O Sibarita, o herói e o Mártir do Gólgota

A presentamos aqui a segunda parte da exposição em que Dr. Plinio considera estas duas posturas de alma: a do gozador da vida, a quem aborrecem o dever e o sacrifício, e a do herói que galga suas montanhas interiores, a exemplo do Divino Mestre vencendo o Monte Calvário

 

A verdade é como um píncaro a ser conquistado. O autêntico alpinista não é o que sobe montanhas, mas aquele que, pelo esforço do pensamento, chega às altas verdades. É aquele que gosta de parar e dizer: sejamos lógicos, sejamos homens de Fé! As verdades da Fé e os princípios da moral católica me traçam  o caminho do dever. Ora, tal procedimento para o qual me convida um irmão,  m amigo de escola ou um anúncio de televisão, conduz-me para algo contrário à Fé e à razão. Estes me convidam para o bem e me mostram o dever. Sinto-me dividido entre duas leis: a da  impressão e a da razão.

Pela lei da razão, alinhei os raciocínios e conclui o que precisa ser feito. Os regimentos dos raciocínios foram conquistando terreno em minha cabeça e em certo momento cobriram o campo de  batalha: “Está resolvido, seguirei o bom caminho. Por mais que doa, por mais difícil que seja, ainda que tenha a impressão de me estraçalhar, seguirei a reta via”.

Quem procede assim, é um verdadeiro herói. Este é um católico no sentido pleno da palavra: o católico apostólico romano, seguidor de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Exemplo divino: a Paixão do  Redentor

Sim, o Divino Mestre nos deu sublime exemplo dessa atitude de alma, na cena da Paixão que, por certas razões psicológicas profundas, empolga-me mais que a própria morte na Cruz: é quando Ele se dirige ao Horto das Oliveiras e se põe a rezar, pensando no que Lhe estava reservado.

Diz o Evangelho: “Et coepit pavere et taedere” — Ele começou a sentir pavor, tristeza e abatimento. E Jesus, Profeta, viu tudo o que ia se passar com Ele, ponto por ponto: “Meu Deus, como isto  custa! Não bastará? Esta mão, é preciso que seja perfurada por um prego? É necessário que outros cravos perfurem meus pés e Eu fique suspenso, dilacerado, esgotado de forças, com o sangue  correndo às torrentes de todo o meu corpo, transformado numa chaga, de modo a se cumprir o que disse Isaías: sou um verme, não um homem, o desprezo dos homens e a gargalhada do povo?  Mas, meu Padre Eterno quer que Eu sofra tudo isso para resgatar os pecados da humanidade, redimir o pecado original de Adão e Eva, dos quais Eu descendo pelas entranhas puríssimas de Maria  Virgem. Embora inocente, desejo expiar por eles, como o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo”.

Pois bem, se quisesse, Ele poderia escapar daquelas dores, voltar para Nazaré, ser acolhido por Nossa Senhora e, numa tarde suave, contemplar o pôr-de-sol, conversando com Aquela cuja  perfeição era insondável e podia encantá-Lo pela vida inteira.

Contudo, a atitude d’Ele foi outra: “Não, não quero nem devo fugir da Cruz, porque sou Homem-Deus, a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, encarnei-me para salvar o gênero humano.

Chegou a hora, e o sacrifício — razão de ser de Eu ter as naturezas humana e divina — está posto diante de Mim. Agora tenho que realizá-lo. É lógico e virtuoso que o faça. O raciocínio, baseado nas verdades sobrenaturais que conheço, me impõe: é preciso consumar esse holocausto!”

De todos os seus poros o sangue começa a brotar. A ciência moderna explica que a perspectiva de dores e sofrimentos atrozes pode provocar no organismo essa transpiração de sangue. E foi o que se passou com Jesus: sem ninguém ter tocado n’Ele, a previsão dos tormentos Lhe arrancou o primeiro sangue.

Ele sente em si a incapacidade de sua natureza humana e suplica: “Meu Pai, meu Pai, se é possível afaste de Mim esse cálice, mas — é a vitória da lógica—faça-se em Mim a vossa vontade e não a  minha”. É como se Ele dissesse: “Eu não sei como prosseguir, não tenho forças para a enormidade da Cruz que devo carregar, porém uma coisa não farei: é pô-la de lado. Cumprirei a vontade de  meu Pai!”

E o Padre Eterno poderia ter dito: “Meu Filho, contento-me com seu oferecimento, e O dispenso da Paixão!” Não o fez. Mandou um anjo para consolá-Lo, sem remover o sofrimento do caminho  d’Ele!

Jesus se sentiu fortificado. E compreendeu na sua natureza humana — na divina Ele o sabia desde todo o sempre — que não havia volta atrás. Não se nota n’Ele a menor hesitação. A lógica O faz amar o Padre Eterno sobre todas as coisas. E assim, Aquele que não era apenas o mais alto dos homens, mas o Homem-Deus, subiu o mais alto dos montes, o Gólgota. Sem dúvida o Himalaia supera em altitude o Calvário, mas como este é mais elevado que aquele! Nosso Senhor Jesus Cristo, carregando sua Cruz ao pináculo da montanha do Gólgota, fez incomparavelmente mais do  que subir o Himalaia a pé!

A grande montanha a galgar está dentro de nós

À luz desse heroísmo divino nos faz bem contemplar o Santo Sudário de Turim. Este é a perene fixação do ato de vontade eterno: “Eu farei e não abrirei mão do meu dever!” Reduzido a cadáver, com as mãos inertes  uma sobre a outra, com os olhos fechados e os lábios silenciosos… Mas, como esses olhos fechados vêem e como esses lábios silenciosos falam! Quanta coisa Ele diz no Sudário! Em primeiro lugar, aquela deliberação: “Sacrificar-me-ei!”

Foi o amor à verdade e ao bem que levaram Nosso Senhor Jesus Cristo até essa culminância. E é isto que devemos ter em linha de conta, quando comparamos o sibarita com o homem que galga as montanhas.

Vencer os montes, que linda proeza! Mas o pobre do alpinista pode ter levado uma boa quantidade de rum e naquela mesma noite se embriagou no meio da neve. Sim, um homem é capaz de ser  valente para galgar montanhas, mas não ter a coragem de ser um marido fiel, nem de — face a uma opção em sua vida — raciocinar com a firmeza e a clareza com que o faz o católico quando se põe na escola de Nosso Senhor Jesus Cristo.

No dia seguinte esse alpinista desce, é festejado pelos de sua aldeia natal… Tudo muito bonito. Mas… naquele dia ele diz uma calúnia, faz um negócio desonesto ou mente com vileza. O que é esse homem? É um pigmeu, um anão que escalou uma montanha. O grande cume a galgar, o extraordinário alpinismo a empreender está dentro de nós. A beleza de nossa vida consiste em termos no  nosso interior imensas montanhas magnificamente nevadas, dos flancos das quais pendem abismos terríveis, e devemos ser os alpinistas de nós mesmos. Ao sermos criados, Deus teve um  desígnio para cada um de nós, com vistas a que alcançássemos tal grau de virtude e ocupássemos no Céu um determinado trono. O verdadeiro alpinismo é galgar de virtude em virtude até conquistarmos esse trono, e aí cantar as glórias de Deus por toda a eternidade!

Para chegar a isso, cumpre fazer o desagradável contra nós mesmos.

Se certo sacrifício necessário me repugna, penso em Deus que me criou, em Nosso Senhor Jesus Cristo que me remiu, em Nossa Senhora cujas entranhas virginais, por obra do Espírito Santo, geraram Nosso Senhor; penso na Santa Igreja Católica e em tudo que me diz: “Meu filho, cumpre o seu dever!”

Ao contrário do demônio, que sempre nos toma o que nos havia prometido, Deus costuma nos dar muito mais do que sacrificamos por Ele. Daí a promessa do Evangelho: quem oferece alguma  coisa a Deus — ou seja, cumpre os mandamentos — recebe o cêntuplo nesta Terra e depois a vida eterna.

“Queremos o sacrifício, o triunfo e a glória!”

Mas, os caminhos que levam aos cumes das montanhas são sinuosos. E quem quer atingir o píncaro, às vezes tem de descer. Nós estamos agora nesse entusiasmo e nessa alegria, sentindo a dignidade de quem é capaz de se sacrificar. Porém, esse não é um estado de espírito constante em nossa vida. Não raro, a alegria e o entusiasmo se desfazem, dando lugar a uma bruma em nossa alma.

Há dias em que não temos vontade de cumprir o dever, em que não temos ímpeto de alma para voar, e nos sentimos moles como sibaritas, embora tenhamos levado uma existência de sacrifício.

Deus permite essa situação. Ele retira de nós os auxílios sobrenaturais pelos quais a vida fiel parece tão alegre, e nos vemos abandonados, tristes e sem força. São as horas em que o coração d’Ele está mais perto do nosso e em que Ele nos diz: “Meu filho, chegou o momento da aridez e da dor, para provar se é capaz de ser fiel agora como o foi na alegria. Tudo lhe parece enfadonho, você tem tentação de pensar continuamente noutra coisa, está fascinado por algo que não presta, e não lhe sai da cabeça. Estou lhe deixando longe do prazer que teve, porque desejo que você se dê inteiro.

Há de chegar um momento interior em que me dirá: ‘Meu Pai, meu Pai, por que me abandonastes?’. Mas tenha a convicção de que, depois da hora mais negra, semelhante à de uma morte, virá a  ressurreição das alegrias de outrora, mais esplêndidas e maiores do que antes. Portanto, meu filho, passe esse vau!”

E nós podemos nos voltar para a Santíssima Virgem e Lhe suplicar: “Maria, Mãe de misericórdia, eu não tenho coragem para dizer sim. Como Ele, no Horto das Oliveiras, também disse: ‘Meu Pai,  se for possível afaste esse cálice’, dizei a vosso Filho por mim: ‘Se for possível, afaste dele esse cálice’. Se não, minha Mãe, alcançai-me graças, dai-me forças e eu atravessarei a prova. No fim do  túnel tenebroso em que estou, ó Maria, verei brilhar a vossa luz!”

Isto é ser o contrário do sibarita. E a vida a que fomos chamados, graças a Deus, é essa. Se ela não tivesse esses perigos, aplicar-se-ia a nós a expressão de um poeta francês: “Quem vence sem  perigo, triunfa sem glória”. Quando morre um católico em estado de graça, há uma glória reservada para ele no Céu, porque, se faleceu como justo, ele ganhou uma guerra. E o mérito de a ter vencido é tanto maior quanto mais sacrifícios, riscos e perigos teve de enfrentar nessa conquista.

Nós queremos o triunfo e a glória, o sacrifício e o perigo.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (extraído de conferência)

 

A restauração da ordem

Continuamos a exposição do livro Revolução e Contra-Revolução, na forma de perguntas e respostas, a que demos início no número anterior. Conforme escreve em sua obra, Dr. Plinio concebia a restauração cristã não como o retorno a um passado imobilista e morto, feito apenas por um apostolado doutrinário, mas pela difusão de um “tonus”, um tipo humano, tanto mais saliente se divulgado por uma associação religiosa aprovada pela Hierarquia da Igreja.

 

O que a Revolução tem destruído?

O que tem sido destruído, do século XV para cá, aquilo cuja destruição já está quase inteiramente consumada em nossos dias, é a disposição dos homens e das coisas segundo a doutrina da Igreja, Mestra da Revelação e da Lei Natural. Esta disposição é a ordem por excelência. O que se quer implantar é, “per diametrum”, o contrário disto (pp. 59-60).

Brilho superior ao da cristandade medieval

O que a Contra-Revolução visa restaurar?

Se a Revolução é a desordem, a Contra-Revolução é a restauração da ordem. E por ordem entendemos a paz de Cristo no reino de Cristo. Ou seja, a civilização cristã, austera e hierárquica, fundamentalmente sacral, anti-igualitária e antiliberal (p. 97).

Em que consiste o espírito da Revolução?

Duas noções concebidas como valores metafísicos exprimem bem o espírito da Revolução: igualdade absoluta, liberdade completa. E duas são as paixões que mais a servem: o orgulho e a sensualidade. (…)

Sempre que falamos das paixões como fautoras da Revolução, referimo-nos às paixões desordenadas. E, de acordo com a linguagem corrente, incluímos nas paixões desordenadas todos os impulsos ao pecado existentes no homem em conseqüência da tríplice concupiscência: a da carne, a dos olhos e a soberba da vida (pp. 65-66).

Quais os pontos capitais em que a ordem nascida da Contra-Revolução deverá brilhar?

Por força da lei histórica segundo a qual o imobilismo não existe nas coisas terrenas, a ordem nascida da Contra-Revolução deverá ter características próprias que a diversifiquem da ordem existente antes da Revolução. Claro está que esta afirmação não se refere aos princípios, mas aos acidentes. (…)

A ordem nascida da Contra-Revolução deverá refulgir, mais ainda do que a da Idade Média, nos três pontos capitais em que esta foi vulnerada pela Revolução:

* Um profundo respeito dos direitos da Igreja e do Papado e uma sacralização, em toda a extensão do possível, dos valores da vida temporal, tudo por oposição ao laicismo, ao interconfessionalismo, ao ateísmo e ao panteísmo, bem como a suas respectivas sequelas.

* Um espírito de hierarquia marcando todos os aspectos da sociedade e do Estado, da cultura e da vida, por oposição à metafísica igualitária da Revolução.

* Uma diligência no detectar e no combater o mal em suas formas embrionárias ou veladas, em fulminá-lo com execração e nota de infâmia, e em puni-lo com inquebrantável firmeza em todas as suas manifestações, e particularmente nas que atentarem contra a ortodoxia e a pureza dos costumes, tudo por oposição à metafísica liberal da Revolução e à tendência desta a dar livre curso e proteção ao mal (pp. 97-99).

Apostolado moderno e o fenômeno “R-CR”

Todo católico deve ser contra-revolucionário?

Na medida em que é apóstolo, o católico é contra-revolucionário. Mas ele o pode ser de modos diversos.

Pode sê-lo implícita e como que inconscientemente. É o caso de uma Irmã de Caridade num hospital. Sua ação direta visa a cura dos corpos, e sobretudo o bem das almas. Ela pode exercer esta ação sem falar de Revolução e Contra-Revolução. Pode até viver em condições tão especiais que ignore o fenômeno Revolução e Contra-Revolução. Porém, na medida em que realmente fizer bem às almas, estará obrigando a retroceder nelas a influência da Revolução, o que é implicitamente fazer Contra-Revolução (p. 149).

Como o apóstolo moderno poderá aumentar sua eficácia?

Numa época como a nossa, toda imersa no fenômeno Revolução e Contra-Revolução, parece-nos condição de sadia modernidade conhecê-lo a fundo e tomar diante dele a atitude perspicaz e enérgica que as circunstâncias pedem.

Assim, cremos sumamente desejável que todo apostolado atual, sempre que for o caso, tenha uma intenção e um “tonus” explicitamente contra-revolucionário.

Em outros termos, julgamos que o apóstolo realmente moderno, qualquer que seja o campo a que se dedique, acrescerá muito a eficácia de seu trabalho se souber discernir a Revolução nesse campo, e marcar correspondentemente de um cunho contra-revolucionário tudo quanto fizer (p. 150).

Poderá haver uma associação religiosa para combater a Revolução?

A ação contra-revolucionária pode ser feita, naturalmente, por uma só pessoa, ou pela conjugação, a título privado, de várias. E, com a devida aprovação eclesiástica, pode até culminar na formação de uma associação religiosa especialmente destinada à luta contra a Revolução (p. 152).

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 92 (Novembro de 2005)

Consolação dos Aflitos

Consolar não é apenas enxugar o pranto de quem chora. Muito mais do que isso, é dar força, ânimo, decisão. O homem aflito facilmente se acabrunha exageradamente, perde a coragem, entregasse.

Nossa Senhora consola quando diz a uma pessoa aflita: “Meu filho, ânimo! Eu te dou, com a graça, a capacidade de lutar. Enfrenta o adversário! Tudo é reparável; no Céu serão pagos os teus  sofrimentos, será recompensado em glória tudo o que tiveres de carregar nos ombros agora. Vamos, coragem e para a frente!” Esta é propriamente a consolação. Nossa Senhora dá isso aos aflitos, àqueles exatamente que estão precisando de força para a luta.

Aqui está o pedido a ser feito a Nossa Senhora como nossa Consoladora: Que Ela nos dê força, firmeza, ânimo e coragem.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/9/1970)

Nossa Senhora

Conforme a parábola do filho pródigo, este fez um longo percurso durante o qual não consta que o pai tenha resolvido agir sobre ele. Mas quando o filho se aproximou, sua ação foi intensa: envolveu-o com seu afeto, mandou realizar uma festa tão grande que o filho fiel fez uma reclamação: “Como é isso?”

Na realidade, o mesmo se dá com o pecador. Ele se afasta de Nossa Senhora, e habitualmente — há exceções — vai se distanciando cada vez mais. Maria Santíssima não age, mas fica esperando certo momento de sua crise, no qual ele de certo modo cai do cavalo, como São Paulo no caminho de Damasco. Antes disso há remotas preparações no interior da alma dele, que Nossa Senhora vai dispondo e que somente conheceremos no dia do Juízo. Em determinada hora, notamos que sua alma se torna sequiosa do maravilhoso, que traz consigo o desejo da admiração. E se aproxima um início de deslumbramento das coisas da nossa vocação.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/3/1989)

À procura do ótimo

Em mais uma reunião da série auto-biográfica na qual narra como se formou seu espírito, Dr. Plinio satisfaz o filial interesse de o de seus jovens ouvintes, e lhes descreve feitios personalíssimos da sua alma.

 

Dizer-lhes como se desenvolveu em mim o desejo do ótimo me traz recordações das minhas primeiras batalhas espirituais, de como elas nasceram, se desdobraram e desfecharam em outras pugnas, até chegar às de hoje.

Lembro-me de como se foram forjando em meu espírito alguns princípios que me conduziram ao amor não só ao bem, mas ao mais alto grau de bem em todas as coisas, isto é, ao ótimo. Antes de prosseguir, devo dizer que não é verdadeira a generosa afirmação aqui expressa, segundo a qual em minha alma nunca houve tendência para o medíocre ou para o ruim. Todos somos concebidos no Pecado Original e todos temos, por nossa natureza decaída, inclinações más ao lado de boas. E devemos combater as más, logo que elas se manifestem. Isto posto, de que maneira o desejo do ótimo histórica e concretamente se desenvolveu em mim?

Lembro-me de dois — é possível que fazendo um esforço maior de memória eu completasse o quadro — elementos fundamentais para isso. Em primeiro lugar, certos enlevos por determinadas virtudes e qualidades, mas principalmente pela Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, conhecida na Pessoa adorável e divina de Nosso Senhor Jesus Cristo, na pessoa de Nossa Senhora, a Mãe perfeita por excelência, e, em grau menor, refletida na pessoa de minha mãe terrena.

Havia momentos em que a santidade e o bem da Igreja — é o que me vinha com mais frequência ao espírito — me apareciam tão clara e nitidamente, que eu ficava deveras entusiasmado. Em segundo lugar, concomitante a esse entusiasmo pelo bem, havia em mim um horror a determinados defeitos e a certos estados de alma, assim como a ideia clara de que, se eu não tomasse cuidado, poderia incorrer neles.

Há pouco tempo me caiu sob os olhos um livro sobre a vida de São Vicente Mártir. Impressiona ver como São Vicente, em meio às piores torturas do martírio, no momento em que o governador romano, para atraí-lo à apostasia, começou a lhe sorrir, ele, que já enfrentara torturas de arrepiar, disse ao governador: “Temo mais o teu sorriso do que todos os teus  instrumentos de tortura!”

Eu também me lembro dos sorrisos do mundo, dos sorrisos da vida quotidiana, tão mais risonha, tão mais amena, tão mais alegre naqueles remotos anos 20 do que nesses tardios anos 80! Era tudo tão diferente! Ainda havia um resto de perfume da “Belle Époque” que trazia consigo um pouco das brisas do “Ancien Régime”, que por sua vez tinha uma certa continuidade histórica com a Idade Média. Nessa minha época de menino havia algo, que valia a pena apreciar na vida.

Recordo-me das delícias daquele tempo. A “Fräulein” Mathilde era uma  alemã habituada fortemente aos prazeres germânicos. Costumava nos levar à confeitaria Vienense, pois os deleites degustativos sempre representaram um grande papel na educação que ela dava. Lá havia um padeiro suíço, de nome Moritz ou semelhante, que fazia uns bolos cobertos de fermento de cerveja, realmente de sabor bem vigoroso.

Outras vezes íamos à casa Fuchs, onde havia exposição de brinquedos. Oh, os brinquedos daquele tempo! Não se pode calcular hoje o que eram: extraordinários e caríssimos! Mas de maravilhar qualquer criança! Levavam os meninos à loja para escolherem um brinquedo. E, claro, tomavam isso como pretexto para ver a loja inteira. Naturalmente, acabavam se perguntando por que deveriam escolher um brinquedo só. Não podiam ser dez? Porque toda criança tinha vontade de comprar quanto brinquedo encontrasse ali.

Tudo na vida era mais entretido e mais agradável do que nos tempos atuais.

Mas os sorrisos das pessoas me faziam perceber que, de sorriso em sorriso, em determinado momento eu acabaria adquirindo o estado de espírito de uma delas, e com ele, o defeito de uma ou de outra. Isso me causava a sensação parecida com a vertigem das alturas, aquela possibilidade de derrapar se não se presta atenção.

Daí, um movimento de recuo e de horror: se eu não me afastar muito de certos estados de espírito, eu rolo abismo abaixo. Não é possível encontrar uma posição de meio-termo em que eu consiga me equilibrar.

Eu percebia que o meio-termo era uma mentira e que ou eu me afastava inteiramente do perigo ou, ficando no meio-termo, acabaria tendo apetência pelo abismo, porque o meio termo é a união ilegítima entre o píncaro e o precipício. Estabilidade no meio-termo é um engodo, não existe, pois nele não se tem vontade de atingir o ápice, mas se tende ao abismo.

O meio-termo era, portanto, por excelência o inimigo que eu devia evitar se não quisesse despencar. Daí nasceu minha decisão de procurar o ótimo, que, não fosse esse horror do péssimo, talvez eu não a tivesse tomado. Vi-me colocado no dilema entre rumar para o píncaro do ótimo, para o vértice de bem, ou rolar para o vórtice do péssimo. Esses foram os dois elementos fundamentais na  minha ascensão para o bem: o enlevo por alguns pontos e o horror por outros.

Ou se praticam todas as virtudes, ou não se pratica nenhuma

Havia um terceiro elemento que, graças à intercessão de Nossa Senhora, não tardou a se formar em meu espírito. Era o seguinte princípio, que compreendi com clareza: é uma mentira imaginar que se pode praticar bem só uma, duas ou três virtudes. As virtudes são irmãs indissociáveis. Ou nós as praticamos todas ou não conseguimos praticar nenhuma. Portanto, as virtudes que eu  reconheço pela razão serem louváveis, mas não despertam em minha alma entusiasmo especial, mesmo essas eu tenho de praticar. E tenho de observar na íntegra, porque se não for assim, não  praticarei nenhuma. É como uma corrente da qual se rompe um elo só: ela fica sem valor.

Tomemos, por exemplo, a mentira. Qualquer um compreende que a mentira é um mal. Não se deve mentir. Aquele dito cínico de Talleyrand: “a palavra foi dada ao homem para ocultar o seu pensamento”, não passa de um gracejo de quem não tem sensibilidade moral. Porque qualquer um entende que a palavra foi dada ao homem para exprimir o seu pensamento. Portanto, não se deve mentir.

Mas eu compreendo que a virtude da veracidade talvez não suscite o máximo do entusiasmo de alguém. E que se pode, por exemplo, ter muito mais entusiasmo pela pureza, pelo heroísmo ou pela Fé, do que pela veracidade. Contudo, se a pessoa peca gravemente contra a verdade, ela perde aquele estado sem o qual nenhuma virtude vale. Perde o estado de graça, e em poucos passos terá  perdido todas as outras.

Assim, alguém pode não ter entusiasmo preponderante pela virtude da veracidade, mas desde que ele ame com autêntico fervor, com legítimo enlevo uma virtude qualquer — a da Fé, por exemplo — ele acaba compreendendo que ou é veraz ou ele não serve à virtude da Fé que tanto ama.

As virtudes são todas irmãs. Não se pode, num anel de irmãs, viver afagando uma e detestando outras… É preciso ter boas relações com todas. Não se pode viver num meio-termo que consistiria em ter boas relações com umas e não com outras.

Batalha contra as aparências

Pude fazer a apologia do ótimo conhecendo ao longo de minha vida esses princípios, refletindo sobre eles em função da mediocridade moral, tão comum nos meus jovens anos. Hoje a mediocridade é menos freqüente, pois ela é como uma fita em bobina: à medida que se vai desenrolando, de cinzenta passa a ficar cada vez mais escura, até que no fim é francamente preta! Os  anos 80 são filhos ou netos dos anos 20, e o que em geral era apenas mediocridade ontem, hoje é maldade, pois o medíocre engendra uma geração má. A mediocridade era, precisamente, o grande sofisma que tive de enfrentar.

Porque, naqueles tempos, o bem e o mal se misturavam muito. Havia tendências más encobertas de uma aparência tradicional boa. E não se podia saber com certeza se, no fundo, uma determinada coisa era boa ou má.

Nessa conjuntura, era-se levado a achar normal aquela mistura entre o bem e o mal. Ora, a condição para que eu perseverasse no bom caminho, era exatamente romper essa convicção, arrancar a máscara dos medíocres que viviam dessa composição impossível entre o bem e o mal.

E eu acabava por fim com a persuasão da maldade que havia naquela composição, a qual gerava sempre o mal, pois o bem era ali uma casca, uma aparência. Era a última brisa de uma tarde que já  se pôs, de uma luz que já está além dos montes. Há certas tardes em que o sol se põe e o céu ainda está claro: isso eram os anos vinte, debaixo de muitos pontos de vista.

Tive de batalhar! Batalhar contra o quê?

Contra as aparências, é verdade. Mas também contra a minha vontade de me contentar com as aparências. Contra a minha vontade de me dizer a mim mesmo que aquelas aparências eram reais e  levar a vida despreocupada, amena e cordial com todo mundo.

Formei a convicção interior de que era preciso ter um espírito diferente dos outros. E os outros notaram isso. Era uma grande batalha que começava!

Plinio Corrêa de Oliveira (Continua)

Uma luz brilhou para nós

Em dezembro de 1953, a propósito do Santo Natal, Dr. Plinio tecia considerações muito aplicáveis aos nossos dias(1).

“Lux in tenebris lucet”(2). Com estas palavras o discípulo amado anunciou para seu tempo e para os séculos vindouros o grande acontecimento que celebramos neste mês. Fórmula sintética que exprime o conteúdo inexaurivelmente rico do grande fato: havia trevas por toda a parte, e na obscuridade delas se acendeu a Luz. Por isso a Santa Igreja afirma com estas palavras proféticas de Isaías o seu júbilo, na noite do Natal: “Hoje surgiu a luz para a mundo: o Senhor nasceu para nós. Ele será chamado Admirável, Deus, Príncipe da Paz, Pai do século futuro, e o seu reino não terá fim.”(3)

Qual é a razão destas metáforas? Por que luz? Por que trevas?

Os comentadores são unânimes em afirmar que as trevas que cobriam a Terra quando o Salvador nasceu eram a idolatria dos gentios, o ceticismo dos filósofos, a cegueira dos judeus, a dureza dos ricos, a rebeldia e o ócio dos pobres, a crueldade dos soberanos, a ganância dos homens de negócio, a injustiça das leis, a conformação defeituosa do Estado e da sociedade. Foi na mais profunda escuridão dessas trevas que Jesus Cristo apareceu como uma luz.

Qual a missão da luz? Evidentemente, dissipar as trevas. De fato, aos poucos, foram elas cedendo. E, na ordem das realidades visíveis, a vitória da luz consistiu na instauração da civilização cristã que, embora com as falhas inerentes ao que é humano, foi o autêntico Reino de Cristo na Terra.

Não é o caso de fazermos aqui o histórico do crepúsculo da Cristandade ocidental. Basta lembrar que, do século de São Tomás e São Luís IX, deslizamos para esta nossa era de laicismo e de ateísmo militante.

O quadro que traçamos do mundo antigo poderia aplicar-se facilmente ao de hoje, em cujas trevas do erro e do pecado os homens são retidos, em essência, por três fatores: o demônio com suas tentações, o mundo com suas seduções e a carne com seu aguilhão.

De fato, entregue às volúpias da carne, o ser humano tende a atirar-se com todo o peso de sua miséria às delícias do mundo; e sua alma cheia de tanto lodo está preparada para receber a ação do demônio. Cada um desses fatores abre, pois, o campo para o outro. E por isso, instaurado numa alma o jugo do demônio, ela se torna mais escrava do mundo e da carne.

A capitulação diante de qualquer deles, por mais incipiente que seja, dá imediato vigor aos outros. A ação do demônio cresce na alma com o pecado e, por sua vez, agrava as devastações dos vícios na alma.

Mas no que consiste precisamente a ação do demônio? Em dar aos impulsos de desordem que o pecado original instalou em nós, uma vivacidade, uma energia ainda maior; em nos arrastar a uma esfera de degradação, de sensualidade e de impiedade pior ainda que a da simples malícia humana. Arrastando, pois, para baixo os pecadores, procurando dar coesão, em toda a Terra, às energias caóticas e, por si mesmas, anárquicas da corrupção, soprando-as e estimulando-as, o demônio é o verdadeiro chefe do reino das trevas no mundo.

Contudo, para certos tipos de mentalidade, o papel do demônio, do mundo e da carne na difusão das trevas não deve ser levado tão a sério. O homem contemporâneo não é senão um meninão travesso, mas bom no fundo, que só tem um ponto difícil: é irritável. Por certo ele está algum tanto longe de praticar todos os Mandamentos. A culpa, entretanto, não é principalmente sua, mas dos que não o souberam compreender. Em lugar de irritá-lo com dogmas, preceitos, penas, dever-se-ia tê-lo nutrido com o mel suave das concessões, tratado com sorrisos. Não se compreendeu isto e, como ele é irritável — e algum tanto traquinas… —, ei-lo que quebra igrejas, desencadeia guerras, multiplica revoluções.

A solução consistirá em abrandá-lo. Antes de tudo, não dizer as coisas claramente, porque “pode irritar”.

Castidade, sim. Mas pronuncie a palavra bem baixinho, só quando for indispensável; ou melhor, renuncie a fazer uso dela por muito tempo.

Obediência ao Magistério da Igreja? Sim, sem dúvida. Mas não fale propriamente em obediência, nem em Magistério: poderíamos irritar o meninão. Melhor seria falar vagamente em fé.

Pecado? Não é termo conveniente: fale-se antes em fraqueza, lapso, deslize. E cuidado! Fale-se sobre isto sorrindo.

Inferno, para quê? Se nosso meninão percebe que pode ir ter lá, acabará por sentir um terrível ódio contra Deus. Há no Evangelho algumas referências a este assunto, mas é que os publicanos ouviam falar nisso e lhes fazia bem. Nosso meninão, pelo contrário, é emancipado e se revoltaria. Deixemos o assunto para mais tarde, será mais prudente.

Tudo isso quanto ao modo de enunciar a doutrina. Quanto ao modo de aplicá-la, as concessões vão ainda mais longe…

O que nos ensina a este respeito Aquele que é, por excelência, a Luz brilhando nas trevas?

Por seu exemplo e por suas palavras, Nosso Senhor nos ensina, antes de tudo, que é preciso nunca silenciar a verdade; que cumpre proclamá-la inteira, ainda que nossos ouvintes não nos aplaudam, ainda mesmo que nos queiram lapidar ou crucificar.

É preciso anunciá-la com palavras de ameaça ou com um semblante de indulgência e de bondade? Nosso Senhor fez uma e outra coisa, conforme o estado de alma daqueles a quem Se dirigia.

Também nós, para sermos luz neste mundo de trevas, não havemos de renunciar às apostrofes candentes e ao tom polêmico, nem às palavras de doçura e incitamento. Devemos pedir a Nosso Senhor que nos dê o discernimento necessário para fazer uma e outra coisa no momento oportuno.

Santos houve que fizeram principalmente uma ou outra coisa. Não houve um só Santo que jamais desse prova de severidade, ou jamais desse prova de suavidade. Cada qual agiu segundo nele soprava o Espírito Santo, e por foram canonizados pela Igreja.

Cada um de nós proceda segundo o espírito que tem, com uma ressalva, porém, e esta muito importante: na aplicação dos princípios jamais se pode ceder. Sorrindo ou increpando, diga que o mal é mal e o bem é bem. E não deixe de estimular, incentivar, pregar o bem em todos os seus aspectos. Agir de outro modo não é trabalhar para propagar a luz, é velá-la, é querer extingui-la.

Esta é a lição que nos deixou Aquele cujo nascimento neste mês celebramos genuflexos.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (extraído de conferência)

1) Cf. Catolicismo, n. 36.

2) Jo 1, 5.

3) Introito da Missa da Aurora (Is. 9, 2. 6; Lc 1,33).

Desejo do sublime

Continuando suas clarividentes explicitações sobre a sociedade orgânica, Dr. Plinio mostra que os habitantes de uma cidade, animados pelo espírito católico, devem sempre procurar as coisas mais elevadas, o maravilhoso, o sublime. Do contrário, a cidade vai decaindo e acaba chegando à estagnação.

 

Todo regionalismo vive em torno de uma tradição que se aprofunda. Ao invés de o progresso se dar no sentido de adquirir elementos novos, realiza-se na aquisição de aprofundamentos novos, e então ocorre uma espécie de enclausuramento nos tradicionalismos ou nos regionalismos, por onde os regionalistas são tradicionais e os tradicionalistas são regionais. Isso provém da íntima ligação do espírito tradicional com as profundidades inesgotáveis, que jazem numa determinada região.

Um palácio de antigos reis transformado em Palácio de Justiça

Então, destruir uma região é desviar a atenção de suas profundidades para novidades que ficam borboleteando no noticiário. E, pelo contrário, vivificar uma região é fazê-la viver das novas conquistas que o aprofundamento proporciona. Esse dado me parece indispensável para formarmos uma noção exata de um verdadeiro regionalismo.

É importante notar o seguinte: por vezes, o tradicionalismo chega a um ponto de estancamento em que, por falta de novos aprofundamentos, ele não anda mais, fica estagnado, sem fecundidade, pitoresco, mas embolorado e malcheiroso como pode suceder com certos arquivos. Entretanto, isso nunca acontece ao verdadeiro tradicionalismo.

O que ocorre quando um tradicionalismo estagna?

Senti muito esse problema vendo uma fotografia de um pequeno palácio com as proporções de uma casa de família muito confortável, provido de certa seriedade, certo donaire. A legenda da foto indicava tratar-se do palácio dos antigos reis de um daqueles pequenos reinos — menores do que Aragão, Castela, etc., que a Espanha teve em certo momento —, hoje transformado em Palácio da Justiça. E refleti sobre o caso.

Por um lado, para o prédio não ficar abandonado ou tornar-se um museu, é melhor que ali figure o Palácio da Justiça. Mas constitui certa decadência uma construção, outrora habitação de reis, ser transformada em Palácio da Justiça, com o cotidiano próprio a uma repartição como essa. Por exemplo, as partes que entram para se querelar sobre as causazinhas locais: um pato que fugiu do quintal de um e entrou para o do outro; então, a quem pertence o pato? Os dez ou quinze metros de profundidade existentes no quintal são propriedade de quem? E o galinheiro que ali está, a quem pertence, então? Assuntos como esses são discutidos nas salas onde viveu uma pequena corte, e reinaram os pequenos reis daquele lugar.

Causa certa tristeza imaginar os primeiros dias da época em que essa cidadezinha não foi mais habitada pelos seus antigos reis, porque ela deixou de ser a capital do reino. Então, houve a alegria dos medíocres, pois, tendo ido embora o rei, a vida se tornou mais acomodada e banal.

Depois, aquela vida banal se perpetuou e a tradição transformou-se em paralisia.

A estagnação abriu as portas ao progresso descontrolado

Em seguida, entra o progresso… Por exemplo, em frente daqueles antigos palácios, transformados em repartições públicas, instalam-se um ponto de ônibus, uma bomba de gasolina e um bar com anúncio iluminado a gás neon.

O palácio dos reis continua e nele todo mundo vai discutir os frangos, os patos e os fundos de quintal. Entretanto, alguma coisa correu errada ali…

O fenômeno da estagnação é o mesmo em diversas manifestações da vida. Mas o que vem a ser a estagnação? Do que ela decorre? A que males ela conduz? Até que ponto ela é o grande argumento dos inimigos da tradição?

Parece-me ser esse um ponto muito importante dentro do assunto da sociedade orgânica, pois, mais ou menos por toda parte, o progresso descontrolado entrou porque a estagnação lhe abriu as portas.

Quando se estuda o século XIX — por excelência o período em que os progressos entraram: eletricidade, bonde, ônibus, trem, enfim todas as novidades foram muito mais do século XIX do que do XX —, nota-se uma estagnação em diversas áreas, e os povos se voltam deslumbrados para essas novidades, pois a estagnação lhes tinha fechado todos os horizontes.

Então, os partidários da tradição começam a escrever revistinhas, lembrando como tal coisa era pitoresca, tal outra era bonita. Ou fazendo uma polêmica: como se deve escrever tal palavra típica da região: com K ou com C? Nascem, então, os pequenos eruditos locais que são verdadeiros vermes devoradores de papel: “O Rei tal escreveu, em sua carta de tanto, tal coisa assim; mas tal Juiz, que era um luminar e redigiu um livro de Direito, traduzido na Universidade de Compostela, refutou de tal jeito…” E faz-se uma erudiçãozinha local, que ainda agrava o peso da estagnação. Uma espécie de necrologia.

Em geral, quando vem ao espírito esse problema da estagnação, ele se associa à ideia de um lugar pequeno no qual tudo ficou imóvel. Não obstante, essa situação pode exercer um poder de atração extraordinário.

Prêmio Nobel para um indivíduo de uma cidadezinha

Li certa vez, em uma revista francesa, o caso de uma família que vivia numa cidade bem pequena da França. Todas as noites, terminado o jantar, o pai, a mãe e o filho iam a uma confeitaria, em frente à casa deles. Embora o filho já fosse homem feito e os pais bem idosos, ainda saíam juntos, como no tempo em que ele era menino. O filho era um solteirão que passava o dia estudando, não fazia outra coisa.

Nessa confeitaria tomavam sempre as mesmas bebidas, puxavam um jogo de dominós, que ficava junto à mesa desde tempos imemoriais.

Certo dia estoura a notícia que deixou todo mundo da cidadezinha pasmo e entusiasmado.

Esse homem, que jogava dominó com os pais, passara a vida inteira estudando, sem que ninguém lhe perguntasse qual o tema dos estudos. De repente, ele recebe uma carta da comissão Nobel comunicando-lhe que, devido a um trabalho fantástico por ele realizado, receberia o Prêmio Nobel. Nessa ocasião, ele seria convidado pelo Rei para um jantar de gala no palácio, junto com sua família.

Aquilo produziu um movimento extraordinário na cidadezinha. O homem viajou para a Suécia e, no mesmo dia em que voltou para o lugarejo onde morava, foi com seus pais jogar dominó na confeitaria.

É um sintoma característico de estagnação com aquilo que ela tem de simpático, pois são costumes preservados, nos quais se nota certa candura aprazível. Isso também revela uma seriedade de afeto entre ele e seus pais, uma serenidade de vida, um desapego de uma porção de coisas que o mundanismo oferece.

Mas, de outro lado, é de assustar! Toda noite, durante uma vida inteira, jogar dominó com o pai e a mãe, sem ninguém de fora na roda!

Não se pode afirmar que, neste caso, a estagnação conservou alguma fecundidade que permitiu ao homem aquela invenção. O Prêmio Nobel foi proporcionado pela cidade, na medida em que esta evitava uma série de obstáculos que a vida moderna põe para a produção; mas a descoberta não foi, nem um pouco, inspirada pela vida local, nem trazia benefícios para esta. A cidade continuava inteiramente estagnada.

A vida popular na Idade Média

Devem existir centenas de coisas dessas, mais ou menos em todos os países da Europa.

Contudo, sempre levados pela ideia de a estagnação ser um fenômeno de pequenos lugares, nosso espírito se volta para a Ásia, África, Austrália para ver se encontra alguma coisa parecida com essa estagnação.

É evidente que nesses continentes há um mundo de aldeias. Porém, não se ouve falar de um lugar pequeno que seja célebre pelo seu pitoresco, e a respeito do qual se poderia fazer um conjunto como, por exemplo, a “Exposição do pueblo español”, em Barcelona.

Por quê? Pela simples razão de que não se constituíram aldeias nas quais houvesse um regionalismo no sentido do existente na Europa, ou seja, um local com suas características próprias, vivas, e que em determinado momento progrediu e formou um ambiente de vida distinto dos outros: quase se diria uma civilizaçãozinha.

Então, chegamos à conclusão de que a Europa, em determinado momento, teve um enorme florescimento de pequenas unidades que vicejaram extraordinariamente, e isso não se encontra em nenhuma outra zona do mundo, sendo um fenômeno de vitalidade europeia, medieval, e com a característica curiosa de ser, não exclusiva, mas preponderantemente popular.

Portanto, mais do que todas as declamações do enciclopedismo, do iluminismo sobre os direitos dos pobres, o que comunicou à vida popular uma chama, por onde cada local poderia ser uma lamparina acesa, foi a Idade Média. Não se poderia fazer coisa mais importante para o povo do que dar-lhe elementos pelos quais ele fosse capaz de gerar isso. Em vez de viver obscuramente e sem originalidade à sombra dos ricos, fazer ele mesmo, seu mundinho e sua civilização.

Em Roma e na Grécia, o povo era considerado uma ralé

Uma vez mais os incito a pensarem nesse assunto. Isso não existiu nem sequer entre os romanos ou gregos. Quem ouviu falar de uma aldeia clássica, grega, do mundo helênico, ou do mundo romano? Na cultura clássica, alguém se ocupou de aldeias, da arte popular? O povo era uma ralé anônima, no pior sentido da palavra, porque não tinha personalidade. Roma era Roma por causa de uma elite de patrícios, no começo, e de aventureiros depois, no tempo do Império, com certas características. Mas o povo não tinha nada.

Trata-se de saber qual a origem desse fenômeno na Idade Média e, tendo-a localizado, procurar estudar a estagnação.

A única força atuante, no mundo no período originário da Idade Média, era a Igreja, porque todas as outras forças do antigo Império Romano ruíram, dando lugar à barbárie, em luta contra a Igreja Católica. A barbárie, de si mesma, não tinha a intenção de combater a Igreja, mas era completamente plasmada e formada de um modo oposto ao da Igreja. E, portanto, formavam-se entrechoques, a Igreja era obrigada a dizer para tal guerreiro, tal rei ou rainha bárbara quais eram os deveres de cada um e, por vezes, eles não gostavam de cumprir.

Como surgiu o feudalismo

Tomemos a origem do feudalismo, como é narrada pela maioria dos historiadores. Em propriedades agrícolas os habitantes, atacados por hordas de invasores, recorrem ao proprietário da região, que é o chefe natural, para se defenderem. Esse proprietário se dispõe a acolhê-los nas suas próprias terras e se defender junto com eles. Então eles mesmos pensam em construir uma muralha, e com o tempo sofisticam as suas formas para resistir melhor à agressão. Depois, edificam no recinto da muralha a torre de ménage, para poder ver mais longe o inimigo, e, posteriormente, residências de refúgio para a população quando o agressor ataca.

Torna-se um sistema pelo qual o proprietário se transforma em autoridade. Todos dependem dele, e um direito público se constitui. O mesmo se passa em inúmeras propriedades, sob a pressão das mesmas circunstâncias. Surgem os castelos, nasce o feudalismo. Tudo parece tão lógico!

Mas eu pergunto se os proprietários de hoje, querendo se opor a eventuais invasões, fariam uma resistência da qual surgiria o feudalismo. Creio que não, por faltar aquele espírito católico que caracterizava os medievais. Estes eram tão católicos que punham sempre uma capela na praça central do castelo, rezavam quando o inimigo chegava, enquanto este os sitiava, e davam graças quando o expulsava. Com isso o espírito religioso ia crescendo, a virtude aumentando também, resultando daí uma expansão religiosa.

Procurar sempre o mais elevado

Resta, então, uma pergunta: como do espírito católico pode dimanar o regionalismo e o feudalismo?

Por meio de sua doutrina, evidentemente baseada na Revelação; a Igreja põe diante de nossos olhos ideais imensos, uma noção do Céu que nos dá o desejo de uma perfeição e de um tipo de vida verdadeiramente maravilhosos, extraordinários. E que faz a alma ter o anseio do admirável, do magnífico e até do sobrenatural.

Ora, o normal é que esse desejo da sublimidade e do maravilhoso repercuta na vida terrena, levando as pessoas a espelhá-lo no seu cotidiano, não se conformando com a banalidade e a vulgaridade.

Disso não decorre o desejo de cada um fazer um palácio, mas sim de ornar com verdadeira arte, beleza e bom gosto o pequeno mundo em que está.

De onde decorre algo que o mundo pré-medieval não conheceu: a necessidade de ir sempre mais alto na ordem espiritual e, consequentemente, também na temporal. Um desejo de altura mais ou menos incomensurável, que fazia darem-se, por exemplo, coisas como esta: camponeses suíços, para ocupar suas noites de inverno, passavam longas horas conversando e, ao mesmo tempo, trabalhando a título de distração. Produziam, assim, esculturas de madeira para ornar a própria matriz. Por isso encontra-se, em certas igrejas da Suíça, uma magnífica exuberância de ornamentação oriunda do trabalho popular, artesanal.

Há nisso uma espécie de desejo de subir, de melhorar, sem sair necessariamente de sua classe, mas ornando e aprimorando as suas próprias condições de existência, que é muito expressiva de uma vida local, original, profundamente modelada de acordo com as circunstâncias, e que forma propriamente o que se chama “povo” numa sociedade orgânica, que a meu ver é muito diferente do que se denomina “povo”, por exemplo, em qualquer grande cidade moderna. O povo assim movido por esse desejo da perfeição, do maravilhoso, do sublime, era a expressão mais direta da vida espiritual fervorosa.

Febricitação das grandes cidades

Nota-se nisso uma forma de vitalidade religiosa, um desejo, ainda que subconsciente, do Céu Empíreo, o qual tem como consequência que a alma não se contenta em jogar dominó toda noite, não se satisfaz com a estagnação, mas quer subir, tende, de um jeito ou de outro, para a santidade e vive na grande admiração dos Santos.

À medida que as gerações foram passando, o culto aos Santos continuou, mas a admiração por eles foi, paradoxalmente, diminuindo. O Santo deixou de ser um personagem da família, para se tornar uma pessoa na qual se pensa quando se vai à igreja, e com a qual temos relações quando precisamos de favores. Já não é mais o que era o Santo antigamente, diante de cuja imagem a família rezava unida em casa, e cujo nome era dado a vários filhos, e sua vida era conhecida por todos os membros da família, servindo de ponto de referência. O Santo era um personagem da família.

Compreende-se, assim, o processo de estagnação. Acaba a Idade Média, o impulso de ascensão diminui e termina dando lugar a um esforço penoso, para evitar a decadência. Torna-se um sacrifício meditar em Deus, nos seus Anjos, nos seus Santos. O Céu não é mais um atrativo. Com isso, o progresso verdadeiro fica cortado no seu único nervo vital.

Notamos essa estagnação nas aldeiazinhas, porém não nas grandes cidades, porque estas foram invadidas pelo progresso promotor de uma vitalidade falsa, em que a estagnação foi substituída pela febricitação, pelas neuroses, pelas psicoses. Por isso, a estagnação, vista de dentro da cidade moderna, fica até simpática.

Entretanto, a cidadezinha do interior, que vai se modernizando, acaba tornando-se uma gota sem graça da grande cidade, ou uma pequena aldeia estagnada, sem vida, mantendo ainda algumas virtudes do passado, mas também estas sem vitalidade. Em certo momento, uma parte das gerações novas rompe com aquilo. E não adianta o bom vigário pregar contra isso, porque não há o que segure esse resultado da estagnação que devora o lugar, abrindo as portas a um progresso sem tradição, sem passado.

A piedade não é um meio, mas um fim

Temos, então, dois pontos extremos e opostos: de um lado, esse progresso que rompe com a tradição; de outro, o aprofundamento tranquilo das próprias originalidades e regionalidades, movido pelo desejo do sublime.

Creio que aqui tocamos o fundo da vida da sociedade orgânica.

A meu ver, as pessoas que constituíram uma sociedade orgânica não quiseram explicitamente fazer isso. É algo muito mais profundo, como em geral é o fervor religioso, que vem de um efervescer interior de amor, de dedicação, que não passa pelos alambiques de um raciocínio, mas explode diretamente como uma garrafa de champanhe.

Como esse fervor morreu, somos obrigados a acentuar muito o lado racional, mas em condições normais, em que toda a sociedade é movida pelo mesmo impulso rumo à perfeição, essas coisas nascem subconscientemente.

O amor de Deus, a união com Ele, com seus Anjos, seus Santos na vida espiritual, a piedade podem, pela graça divina obtida por meio de Nossa Senhora, se tornar tão extraordinários que deem na era descrita por São Luís Grignion de Montfort, o Reino de Maria, e cuja grande característica é um impulso para o sublime essencialmente sobrenatural.

Um indivíduo que quisesse ser piedoso para ter uma sociedade orgânica, não seria piedoso e não faria a sociedade orgânica. A piedade não é um meio, mas um fim. Se ela deixa de ser o fim da sociedade orgânica, esta morre. É preciso nascer do desinteressado amor a Deus, a seus Anjos e Santos, à sua Igreja, portanto, à Fé e à Moral da Igreja. A partir disso, o resto floresce. v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/8/1991)
Revista Dr Plinio 201 (Dezembro de 2014)

 

Musicalidade das relações humanas

A cortesia é a perfeita relação que passa por cima do abismo que há de homem para homem. Essa força que liga este abismo chama-se amor fraterno católico. A cortesia é o lado cheio de respeito, distinção e afeto que une as pessoas diferentes e as coloca numa relação como as notas de uma música. Dir-se-ia que as notas de uma bela música estão em estado de cortesia entre si.

Se uma pessoa irrefletida passa diante de um piano que está com a tampa aberta, escorrega e se apoia no teclado para não cair, sai um som horroroso parecido com uma descortesia. Porque não há harmonia. A cortesia é a musicalidade das relações humanas.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/6/1974)

A Igreja

Se devêssemos passar dois mil anos apenas aplaudindo a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, enquanto eu vivesse e as minhas mãos pudessem bater palmas, eu estaria participando desse aplauso.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/3/1980)

Santo Annon: energia e astúcia

Utilizando sapiencialmente as qualidades que Deus lhe havia concedido, Santo Annon salvou a Reforma Gregoriana que estava passando por um gravíssimo período. Sua figura nos ajuda a compreender melhor a verdadeira fisionomia da Igreja.

Santo Annon, bispo e confessor, é um dos grandes e pouco conhecidos Santos da Idade Média. A seu respeito, temos a seguinte ficha preparada por um dos membros de nosso Movimento.

Pessoa de trato verdadeiramente agradável

Santo Annon é um dos grandes santos dos primeiros anos do Sacro Império Romano Alemão. Seus altos feitos ficaram registrados não só na História, como na Literatura, pois sobre a sua vida foi escrito um poema em 876 versos, clássico da literatura medieval alemã.

Professor da escola de Bamberg, Arcebispo de Colônia e Chanceler do Sacro Império, fundador de mosteiros, a ele se deve também, em grande parte, a introdução da reforma cluniacense na Alemanha.

Era uma personalidade invulgar. De porte majestoso, bem proporcionado, seus contemporâneos o descreviam como um belo homem, grande orador, e não menor “causeur”, suas aulas e sua prosa prendiam a atenção de todos os que o ouviam, nele admirando não só a ciência, como a ortodoxia de seu pensamento. A amenidade de seu trato e a extraordinária, e mais tarde legendária, energia impunham a todos respeito e veneração.

É uma bonita descrição de um desses homens completos, muito bem constituídos fisicamente e com essa dupla qualidade: um trato muito ameno, orador, “causeur” brilhante, e homem muito enérgico. Isto demonstra quanto é verdade aquilo que o liberalismo procura ignorar: a pessoa seriamente enérgica, quando não é ocasião de usar de energia, deve ser de um trato muito agradável. E a pessoa de um trato verdadeiramente agradável, nas horas de energia, sabe ser enérgica.

O que vem a ser um trato verdadeiramente agradável? Não o de um palhaço qualquer que conta anedotas, mas é um relacionamento elevado, nobre que, ao mesmo tempo, distrai, agrada e deixa a pessoa dignificada, enobrecida. Esse era o trato de Santo Annon.

Glorioso cooperador da Reforma Gregoriana

Continua o texto:
Em 1062, num período difícil da Reforma Gregoriana, ele a salvou de uma crise que poderia ter sido fatal.

Antes de São Gregório VII, a Igreja passou por vacilações enormes, por crises, por depressões morais tremendas. E essas crises morais foram todas elas contrariadas pelo movimento de Reforma Gregoriana, que São Gregório VII, então cardeal, impôs através de vários Papas que eram discípulos dele, e depois ele mesmo, elevado ao Pontificado, com uma energia não excedida e talvez não igualada, levou à sua perfeição. A esse movimento restaura-dor, um dos maiores que tenham havido dentro da Igreja, costuma-se chamar de Reforma Gregoriana. E foi uma glória de Santo Annon ter cooperado para essa reforma.

Dificuldades em época de sucessivos papas

Com efeito, Estevão IX, o primeiro Papa eleito pelo povo romano sem consulta ao Imperador, enviou ao Sacro Império o monge Hildebrando para convencer a Imperatriz Inês, que governava na menoridade do filho, futuro Henrique IV, a reconhecer a eleição. A Imperatriz Inês, que era Condessa de Poitiers e foi educada num ambiente cluniacense, não opôs dificuldades em aceitar. Mas Estevão IX morrera antes da volta de Hildebrando. Na hora da morte, o Papa fizera o clero e a nobreza jurarem que não elegeriam um novo soberano pontífice antes de Hildebrando chegar. Não respeitando o juramento, o clero e a nobreza se reuniram logo depois dos funerais, e elegeram o Santo Padre.

São Pedro Damião, Cardeal-Arcebispo de Óstia, protestou e fugiu de Roma, indo ao encontro de Hildebrando, que estava em Florença, e logo reuniram um Sínodo. Foi eleito Nicolau II, que a Imperatriz também reconheceu. As dificuldades começaram quando Nicolau II decretou que a eleição dos Papas seria feita pelo Colégio dos Cardeais.

A nobreza romana revoltou-se. E os adversários da Reforma Gregoriana conseguiram convencer a Imperatriz de que não devia aceitar o decreto. Pouco depois morreu Nicolau II, e Hildebrando fez o Sacro Colégio elevar ao sólio pontifício Alexandre II. O episcopado da Lombardia e alguns bispos alemães, com a anuência da Imperatriz, reuniram-se e elegeram o antipapa Cádalo, Bispo de Parma, que tomou o nome de Honório II.

Quem deve eleger o Papa? Questão decisiva para o êxito da Reforma Gregoriana

Aqui estava em jogo uma questão muito importante. A eleição do Santo Padre foi, em todos os tempos, um dos elementos decisivos da política mundial, tanto mais na Idade Média, quando o mundo era muito mais católico do que hoje e, portanto, muito mais sensível a qualquer pensamento, vontade, pronunciamento ou ato do Sumo Pontífice.

Porém, se tinha importância a eleição de um Papa, outra pergunta também era muito importante: quem o elegeria? Vemos definirem-se duas tendências diversas: uma que considerava estarem os nobres e o clero de Roma habilitados a eleger o Pontífice; outra julgava que este deveria ser escolhido pelo Sacro Colégio.

Em rigor, não era contra a instituição divina que o Papa fosse eleito pelos nobres e clero de Roma. O Direito Canônico pode atribuir-lhes tal faculdade como poderia concedê-la também ao povo romano. Mas do ponto de vista da conveniência, quer dizer, para assegurar melhor a eleição de um Papa digno do cargo, era muito preferível naquele tempo — e o é em tempos normais — que a escolha fosse feita pelo Sacro Colégio, pois este representa uma aristocracia, uma elite dentro da Igreja, sendo um conjunto de clérigos considerados mais eminentes, pre-claros e seguros pelos Pontífices anteriores.

A palavra “cardeal” vem de cardo, em latim, que significa o gonzo da porta. Os cardeais estão para a Igreja como os gonzos para uma porta: sustentam-na, permitindo e facilitando-lhe o movimento. Era, pois, natural que esse escol de colaboradores dos vários Papas, participando em grau subordinado do governo e conhecendo melhor do que ninguém o ambiente eclesiástico e as necessidades da Igreja, elegessem o Santo Padre.

Isso seria certamente mais adequado do que se a eleição ficasse a cargo de clérigos de uma ordem inferior, incumbidos da direção ou do exercício de atividades na diocese mais importante do mundo, é verdade, mas voltados para problemas locais, circunscritos à Diocese de Roma; enquanto os cardeais são uma elite internacional. Ora, a missão do Papa não é apenas local, mas principalmente mundial.

Por outro lado, os nobres romanos eram os senhores de pequenos feudos nos arredores de Roma, e que muitas vezes guerreavam por seus interesses. Havia o risco de escolherem um Papa de acordo com suas conveniências pessoais ou familiares.

Portanto, era natural que os partidários da Reforma Gregoriana quisessem transferir essa atribuição para os cardeais.

Vemos que se pronuncia um incidente no qual o monge Hildebrando, cardeal e futuro Papa São Gregório VII, convenceu o Pontífice novo de transferir os poderes de eleição para o Sacro Colégio. Naturalmente, o clero e a nobreza de Roma ficariam indignados com isso, pois perdiam um poderoso elemento de influência política. Então, foram logo ao encontro da Imperatriz do Sacro Império Romano Alemão para obter que ela se solidarizasse com eles.

Debaixo de certo ponto de vista, a Imperatriz tinha interesse nisso porque, no sistema anterior, o imperador — ou a imperatriz, quando o imperador era menor de idade — interferia na eleição. Entretanto, feita a eleição pelo Sacro Colégio, as possibilidades de interferência do poder imperial se tornavam muito menores.

Esse choque de interesses comprometia a Reforma Gregoriana que, sendo um movimento de reestruturação e reorganização da Igreja, estava maximamente empenhada em que o órgão adequado elegesse o Sumo Pontífice.

Num momento crucial, Santo Annon intervém com astúcia

Alexandre II e Cádalo foram para Roma e disputaram a cidade. O Papa tinha contra ele o Sacro Império, boa parte da nobreza, e não podia contar com o auxílio do chefe normando Roberto Giscard, que não estava em bons termos com a Santa Sé. Havia até indícios de que ele simpatizava com a causa de Cádalo, por interesses pessoais.

Foi nesse momento crucial que Santo Annon resolveu intervir. Combinou com alguns nobres alemães um golpe de Estado.

Sabia que a Imperatriz Inês gostava de parar em determinada ilha quando viajava pelo reino.

Era uma ilha aprazível e lá costumava ela repousar das fadigas da viagem.

Santo Annon mandou construir uma barca esplêndida, riquíssima, adornada com toda espécie de obras de ar-te: finíssimos tapetes cobriam o chão e as paredes; cortinas dos mais preciosos tecidos vedavam as janelas. Toda a barca estava revestida de boa madeira, com incrustações de ouro e pedras preciosas.

Quando a barca ficou pronta, Santo Annon permaneceu à espera de uma ocasião propícia para utilizá-la.

Notem a atmosfera bonita em que essas coisas se passavam: uma ilha aprazível, uma barca linda, com cortinas e incrustações de pedras preciosas, à espera da Imperatriz. Que lindo teatro para uma cena histórica! Como isso é mais bonito do que um avião para se passar qualquer episódio da História humana!

Essa ocasião se apresentou pouco depois, quando a Imperatriz anunciou uma viagem a Nimegue. Santo Annon, com outros conjurados, viajou diretamente para a referida ilha, chegando lá antes da corte. Quando esta lá aportou, na hora do almoço, Santo Annon, como Chanceler do Império, sentou-se ao lado de Henrique IV, que tinha então seis anos. Fez a conversa cair sobre a barca, e a descreveu com toda a minúcia, maravilhando o menino. Logo depois do almoço, Henrique IV manifestou o desejo de visitar a barca. Recebido com todas as honras, assim que o rei subiu a bordo, os remadores, já avisados, puseram a embarcação em movimento, afastando-a da ilha.

A Imperatriz e os nobres, que tinham ficado na ilha, promoveram um grande tumulto, e o menino-rei, amedrontado, atirou-se ao rio.

O menino-rei era uma víbora; foi o grande inimigo de São Gregório VII, mais tarde.

O Conde Egbert de Brunswick se jogou na água e o trouxe de volta para a barca. Santo Annon levou Henrique IV para uma das salas e teve com ele uma longa conversa, convencendo-o de ir para Colônia, onde seria convocada uma assembleia de nobres para discutirem a situação.

Faço um comentário colateral a respeito da mentalidade dos meninos naquele tempo. Às vezes, aos 14 ou 15 anos, meninos começavam a comandar exércitos, ou dirigir impérios; e, muitas vezes, dava certo. Vemos aqui Santo Annon tratando seriamente com um menino de seis anos sobre política e convencendo-o.

Alguém poderá objetar: “Mas o menino não tinha nenhuma resistência possível a oferecer a um homem da qualidade de Santo Annon”.

É possível. Em todo caso, Santo Annon julgou que não podia resolver o caso só com brinquedinhos e fazendo cocegasinhas no queixo do rei; mas precisava dar uma argumentação política. Deu, e o monarca aceitou. Quer dizer, trata-se de um nível de menino que não é comum.

Para se compreender bem essa atitude de Santo Annon é preciso esclarecer que, em caso de regência, a posse do rei pelo chanceler já era um bom título para que ele se tornasse regente. Portanto, quando o rei era menor, o regente do reino era a mãe, mas também podia ser o chanceler, se este estivesse na posse do rei-menino. E o golpe dele foi roubar o rei-menino dentro dessa “ratoeira” de madeiras preciosas, seda e pedrarias. Uma coisa que nos deixa um pouco interditados quanto à liceidade, se não fosse o fato de que é Santo Annon quem fez, e, portanto, isso deve ter suas razões históricas que provavelmente não aparecem na ficha.

Sínodo em Colônia

Em Colônia, os grandes da Alemanha se reuniram e, depois de se informarem dos acontecimentos, decidiram que a regência caberia ao arcebispo, em cuja diocese estivesse o rei. Como Henrique IV estava em Colônia, o regente seria Santo Annon. Que era Arcebispo de Colônia…

A 27 de outubro de 1062, reunia-se um sínodo presidido por Santo Annon, que aceitou o decreto de Nicolau II e reconheceu a eleição de Alexandre II; o Duque Godofredo de Lorena foi designado para levar o Papa a Roma, e dar-lhe posse da cidade. A Reforma Gregoriana estava salva.

Esse é um dos inúmeros atos que mostram não só o papel decisivo de Santo Annon numa crise gravíssima, mas também sua astúcia diplomática que repetiu em muitas outras ocasiões.

É lamentável ver como a notícia dessas grandes figuras se apaga. Como ela faria bem num livro de piedade! Como seria interessante ensinar alguém a dizer: “Meu Deus, dai-me a energia e a astúcia de Santo Annon! Santo Annon, rogai a Nossa Senhora por mim, para que eu me pareça convosco!” E rezar essa jaculatória diante de uma imagem de Santo Annon “bon parleur”, de espada na mão, olho de raposa e alma de bem-aventurado, organizando as coisas. Como isso faria bem!

Diferença entre o pecador medieval e o pecador filho da Revolução

Alguns anos depois, a Imperatriz Inês, que se tinha recolhido a um mosteiro, arrependeu-se do que fizera. Um dia a cidade de Roma surpreendeu-se, assistindo a um espetáculo só possível na Idade Média: a Imperatriz apresentou-se às portas da cidade, vestida como penitente, descalça e com uma corda ao pescoço, rogando permissão para entrar e pedir perdão ao Santo Padre por tudo quanto tinha feito. Recebida por São Pedro Damião, este a absolveu de todos os pecados e daí em diante, até a morte do Cardeal, foi seu confessor.

Ela, que tinha sido a grande inimiga de São Pedro Damião, reconheceu ter andado mal criando entraves ao movimento salvador da Reforma Gregoriana. Mas assim era a penitência na Idade Média, época que se poderia caracterizar pela radicalidade:  O indivíduo cometia, às vezes, pecados de arrepiar; mas, quando se arrependia, praticava também penitências de arrepiar.

Esta Imperatriz deixa todas as pompas terrenas, recolhe-se a um convento para cuidar de sua vida espiritual e, meditando, reconhece ter procedido mal. Em rigor, ela não seria obrigada a esse ato público de penitência. Que ela devesse procurar São Gregório VII ou São Pedro Damião para pedir perdão, era inteiramente cabível. Mas podia fazer isso reservadamente. Não, ela quis praticar um ato público de reparação, porque público tinha sido o seu pecado. Apresenta-se, então, às portas de Roma, vestida de saco, com uma corda ao pescoço, e se dirige a uma igreja para pedir perdão.

Depois de ter sido perdoada, torna-se amiga e penitente daquele a quem ela ofendera, confiando sua alma à direção dele. Que beleza há nessa reconciliação!

São Pedro Damião — vendo aquela Imperatriz vestida pobremente, ajoelhada perto dele, e recordando-se do tempo em que ela lhe dava dor de cabeça, introduzida ali como um cordeiro, e encantando, por esta sua atitude humilde, a alma deste santo Cardeal — louvava a grandeza da graça que opera tais transformações nas almas humanas. Isto é Idade Média!

Talvez nunca se tenha falado tanto a respeito do perdão quanto em nossos dias. Fala-se, por vezes, até o abuso. A propósito de qualquer coisa se repete: “Ah, Deus perdoa!”  Mas esse perdão que todo mundo está certo de receber, poucos pedem; e, quando pedem, fazem-no mais ou menos às ocultas. O senso da gravidade do pecado desapareceu. As pessoas perderam este senso, não são lógicas, falta-lhes coerência, não têm Fé viva. Elas só se lembram do pecado para dizer que vai ser perdoado; e só se recordam do perdão para poderem pecar mais tranquilamente. Essa é a mentalidade do homem contemporâneo.

Comparem o pecador medieval com o pecador filho da Revolução, e verão a enorme diferença: um é suscetível de grandes arrependimentos à maneira de Davi; grandes regenerações e, eventualmente, até grande santificação. O outro, se é que tem um arrependimento sério, pede um perdãozinho superficial.

Qual a causa desta diferença de atitude? Em última análise, este é o efeito da Revolução. É ela que exacerba no homem o orgulho, a vontade de não reconhecer a gravidade dos pecados e de não fazer penitência, criando-se o estado de dureza que vemos tão generalizado nos dias de hoje.

Quantos pecados cometidos em nossos dias mereceriam uma penitência pública! Nesses casos, um padre, antes de conceder a absolvição, agiria muito bem se exigisse uma reparação pública.

Entretanto, a debilidade, o liberalismo, tantas vezes até no próprio confessor, criam esse clima crepuscular no qual estamos…

Olhemos para figuras como a de Santo Annon e compreenderemos melhor a verdadeira fisionomia da Igreja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de Conferência de 29/3/1974)
Revista Dr Plinio 213 – Dezembro de 2015