêm e aguardam a chegada do chefe, do patriarca. Este se aproxima: ancião robusto, barba e cabelos brancos, trajando túnica igualmente branca. Enquanto ele considera aquele cenário, seus seguidores procuram o reflexo do mar no olhar do patriarca… Até os animais cessam de mugir e de se agitar. Faz-se profundo silêncio. O sol está se pondo sobre o oceano e cobrindo as águas de jóias e cintilações.

A vista daquele espetáculo cumula de encanto quase paradisíaco a alma de todos.

O patriarca se levanta com dignidade, majestoso, imponente, sublime, e sem mais comentários entoa um improvisado hino de louvor a Deus. Cântico que os vários segmentos de sua tribo vão parafraseando e desdobrando em melodias e poesias mais simples, enquanto montam o acampamento e se dispõem ao repouso noturno.

No dia seguinte, eles sairão da poesia e do sono para ingressar novamente na luta e no trabalho cotidianos, sob a venerável orientação do seu líder. Como é bela a condição de patriarca!

Entretanto, essa beleza, tão alta e grandiosa, é insignificante se comparada com o esplendor do patriarcado dos patriarcados: o papado.

Pois a instituição pontifícia se desenvolve inteira numa atmosfera áurea, ela vive numa esfera do dourado. De dentro desse áureo, ele impulsiona e se debruça sobre todas as coisas, sejam as mais complexas, sejam as mais triviais e terrenas, sem deixar de ser ele, sem receio de se deteriorar, de quebrar-se ou de perder a sua própria lógica. Age e existe com uma “aisance” que lhe vem, não de uma virtude acima do comum, mas de um elevadíssimo grau de sobrenatural. É de uma perfeição e excelência que só têm paralelo com o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, seu Fundador. O Papa no seu dia-a-dia é o Divino Mestre andando na banalidade da Judeia daquele tempo, detendo-se junto a esse mendigo, àquele cego ou àquele leproso, conversando com um servo, dirigindo a palavra ao homem mais insignificante, afagando e ensinando às criancinhas…

Imaginamos um patriarca. Imaginemos um Papa santo no Vaticano.

A noite vai cedendo lugar às incipientes luzes da aurora. Toda a Roma dorme. Os 400 sinos das suas igrejas ainda não começaram a tocar. O Sumo Pontífice desperta, consulta o relógio. Dentro em pouco o sol estará raiando e a cidade emergirá do repouso. Ele sabe que a dois passos de seus aposentos se acha a capela com o Santíssimo Sacramento. Nosso Senhor, que o constituiu seu pastor e representante, o espera para uma primeira adoração.

O Papa se apronta e se dirige à capela, onde se preparará para o augusto sacrifício da Missa. Enquanto caminha em direção ao Senhor, renascem na sua alma as preocupações da véspera, os pesados fardos do governo da Igreja, assim como animam seu espírito a imagem de muitas almas boas que a Providência tem suscitado pelo mundo, nas quais se depositam as esperanças e a glória da Esposa Mística de Cristo.

Antes de entrar no oratório, ele pára e deita a vista através de uma das grandes janelas do Vaticano. À frente, os primeiros fulgores de sol osculam a imponente cúpula da Basílica de São Pedro. Na praça vazia, ergue-se o famoso obelisco que sempre nos faz lembrar do lema dos cartuxos: “a cruz está de pé, enquanto o orbe todo gira”.

Das duas grandes fontes que ladeiam o obelisco, eleva-se o ruído harmonioso das águas a jorrarem e caírem nas suas bacias. A luz do dia começa a se refletir mais intensamente na cúpula. E o Pontífice pensa: “A Santa Igreja Católica Apostólica Romana! O Papado!” E o seu Anjo da Guarda lhe sopra na alma: “Tu es Petrus!”

De um modo particularmente vivo e tocante, ele se sente identificado com seu papel, com sua missão.

O Vigário de Cristo compreende que suas meditações atingiram o auge, e ele deve  se entregar aos seus afazeres. O mundo inteiro o espera. Porém, não começará lendo relatórios nem assinando decretos ou tomando conhecimento dos jornais. Ele iniciará seu dia rezando, pedindo por todos os homens, pela Igreja universal.

Entra na capela devagar, caminha até seu genuflexório e se ajoelha. A lamparina do Santíssimo corusca e tremeluz, lançando fulgores avermelhados sobre o tabernáculo. E de dentro do sacrário, o amor do Homem‑Deus pelo pontífice Santo se irradia plenamente. E ele começa a rezar, rezar, rezar…

Como essa situação é mais esplendorosa do que a do patriarca pastor, no começo da humanidade, muito embora algo do patriarcado primeiro esteja contido nesse patriarcado espiritual e supremo. O Papado: como é belo, como é maravilhoso!

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 91 (Outubro de 2005)

 

Súplica pela intervenção do Anjo da Guarda

Meu Santo Anjo da Guarda, sei que dentro dos planos divinos deveis, pelos desígnios de Nossa Senhora, ter especial papel no tocante à realização de minha missão. Também vós, Anjos, tendes uma missão altíssima no referente à luta contra a Revolução.

Em nome do vínculo que essas circunstâncias estabelecem honrosamente de mim para convosco, eu vos peço: obtende da Rainha do Céu que vossa ação tome toda a intensidade proporcionada com minhas debilidades, infidelidades, mas também com meu desejo de servir inteiramente a Causa da Santa Igreja Católica e da Civilização Cristã.

Suplico-vos, portanto: intervinde o quanto antes em mim de maneira que, liberto da ação do demônio, a qual hoje atingiu um auge, eu possa vos pertencer inteiramente e ser vosso guerreiro na luta que se aproxima.

Plinio Corrêa de Oliveira (Composta em 4/12/1980)
Revista Dr Plinio 259 (Outubro de 2019)

As escadas e a dignidade humana

Com aquela penetração de olhar que lhe era característica, Dr. Plinio costumava contemplar tanto as coisas elevadas quanto as corriqueiras. Quem teria pensado em analisar o que as escadas significam ou ocultam, como se as sobe com elegância ou deselegância, e como elas devem respeitar a psicologia do homem? Acompanhemos a primeira parte de um saboroso comentário.

 

O  homem contemporâneo, ao contrário do antigo, quase não tem ideia do verdadeiro significado de uma escada. Esta pode ser assim definida: uma série de degraus que nos permitem passar de um andar para outro, por via não mecânica. Através do elevador(1) tal acesso é feito de modo mecanizado, enquanto o realizamos de forma natural pela escada, como pitorescamente se diz em latim: “calcantibus pedibus” — calcando os pés.

Duas concepções de escadas

Por não se compreender seu autêntico sentido, na arquitetura moderna as escadas raramente são postas em relevo. A tendência é até ocultá-las o quanto possível, eliminando seu papel ornamental.

Consideremos uma bela escadaria, como a existente na sede principal do nosso movimento(2). Trata-se do prédio residencial mais antigo do Bairro de Higienópolis. O arquiteto, segundo a concepção artística de outrora, procurou dar ao giro da escada uma certa nobreza, e a revestiu de bonitos lambris, mais graciosos que a colunata do corrimão o qual possui pelo menos este aspecto interessante: faz parte da coleção dos objetos que, com suas formas e cores, ilustraram a moda de fins do século XIX.

Numa concepção diversa, não é difícil nos lembrarmos dos exemplos de escadas sem tradição, servindo puramente como acesso entre níveis diferentes. Muitas se apresentam como cascatas de degraus em linha reta, tendo em ambos os lados uma espécie de corrimão fixado nas paredes, sem beleza alguma, apenas o essencial para ser utilizado como apoio a quem sobe ou desce. Correspondem à noção moderna de escada.

Idéias distintas sobre o próprio homem

Por detrás dessas duas concepções há duas idéias a respeito do agir humano e do próprio homem.

De acordo com o reto conceito, a escada — tanto quanto possível e sensato — deve ser algo ornamental, decorativo. Pois tudo aquilo que serve para o homem agir, precisa dissimular ou fazer olvidar alguma coisa da miséria de sua condição decaída e, de outro lado, realçar algo de sua personalidade.

Ora, a mais elementar ideia de escada é a de um meio empregado pelo homem para subir ou descer. Porém, essas duas operações acabam por patentear algo de nossas debilidades, assim como evidenciam nossa grandeza. Tudo quanto cerca o homem — mesmo mais modesto — deve respeitá-lo. O respeito é um dos maiores bens da vida, e ser acatado pode valer mais do que ser querido. Não existe genuína benquerença sem respeito. A escada, portanto, deve ser construída para honrar o homem, realçando algumas qualidades, excelências de sua natureza e disfarçando debilidades de sua condição.

Vitória sobre o princípio da gravidade

Ao subir uma escada, o homem se depara com alguns problemas que eu chamaria de teatrais, quase de encenação, pois ele luta contra a lei de Newton: quanto mais se afasta do solo, menor é a força da gravidade e maior o cansaço de seus músculos. Se bem que possa ganhar alguma coisa distanciando-se do chão, ele perde algo de sua elasticidade, e no topo de uma alta escada aparece o sinal — embora às vezes discreto — da miséria: a fadiga.

Antes do pecado original, o homem se exercitava sem cansaço, o trabalho lhe era indolor, agradável, interessante. Porém, depois da queda de nossos primeiros pais, tornou-se difícil. A força da gravidade começou a agir contra ele, o chão o atraindo para deitar-se, e ele se esforçando para se firmar e pisá-lo.

De passagem, apesar de nada ter lido acerca do assunto, pergunto-me se um modo de interpretar o sapateado espanhol não seria a vitória do homem sobre o princípio da gravidade. Tomado pela ideia da supremacia do espírito em relação à matéria, ele sapateia, e como que não sente a ação da gravidade. Seus músculos vencem a lei de Newton.

Cada nação tem seu esplendor, gênio e modo de ser. Outra manifestação da vitória sobre a força da gravidade é o minueto francês, com aquela maneira de se movimentar delicada, em que o cavalheiro e a dama pisam o solo como se fossem plumas, conferindo ao chão a honra de ser tocado por eles. E para ostentar sua indiferença ao princípio da gravidade, executam longas reverências diante de pessoas às quais respeitam, depois se aprumam com altanaria e continuam a dançar com destreza, sem demonstrar cansaço. É uma linda expressão da “douceur de vivre” [doçura de viver] francesa, e um exemplo do papel do princípio da gravidade na conduta humana, dando-nos a oportunidade e o gosto de refletir.

Aliás, para mim, raciocinar de modo agradável — compreendo que haja preferências diferentes — não consiste meramente em compulsar um tratado de teoria e pensar, mas passar da prática para a doutrina, galgando-a até o ponto mais alto. E depois fazer uma imersão até o fundo mais miúdo da experiência, procurando ali a confirmação ou ilustração das elevadas cogitações doutrinárias. Esse “subir e descer escadas” mental tem a leveza de um minueto.

Tal exercício não é simplesmente deleitável, mas faz bem à alma. O homem se sente assim mais espírito, acentua-se nele o por onde é mais semelhante a Deus. E parecer-se com Deus é a honra suprema, o bem extremo, o fim último.

Tributo pago ao pecado original

Retornando ao nosso tema principal, cumpre considerar o seguinte: num homem ou numa dama, de qualquer idade ou condição social, ao terminar de subir uma escada, devido ao esforço, aparece alguma coisa que os diminui, algo do viço deles murcha.

Alguém poderá dizer: “Dr. Plinio, o senhor não me conhece. Subo escadas de dois em dois degraus…”

Não devemos nos iludir. Ainda que seja no arfar ou na pisada final, nota-se algo do tributo pago pela natureza, mesmo na flor da juventude. Além disso, visto do topo da escada, quem a sobe parece muito pequeno, e não é grato ao homem ser observado de cima para baixo. Os personagens que respeitamos, agrada-nos vê-los no alto. E assim, muitas outras considerações poderíamos fazer a respeito do “subir”.

Analisemos, porém, o “descer”. Também nesta operação, como em tudo que o homem faz por si próprio, aparece a nossa miséria, a qual devemos saber disfarçar.

Tal sucede nas mínimas coisas. Por exemplo, no momento em que lhes dirijo a palavra, apoio de modo ligeiro meu queixo sobre minha mão, enquanto faço um pequeno esforço de espírito para ordenar as idéias a serem expostas. Esse gesto é discretamente interrogativo, indicando que estou “emparafusando” um pensamento. Ou o faço com instintiva leveza, ou me degrado, porque a sensação de peso da queixada cansada é feia.

Alguns espíritos talvez julguem inútil, uma bagatela, a observação desses aspectos do nosso cotidiano. Para mim, isso é saber tirar todo o proveito da vida. É viver. O contrário é vegetar.

Então, se uma pessoa não descer uma escada com dignidade, dará a impressão de que está decaindo, degringolando. Pois a descida significa diminuição. Por exemplo, descer na saúde, na agilidade de inteligência, na arte de conversar, na virtude, no amor de Deus, etc.

Razão pela qual não devemos julgar que seja fácil descer uma escada de maneira a nobilitar-se. Trata-se antes de uma arte, sobre a qual falaremos em outra oportunidade.

Plinio Corrêa de Oliveira

1) Entende-se que, para os efeitos dessa exposição, a chamada “escada-rolante” se equipara ao elevador.

2) Situada em São Paulo, na Rua Maranhão, 341.

Importância do olhar

O homem não se exprime apenas pela palavra pronunciada, mas também pelo tom de voz, pela posição do pescoço e do tronco, pelo movimento das mãos. Entretanto, o mais importante é o olhar. Eis um dos elementos da verdadeira educação que deverá nascer no Reino de Maria, pela ação do Espírito Santo.

 

A  palavra dá o exprimível daquilo que a pessoa possa estar desejando dizer, enquanto o olhar proporciona o inefável, o inexprimível do que se está querendo dizer. Assim, há uma porção de coisas que o olhar diz e que daquele modo a palavra não conseguiria dizer.

Obra-prima de retórica

Por exemplo, um homem está precisando de pão; entra numa padaria e fala para o padeiro: “Quer me dar um pão?” A palavra diz: “Estou precisando de um pão, não tenho dinheiro para pagar, você quer me dar?” Mas o olhar diz uma série de coisas a respeito do próprio sujeito; o que ele está sentindo, como está sofrendo, como quem afirma: “Olhe para minha alma, veja a necessidade pela qual estou passando, olhe a minha tristeza a esse respeito, a humildade com que estou lhe pedindo, e que dureza de sua parte haveria em me recusar. Queira-me bem, porque estou necessitado!” É o que diz o olhar.

Então o olhar traz uma porção de conhecimentos por conaturalidade que acompanha aquele simples pedido de pão, e é uma justificação desse pedido, e nem adiantaria a palavra, por exemplo, se esta fosse dita por detrás de um biombo.

É curioso que toda atitude da pessoa constitui uma espécie de obra-prima de retórica, da qual ela não se dá conta. É uma coisa confusa, mas uma obra-prima: o pouco que o indivíduo pode dar de retórica, ele apresenta assim, porque também a voz modula, um pouco cantando, o que os olhos dizem olhando. E há inflexões de voz que dizem mais do que as meras palavras. Por exemplo: “O senhor queria me dar um pouco de pão?” Há mil modos de modular este pedido de maneira a, sem que o sujeito perceba, ser dito de tal forma que o tom de voz completa o que o olhar disse, e que está na linguagem da conaturalidade, não na linguagem do sentido lógico da palavra.

Elementos complementares dentro disso são a posição do pescoço sobre o tronco e a do tronco sobre as pernas. E a ponta do poder convincente está na atitude das mãos. Se pedir com a mão colada às costas, ele encaminha para uma recusa, é quase insolente.

A curvatura: quem pede, raramente entesa o tronco para pedir. Não entesa a cabeça, nem o corpo; é preciso ser um alto jogador para entesar as duas coisas e pedir. Tem um certo sentido quando o sujeito sabe dizer: “Veja o que está na miséria; veja o clamor desta injustiça que eu esteja sem pão: dê-me!” E isso pode ter seu valor cogente, conforme a circunstância.

O mais interessante são as riquezas da conaturalidade, por onde o homem não percebe isto e faz esse jogo com maior ou menor êxito.

O regionalismo europeu

E aqui entra uma questão complexa: como formar as pessoas para isso? Qual a medida, o ponto para tratar as coisas a partir das quais se consegue formar sem tirar a autenticidade do formando? Portanto, civilizar sem extrair a autenticidade do povo a ser civilizado, educar sem fazer do indivíduo um autômato. Há algo que estimula a aseitas(1) e a orienta, mas segundo um movimento que é dela; o ideal é extrínseco a ela, mas o tropismo por onde ela se volta para o ideal é dela.

Utilizando um exemplo do reino vegetal, tratar-se-ia de estimular a planta a tonificar seu tropismo mais do que torcê-la ou esticá-la numa determinada direção. É um problema muito delicado que se aplica até aos povos.

Dou um exemplo. Antes da Primeira Guerra Mundial, o que teria sido possível ou conveniente dizer para o mundo europeu a respeito da questão do regionalismo?

Se prestarmos atenção em como era o mundo europeu daquela época, em função do centripetismo nacional que vinha tomando aqueles Estados cada vez mais centralizados, e o centrifugismo regionalista de todas aquelas velhas regiões da Europa que estavam sendo trituradas, o que seria possível dizer para dar um golpe nesse centralismo e indicar o ponto de equilíbrio entre uma coisa e outra?

Consideremos um bretão. Segundo minha ideia, um bretão é um francês, mas de um tipo tal como nenhum outro é, e que deve ir engendrando notas características cada vez mais. Qual o ponto ideal onde o bretão é suficientemente francês para haver uma França verdadeira, mas suficientemente bretão para ser inteiramente um cidadão da Bretanha?

Que divagação agradável e interessante daria se pudéssemos lançar naquele tempo um mapa com todos os regionalismos, que são incontáveis! Na Espanha, por exemplo, pegue-se o país Basco; eu garanto que no país Basco existem particularidades, singularidades, etc., só falta ter de bairro a bairro na mesma cidade. E entre um granadino e um bilbaíno quantas diferenças há! Isso se ocultou, não se falou, a literatura não tratou disso; essas diferenças eram tidas como deformidades que  deveriam ser rapadas e liquidadas, e seria preciso tornar Castela o “monstro” que engoliu a Espanha inteira.

Assim foi Lisboa e toda a Europa que estava passando por esse processo. Com a guerra, naturalmente, isso se precipitou muito mais. E que coisa magnífica seria indicar o ponto de equilíbrio para que fosse a verdadeira Europa; que isso que nasce da base continuasse a florescer, a vicejar, segundo modelos locais, mas tendo algo de comum entre si que, isto sim, competiria ao país destilar. E isso mesmo que estou dizendo é mais didático do que real, porque é um pouco bonitinho, arranjadinho demais para a sociedade orgânica. A sociedade orgânica é menos simples do que isso; é mais emaranhada, mais mesclada do que essa realidade que estou pintando. E ali está a vida.

Então, como seria preciso tomar cada um desses povos como um maestro, toca ali, lá, acolá, para a sinfonia dos regionalismos autênticos se desprender de uma Europa verdadeira? É um muito bonito problema.

Eu estava imaginando, então, um arquiduque da Áustria que escrevesse um livro para justificar a monarquia dual, e jogasse na cara da Europa o seguinte: “A nossa monarquia é mais diferenciada do que os países de vocês. Vocês dizem que somos uns tiranos porque esmagamos os países, não permitindo que se separem os que estão sob nossa hegemonia. Vocês impediram os nascimentos; são necrópoles de crianças! Coordenar adultos que nós soubemos conservar livres é muito mais difícil do que ser administrador de um cemitério de crianças”.

A essência da amizade é metafísica e sobrenatural

No tocante ao olhar, aos gestos, o homem deve ser educado como essas nações, nessa correlação entre um tema e outro. E se um menino tiver, por exemplo, uma governanta que afirme — a minha me disse várias vezes —: “Um homem educado não gesticula com as mãos e, portanto, você não é educado, mas não diga, pelo menos, que não lhe avisei.” Pensei com meus botões. “Eu não sou eu se não gesticular. Então prefiro ser um mal-educado do que um bem-educado que não sou inteiramente eu mesmo. Depois, ela mesma quando se deixa tomar por determinado tema gesticula também, porque todo mundo gesticula. E, portanto, essa ‘boa educação’ não serve, saberei mexer com minhas mãos como eu quero”. Enquanto estou dizendo isso, eu as movimento.

Eu temeria muito escolas assim: “Três bolos na mão porque gesticulou”. Então eu passo o tempo inteiro sem gesticular, mas sinto que, irremediavelmente, sou um piano no qual uma nota ficou quebrada. Vê-se, portanto, a dificuldade de educar.

Tudo isso no Reino de Maria tem que nascer pelo efeito do Espírito Santo. Saber educar debaixo desse ponto de vista é muito delicado.

Portanto, o olhar não pode ser considerado isoladamente das outras formas de expressão, pois o corpo inteiro, às vezes sem percebermos, completa a sua retórica. Contudo, as outras expressões sublinham o olhar, mas este é o dado-mestre por onde todas as coisas falam. Quer dizer, todo o resto se ordena ao olhar.

Agora, qual é a relação do olhar com a palavra expressa? Um homem que canta, sua laringe é um instrumento musical, mas o olhar é propriamente a partitura daquilo que é cantado. O olhar acrescenta à palavra o que a partitura adiciona à escrita; não é só o olhar, mas é preponderantemente o olhar.

O que tem de curioso é o seguinte: os homens foram feitos — eu encontro dificuldade em convencer os outros a respeito disso, mas é uma verdade que está no fundo da cabeça de todo mundo — para se quererem, amarem uns aos outros, porém de um amor metafísico e sobrenatural, que é o único verdadeiro, por onde as almas se conhecendo profundamente umas às outras, notando consonância e harmonia, se querem porque desejam a coisa em torno da qual são consonantes. Quer dizer, o fundo da amizade é metafísico e sobrenatural.

Pode haver amizade natural, mas quando ela existe verdadeiramente é construída em torno de princípios metafísicos inexpressos. E a amizade entre dois indivíduos que foram educados juntos, por exemplo, de fato tem um sentido principalmente porque houve consonância entre ambos.

E, involuntariamente, dois mercadores que estão tratando no mercado, ou um homem num banco que apresenta um cheque e outro lhe entrega o dinheiro, portanto, operação puramente mercantil, sem se darem conta, quando eles se olham, um procura no olhar do outro o que se encontra em todo mundo.

Diafragma da máquina fotográfica

O ponto de partida de toda a nossa sociologia está nisso: quando olhamos assim, cada um de nós tem um ponto que é metafísico. O sujeito não sabe que é metafísico; apresenta-se a ele como um sentimento de alma. E, realmente, esse ponto metafísico produz um certo sentimento de alma, mas atrás deste há uma coisa metafísica em que se sente um certo isolamento, porque toda alma padece de viver isolada neste ponto profundo, e passa a existência olhando para os outros e perguntando: “Você é assim? Você é quem eu procurava”?

É uma coisa muito interessante observar duas pessoas que se veem pela primeira vez. A vida, para quem sabe observá-la, é interessantíssima.

Será alguém que está fazendo plantão numa sede nossa e toca a campainha um membro do Movimento residente em outro país; os dois nunca se viram. No primeiro olhar, o que se passa? É sempre uma procura.

Às vezes também a hostilidade nasce logo porque houve uma recusa. A hostilidade vem do fato de encontrar o contrário e, às vezes, acontece o seguinte: o sujeito está particularmente desprevenido e com uma esperança subconsciente de que no próximo toque de campainha ele vai encontrar uma coisa mais afável. Aparece um dinossauro, isso pode traduzir-se num… “Logo você?”

Mas essa procura é assim: há uma abertura análoga a um diafragma de máquina de fotografia que fecha e abre, conforme o sujeito puxa uma peça. No olho, a procura é o diafragma que se abre.

Imaginemos um indivíduo que, ao receber a visita de outro, pensa: “Esse faz parte do mundo do anonimato para mim”, e pergunta:

— O senhor o que deseja?

O outro responde;

— Vim cobrar uma conta.

— Sei. O senhor tem o recibo?

Está acabado. A conversa começou com os dois diafragmas abertos, como todas as conversas iniciam, e terminam tantas vezes com os diafragmas fechados.

No fundo, tudo aquilo de que eu falava há pouco, a sinfonia toda dos gestos, do tom das palavras, da inclinação, etc., visa esse ponto metafísico.

Assim, para aqueles que desejamos que tenham conosco o diafragma fechado, porque não há comércio possível, em toda a nossa atitude tomamos oposição. E para aqueles em que nós procuramos alguma coisa, assumimos uma atitude diferente.

Os restos da inocência

E eu não acredito, por mais incrível que seja em pleno século XX, no puro interesse. As pessoas podem de fato tratar-se segundo um objetivo, mas essa procura, no fundo, condiciona — embora nem sempre de um modo decisivo — o trato humano de ponta a ponta.

Mesmo um egoísta não visa o mero interesse. Ele resolveu entregar sua vida a um interesse, mas no fundo de sua alma tem embolada, sofrida como uma zona da alma que levou uma pancada e está começando a ficar infeccionada, gangrenada, a dor daquilo que ele queria ter sido e não foi, que desejava ter feito e não fez, e uma certa procura de alguém que seja consonante com ele, com o que ele quereria ter sido.

O sujeito pode, pelo mais vil dos movimentos, pegar uma pessoa com quem ele é inteiramente consonante, meter-lhe um pontapé e dizer: “Se eu ficar seu amigo, deixarei de ser um homem de interesse como quero. Você, para mim, é uma tentação, vou te desprezar.” Ele não dá esse pontapé à toa, em vão, porque acaba doendo nele.

E um indivíduo que pauta toda a sua vida de acordo com seus interesses, e pode chegar a ser um banqueiro ideal, de repente ele faz uma loucura; é a explosão daquela zona maltratada, colonizada e enxovalhada da alma, que muitas vezes não é o lado ruim que se revolta, mas é o lado bom que sofre; são os restos da inocência.     v

(Extraído de conferência de 5/6/1986)

 

1) Do latim: asseidade. Termo usado pela Filosofia escolástica significando o atributo divino fundamental que consiste em existir por Si próprio. Dr. Plinio o utiliza aqui em sentido analógico. Ver Dr. Plinio n. 140, p. 16 e n. 141, p. 20.

 

Rainha do Brasil

Com a coroação de Nossa Senhora Aparecida, esta devoção, nascida tão humildemente, culminou num verdadeiro ato jurídico, por efeito do poder das chaves concedido por Nosso Senhor Jesus Cristo à Igreja.

Maria Santíssima ficou sendo no Céu, além de Advogada, a verdadeira Rainha do Brasil. Esta realeza estabelece um vínculo especial de Nossa Senhora com este povo. Devemos ver neste fato um prenúncio do Reino de Maria, pois ao ser a Santíssima Virgem aclamada Rainha do Brasil, o Reino d’Ela fica juridicamente declarado.

Rezemos, portanto, pelo triunfo do Coração Imaculado de Maria, que no Brasil se apresenta sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição Aparecida.

(Extraído de conferência de 5/10/1964)

Meu filho, não duvides jamais!

Eu venho tão do alto… E posso tudo. Em Mim reside o reflexo perfeito da bondade incriada e absoluta. Aquilo que Eu quero doar porque sou boa, aquilo que desejo conceder porque sou Mãe, aquilo que posso dar porque sou Rainha, isso, meu filho, Eu dou! Eu não te digo uma palavra, mas faço algo muito melhor que falar a teus ouvidos… Eu te comunico uma graça que murmura no fundo de tua alma.

Sentes essa paz que transborda de Meu coração, que te envolve, te penetra e te cumula? Essa paz que nenhuma alegria terrena pode trazer, e que te faz sentir uma tranqüilidade interior, na qual ressoa minha voz, inaudível a teus sentidos: Tudo está resolvido! E aquilo que não estiver, resolver-se-á. Confia em Mim, Eu acertarei tudo.

As aparências podem não ser essas. Mas… Aceita esse sorriso, percebe esse sussurro, contempla essa bondade… E não duvides jamais!

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 43 (Outubro de 2001)

Como grandes vôos de espírito…

Entre as belas e atraentes realizações do engenho humano, notadamente aquelas cuja arte reflete uma inspiração católica, sempre me aprouve contemplar as fontes e chafarizes que encontramos, ridentes e convidativos, em incontáveis praças e jardins. Quantos bons sentimentos e retas disposições de alma eles despertam!

Suas águas, ora surdem murmurantes e cristalinas, ecoando sons prateados, suaves como os de um cravo a tocar minueto, e transmitindo uma sensação de castidade e de pureza ao ambiente por elas adornado; ora se projetam em jatos vigorosos e imponentes, a nos falar de cogitações elevadas, de vôos de espírito, de pensamentos que partem de pequenas para maiores considerações; do mesmo modo como o filete líquido, que atravessa encanamentos, parece confiscado e chupado pelas trevas, mas, ao atingir a extremidade do condutor, é lançado para o mais alto dos ares.

Esse encanamento é, outrossim, imagem das tubulações em que canalizamos nossos entusiasmos, nossos fervores de alma. Na aparência, destituídas de beleza, elas têm, entretanto, na ponta a força de um maravilhoso e esfuziante golpe de água.

Os jorros de fontes e chafarizes podem ser ainda comparados a outro aspecto do espírito humano, quando este atinge o máximo de sua capacidade empreendedora. Levando o esforço ao ápice, o homem sente que, por uma nobre ascensão interior e uma extraordinária mobilização de suas energias, vai tirando de dentro de si vastidões e amplitudes, amplitudes e vastidões, até chegar à ponta de si mesmo e dizer: “Meu Deus, eu agora desfaleço, mas é para aquele supremo lance de realizações desejadas por Vós!” Esse convocar de forças nas profundidades de seu ser para projetá- las, rebrilhando, à luz dos acontecimentos, faz com que um homem se sinta como um chafariz das volumosas águas de Versailles, que emergem das entranhas da terra para povoarem as alturas, osculadas pelos raios do sol. É bonito, é grandioso!

Além disso, as cortinas líquidas, transparentes e luminosas dos chafarizes, rorejando miríades de gotinhas ao seu redor, revestem-se de um “verum”, um “bonum” e um “pulchrum” que, longe de  dissiparem o espírito contemplativo, convidam-no para maiores e mais compenetradas considerações sobre as infinitas maravilhas de Deus.

O homem cujo pensamento tiver uma dimensão mais vasta, ao ver o chafariz, pode perfeitamente cogitar em coisas e temas superiores, elaborar planos, decidir sobre situações, solucionar problemas, etc., movido por uma acuidade especial que essa vista favorece.

Pode, ainda, experimentar uma peculiar alegria do equilíbrio, da objetividade, da tranqüilidade. Ele observa as águas subirem e descerem numa profusão calma e constante, volta-se para os movimentos de seu coração e pensa: “Sinto que dentro de mim as coisas estão em ordem; vejo tudo o que me cerca nas devidas proporções, catalogo tudo segundo os predicados e circunstâncias inerentes a cada objeto de minhas ponderações; distingo o que é bom do que é mau, o falso do verdadeiro, o belo do feio, sem mexer em ninguém, mas simplesmente observando e formando o  meu universo interior, imagem fiel do universo exterior analisado”.

Esse sentimento confere ao homem uma plenitude de satisfação pela qual ele passa a exprimir a si próprio, com as idéias claras e, por isso mesmo, encontrando as palavras adequadas para se expressar. Palavras que saem cristalinas e fluentes, não como um esguicho, mas como a fonte cujas águas brotam puras, generosas, abundantes, cheias de donaire e serenidade.

Enfim, as comparações e analogias poderiam se estender e se multiplicar. Encerro-as, lembrando apenas que a água de um chafariz que bate no chão e depois respinga para o alto numa porção de gotas é, também, símbolo da gratidão do beneficiário sobre o qual recaem os favores celestes e que lança para cima, de novo para o Céu, a sua filial e jubilosa ação de graças…

 

Plinio Corrêa de Oliveira