A arte de cumprimentar

Devido a sua inocência e ao ambiente criado por Dona Lucilia, Dr. Plinio não cedeu à ação revolucionária exercida por muitos dos seus companheiros de colégio. Para opor-se a essa má influência, que se manifestava, entre outras coisas, pelo modo de saudação, ele elaborou uma verdadeira arte contrarrevolucionária de cumprimentar, própria às circunstâncias.

 

Poder-se-ia dizer que, dando rapidamente como introdução o histórico de como nasceu a observação da vida e da luta revolucionária e contrarrevolucionária, depois se compreende melhor como a galharia enorme da ação nasceu em doutrina, já articulada, e como esta dirige a ação. É algo que parece quase impossível de conceber; porém — como tantas coisas quase impossíveis —, tendo o segredo e efetuando as devidas voltas, a questão acaba sendo muito simples.

A inocência, o bom espírito e o ambiente criado por Dona Lucilia

Nessas reminiscências, sempre me reporto ao começo da minha ação contrarrevolucionária, portanto, no Colégio São Luís; e também em dois estabelecimentos secundários, que frequentei como intervalo do São Luís: o curso do Prof. Aquiles Raspantini e outro estabelecimento de ensino chamado, se não me engano, Colégio Paulistano. Além disso, o contato com o meu mundo de criança, e depois a sociedade nos cinco ou seis anos em que a frequentei, metido nela até o alto da cabeça. E um pouco a Faculdade de Direito, que representou um papel muito menor para isso.

Tudo isso somado constituiu o seguinte:

Eu já possuía posição tomada a respeito de uma porção de coisas, em virtude da inocência, do bom espírito, do ambiente criado por mamãe. E um pouco da atmosfera de minha casa, que eu considerava como sendo muito boa. Nessa época eu não via, no ambiente de uma família tradicional, o que pode haver de não tradicional e já desviando para as coisas modernas; então, eu dava àquilo uma adesão inteira, sem jaça — sobretudo à Igreja Católica, evidentemente —, pois apresentava um modo de ser harmônico e coerente diante de mim.

Sentindo o choque disso, daquilo, daquilo outro, eu percebia o contraste. Mas não o notava apenas entre uma coisa e outra, quer dizer, o mundo revolucionário faz determinada coisa de tal jeito, e eu faço de outro jeito; eu percebia muito claramente o espírito que presidia aquilo, o qual era o oposto do espírito que havia em mim.

Por detrás do modo de se cumprimentar havia todo um mundo

Vou dar um exemplo. Um dos primeiros choques que tive foi o modo de muitos meninos se cumprimentarem fora do meu ambiente, no colégio.

É de bom senso que os meninos, chegando à escola, não fiquem se saudando. São quatrocentos, quinhentos alunos, não podem estar desejando bom dia uns aos outros. Isto é uma coisa que entra pelos olhos.

Mas muitas vezes se encontravam na rua, por exemplo, no que hoje é o centro velho e naquele tempo era o centro da São Paulinho. Ia-se lá para tomar sorvete, comer doces em alguma confeitaria, comprar um chapéu, enfim, para mil outras coisas, e se deparava com colegas. E a regra era, encontrando qualquer pessoa conhecida, inclusive meninos, cumprimentá-la tirando o chapéu, amavelmente. Todos os meninos usavam chapéu naquele tempo.

Ora, eu encontrava, muitas vezes, os meus colegas e, ao invés de receber um cumprimento afável, cerimonioso, a que estava habituado — não imaginava que houvesse outro cumprimento —, davam-me uma saudação despachada. E não era só comigo, mas todos eles, entre si, quase não se cumprimentavam.

Eu percebia logo que isso era uma abreviação das fórmulas de cumprimento antigas, europeias, em benefício das fórmulas hollywoodianas, pois a saudação que eu via as pessoas se darem nas fitas de cinema era essa. E notava, por uma conexão, que havia todo um mundo atrás dessa maneira de se cumprimentar. A recusa da amabilidade, do respeito, da cortesia, da confiança recíproca, e o ritmo acelerado, o modo meio bruto de fazer, o desprezo das fórmulas antigas como sendo coisas completamente inúteis, indicavam uma introdução de uma certa brutalidade na vida. Eu via isso com toda a clareza.

Se imitasse os outros meninos, inalaria seu espírito

E, observando que esse menino, aquele, aquele outro, faziam, sentiam exatamente dessa maneira, eu percebia definida uma oposição que apresentava um problema de ação: à vista de eles fazerem assim, nada mais fácil do que eu me pôr em dia, cumprimentando-os como eles se saudavam; era até mais simples do que o cumprimento afável.

Mas surgia a questão: Se eu imitar o jeito deles, inalo o seu espírito, é inevitável. Se os cumprimentar a meu modo, coloco-me em situação inferior porque estou gastando gentilezas e afabilidades com indivíduos que me respondem com um aceno das sobrancelhas, e fico fazendo papel de tonto, e isto também não posso admitir. Um homem que não é capaz de manter a sua própria nota não é homem.

Então, como agir? Tenho que arranjar um meio-termo, que faça com que eu mantenha todo o meu espírito, e o manifeste do modo mais discreto possível para evitar um entrechoque, mas é necessário que seja visível para evitar uma capitulação. De que forma, então, vou cumprimentar? Quer dizer, até que ponto este indivíduo com quem estou tratando — e outros que têm a mesma mentalidade — tolera que eu leve adiante alguma coisa parecida com o cumprimento tradicional? Até que ponto ele explode? Isso de um lado.

De outro lado, como posso tapear a situação, pondo num modo de cumprimentar “aggiornato”(1) tudo quanto eu quero?

Seriedade e afabilidade no trato com os colegas

Fica aqui enunciado um problema que se repete em série, em centenas de outros casos. É toda uma clave do estilo de vida que se põe.

Então o que devo fazer? Tirar do cumprimento a solenidade de um homem? Porque eu cumprimentava com a solenidade de um homem, e não de um menino, pelo modo com o qual fui educado. Eu percebia que não podia exigir dos outros essa solenidade assim, porém deveria pôr, no meu modo de cumprimentar um colega, algo de cerimonioso. Mas qual é o modo de um menino ser cerimonioso sem imitar os mais velhos, sem parecer, portanto, um doutorzinho?

Refleti: Isto se faz assim, assim, assim. Bem, então vou agir desse modo. Posso entrar nos pormenores, explicando como era a forma de meu cumprimento; naturalmente isso alonga muito a série de reuniões que me pediram fazer.

O primeiro ponto era a seriedade de uma pessoa capaz de qualquer resposta, e de correr qualquer risco: Não mexam comigo porque dá encrenca! E encrenca de argumentação, mas se for preciso vou mais longe e, embora eu não seja muito forte, tomo de uma vez uma atitude que manifeste muita segurança, coragem e força! E até lá minha força chegava.

Acima disso, uma afabilidade um tanto maior da que todos eles tinham uns com os outros, mas por detrás deveriam entender que estava a força.

A linguagem como instrumento contrarrevolucionário

Depois, uma linguagem que foi, durante toda a minha vida, o instrumento que procurei usar, aproveitando talvez facilidades nordestinas. Sem ser pedante nem rebuscada, precisaria ser uma linguagem com muito mais vocábulos do que a deles, e, portanto, falando coisas que eles não sabiam dizer, e pondo na conversa uma espécie de natural superioridade bem como consistência nos temas que eu invocava, e cabendo numa atmosfera de brincadeira composta, não de brincadeira decomposta. Essas coisas criavam em torno de mim uma esfera de superioridade, ajustada a menino. 

Mas tudo isso, que é uma solução para um caso concreto, se desdobra, tem subjacentes, regras a respeito de como tratar os revolucionários.

Eles se vingavam a seu modo, quer dizer, não sabendo como sair disso, boicotavam. Então, que atitude tomar diante do boicote?

Ao longo da minha vida, houve muitas outras situações as quais precisei estudar milímetro a milímetro e constituíram um acervo de experiências “regulogênicas”, que geravam regras. Entretanto não era a concepção do princípio no ar para depois aplicá-lo, mas a experiência transformada em regra. Tratava-se de uma coisa completamente diferente e, por essa razão, muito útil.

Acrescentem-se inúmeras situações históricas estudadas; tudo isso forma uma caudal de regras que, se eu quisesse escrever, poderia levar dez anos de minha vida… v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/08/1987)

 

1) Do italiano: atualizado. Aqui tem a conotação de estar de acordo com a moda.

 

Finalidade e unidade do ser humano – I

Com grande riqueza de metáforas e exemplos, Dr. Plinio explica a íntima relação existente entre o transcendental “unum” e a finalidade da pessoa humana. Na presente conferência — feita de improviso e para ouvintes, em sua maioria jovens —, transparece uma das características do pensamento filosófico de Dr. Plinio: a reversibilidade entre as considerações filosóficas e as teológicas.

 

Há pouco, eu estava vendo umas fotografias do Himalaia. Quem o contempla deve ter uma sensação de quantidade total impressionante, e que o monte, em si mesmo considerado, deixando ver o ponto onde ele, como que, emerge do chão e aquele em que o seu píncaro se perde nas nuvens — ou parece fazer fugir o céu astronômico para mais alto, a fim de não encostar nele —, dá a impressão de realidade tangível, de um ser que serve de ponto de partida para considerações que, de “proche en proche”(1), vão até Aquele que é o Ser por excelência: Deus, nosso Senhor.

Partindo de realidades elementares, chegar às mais elevadas

Nessas condições, é evidente estar na ordem da natureza que aquilo que o monte tem de tão esplêndido, ou seja, sua realidade palpável, imponente, magnífica, ele perderia de um momento para outro, não se fosse privado de seu píncaro — ficaria, então, mais baixo —, mas se algum monstruoso serrote o cortasse e o monte deixasse de ter contato com o chão. A partir do momento em que perdesse o contato com o solo, ele daria a impressão de irrealidade, de uma coisa que não pode existir. Como podemos compreender algo de fixo suspenso no ar e sem contato com o chão? É incompreensível! Nada vive suspenso no ar; tudo precisa ter seu contato com o solo. Esse monte se evanesceria. Se olhássemos o seu píncaro e depois a sua base, e víssemos que ela não tem continuidade com o solo, diríamos: todo o resto que está acima parece realidade, mas é ilusão.

Este princípio de que as realidades básicas, elementares, as que estão ao nosso alcance, servem para nos levar às mais altas realidades — como, por exemplo, o primeiro degrau do estrado existente neste auditório conduz, através dos outros degraus, ao topo do estrado —, aplica-se à ordem hierárquica que Deus pôs no universo. Nesta, ao considerarmos o primeiro degrau que tenhamos diante de nós, podemos contemplar todas as grandezas que virão sucessivamente. Por conseguinte, devemos saber contemplar o primeiro degrau de maneira a ver essas grandezas, sem confundir o primeiro degrau com as grandezas a que ele conduz.

Todo homem é criado com determinada missão

Quais são as mais altas realidades para as quais o homem está voltado? Ele nasce, cresce, atinge a maturidade, depois vai fenecendo e morre. Assim também o dia é aurora, em seguida é manhã, depois é o meio-dia em que ele aparentemente se fixa e, pelas três horas da tarde, quando se diz “há tanto tempo que o Sol está brilhando com todo o seu vigor e provavelmente não deixará mais de brilhar”, presta-se mais atenção e se afirma: “Curioso! Parece faltar um pouco de claridade! Será mesmo? Há três horas que ele brilhava sem diminuir de luminosidade e agora ela está decrescendo. Oh, deve ser um engano da vista! Vou prestar atenção em alguma outra coisa e daqui a pouco olharei novamente para o Sol”. Pelas quatro horas, percebe-se o incontestável; algo de belo, de nobre, está se dando na natureza, por onde as sombras começam a aparecer. Aquelas mesmas sombras dentro das quais, depois, gloriosamente afundará o Sol, na aparência para dormir.

Depois o movimento do astro rei se repete, dias e noites se sucedem, e os homens também se repetem: as gerações se sucedem sobre a Terra e a quantidade inumerável dos homens se multiplica, a ponto de estar tendendo, debaixo de certo ponto de vista, a encher o globo. Assim é a sucessão dos acontecimentos, numa aparente monotonia.

Há um provérbio francês que diz: “On entre, on crie: c´est la vie; on crie, on sort: c´est la mort! — Entra-se e grita-se, é a vida; grita-se e sai-se, é a morte!” Entre esses dois gritos está a vida humana.

Como isto é pouco e parece não levar a nada! Um homem repete os passos de outro e a sucessão dos homens seria como a sucessão das formigas. O que é a vida? A que grandeza tudo isso conduz?

Esse raciocínio é errado, pois não toma em conta a verdadeira realidade da vida humana e as grandezas para as quais o homem está voltado. Qual é a realidade da vida humana? É esta: nós viemos a esta Terra com uma determinada missão, cuja atração constitui o dinamismo de nosso próprio ser. Realizada essa missão na Terra, sobre a qual falaremos daqui a pouco, dir-se-ia então que perdemos a nossa razão de ser.

Na aparência é isso, pois o homem morre. Porém, na realidade, ele inicia, na outra vida, outra missão que é a projeção dentro do infinito da vida que ele teve e da missão que ele exerceu na Terra.

Cada ação humana tem uma razão de ser mais alta

De maneira que cada ação humana, considerada no que ela tem de mais imediato, acaba tendo sempre uma razão de ser mais elevada.

Por exemplo, o modo pelo qual estou acenando com a mão enquanto vos falo. Esse gesto tem uma finalidade imediata. Eu sinto, como todo homem, que a fisionomia e a voz não têm expressão suficiente para dizer tudo quanto está na alma. Que o menear da cabeça pode ajudar a essa expressão, mas não basta. E, por causa disso, devo falar também com os braços como involuntariamente falo com o tronco. O homem fala com o corpo inteiro.

De imediato, eu movo a mão sem uma razão aparente que justifique o meu movimento. Mas, se mantivesse as minhas mãos sempre imóveis, elas sofreriam na sua circulação. E, conforme a sabedoria divina, a necessidade moral que tenho de mover as mãos se alia à necessidade física que possui a minha mão de ser movida; é uma necessidade que está nela, enquanto membro do meu corpo. Mas, sendo atendida nessa necessidade de se mover para não se atrofiar, ao mesmo tempo ela serve a um destino mais alto que ela, enquanto mão, ignora. Entretanto, eu sei qual é o pensamento que quero sublinhar e qual a razão de fazer este ou aquele gesto com minha mão.

Eu quisera, por esse exemplo tão corrente, ao alcance de cada um dos presentes, que tivéssemos em consideração o entrelaçamento e a subordinação magnífica das várias finalidades de tudo quanto o homem faz, rumo a uma finalidade central da qual falarei depois.

Mas, para entenderem bem e terem em consideração a complexidade desse entrelaçamento de fins e sua beleza ordenativa, todos nós, quando falamos em público ou em privado, de vez em quando mexemos as mãos. Os que estão neste auditório, ao falarem comigo, ao ouvirem a minha exposição no momento, involuntariamente mexem as mãos, a cabeça ou qualquer parte do corpo, mas exprimem algo ao longo desta conferência que vou lhes fazendo. E de tal maneira exprimem não só no rosto, o que é instintivo e natural, mas no corpo inteiro, que se imaginasse aqui, nesse momento, que todos estivessem atrás de um parapeito e que só lhes pudesse ver as cabeças, eu teria a sensação de que não acompanharia bem como estariam acolhendo a reunião. Porque a expressão do rosto é completada pela atitude do corpo. Todos não percebem, como eu não percebo também, mas nossos corpos estão falando.

Quem diria que o homem tem busto, tem peito, também para falar? Entretanto, nós podemos imaginar um homem do qual se faça um busto, porque se conjectura o resto do corpo a partir de um busto. Mas se fôssemos imaginar apenas uma cabeça sem o busto, ficaria horrorosa! E perderia sua expressão, seria um monstro. O peito é a moldura do homem e ajuda a interpretar aquilo que ele está pensando. Mas o que o peito nos ajuda a interpretar? O que nós quereríamos dizer quando movemos a mão? Nós mesmos não sabemos.

Precisaríamos prestar atenção, e apenas os muito dotados em explicitar, servidos para isto de uma faculdade de atenção muito pormenorizada e de um vocabulário vasto, poderiam acabar explicando o que alguns dos seus movimentos quiseram dizer e, entretanto, dizem. E até no modo de andar longamente — dez quilômetros, por exemplo —, cada passo que o homem dá tem sua expressão. De maneira que, terminados os dez quilômetros, está concluído um discurso.

Prefácio de um livro intitulado ”Eternidade”

Vemos assim como tudo se entrelaça no homem e como, além das finalidades imediatas de todas as coisas que ele faz, por exemplo, andar, respirar, há outras finalidades. Tal é a linda complexidade da vida humana e do ser humano! Como é nobre pensar! Tudo quanto o homem possui no corpo existe para expressão de algo que ele tem na ideia, no pensamento, e todo o seu corpo não serve senão para expressão de sua alma espiritual, impalpável, que jamais morrerá e terá uma finalidade, mesmo quando ela não estiver unida ao corpo. E quanto é pouco o corpo, quando compreendemos que um dia a alma se desprenderá dele, deixando-o para se pôr na presença de Deus.

O corpo se desfaz, mas virá o momento em que esse pó esparso pela terra será recolhido pelos Anjos com um empenho enormemente maior do que o do pescador de pérolas, que as apanha no mais escuro do mar; mais do que qualquer pesquisador de brilhantes no seio da terra e nas galerias mais profundas. Assim, a ação dos Anjos se estenderá sobre toda a Terra e recolherá o pó de cada um, para que renasça sob a forma da ressurreição dos mortos e se apresente de novo gloriosamente. Quanta queda! Quanto desfazimento! Quanta nulidade! Que glória magnífica, e que eternidade!

Portanto, o homem viveu nesta Terra, levou sabe-se lá que existência — são tão variadas as vidas!  Em certo momento, morre. Mas não acabou tudo; o melhor ou o pior está para começar. É o prefácio que acabou; o livro vem depois. É o grande livro da eternidade.

Este é o primeiro passo que damos na consideração dos grandes horizontes e das grandes perspectivas. Contudo, não é senão um primeiro passo. Como se pode prosseguir numa meditação desse gênero?

A unidade na variedade

Dada a mutabilidade do homem — quanto o homem varia ao longo de um dia, de uma hora, às vezes de alguns minutos! —, ele não seria a criatura excelente que é, se não tivesse um “unum”. Não há nessa variedade uma unidade?

Quando não se sente esta unidade no homem, ele parece um livro desencadernado cujas folhas o vento da loucura leva para onde entende. O que caracteriza o homem que não é louco? É exatamente a concatenação de tudo quanto ele cogita e faz, dando um certo rumo ao seu pensamento e à sua ação na vida. Ora, essa concatenação e esse rumo só podem provir de uma unidade interna. O homem é fundamentalmente uno, dentro de toda sua variedade. E o fazer sentir esta unidade na variedade é uma das maiores atrações que o convívio humano pode proporcionar. Quando tratamos com uma pessoa monótona, não sentimos a variedade. É cacete! E se conversamos com uma pessoa que é por demais variada, temos um enfaramento daquilo que é agitado, atormentado e desconexo. Vendo um indivíduo que possui variedades as quais se sucedem, imprevistas, mas ordenadas e que vão desembocando umas nas outras, aprazível ou magnificamente, então se tem uma noção exata do que é o panorama da psicologia de um homem.

Se o homem tem uma unidade, devemos nos perguntar que comparação fazer entre a unidade de um homem e a de outro. Se esse “unum” difere de uma pessoa para outra, no que consiste esta diferença? O que faz a unidade e a variedade?

Certa vez, li o seguinte comentário de um escritor católico das primeiras décadas deste século, do Rio de Janeiro. Ele estava assistindo ao desembarque de passageiros de uma daquelas enormes barcas que, antigamente, transportavam pessoas entre o Rio de Janeiro e Niterói. Um mundo de gente passava diante desse autor, o qual teve esta reflexão singular que não saiu mais de meu espírito: Como Deus conseguiu, com tão poucos elementos — olhos, nariz, boca, orelhas — que compõem o rosto, fazer uma quantidade incontável de fisionomias que nunca se repetem?

O ”unum” de cada pessoa face ao Juízo Final

O mesmo se deve dizer do nosso “unum”. Cada um de nós tem um “unum” que abarca a pessoa toda, e determina o nexo com ela e uma finalidade na vida.

A humanidade constitui uma coleção. E o vale de Josafá, onde se acredita que se dará o Juízo Final, vai ser como um estojo onde vão estar guardados todos os espécimes dessa coleção, desde Adão até o último homem. E, vistas em conjunto, compreenderemos melhor a relação entre todas essas peças da coleção, como quando diante de um mosaico, se bem ordenadas as peças, entendemos o desenho que forma. Se as peças estão jogadas ao léu, não se compreende o desenho tão bem. Não será possível conceber, ou compreender toda a grandeza, toda a beleza do gênero humano ao qual nós pertencemos, senão quando estivermos no vale de Josafá, tendo toda a humanidade debaixo de nossos olhos.

Está escrito no Gênesis que Deus criou todos os seres e, contemplando-os, considerou que, se cada um era bom, o conjunto era melhor(2). Deus criou e vai criando os homens até o fim do mundo. Mas o conjunto de todos os homens é mais belo do que cada homem individualmente. Olhando esse conjunto, diremos: “Que coisa magnífica é ser homem!”

No conjunto de todos os homens que habitam, habitaram ou habitarão a Terra, tenho uma tarefa especial, como uma pessoa dentro de um mosaico. E aqui está meu “unum”. É uma nota central constitutiva de todas as aptidões e tendências ordenadas e boas de meu corpo, que, por sua vez, obedece a um impulso ordenado e bom de minha alma, o qual me leva a fazer na Terra determinadas coisas que Deus quer que eu faça. Essas coisas fazem-me compreender que tenho uma missão. O meu “unum” proporciona à minha vida um fim, o qual é maior do que cada uma dessas ações imediatas. Esse fim é um todo só, para o qual eu, como o meu “unum”, devo tender. E o belo da vida de alguém é observar sua existência inteira que vai andando, passo a passo, na mesma linha até realizar o “unum” final. v

 

(Continua no próximo número)

 

(Extraído de conferência de 10/1/1981)

 

1) Do francês: de próximo em próximo.

2) Cf. Gn 1, 31.

São João Bosco – Virtudes irmãs

São João Bosco possuía o dom de suscitar muita confiança e muita paz nas almas. Ele tinha um sorriso, uma bondade impregnada de fortaleza, mas de tal maneira comunicativa, generosa e apaziguante, que basta rezarmos diante de uma boa imagem dele para percebermos algo de indefinivelmente suave que se perpetuou no seu modo de ser, no seu estilo.

É essa suavidade espiritual que devemos pedir a São João Bosco, nesta época de árduos combates.

Todas as virtudes são irmãs. Portanto, a combatividade mais irredutível e implacável é irmã afetuosíssima dessa bondade, delicadeza e suavidade próprias do espírito de São João Bosco.

(Extraído de conferência de 31/1/1969)

Apresentação do Menino Jesus

Em tudo, Nosso Senhor e sua Mãe Santíssima são para nós modelos que devemos imitar. Ela estava acima da lei que obrigava as mulheres a se purificarem depois de ter dado à luz, e Ele, da que preceituava o oferecimento e resgate dos primogênitos. Entretanto, por amor a essas leis, ambos se dirigiram ao Templo para cumpri-las.

Assim se realizavam os desígnios da Providência: a fim de que Nossa Senhora guardasse em seu coração as esplêndidas profecias do velho Simeão a respeito de Jesus, e para que Mãe e Filho se tornassem exemplos de observância aos Mandamentos divinos.

Plinio Corrêa de Oliveira

São Francisco de Sales: exemplo de combate aos vícios

Quando São Francisco de Sales morreu, resolveram fazer a autópsia. Para surpresa geral, encontraram seu fígado endurecido, como se fosse de pedra…

De fato, embora tivesse um gênio péssimo, ele se dominou de tal maneira que ficou famoso por sua doçura: era considerado o santo da doçura.

Assim devemos ser: se possuímos dificuldade de trato, procuremos ter gênio angélico; se somos inclinados à preguiça ou temos medo de lutar, procuremos ser heróis ao serviço de Nossa Senhora. A exemplo dos santos, sejamos exímios no combate aos defeitos que julgamos mais difíceis de vencer.

Para isso, devemos examinar nossos atos implacavelmente, sem nunca pensarmos em atenuantes. Porque nós só os reconheceremos se formos implacáveis, analisando-os com lupa, um por um.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/11/1989)

Revista Dr Plinio 167 – Fevereiro de 2012

São João Bosco Austeridade e ação intelectual na vida de um insigne educador

Com profunda admiração pela obra salesiana, Dr. Plinio evoca o grande segredo da educação que Dom Bosco dispensava a seus “birichini”, os meninos pobres dos bairros de Turim: freqüência dos sacramentos e uma assídua assistência à Missa; e para sua congregação sobreviver às investidas do laicismo, a destemida e ágil astúcia dos santos…

No dia 31 de janeiro celebra-se a memória de São João Bosco, fundador dos Salesianos e extraordinário apóstolo da juventude. A fim de nos unirmos a essa comemoração, será oportuno considerarmos algumas notas a respeito de sua obra evangelizadora e de suas idéias pedagógicas.

Influência da “Mamma” Margarida

É indiscutível que a personalidade da mãe de Dom Bosco influiu em sua formação. Essa mulher, viúva aos 29 anos, marcou profundamente a alma de seus três filhos. Era puco instruída, mas dotada de raro bom senso. A retidão de seu julgamento, uma grande piedade e não menos devotamento, aliados a uma firmeza viril, dela fizeram a educadora exemplar.

O trabalho era obrigação constante em sua casa. Margarida sujeitava seus filhos a todas as atividades domésticas e dos campos. Desde a aurora, no verão, e ainda antes, no inverno, as crianças iniciavam o dia pela oração. “A vida é muito curta, dizia a mãe, para dela perdermos a melhor parte”. A fadiga não era considerada, as refeições permaneceram sempre de uma extrema frugalidade. À noite dormia-se no chão. Quando mais tarde João for para o seminário, levará o cobertor prescrito. Mas nas férias a mãe o fará guardar cuidadosamente, considerando essa doçura inútil e prejudicial.

 

Convém frisar que a família de São João Bosco vivia numa fria região do norte da Itália, e essa mãe exemplar não hesitava em acostumar suas crianças aos rigores do clima adverso. Preparava, assim, seus filhos, para a vida, de acordo com o que afirmava: “Somos soldados de Cristo sempre em armas, sempre em presença do inimigo, e é preciso vencer”.

Temos aqui a descrição da mulher forte do Evangelho — que levanta cedo para iniciar seus afazeres domésticos, cumprindo-os com exatidão — cujo preço é tão valioso que se faz necessário ir até os confins do universo para encontrar algo comparável a ela.

Mentalidade oposta à de certo ideal contemporâneo

Vemos, por outro lado, uma mentalidade profundamente diferente daquela que propugnam certos espíritos contemporâneos, para os quais a pessoa que padece fome e frio não é capaz de cultivar a vida espiritual. Segundo tal concepção, importa primeiro dar comida, cama e boa coberta, para só depois se falar em espiritualidade. Portanto, o começo da atividade apostólica é necessariamente uma ação de caráter material; portanto, para converter o mundo moderno importa, antes de tudo, eliminar o subdesenvolvimento. E por causa disso, em última análise, a luta contra o subdesenvolvimento deve ser uma finalidade específica da Igreja…

Ora, o exemplo da Mamma Margherita nos mostra o contrário. Ela e sua família residem numa casa tão pobre que as pessoas não têm cama: dormem no chão, sem cobertores suficientes, nem mesmo para os piores dias de inverno. Como vimos, Dom Bosco levou uma coberta para o seminário, pois o regulamento o exigia. Mas, quando retornava para passar as férias em casa, sua mãe o mandava guardar, considerando uma “doçura” supérflua.

Refeições frugais, trabalhos constantes. Propriamente uma vida pobre, porém santificada pelo espírito de renúncia e de sacrifício, pelas práticas de piedade e pela oração, considerada a “melhor parte” daquela sua penosa existência. Foi nesse árduo quotidiano, ungido pela virtude, que se formou um homem de físico forte e resistente para toda espécie de labuta, como foi Dom Bosco.

Esse aspecto da formação do Santo nos faz compreender como é quase um embuste pensar que as condições cômodas da vida são indispensáveis para o êxito do apostolado. Não são. E dir-se-ia mais: uma certa austeridade, sim, é necessária para educar as almas na virtude e na piedade. E essa formação deveria ser dada a toda juventude, de todas as classes e condições sociais.

Aliás, conservou-se por longo tempo na Europa, especialmente nas famílias de alta graduação, essa forma de educar os filhos numa vida rude. Lembro-me, por exemplo, de ter lido a biografia de um nobre francês que morava em Londres, num castelo junto ao rio Tamisa. Ora, o despertar matutino desse príncipe e de seus irmãos não era outro senão este: acordavam e se jogavam pela janela do quarto nas águas frias do rio que corria embaixo…

Somos levados a crer que, se a civilização hodierna não tivesse abandonado essa formativa austeridade, muita decadência teria sido evitada, e talvez o mundo conhecesse muitos outros santos como Dom Bosco.

Ação intelectual, mais valiosa que a assistencial

Prossegue a nota biográfica:
Apesar de muito trabalho, o estabelecimento das duas congregações religiosas, a ereção de igrejas, a fundação de numerosos patronatos e a preparação de missões longínquas, Dom Bosco consagrava boa parte de seus dias e de suas noites a escrever. Com a pena, tanto quanto com a palavra, ele sabia servir a Igreja, combater o erro e reconfortar as almas. Homem de seu tempo, observou a importância desse novo gigante moderno, a imprensa. Sua pena agiu durante quarenta e cinco anos, produzindo obras de acordo com as necessidades de sua época.

O Protestantismo lançava rudes assaltos à Igreja no norte da Itália. À propaganda protestante pela brochura, D. Bosco opôs as “Leituras Católicas”. Em 1883 respondeu ao “Amigo do Lar”, que os protestantes distribuíam a granel, com o primeiro almanaque da Europa.

Aparece-nos aqui o senso da atualidade no espírito de Dom Bosco. Não era um santo que vivia nas nuvens, pois nestas não vivem os santos. Na realidade, Dom Bosco era um homem ciente dos problemas de seu tempo, conhecia os adversários da Igreja na sua época e os combatia, tanto através dos seus escritos quanto por suas realizações apostólicas. E nisso ele nos deu outro exemplo.

Com efeito, fala-se muito da necessidade de se promover obras católicas e pouco a respeito de se escrever livros católicos. Por quê? Porque se dá mais importância ao econômico do que ao espiritual. Ora, o livro se dirige ao espiritual, enquanto a obra se destina ao econômico.

Não houve homem mais compenetrado da necessidade de obras católicas do que Dom Bosco. Entretanto, quando se examina melhor sua atuação, percebe-se ter sido mais escritor do que um empreendedor de obras. É a prova de que no pensamento desse imenso paladino da Igreja, a formação moral valia mais do que a assistencial.

Admirável continuidade de uma ordem religiosa

São João Bosco enfrentou incríveis dificuldades para levar a cabo seus intentos. O ano de 1876 foi um dos mais dolorosos para ele. Os ministros piemonteses, já em guerra contra o Papa, procuravam pegar em falta o santo fundador, a quem acusavam de manter uma correspondência secreta com Pio IX e os bispos. Multiplicavam as buscas em sua casa e queriam a qualquer preço encontrar sinais de uma conspiração.

Um dia, Dom Bosco procurou o Conde de Cavour, então primeiro-ministro, que várias vezes lhe testemunhara simpatia, e declarou-lhe sua intenção de descarregar em suas mãos o cuidado de todos os órfãos de sua instituição. Essa solução inesperada fez o ministro, se não terminar as perseguições, pelo menos fazê-las mais encobertas.

Ou seja, passaram a incomodar tanto a Dom Bosco que este procurou o ministro e lhe disse: “Vou soltar os meninos todos na rua. É o que você quer?”O ministro recuou.

Esse fato me traz à lembrança outro episódio, bem mais recente, ocorrido numa instituição salesiana em São Paulo, e que nos mostra a admirável continuidade existente nas ordens religiosas. Deu-se num período de nossa história em que se estabeleciam leis a granel, muitas das quais nem sequer passavam pela aprovação parlamentar. Por essa época, certo dia se apresentou no Liceu Coração de Jesus — o colégio salesiano que funciona ao lado da igreja de mesmo nome — um desses inspetores pedantes, enviado para examinar possíveis irregularidades. Durante a inspeção, encontrou no canto da grande cozinha uma calça que o cozinheiro havia lavado e ali deixara para secar. Ele chamou o padre responsável pelo estabelecimento e disse:
— Bem, lavar roupa em cozinha configura uma infração ao parágrafo tanto do artigo tanto da lei tal. De acordo com o regulamento, o colégio que o infringe deve ser fechado. Portanto, decretarei o fechamento do Liceu Coração de Jesus.

O padre respondeu:
— Ah, o senhor quer fechar? Pois não. Dê-nos um documento por escrito, e eu imediatamente solto todas as crianças na rua. Depois o senhor explica à cidade de São Paulo que essas crianças estão na imoralidade, morrendo debaixo de ônibus e automóveis, passando fome e vergonha, simplesmente porque havia um par de calças secando no canto de uma cozinha. É isto que o senhor quer?
O inspetor que, não é juízo temerário supor, esperava um generoso “argumento” para não fechar o colégio, ficou desarmado e sem graça. Desconversou, fez algumas observações de estilo e logo se despedia…

O segredo da disciplina de São João Bosco

Continua a biografia:
O fato seguinte é relatado como um dos mais característicos dos resultados dos métodos do grande santo.

Um ministro da rainha da Inglaterra, visitando o Oratório de São Francisco de Sales, em Turim, foi introduzido numa grande sala onde estudavam quinhentos jovens. Ele não pôde deixar de se admirar dessa multidão de escolares observando um rigoroso silêncio, embora ninguém os vigiasse. Sua admiração foi ainda maior quando soube que durante o ano inteiro não se havia a lamentar uma única palavra de dissipação, nem mesmo uma única ocasião de punir ou de ameaçar punição.

— Como é possível obter um tal silêncio, uma disciplina assim perfeita? — indagou ele. E voltando-se para seu secretário, ordenou que anotasse a resposta dada.
— Senhor — respondeu o superior do estabelecimento —, os meios que usamos não podem ser empregados em vosso país.
— Por quê? — pergunta o ministro.
— Porque são segredos revelados somente aos católicos.

Esplêndida resposta.
— E quais são esses segredos?
— A confissão e a comunhão freqüentes. Missa todos os dias e bem assistida.
— Tendes razão — disse o ministro. Faltam-nos tais meios de educação. Mas não há outros?
— Se não nos servimos desses elementos que a religião nos fornece, é preciso recorrer à ameaça e ao castigo.

Calou-se o ministro inglês, embora garantindo que iria repetir o que aprendera.

Devemos imaginar a cena, passada numa época em que a Inglaterra se encontrava no auge de sua irradiação política e cultural, e quando os ministros ingleses eram sempre “gentlemen” pertencentes à aristocracia britânica, trajados com o requinte da moda vigente, pois a opinião pública exigia dos ministros da coroa que fossem verdadeiros modelos de imponência, distinção e elegância.

Acontece, porém, que muitos ingleses ainda nutriam certo preconceito contra o mundo latino, julgando-o inferior e distante da perfeita limpeza, puritana e protestante, do reino britânico.

E esse ministro inglês visita o oratório de São João Bosco na Itália daquele tempo, encontrando ali meninos que seriam ótimas pessoas, mas talvez menos asseados do que o lorde gostaria.

Imaginemos esse aristocrata que se apresenta com ar enfatuado, amabilidade superficial, ruminando prevenções contra o clero católico e é recebido por um padre de Dom Bosco. Sacerdote naturalmente digno, composto, nem um pouco intimidado, porque um homem de verdadeira vida interior não se intimida com valores materiais: libra esterlina, limpeza, bonita gravata, tais coisas não impressionam o varão de autêntica virtude. Além disso, sutil como costuma ser um italiano.

Aparece o ministro com pouco caso e, de repente, o religioso salesiano lhe arma uma “cilada”, na qual o dignitário britânico cai por inteiro, com todos os seus requintes e suas elegâncias. Calou-se e garantiu que levaria o ensinamento para seu país…

Era mais um triunfo do grande São João Bosco. Que este interceda por nós, junto ao trono de Maria Auxiliadora, da qual foi um modelar devoto.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 30/1/1967)

São João Bosco

Grande arauto de Nossa Senhora como Auxiliadora dos Cristãos, São João Bosco realizou magnificamente a obra pedagógica e santificadora à qual fora chamado pela Providência. Instrumento de educação e virtuosa influência sobre os jovens que formava, por assim dizer, manuseava a graça divina para favorecer a atuação dela na alma de seus pupilos.

Risonho, afável, com uma vocação toda especial, brilhante e radiante na doçura salesiana, sabia ao mesmo tempo combater nos seus fundamentos os vícios e defeitos morais, alegrando-se ao ver o progresso espiritual dos meninos.

Talvez em diversos casos, foi ele um santo que educava outros santos…

Apresentação do Menino Jesus no Templo

As maiores alegrias que houve na História não foram as dos homens que organizaram festas fabulosas ou que tiveram notáveis triunfos, mas, sim, as dos grandes místicos, aqueles que, levando intensa e perfeita vida espiritual, agradaram tanto a Deus que se viram favorecidos por um contato direto com Ele, por meio de visões e revelações extraordinárias.

Que pensar, então, das santas alegrias que inundaram as almas de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, por ocasião dos fatos gozosos meditados no Rosário? Por exemplo, na Apresentação de Jesus no Templo, imensa terá sido a felicidade com que o Menino-Deus se comunicou aos homens, de tal maneira que o Profeta Simeão cantou a glória d’Ele, profetizando tudo quanto Ele seria. E Nosso Senhor, frágil criança, na aparência sem entender, compreendia e inspirava aquele cântico…

Candura, vigilância e holocausto

Tendo por discípulos dois meninos privilegiados diariamente por uma singular visita, São Bernardo de Morlat foi agraciado com um especial convite: participar de um banquete no Céu…

 

Comentarei um fato muito bonito, narrado na “Vie des Saints, da Bonne Presse de Paris”(1), mas não sei qual é o grau de sua veracidade histórica.

Muitas vezes, intencionalmente e a bom título, essas coletâneas de vidas de santos contêm, a par de fatos indiscutíveis, alguns que são discutíveis, quer dizer, não se sabe bem se ocorreram ou não. Mas o ponto que nos interessa é o seguinte: se o fato narrado é conforme à Doutrina Católica. Então, ainda que o fato não seja exato, Deus poderia ter agido assim.

A narração que passarei a comentar dá uma noção a respeito da santidade infinita de Deus e é ilustrativa para o fiel. É a esse título que me parece muito bonito o fato.

Trajes infantis antes da Revolução Francesa

São Bernardo de Morlat, da Ordem dos Dominicanos, era sacristão no convento de Santarém, em Portugal. Tomara ele, como discípulos, a dois meninos, filhos de um cavaleiro de Santarém, os quais receberam logo o hábito e a tonsura monásticas e daí por diante passavam os dias no convento, ajudando as Missas e estudando com o Padre Bernardo.

A pedagogia antiga preceituava que as crianças, desde pequenas, se vestissem como adultos. E daí o fato de vermos, nas pinturas de até pouco antes da Revolução Francesa, as meninas vestidas de saia balão, os meninos com trajes de homem que sai à rua para tratar de negócios, ou que vai à Corte.

Os trajes propriamente infantis foram introduzidos pelo Marquês de Girardin(2), no Jardim de Luxemburgo, em Paris, pouco antes da Revolução Francesa. Eram trajes inspirados na moda inglesa e que visavam apresentar a criança não mais com a compostura e a gravidade de um adulto, mas como um ente que pula e não se quebra. Então, uma roupa qualquer do tipo que nós conhecemos. Isso foi também um dos incêndios prévios à Revolução Francesa. Uma vez que o Marquês de Girardin apresentou seus filhos assim, a moda pegou e, em poucos meses, na França inteira os hábitos antigos estavam abolidos, e as crianças “sans-culotte” já começavam a brincar pelos jardins da França, antes do “sanculotismo” estar implantado.

Mas a Igreja, sempre mais conservadora do que a sociedade temporal, ainda conservou esse hábito. E não posso deixar de me lembrar de que, quando era moço — tinha entre vinte e cinco e trinta anos —, fui visitar o então austero, magnífico, Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, para falar não me recordo com que padre; eu estava andando pelo convento e de repente vi dois menininhos, talvez com dez, onze anos, vestidinhos completamente como monges e caminhando graves no meio do claustro.

Eles passaram, conversando tão direitos e sérios, que eu tive a vaga impressão de que se tratasse de uma aparição. Quando o padre chegou, perguntei-lhe: “Mas padre, que menininhos são esses?” Ele disse: “É um velho costume beneditino. Nós recebemos vocações da mais tenríssima idade e, para os meninos se adaptarem à vida religiosa, já são vestidos como monges em pequeno.”

Nas minhas elucubrações a respeito de “geração nova”(3), ocorre-me a ideia de que o “geração-novismo” começou quando o Marquês de Girardin adotou os trajes que não davam à criança a sede da maturidade, mas o gosto de serem como eram, sem o desejo de crescer, de maturar, retardando, portanto, a normal expansão da criança.

Traje, gesto, estilo de conversar e de pensar

Alguém poderia perguntar: “Mas traje, Dr. Plinio, que diferença faz?”

Eu digo: “Meu caro, traje supõe gesto. Gesto supõe estilo de conversar. Estilo de conversar supõe estilo de pensar.”

Então podemos imaginar aqueles dois menininhos da Idade Média, vestidos como fradinhos e recebidos na Ordem Dominicana. O hábito da Ordem Dominicana, aliás, é muito bonito.

Um dos predicados da Igreja é que Ela sabe, como nenhuma instituição, com as coisas muito simples produzir efeitos estéticos extraordinários. Por exemplo, os hábitos das Ordens religiosas geralmente são bonitos. O hábito dominicano consiste numa túnica branca, com uma grande capa preta e um capuz branco; grandes mangas, que dão ao orador, quando ergue ao alto seus braços para exprimir um mais alto pensamento, atitude de grande categoria, porque as grandes mangas que pendem dão solenidade ao gesto. É a simplicidade extrema da Igreja, o magnífico senso da beleza que Ela possui em tudo quanto faz.

Então os menininhos ajudavam as Missas todos os dias e estudavam com o Padre Bernardo, que ia formando o espírito deles.

O Divino Infante participa do desjejum com dois meninos

Todos os dias os dois meninos saíam bem cedo da casa de seus pais para se dirigirem ao convento, levando consigo a provisão diária.

Não espanta que eles morassem em casa e usassem esse hábito. Porque na Idade Média o hábito religioso era muito mais frequente e normal do que se tornou depois.

Um dia de manhã, com uma familiaridade toda infantil, sentaram-se aos pés de uma imagem de Nossa Senhora, que trazia no colo o Menino Jesus…

Podemos figurar uma imagem bonita, como a de Nossa Senhora de Coromoto, com o Menino Jesus nos braços. Suponhamos toda a cena realizada diante dessa imagem, para compreendermos como fica apropriada.

…diante da qual sempre rezavam o Rosário, para em seguida tomarem o seu desjejum.

Eram, portanto, crianças piedosas. Toda criança amanhece com fome; e criança lusa não desmente a regra. Pois bem, elas rezam o Rosário para depois quebrarem o jejum.

 Enquanto comiam, um deles voltou-se para o Menino Jesus nos braços da Virgem e disse-Lhe: “Ó belo Menino, se Vos agradar, vinde comer conosco.”

O Divino Infante não Se fez de rogado, desprendeu-Se dos braços da Mãe, e de bom grado tomou lugar entre os que O haviam convidado.

Podemos imaginar, na imagem de Nossa Senhora de Coromoto, o Menino que se move e diz com voz de criança: “Pois não!” E, de coroa na cabeça, desce do colo de Nossa Senhora, toma um pouco de comida, a introduz na boca e começa a mastigar.

Os dois repartiram então com Jesus a frugal refeição. Tendo terminado, o Menino Deus agradeceu-lhes com um sorriso, subiu ao altar e voltou aos braços de Maria.

Vemos que tudo isso é de uma candura… O importante é o seguinte: eu não me interesso, como católico, senão muito pouco, em saber se isso foi ou não foi assim. O que me interessa é que podia ter sido, porque Nosso Senhor Jesus Cristo é assim; está n’Ele realizar essas coisas. Se Ele fez ou não fez, não é tão importante.

No dia seguinte, os coroinhas voltaram renovando o pedido.

E todas as vezes o Hóspede Divino dignou-se aceitá-lo, até que qualquer convite ficara supérfluo. Apenas os meninos entravam na capela e abriam o embrulho de alimentos, o Menino Jesus lá estava entre eles.

É tão delicioso, que dispensa comentários.

Isso se tornou tão familiar que não só comiam juntos, mas também conversavam, e Jesus os ajudava nas dificuldades que tinham no estudo.

Que encanto imaginá-los perguntando e Nosso Senhor respondendo, na intimidade de uma pequena capela do interior de Portugal!

O guizo da serpente

Veremos agora aparecer, ao lado de tanta candura, o drama, que tantas vezes surge nas relações entre a criatura e o Criador: a miséria humana vai se mostrar, do modo mais incoerente e mais inesperado, nesses meninos magníficos.

Uma coisa somente surpreendia os dois inocentes: é que o Menino Jesus nunca trazia sua quota de comida, enquanto eles eram obrigados a conseguir mais alimentos, embora seus pais fossem muito pobres.

 “Não haverá muitas coisas boas no Paraíso?”, perguntavam. A surpresa dos dois degenerou em murmúrios.

Coisa incrível, mas é assim a criatura humana: no conto mais encantador, ouvimos de repente o guizo da serpente, como no mais belo do Paraíso veio, também de repente, a tentação.

E resolveram confiar ao Padre Bernardo suas angústias. Este, tendo examinado bem o relato, ficou tocado por tão grande prodígio. Rogou a Deus que o iluminasse e o fizesse conhecer os seus desígnios sobre os meninos. Um dia, dirigindo-se aos pequenos discípulos, ele sugeriu: “Se o Menino Jesus continua não trazendo nenhuma provisão, não vos agradaria que Ele vos convidasse, ao menos uma vez, à casa de seu Pai?”

Não pedir alimento, mas a graça de ver o Céu

A saída do padre foi muito inteligente: não pedir ao Menino Jesus que trouxesse comida, mas que vissem o Céu.

“Oh! sim, gostaríamos muito, responderam. Mas Ele nunca nos falou sobre isso”. Disse o padre: “É preciso que Lhe peçais. Se Ele atender vosso pedido, não tereis perdido nada, pois de um só convite d’Ele recebereis mil vezes mais do que destes”.

Vemos que o padre sentiu necessidade de pôr o argumento em termos um pouquinho comerciais, para conseguir mover aquelas almas, entretanto tão cândidas e puras.

Não nos façamos ilusão! Essa é a criatura humana e é assim que devemos olhar a nós mesmos! Quer dizer, ou há muita vigilância, ou saem coisas dessas.

E continuando a falar-lhes, o Padre Bernardo fez entrever simbolicamente o palácio do Pai Celeste, com suas magnificências e delícias, e concluiu: ‘Quando o Menino da capela vier novamente comer convosco, não vos esqueçais de pedir que vos convide, por sua vez. Mas dizei a Ele que quero também ser convidado. Não vos permito que vades sozinhos à festa. Eu vos acompanharei, ou tereis que recusar o convite, porque desejo muito ter parte nesse festim”.

No dia 21 de maio de 1277, segunda-feira das Rogações…

Há uma procissão que se faz nessa ocasião, para pedir a Deus graças; a Providência se manifesta particularmente exorável nessas ocasiões.

…o Menino Jesus desceu de novo para tomar o desjejum com os dois meninos. Terminada a refeição, antes que o Divino Infante pusesse o pé sobre o pedestal de pedra para subir aos braços de Nossa Senhora, os dois pequenos expressaram timidamente o seu desejo: “Não nos convidais também uma vez?” Jesus fez um sinal de afirmação, enquanto os pequenos acrescentavam: “Nosso mestre gostaria de também participar da festa”.

Jesus então lhes disse: “Dentro de três dias será festa da Ascensão. Haverá grande alegria na casa de meu Pai. Dizei ao Padre Bernardo que Eu o convido convosco à minha mesa, onde estareis com os Anjos e os Santos”.

Contentíssimos, os dois correram para comunicar ao seu mestre a boa notícia. Ao chegarem a suas casas, avisaram aos pais que dentro de três dias iriam participar de um banquete no Céu. O Padre Bernardo comunicou o mesmo ao seu diretor espiritual.

Durante os três dias, mestre e discípulos permaneceram em oração, ajoelhados ao pé do altar do Rosário. O padre explicou aos meninos o sentido do convite de Jesus e eles, abrasados de amor, não queriam outra coisa senão deixar este mundo e entrar sem tardança na verdadeira Pátria.

Notamos que começa a haver um movimento de desinteresse, e os meninos melhoram.

Padre Bernardo e os dois meninos são levados ao Céu

Chegou o dia da Ascensão. Todas as Missas já haviam sido celebradas — isto na aldeia de Santarém. Enquanto os frades estavam no refeitório, Padre Bernardo dirigiu-se ao altar do Rosário, acompanhado por seus dois acólitos, e começou o Santo Sacrifício. Os dois discípulos receberam com grandíssima devoção, pela primeira vez, o Pão Eucarístico. Chegou a hora da ação de graças. Os três ajoelharam nos degraus do altar, aguardando com confiança o momento de partida para a morada celeste.

Mais tarde, quando a comunidade chegou à igreja para a recitação das orações após a refeição, encontraram o padre e os dois acólitos imóveis, as mãos levantadas ao céu e os olhos fixos no Menino Jesus. Aproximaram-se deles e, — oh, morte preciosa e mil vezes digna de inveja! — constataram que haviam trocado a vida terrestre pela bem-aventurança eterna. Os seus corpos foram enterrados ao pé do altar.

Não poderiam ser enterrados em outro lugar.

Em 1577, quando foi aberto o túmulo para a transladação das relíquias, os ossos sagrados exalavam um delicioso perfume. A imagem da Virgem com o Menino Jesus conserva-se até hoje num rico tabernáculo.

Candura, vigilância e holocausto

Vemos aqui a candura em seus dois contrafortes: a vigilância e o holocausto. Sem esses dois complementos, a candura jamais é candura. Para ter verdadeira candura, a pessoa precisa vigiar constantemente sobre si mesma, noite e dia, para evitar ceder aos inúmeros impulsos maus que enxameiam, formigam, no interior de cada alma; primeiro ponto.

Segundo: quando é verdadeiramente cândida, ela é convidada para o holocausto. Quer dizer, há um determinado momento em que a Providência lhe pede que se imole. Esses meninos tiveram seu mau momento, foram perdoados e depois convidados ao holocausto.

Com certeza, antes de morrer, eles souberam que iam deixar esta Terra. Foram consultados sobre se queriam a morte, e aceitaram-na; suas almas foram levadas para o Céu, docemente, suavemente.

E ficou aqui consignada, muito menos a imagem dos meninos e do padre, do que a figura do Menino Jesus, tão bondoso, tão misericordioso, tão capaz de condescender a todos os desejos dos homens e entrar com eles nessa familiaridade. A respeito de Nosso Senhor, diz a Escritura: “Minhas delícias são estar com os filhos dos homens” (Pr. 8, 31). Ao mesmo tempo, entretanto, pedindo um preço. É o preço que Ele mesmo pagou: o holocausto. Em certo momento, Ele pede o sacrifício e é preciso dá-lo. Assim, a vida deles terminou maravilhosamente bem.

Candura, vigilância e holocausto formam uma tríade, que merece ser lembrada por nós na noite de hoje.  v

 

(Extraído de conferência de 12/11/1976)

 

1) Não possuímos a ficha utilizada por Dr. Plinio nessa ocasião.

2) René Louis de Girardin (1735-1808).

3) Sendo já homem maduro, Dr. Plinio foi notando entre os jovens com que fazia apostolado uma mudança de modos de pensar, querer e agir. Enquanto as pessoas de igual ou maior idade que ele demonstravam certas qualidades de espírito, esses mais novos apresentavam debilidades, tais como falta de perfeita lógica, de segurança, de direção, de perseverança, etc. Aos primeiros, Dr. Plinio chamava de “geração velha”; e aos últimos, de “geração nova”

A Civilização Cristã: fruto da graça

Qual o papel da graça divina na educação, na distinção e nas boas maneiras de um povo? Conquistada para nós pelo Sangue de Cristo, a graça penetra nos homens  produzindo inúmeras  maravilhas.  Entre elas está a Civilização Cristã.

 

Folheando uma coleção de fotografias de pessoas de várias nações, entre as quais havia alguns marajás e um sultão do Afeganistão, eu notava a diferença existente entre a atitude, o porte e a posição dos monarcas, ou dos pretendentes a tronos, ocidentais, e os do Oriente.

No Oriente as pedras preciosas são muito maiores, mais bonitas, de melhor quilate; o subsolo é muito mais rico desse gênero de esplendores. Também as pérolas que se colhem em alguns lugares do Oriente são de uma beleza incomparável. De maneira que as figuras de destaque orientais podem constituir para si ornatos muito mais ricos do que os príncipes do Ocidente.

De outro lado, acontece que os orientais dispõem de tecelões que trabalham com tecidos feitos à mão, os quais são de uma qualidade muito superior do que os fabricados por meios industriais, como sucede em geral no Ocidente. Dessa forma, sob o ponto de vista da indumentária, os orientais se apresentam muito melhor do que os do Ocidente. Tanto mais quanto aqueles têm certa fantasia. E também não são inibidos por preconceitos revolucionários, não receando parecer por demais maravilhosos.

Uniformes de militares e diplomatas ocidentais do século XIX

Um homem no Ocidente tem medo de parecer por demais maravilhoso. Examinem, por exemplo, os uniformes oficiais dos diplomatas e dos militares de alto grau, generais, marechais, do século XIX e os do século XX. É uma degringolada medonha. No século XIX uns e outros usavam bicórneos — chapéus de dois bicos, com abas que se reuniam em cima, e tinham “aigrettes” brancas; as roupas eram bordadas com alamares e outras coisas muito bonitas; os veludos eram extraordinários. Esses fardões custavam tão caro, que ao encerrar a sua carreira o diplomata dava de presente o seu fardão a um colega da sua predileção, porque o uniforme representava uma fraçãozinha não negligenciável do patrimônio de um embaixador.

Mas atualmente um homem tem vergonha de se apresentar com esses trajes, porque o espírito de Revolução achatou todas as tendências para o belo.

Pelo contrário, no Oriente isso não foi assim. Marajás, rajás, xás, quedivas, sultões, ulemás, aparecem com essas roupas bonitas. Entretanto, se formos examinar os homens, veremos que eles são muito inferiores, como porte, aos do Ocidente. Porque durante séculos, desde que a Igreja Católica penetrou no Ocidente, neles começou a germinar a Moral católica. E quando nós consideramos uma pessoa que observa em todos os seus pormenores a Moral católica, notamos que essa pessoa, ou seu filho ou seu neto, acaba sendo de uma educação e de um porte perfeitos.

A Moral católica gera educação, distinção e correção perfeitas

Por quê? Tomem uma pessoa que pratica a Moral católica perfeitamente. É instintivo nela, ainda que não tenha recebido uma educação de salão, praticar, por exemplo, atos como este: a pessoa está se servindo à mesa com um convidado por ela; por ser convidado, este merece uma especial honra e atenção; ela então serve o convidado antes de se servir a si própria.

Essas coisas, ensinadas como regras de educação — “Você na sua casa, tendo convidados, seja o último a se servir”; “quando está na presença de mais velhos, faça que estes se sirvam antes”; “em presença de pessoas mais graduadas do que você, reconheça de boa vontade essa maior graduação, preste-lhes honras” —, são aplicações de princípios de Moral a questões de bom procedimento.

E se, numa primeira geração de católicos muito bons, não foi possível modelar todos esses costumes de acordo com os princípios morais, ao cabo de algum tempo esses princípios filtram e nascem deles uma atitude, uma distinção, uma amabilidade, uma cortesia, que no fundo fazem parte da Moral católica. A Moral perfeita tem que gerar necessariamente a educação, a distinção e a correção perfeitas.

Quem tem boas maneiras glorifica a Deus

Às vezes acontece que uma pessoa pode ser de uma Moral perfeita e não ter uma educação perfeita. Porque não houve tempo de filtrar essa Moral no ambiente em que ela foi educada, começar a prestar atenção em pequenas questões de maneira a praticá-las. Questões que, evidentemente, estão num plano secundário; não constituem a essência da Moral.

Pelo contrário, pode suceder que uma pessoa não tenha boa Moral, mas possua uma educação perfeita. Mas ainda aí é um resto de Religião Católica. Ela, sem perceber, pratica regras da Religião Católica, porque percebe que são bonitas na prática, na atitude concreta. Infelizmente ela com isso não tem intenção de dar glória a Deus, mas imita os que dão glória ao Criador; assim, ela involuntariamente glorifica a Deus.

Guilherme II e a Imperatriz Sissi

Nas memórias do Kaiser Guilherme II, último Imperador da Alemanha, ele conta um fato cuja descrição me impressionou muito. Ele estava no jardim do palácio do avô dele, que era então o Imperador da Alemanha. Como a Imperatriz havia morrido, a mãe dele, casada com o Príncipe Herdeiro, estava fazendo as honras da casa para uma visitante muito ilustre, que era a Imperatriz da Áustria, a famosa Sissi, uma princesa bávara casada com Francisco José, Imperador da Áustria. Era de uma beleza famosa e, além disso, de uma distinção de maneiras, de uma linha, de uma categoria extraordinárias.

O Kaiser conta então que ele estava no jardim do palácio, vendo a mãe, de costas para ele, que recebia a visita da Imperatriz da Áustria. Mas ele não se aproximou enquanto não o chamaram. Pela narração, parece que ele não tinha muita curiosidade em conhecer a Imperatriz da Áustria. Em certo momento, a Imperatriz deu sinais de que queria partir, e a mãe dele se voltou para trás para ver quem estava ali para carregar a cauda da Imperatriz. E, não vendo ninguém além do seu filho, o futuro Guilherme II, ela disse-lhe: “Meu filho, venha aqui carregar a cauda de Sua Majestade a Imperatriz da Áustria”.

Quando ele se aproximou, a famosa Sissi, Imperatriz Elisabeth, estava apenas se levantando. E ele descreve a impressão que ela lhe causou. Ela se erguia muito devagarzinho, com as maneiras e o protocolo da antiga corte. Todo o jeito dela causou-lhe tal impressão, que ele nunca mais se esqueceu de que aquele protocolo dava à Imperatriz uma elegância, uma distinção, realçava de tal modo a sua beleza, que se nota ter o Kaiser ficado deslumbrado. Se formos examinar todas as regras que ela seguia — porque a corte austríaca era muito conservadora —, verificaremos que tais regras de perto ou de longe se relacionam com a formação católica, com o ideal de perfeição moral que a Religião Católica ensina.

Sentar-se sem encostar-se ao espaldar da cadeira

Coisas insignificantes. Estou falando neste auditório, onde todos estão sentados, mesmo os mais moços, e com as costas apoiadas no dorso da cadeira. Mas houve tempo em que isto era contrário às regras da boa educação. As cadeiras tinham espaldar alto, para o caso de a pessoa precisar. Mas normalmente não se deveria encostar ao espaldar. Porque era a imagem da ascese católica: a pessoa sentada, sem encostar-se ao espaldar, dominando a si mesma.

Considerem essas cadeiras de couro — pior ainda, de matéria plástica! —, com brações, que há hoje. Ao sentar-se nelas, o indivíduo afunda e fica mergulhado naquilo, quase como numa banheira. A atitude de não se encostar ao espaldar se torna impossível.

O Ocidente tem menos pedras preciosas que o Oriente, mas possui a finura católica

Isso faz com que no Ocidente ocorra o seguinte: o engenheiro ou arquiteto católico que vai planejar a decoração externa e interna de um palácio para um rei católico morar, palácio no qual o rei vai exercer o poder catolicamente sobre um povo católico, a própria respiração de sua alma católica executa a ornamentação de maneira a fazer prevalecer as coisas do espírito, que têm categoria, finura, em que a alma humana aparece na sua excelência. Pelo contrário, o homem que não tem essa assistência da graça, essa inspiração da Fé, não é capaz disso.

Considerem esses marajás e figuras semelhantes; eles estão refestelados; um sultão chupa o narguilé indefinidamente. Por quê? Porque eles não aprenderam da Religião Católica os modos de se portar. Isso também se retrata evidentemente nos prédios, no urbanismo de uma cidade, enfim, em mil outras coisas.

É isto que faz a superioridade do Ocidente. O Ocidente tem menos rubis, pérolas, esmeraldas, safiras, brilhantes; não possui rajás nem marajás, mas tem a finura católica, contrarrevolucionária, que domina todo o resto. 

Encontro do Xá da Pérsia com a Sissi

Lembro-me de outro fato ocorrido com a própria Sissi, a Imperatriz da Áustria, e um Xá da Pérsia.

Esses potentados do Oriente nunca vinham à Europa, porque eram viagens muito longas e às vezes sujeitas a risco. Mas quando surgiu, com os meios de comunicação modernos, a possibilidade de viagens seguras e com relativo conforto ­­— os primeiros transatlânticos do século XIX, os primeiros trens —, os potentados do Oriente começaram a vir ao Ocidente. E vinham com todo o luxo do Oriente.

O Imperador da China, o Xá da Pérsia, marajás e rajás em quantidade indefinida, sultões, estiveram na Europa. E quando eram recebidos, as cortes europeias seguiam todo o protocolo com que se recebia um Chefe de Estado estrangeiro. Portanto, coisa muito bonita, muito esplendorosa, rica, mas não extraordinariamente rica. Os orientais vinham com riquezas fabulosas e iam às festas com traje oriental.

Então o Xá da Pérsia — Imperador da Pérsia — foi às principais capitais da Europa e também a Viena. Nesta cidade, em certo momento da festa, chega a Imperatriz da Áustria. Então homenagens, e o apresentam a ela. Ele faz uns salamaleques à moda oriental e ela responde com distinção, com graça, um pouco sorrindo, como diante de um Conto de Mil e Uma Noites, de uma fábula.

O Xá começou a olhar para a Sissi e ficou tão deslumbrado que, terminados os salamaleques, deu uma volta por detrás dela. Queria ver se ela era inteira assim, ou se na nuca, nas costas, ela não era tão bem feita como de frente. Quando retornou à frente dela, disse: “A Sissi é realmente bonita como me disseram e até mais do que me disseram”. E fez outro salamaleque. Provavelmente, ele tinha joias muito mais bonitas do que ela, que era uma dama. Mas ela era uma joia! Tudo isso são frutos da Civilização Cristã.

Papel da graça divina

Mas o que é Civilização Cristã? É uma civilização na qual os homens, tendo pela graça a virtude da Fé, e, nascidas dela, as demais virtudes teologais e cardeais — sendo a Fé a primeira das virtudes teologais —, acabam possuindo toda essa grandeza pessoal, que é o resplandecer da graça.

E quem nos obteve a graça foi Nosso Senhor Jesus Cristo, no momento de morrer na Cruz, e já no Horto das Oliveiras, quando Ele começou a sentir tédio e pavor do que lhe aconteceria durante a Paixão. A graça, conquistada para nós pelo Sangue de Cristo, penetra nos homens e depois produz todo o resto.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/1/1989)