Festa da Cátedra de São Pedro

Dir-se-ia que a sombra do báculo de Pedro cresceu, que entre suas extremidades — que vão de mar a mar, de monte a monte, dos ­Alpes ao Himalaia — fica o mundo inteiro. É impossível não pensar nas lágrimas, no ­suor e no sangue, nas mortificações, nas preces, na paciência e no heroísmo por meio do qual a Igreja, ajudada por Deus, chegou a tamanha glória. Quando se pensa nos primórdios do Catolicismo, comparado por seu Divino Fundador com o pequenino grão de mostarda, e se vê hoje que a copa da árvore é maior que os mais extensos desertos e as mais vastas nações, são todas as fibras católicas que vibram e se dilatam nos nossos corações. Do esplendor desta magnífica realidade se desprende uma voz, porque os fatos falam. E esta voz, eco de outra Voz, nos diz com firmeza mais do que nunca: non praevalebunt!
(Do “Legionário” de 17/2/1946)

“Não apartes de mim o teu rosto…” Salmo 101

A súplica humilde e sempre confiante na infinita bondade divina era um dos aspectos da piedade de Dr. Plinio. Por essa razão, agradava-lhe de modo particular a recitação dos Salmos Penitenciais, repassados de filial apelo à clemência do Criador. Acompanhemos, agora, os comentários que Dr. Plinio nos faz ao Salmo 101.

Como já fiz questão de salientar antes — e por cautela explicável o reitero —, até hoje não tive oportunidade de ler comentários aos Salmos Penitenciais. Recitei-os em várias épocas de minha existência, como quando menino recebi uma tocante graça diante da imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, na Igreja do Coração de Jesus, a qual me levou a dar os primeiros passos na vida espiritual. Depois, ao longo dos anos, adquiri o costume de rezá-los durante certos períodos, mas nunca tomei conhecimento de textos explicativos a respeito deles.
Assim sendo, longe de mim pretender não haja equívoco em alguma interpretação que eu faça. Desde já, e de bom grado, estendo a mão à palmatória, se me demonstrarem que determinada afirmação não confere com os comentários oficiais da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, constantes não apenas nos documentos de seu Magistério, mas naquilo que se pode chamar o consenso dos autênticos teólogos.
Posta essa ressalva, passo a lhes transmitir os sentimentos que despertam em mim a leitura dos Salmos, ou seja, minha impressão pessoal, a ser partilhada por todos nós. Tenho a esperança de que tal leitura, realizada em comum, produza no conjunto o bem espiritual que recebo quando releio os Salmos e os comento para mim mesmo, no íntimo de minha alma.

Caráter profético do Salmo 101

Isso assente, devo dizer que este Salmo me parece profético em certos sentidos da palavra.
De um lado, é a história individual de um pecador que, como os referidos em Salmos anteriores, foi uma boa pessoa, que amava a Deus e por Ele era amada. Em dado momento, esse amigo do Senhor foi ingrato, revoltou-se contra o Altíssimo e pecou. O Criador não contemporizou e o puniu com sua cólera.
O homem, então, sendo flagelado pela ira divina, geme, chora e sente com amargura o mal cometido. Ajoe­lha-se, implora perdão. Nessa súplica ele registra que Deus o absolveu, e agradece do fundo da alma tal clemência. Não só externa sua gratidão, mas glorifica a Deus, com expressões de particular beleza e, sobretudo, verdadeiras.
Há, também, trechos referentes a Israel, ao fim do mundo e da História. Alguns versículos poderiam ser aplicados à existência do povo judaico, especialmente amado por Deus, que prometera a Abraão uma descendência mais numerosa que as estrelas do céu e as areias da praia. Entretanto, os filhos de Abraão pecaram e Deus se ergueu contra eles, castigando-os. Em vários episódios de sua história, nota-se o castigo divino se abatendo sobre o povo que andou mal, como se deu no cativeiro de Babilônia, durante o qual os judeus ficaram reduzidos à escravidão. Em seguida vem o arrependimento, e Deus os ajuda a se libertarem e voltar para Israel.
Quanto ao futuro, entende-se pelas passagens da Escritura que o povo judaico pedirá perdão e este ser-lhe-á concedido de modo tão imenso e profundo que ele se converterá. Quando isso acontecer, será de novo o Povo Eleito, o mais católico e virtuoso da Terra, tornando-se exemplo e motivo de alegria para o mundo inteiro. Até que sobrevenha a grande decadência final e, numa atmosfera de maldade generalizada, surja o Anticristo.

Os homens da fidelidade extrema

Quando isso suceder, as duas testemunhas que terão aparecido na Terra para profetizarem em nome do Senhor, serão mortas, presumivelmente pelo próprio Anticristo, e seus corpos expostos durante três dias e meio em praça pública, causando regozijo em todos os ímpios. E narra o texto sagrado que os iníquos festejarão esse crime, trocando presentes para celebrar a morte desses dois homens de Deus.
No auge de seu poder, o Anticristo talvez queira se proclamar Deus ele próprio e se fazer adorar. Em todo o caso, dirá que é Cristo, mas será uma caricatura do Redentor. O verdadeiro Filho do Altíssimo estará, na aparência, derrotado, contando apenas com um punhado de fiéis… Mas, que fiéis!
Como eu os invejo! Quando o demônio se achar triunfante no píncaro de sua glória, eles permanecerão íntegros, de uma fidelidade extrema, última, absoluta. Serão os homens incontestáveis, incontestados, que tiveram a coragem de contestar e afrontar de peito erguido tudo quanto é mau. E como me compraz a hipótese de que esses derradeiros fiéis sejam, entre outros, membros da obra por nós constituída, sobrevivendo a tudo, até os instantes finais da humanidade!
Ficarão esses autênticos católicos encerrados numa catacumba, conhecendo apenas por reflexos subterrâneos o que se passa na superfície da Terra, ou estarão presentes nos acontecimentos, em meio a mil perigos, vexações, tribulações, formando a coorte que se apresenta ao lado de Nosso Senhor, vaiado, contestado, objeto de toda a espécie de hostilidades?
O certo é que Ele — com um “E” maiúsculo tão imenso que se estende de ponta a outra do universo — não se rebaixará a combater a lesma imunda chamada Anticristo, mas o destruirá com um simples sopro de sua boca.
Com a morte do ímpio, Deus encerrará a História. Os dias da Terra se completaram, deu-se o grandioso Juízo Final, e o tempo cede lugar à eternidade.

O penitente posto à prova por Deus

Tendo em vista essas considerações, passemos a comentar os versículos do Salmo 101, levando em conta que também nós podemos nos comparar a este homem anônimo e misterioso do qual falam os textos sagrados, ditados pelo Divino Espírito Santo a um profeta. Tal pessoa havia sido boa, amiga do Criador, mas em determinado momento — oh! lástima, da parte de quantos de nós isto é verdade! — prevaricou e ofendeu a Deus. Compreendendo a situação em que se pôs, arrepende-se e dirige aos Céus a sua súplica.
Senhor, ouve a minha oração e chegue a Ti o meu clamor.
Esse pedido com o qual se inicia o Salmo sugere a idéia de alguém que reza, porém percebendo uma aparente indiferença de Deus em relação à sua prece. Ele fala com o Senhor e não recebe nenhuma resposta. Julgando-se não atendido, insiste com “clamor”. Clamar é falar em alta voz, bradar. Na medida e no sentido que esse último verbo comporte um sentimento de respeito, é do brado que se trata. “O meu clamor chegue a Ti”: clama-se para quem está longe, do qual nos separa uma grande distância. Então, as palavras do Salmista equivalem a estas: “Chegue a Ti minha voz longínqua, Tu que te puseste tão afastado de mim, ou me colocaste tão distante, ouve-me, por favor!”
Isso supõe a idéia de um pecador profundamente convicto do mal cometido por ele, e a quem Deus, entretanto, quer provar. Não cedendo desde logo ao primeiro sinal de sua penitência, Deus concede-lhe a graça para que se arrependa ainda mais. Compreende-se. Pois Ele não quer se contentar, em contrapartida de um grande pecado, com um qualquer pequeno pedido de perdão. Deus escava nessa alma os sulcos da dor, para que deles nasçam as flores da contrição.
Quantas e quantas vezes o mesmo acontece conosco! Pedimos algo a Deus e — ainda que o façamos pela gloriosa intercessão de Maria Santíssima, cuja mediação é infalível e sempre vitoriosa — nos parece não haver rea­ção da parte d’Ele. Nosso Senhor assim age, para que clamemos mais alto e o nosso gemido, expressão de nossa dor e humilhação, faça sair das entranhas de nossas almas os brados absolutamente lancinantes, diante dos quais Deus se inclina e, afinal, perdoa.

“Um olhar teu me resgata e redime!”

Não apartes de mim o teu rosto; em qualquer dia que me achar atribulado, inclina para mim o teu ouvido.
Esse versículo é uma reiteração do primeiro. Porém, para evitar algo de monótono inerente a toda repetição e conservar o mérito da perseverança, o versículo utiliza outras palavras e metáforas, dizendo mais ou menos a mesma coisa que o primeiro. Consideremos sua beleza:
Não apartes de mim o teu rosto…
Reaparece a noção contida no versículo precedente, de quem julga suas preces desprezadas por Deus. Então persiste na súplica: “Tu não me olhas e voltaste de lado o teu rosto. Eu te chamo e não me vês, porque não queres, desvias teus olhos enojados da minha alma pecadora. A Ti eu suplico: não afastes mais de mim o teu rosto, que me é como o sol. Um olhar teu me cura, resgata e redime!
“Mas, Senhor, para que Tu me fites, deves voltar teus olhos para mim. Eu me inclino envergonhado diante da limpidez e pureza de teu olhar, o qual não ouso encarar e há de pousar sobre as feridas repelentes dos pecados que me cobrem. Mas, sei que teu olhar cura o mal que ele rejeita, e assim te peço: olhai-me, curai-me!
Esse Salmo me parece profundamente compreensível e tocante, trazendo-me à lembrança a letra da música Ojos claros, do compositor espanhol Guerrero, que muito me agrada e termina com esta súplica: “E já que morreis por mim, olhai-me pelo menos…”
Tais palavras evocam a idéia de Cristo no alto da Cruz e um pecador de joelhos junto a ela, implorando perdão, batendo no peito e dizendo: “Sei que minhas culpas me tornam uma das causas de vossa morte. E como, conforme diz o Salmista, estou metido num limo, numa substância escorregadia, quase diria pantanosa, onde não há solidez1, rogo-Vos: olhai-me ao menos. Se me concederdes um olhar, Vós me tereis dado tudo!”
Tenho a impressão de que, ao chegar a hora de minha morte, pedirei a Jesus, pelos rogos de Maria, esse olhar salvador: “olhai-me ao menos”, porque quero passar para a outra vida com Ele olhando para mim. E aproveito a ocasião para sugerir essa piedosa prática a quem se encontrar no derradeiro instante que um dia chega para todos: lembre-se de pedir a Nossa Senhora que dirija a Jesus, em seu favor, este pedido: “Olhai-o, ao menos”. Porque se a Virgem Santíssima assim interceder por nós, a porta do Céu se nos abrirá.

O desejo de ser atendido prontamente

…em qualquer dia que me achar atribulado, inclina para mim o teu ouvido.
Mais uma vez, a mesma metáfora. Como Nosso Senhor está com a face voltada para outra direção, suas vistas não olham para o pecador que reza, e seus ouvidos como que permanecem fechados à voz suplicante.
Pode acontecer ao longo dos dias de qualquer um de nós — mais extensos ou menos, conforme aprouver aos desígnios divinos — a desgraça de que, em certo momento, Deus nos olhe com olhar por assim dizer empalidecido, distante e desinteressado, a fim de arrancar de nossa alma um gemido de penitência. Se tal acontecer, não fiquemos angustiados, mas roguemos a Nossa Senhora que interceda por nós. Ela, então, dirá a Jesus: “Meu Filho, voltai vossos ouvidos para ele e ouvi suas palavras. Eu vos peço.”
Em qualquer diz que Te invocar, ouve-me prontamente.
O homem aflito espera que Deus não demore em atendê-lo, pois a aflição é uma dor da qual ele procura escapar. Então o pecador exprime essas belas palavras: “Em qualquer dia que te invocar, ouve-me prontamente”.
Ou seja: “Senhor, ouvi-me e atendei-me com rapidez!”
Plinio Correa De Oliveira (Continua em próximo número.)
1 ) Cf. Sl 68, 3.

Homens-símbolo

Atendendo ao pedido de jovens discípulos, Dr. Plinio aprofunda a teoria dos arquétipos1, dando alguns exemplos históricos.

 

Naturalmente, a profissão, a situação, onde a arquetipia aparece mais claramente é a de chefe de Estado.

Garcia Moreno, arquétipo do Equador

Por exemplo, o Presidente da República do Equador, Garcia Moreno, é o arquétipo do equatoriano com origem espanhola relativamente próxima, talvez com alguma mistura; ou seja, do hispano do Norte da América do Sul, diferente nesse ponto dos hispano-americanos do Centro e do Sul.

Ele o é pelo físico e muito mais pela alma. Quer dizer, Garcia Moreno tem uma profundidade de espírito, uma firmeza e uma lógica de pensamento, um domínio sobre si mesmo e uma permanente mobilização de todo o seu ser para cumprir um dever muito árduo, qualidades essas que brilham nele, envergando o uniforme de Chefe de Estado, com o qual se fez fotografar ou pintar mais de uma vez.

É o arquétipo do povo sul-americano de origem hispânica, eventualmente com alguma miscigenação indígena; tinha potencialmente as qualidades do seu povo. Portanto, muita propensão para a Fé católica, apostólica e romana, grande afinidade com a Igreja; uma elevação de alma para as coisas sobrenaturais, sem dúvida dada pela graça, mas que encontra um ponto de inserção na natureza.

Garcia Moreno possuía tudo isso de modo esplêndido, mas com alguma coisa que é o contrário dos povos com miscigenação indígena.

A miscigenação pode favorecer determinados defeitos

É próprio de pessoas que levam consigo essa miscigenação uma tendência para o sonho de olhos abertos, o sentimentalismo, a moleza e a inconstância.

Mas é característico do católico, quando ele nasce com esses defeitos, virá-los pelo avesso e ser salientíssimo nas virtudes opostas. E para mim, a maior pulcritude da alma de Garcia Moreno é essa. Foi morto por causa disso. É um arquétipo que virou ao avesso os defeitos do povo dele. Foi um homem admirável!

Não há um grande povo que não tenha os seus defeitos nativos virados pelo avesso. Do contrário, eles dominam. Nossos defeitos nativos ou são levados na chibata o tempo inteiro, ou eles nos põem sob a chibata.

Para mim, Garcia Moreno foi quem melhor realizou o desígnio divino a respeito do povo equatoriano.

Luís XIV, rei de um povo querido por Deus

O continente mais rico em arquetipias é o europeu. Em geral, quando um povo teve um grande rei, este foi arquétipo de seu povo.

O que caracteriza preliminarmente todo grande rei é ser o homem no qual, por excelência, seu povo se sente refletido. Sua simples presença faz com que a nação veja a concretização de seus próprios ideais de perfeição, e queira realizá-los, reconhecendo nele o modelo de si mesma. Esse é o arquétipo.

Por exemplo, Luís XIV é o arquétipo do francês no que este tem de mais ilustre, mais magnífico, mais estupendo.

Quando Santa Margarida Maria recebeu do Redentor o encargo de levar uma mensagem a Luís XIV para estimular a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, o Divino Mestre pronunciou estas palavras iniciais: “Diga ao meu amigo, o Rei de França, tais e tais coisas.” E os intérpretes se empenham em querer entender, nesse caso, qual o sentido dos termos “meu amigo”.

Na realidade, ele era seu amigo porque a França era a nação querida, e Luís XIV o arquétipo desse país. Enquanto tal, Deus o amava com aquela predileção gratuita e insondável com que Ele queria a nação primogênita da Cristandade.

Tomemos outros dois monarcas pouco posteriores a Luís XIV e que foram grandes reis, a seu modo: Maria Teresa, a Imperatriz da Áustria, e Frederico II, o Rei da Prússia.

Maria Teresa: a imperatriz que simbolizava o conjunto dos reinos por ela governados

Maria Teresa foi o padrão da imperatriz, que simbolizava inteiramente o conjunto de reinos governados por ela. No seguinte sentido: os Estados chamados da Casa d’Áustria — Áustria, Hungria, Checoslováquia e outros — formavam uma soma de Estados com um rei comum, chamado antigamente de Arquiduque da Áustria. Os Arquiduques da Áustria foram um denominador comum de todos esses povos e os arquetipizaram tão magnificamente que, quando o Tratado de Versailles, em 1918 — no fim da I Guerra Mundial — desmembrou essa monarquia, foi preciso que as nações participantes — portanto, supostamente, libertadas do jugo da Áustria — assumissem a obrigação de não eleger um imperador ou rei.

Maria Teresa representava — além da graça feminina — o que havia de charmant, de encantador no espírito austríaco, bem como as virtudes militares da raça alemã, valores esses harmonicamente aliados. E arrebatou os povos, como mostra um fato conhecido da vida dela.

Frederico II, Rei da Prússia, atacou o império austro-húngaro e Maria Teresa, não tendo meios para defendê-lo, sofreu derrotas. Frederico II mandou propor-lhe uma paz vergonhosa, e ela respondeu: “Enquanto eu tiver para governar a última aldeia do Tirol ou da Caríntia, ali estarei resistindo ao Rei da Prússia. Diga-lhe que não me rendo, e vou impor a paz.”

Havia o perigo de a Hungria separar-se do império.  Maria Teresa mandou convocar o parlamento dessa nação, onde ela fez um discurso sobre as circunstâncias então existentes. Quando terminou, todos os representantes da nobreza desembainharam suas espadas e clamaram: “Morreremos pelo nosso Rei, Maria Teresa!”. Ela arquetipizou nesse episódio o tradicional heroísmo magiar.

Eleição de Maria Teresa

Vago o trono do Sacro Império Alemão — que era eletivo —, deveria ser eleito o sucessor. Durante séculos, era automático que o trono imperial fosse deferido a um Habsburg, ao Chefe da Casa d’Áustria.

Não tendo possibilidade de ser eleita imperatriz, Maria Teresa casou-se com um príncipe da Casa de Lorena, que ela fez eleger imperador. Assim, tornou-se imperatriz por estar casada com esse príncipe. E o título de imperador foi depois transmitido a todos os descendentes dela. Vemos, assim, como Maria Teresa possuía tacto, finura e delicadeza.

O patrimônio teresiano

E também jeito. Tinha olho prático de boa dona de casa.

Maria Teresa combinou com seu marido o seguinte: “Devemos prolongar a existência de nossa Casa o quanto possível. E para isso precisamos aproveitar a atual situação a fim de tomar todos os bens que já possuímos, reorganizar tudo, fazê-los produzirem para adquirirmos novos bens, de maneira que quando percamos os nossos tronos, ainda sejamos príncipes riquíssimos. Meu esposo, deixa-me a política e faça as finanças.”

Em 1918, foi proclamada a república na Áustria, por imposição dos Aliados. Os Habsburg perderam o trono, mas tinham um negócio chamado Patrimônio Teresiano, que era enorme, a fim de manter o conjunto da dinastia.

Analisando seu todo, constatamos que era uma mulher fantástica: ela representava o gênio austríaco no total.

Frederico II

Frederico II e os Hohenzollern em geral — a cuja família ele pertencia — representavam o gênio prussiano no seguinte sentido: antes de tudo a guerra, o exército, o combate, o entusiasmo pela força. Secundariamente a música, os belos castelos — de uma beleza, que os franceses, um pouco suspeitamente, argúem de excesso de severidade. A garra militar, a águia prussiana, tomando conta de tudo. Em certo momento quase conquistou a Europa.

Sem dúvida, Frederico II representava arquetipicamente o povo prussiano.

Assim, poderíamos indicar outros exemplos.

Dom Pedro II, arquétipo do Brasil

No Brasil, na época de Dom Pedro II, indiscutivelmente a organização da família ainda era muito viva, pujante, a qual convém com o feitio afetivo do brasileiro.

O velho Pedro II, de cabelo e barba brancos, jeito respeitável, venerável, mas bondoso, foi durante décadas o vovô do Brasil. E o Brasil sentiu delícias em ser neto de Dom Pedro II. O modo pelo qual ele governava e dirigia a política brasileira era inteligente e cheio de jeitinhos. O povo brasileiro gosta do jeitinho; a força imposta “à la” Frederico II o brasileiro aprecia muito menos. Querer impor a força pela força pode azedar a situação muito desagradavelmente, ou até fatalmente.

A Constituição brasileira, liberal, reduzia muito os poderes do Imperador. Mas ele era um político muito esperto e sagaz. E servia-se do prestígio de ser Imperador para negociar por fora o curso da política, de tal maneira que o político número um do Brasil era Dom Pedro II. E ele ia acomodando as coisas de tal modo que o governo dele foi um reino de paz. Terminaram as revoltas que havia, o Brasil teve uma grande prosperidade e foi naquele tempo uma das maiores nações americanas — naturalmente os Estados Unidos estavam muito acima, do ponto de vista do progresso econômico. A esquadra mercante brasileira, para poder exportar inúmeras coisas produzidas por um país enorme, era a segunda do mundo.

Mas os políticos liberais reclamavam contra Dom Pedro II, o qual redarguia: “Eu exerço inteiramente os poderes constitucionais, não saio da Constituição uma linha.”

Eles diziam: “É verdade, mas Vossa Majestade tem um poder pessoal extraconstitucional, que vale mais do que seu poder constitucional. E não pode exercer os dois poderes juntos.”

E o Imperador replicava: “Onde está isso na Constituição? Nada me impede de ter influência política. Se um político brasileiro me pede um conselho, eu cumpro minha obrigação atendendo-o. Se o conselho influencia, é porque foi eficaz! O que vocês têm contra isso?”

Os liberais vociferavam muito contra seu poder pessoal, porque não podiam nada contra a força moral do Imperador.

Dom Pedro II conduziu a situação quase até o fim de sua vida. E foi destronado por uma série de circunstâncias. Mas ele representou arquetipicamente o brasileiro; quanto a isso não há dúvida nenhuma.

Quando o povo é grande, pode ser arquetipizado. Quando é um magma de gente, não há quem arquetipize aquela massa; ele, por assim dizer, clama pelo seu arquétipo.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 17/2/1989)

Revista Dr Plinio 155 (Fevereiro de 2011)

 

1) No contexto da presente conferência, Dr. Plinio aplica este termo a pessoas que exprimem em grau eminente as características de um povo, constituindo um paradigma.

 

“Maior felicidade de minha vida”

Eu tive a maior felicidade de minha vida em algo que me encheu de entusiasmo, desde pequeno: a Santa Igreja Católica Apostólica Romana!

Mais do que qualquer pessoa, qualquer panorama ou qualquer flor, incomparavelmente mais do que qualquer delícia ou iguaria, ela me falava à alma!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/5/1984).

BEATOS JACINTA E FRANCISCO, modelos de aceitação do sofrimento

Vinte de fevereiro, dia da morte de Jacinta Marto, foi a data escolhida pelo Papa João Paulo II para que a Igreja celebrasse a festa da jovem pastora de Fátima e do seu irmão, Francisco, aos quais  Nossa Senhora apareceu em 1917. Ao recordar essa piedosíssima morte, Dr. Plinio teceu valiosos comentários sobre o papel do sofrimento na existência humana.

Como se sabe, dos três videntes, dois morreram pouco depois das aparições, conforme a promessa da Santíssima Virgem: Francisco e Jacinta. Ambos deviam ir para o Céu. Antes disso, porém,  haveriam de cumprir nesta Terra duas missões diferentes. A de Jacinta era rezar e sofrer pela conversão dos pecadores, enquanto a de Francisco consistia numa reparação ante a tristeza de Nosso  Senhor e de Nossa Senhora pelos pecados do mundo, que tinham motivado a mensagem de Fátima.

A importância do sofrimento humano nas grandes obras de Deus

A missão de Jacinta nos revela a necessidade de vítimas expiatórias que contribuíssem com a sua dor e o sacrifício de sua vida — as duas crianças morreram em circunstâncias extraordinariamente difíceis e dolorosas — para que as palavras de Nossa Senhora encontrassem terreno fértil nos corações dos homens, dando todos os frutos por Ela desejados.

Compreende-se, pois, como esse apostolado do sofrimento é verdadeiramente insubstituível, e como abre os caminhos para a Igreja. Todas as grandes obras de Deus, máxime as que tratam da  salvação das almas, em geral se fazem com a participação de outras almas que lutaram, sofreram e rezaram para que essas obras de fato se realizassem. Sempre é preciso a participação do sofrimento humano.

Sem ele, nada de grande se faz.

Certa vez, um talentoso pintor expôs um de seus quadros que retratava Nosso Senhor como Bom Pastor batendo à porta de uma choupana. A pintura, tocante e piedosa, atraía muitas atenções. Em  eterminado momento, um visitante julgou notar um defeito no quadro, e disse ao artista: “O senhor cometeu um erro de execução, pois a porta dessa cabana não tem fechadura”. Sorrindo, o  pintor lhe respondeu: “É verdade. Isto, porém, não foi um erro.

Esta porta simboliza a porta do coração humano, onde Nosso Senhor vem bater. Ela não possui fechadura no lado de fora, mas somente no de dentro, para significar que há certos tipos de  abertura de alma onde ninguém consegue intervir: ou a alma toma a iniciativa de se abrir, ou permanecerá fechada”.

Ora, o modo de se obter que as almas fechadas se abram é exatamente por meio da oração, dos sacrifícios e das dores que a Providência dispõe em nossas vidas. É por meio do carregar  amorosamente a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, compreendendo que assim se cumpre a superior vontade divina. Essas são as almas decisivas na História, e que levam a cabo as grandes obras
de Deus.

Claro está que não se trata de um sofrer meramente passivo, mas também de um sofrer ativo. O que significa muitas vezes tomar a iniciativa da luta, rompendo com aqueles que prejudicam nossa  alma.

Significa arrostar a opinião dos outros, aceitando ser posto em situações difíceis e contrafeitas. Significa, enfim, todo o sofrimento da batalha mais intrépida, mais ousada e mais repleta de  determinação. Tudo isso é sofrer, e até sofrer por excelência. O contrário do mito do happy end Não nos esqueçamos, porém, de que, se todas as formas de sacrifícios são agradáveis a Nossa  Senhora, o que mais deseja Ela receber dos homens é virtude. Acima dos sofrimentos, Lhe compraz oferecermos a Ela a retidão e a pureza de nossa alma. Se quisermos de fato pesar nas deliberações da Providência, devemos apresentar a Ela almas contritas e humilhadas, almas que se tornem pequenas diante de Deus, renunciando a toda forma de orgulho, vanglória e vaidade, para se mostrarem diante d’Ele como realmente são. Reconhecendo a sua própria impotência, pelas vias naturais, para corrigir os seus defeitos; e, portanto, implorando o auxílio de Maria, para  que Ela por nós interceda e nos alcance a tão esperada conversão.

E isto exatamente nos é dito pelo sacrifício de Jacinta. Devemos, portanto, pedir a ela que nos obtenha de Nossa Senhora esse senso de sofrimento, indispensável para que qualquer católico seja  verdadeiramente um fiel generoso e dedicado.

Essa aceitação da cruz é contrária ao mito do homem moderno, que se reflete na mentalidade do happy end, segundo a qual tudo é alegria, tudo é luz, e o padecimento é uma espécie de bicho de  sete cabeças irrompendo estouvadamente na vida das pessoas.

A verdade é outra: uma existência sem cruzes, pouco vale. São Luís Grignion de Montfort chega mesmo a afirmar que, vendo-se alguém poupado pelos sofrimentos, deve — após judiciosa  orientação de seu diretor espiritual — pedi-los a Deus, fazer romarias e rezar com empenho nessa intenção, pois sua salvação eterna pode estar correndo um risco não pequeno.

Mais do que nunca, a necessidade de sacrifícios

Análogas considerações poderiam ser feitas a propósito da missão de Francisco, isto é, a de reparar os Sacratíssimos Corações de Jesus e de Maria pelos pecados e ofensas contra Eles cometidos na  face da Terra.

Ora, de 1917 até nossos dias, a maré montante dos pecados não fez senão crescer de modo incomensurável: pecados individuais, pecados públicos, pecados das nações, pecados das instituições,  etc. Tal constatação nos obriga a concluir que, se a ofensa cresceu, a reparação também se faz mais necessária e mais intensa no que ela tem de mais excelente, ou seja, alimentar em nossas almas a indignação pelos ultrajes que são feitos ao Coração Imaculado de Maria; acrisolar nosso desejo de sermos instrumentos de Nossa Senhora para a implantação de seu Reino sobre a Terra.

Devemos pedir ao Francisco que nos obtenha esse espírito, esse ardoroso anelo de assim reparar o Coração Imaculado de Maria e, por meio d’Ele, o Coração Sagrado de Jesus.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 71 (Fevereiro de 2004)

A felicidade: fruto da inocência

A procura da felicidade representa importante papel em todas as etapas da vida de uma pessoa, sobretudo na infância. Porém, onde de fato encontrá-la?
Comentando como esse problema se punha em sua mais tenra idade, Dr. Plinio nos mostra que a alma inocente vê em tudo uma imagem de Deus, e, por isso, constantemente sente sua alma inundada da mais pura e verdadeira felicidade.

 

A fim de desenvolver o tema que me foi proposto — onde encontrar a verdadeira felicidade? —, proponho rememorar meus tempos de juventude com a esperança de encontrar um denominador comum entre a concepção de felicidade dos jovens em 1984 e dos de 1924.

Ao longo dos tempos, um mesmo equívoco…

A respeito do conceito de felicidade, as pessoas ao longo dos anos têm concebido os mesmos equívocos com algumas poucas diferenças. Assim, parece-me que analisando como este problema se punha em minha juventude, poderei encontrar uma resposta útil também aos jovens que vieram meio século depois.

Naquela época, ainda não se adotara a semana inglesa; então, no sábado à tarde, os colégios e comércios iam se fechando e a São Paulinho se preparava para gozar a felicidade.

No que consistia a felicidade de um jovem comum, como era o meu caso, uma vez que ainda não tinha conhecido o movimento mariano, se bem que, por um auxílio especial de Nossa Senhora, tinha Fé e levava uma vida pura?

As alegrias da vida sem pecado

O que primeiro se me apresentava era gozar a vida sem pecar, porque, tendo Fé, eu sabia que não devia pecar. Ora, quanta coisa agradável pode-se fazer sem pecar! Por exemplo, quando eu chegava em casa, meu pai me chamava, abria a carteira e dizia: “Está aqui o seu dinheiro da semana!” Este, como é natural, era gasto todo no final de semana.

A quantia que eu recebia de meu pai era suficiente para passar com largueza o final de semana. Além disso, como eu sempre estava junto de meus primos, cujas famílias eram mais abastadas do que a minha, eu participava de alguma forma do luxo deles.

Assim, terminados os afazeres do sábado, nos telefonávamos e marcávamos um ponto de encontro. Começavam os passeios: confeitarias, cinemas, etc. Todos estes ambientes de nenhum modo tinham a torpeza que apresentam hoje.

No domingo de manhã, eu ia à Missa às onze horas na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, depois da qual voltava para casa. Ao chegar, eu encontrava preparado um saboroso almoço, em geral um cuscuz delicioso acompanhado de cerveja.

Agradáveis momentos na vida familiar

À noite, eu ia jantar em casa de um tio, onde se reuniam quase trinta pessoas, todos os parentes jovens. Lá estava preparada uma mesa enorme, repleta de frios do melhor restaurante de São Paulo. Terminado o jantar, muitos se dispersavam e voltavam para suas casas, enquanto alguns, entre os quais eu e minha irmã, subíamos a um terraço muito agradável, de onde me lembro especialmente, ter contemplado belas noites enluaradas. Ali permanecíamos até mais de meia-noite, conversando sobre os mais diversos temas.

Quando chegávamos em casa, após a prosa no terraço, minha mãe geralmente estava recostada em seu quarto, com o terço nas mãos. Eu me sentava junto à sua cama e começava outra conversa, também sobre todos os assuntos possíveis. Ali permanecia por volta de uma hora, depois eu ia para o meu quarto, onde ainda rezava um pouco e dormia contente, após aquele final de semana no qual eu tinha experimentado várias, intensas e, às vezes, contínuas sensações de bem-estar.

Desta forma, tinham-se justapostas várias sensações muito agradáveis, às quais se somava uma intensa impressão de juventude trasbordante de saúde e que tem diante de si um futuro promissor.

Um pouco pelo que me diziam, mas sobretudo pelo que eu analisava, percebia estar na mente da maior parte das pessoas com as quais eu tinha contato a seguinte ideia a meu respeito: “Você tem tudo para ser feliz! Talvez pudesse ter mais, caso conseguisse obter mais dinheiro, bem-estar e luxo. Se você morasse em Paris ou em Viena, certamente você seria mais feliz. Mas, o que você tem é suficiente para encher uma pessoa de alegria. São poucos os jovens em São Paulo que gozam de uma felicidade como a sua!”

Para ser franco, devo dizer que eu me empanturrava dessa felicidade, e quanto mais sensações gostosas tivesse, para mim melhor. Mas, às vezes algo cortava e interrompia por instantes tais impressões. Nessas ocasiões eu me punha o problema: Será que isso é de fato a felicidade?

Dificuldades da vida e felicidade

Era, sobretudo, nos dias de semana — os quais apresentavam fastios de toda ordem em contraste com o bem-estar do fim de semana — que me vinha esta questão. Começava com a educação que eu recebia em casa, a qual supunha a toda hora pequenas advertências do seguinte gênero: “Não se entra na sala assim; não se põe o guardanapo deste modo; não se mexe com a cadeira desse jeito; dê risada mais moderada; gargalhadas imoderadas não são de gente educada…” Bastava relaxar um pouco para vir o aviso: “Se você relaxar, vai ser evitado pelas pessoas educadas, e muitos vão afastar-se de você.”

Eu então pensava: “Mas, eu gosto de dar gargalhada…” No entanto, percebia que eu não podia fazer aquelas coisas e precisava dominar-me.

Então, eu me perguntava: “Mas, se o fato de dominar-se é desagradável, será que ele não é contrário à felicidade?”

Lembrava-me que algumas vezes, estando numa festa, eu tinha vontade de não ser amável com ninguém, mas a educação indicava que eu fosse agradável a todo mundo. Aquilo exigia que em certas ocasiões eu passasse um tempo enorme conversando com a pessoa mais enfadonha que se encontrava na festa, até o momento em que alguém, desavisado, entrasse na conversa e me desse a ocasião de com um sorriso muito amável poder me retirar…

A educação era um dos problemas que pareciam opor-se à felicidade, mas havia muitos outros…

Ser ilustre ou ser feliz?

Por exemplo, à vista de homens maduros eu percebia que todos, à medida que ficavam mais velhos, deveriam ir graduando-se e subindo de condição, de maneira a, em dado momento, ter ascendido a uma condição ilustre em relação ao que fora seu ponto de partida.

Notava também que quem não subisse essa escalada estava fadado a ser objeto do desprezo — ainda que de modo velado e amável — dos outros. Esperava-se, portanto, que também eu galgasse essa escadaria, de maneira a ser notavelmente ilustre.

Eu pensava: “É verdade, viver sem realizar nada não é felicidade. Pois, também um porco no chiqueiro vive desta forma, apenas se alimentando e engordando para ser morto e servir de alimento a outros. Ele não faz nada, e por isso não têm uma história. Ademais, sinto impulsos que me levam a fazer algo; e compreendo que se eu não fizer nada não terei felicidade. Mas como isso é duro! Para ser algo na vida é preciso estudar, saber coordenar as ideias, aprender um vasto vocabulário e exprimir-se com perfeição e clareza, de modo a tornar-se agradável. Como aprender tudo isso? É preciso apertar a cabeça e fazer esforço duro!”

Isso era penoso para mim, pois eu possuía uma enorme tendência à preguiça e deliciava-me em não fazer nada. Para mim, isso era um dos elementos constitutivos da felicidade.

Mas, logo percebi que o fruto do far niente1 era dos mais amargos. Ou eu gozava as delícias de não fazer nada ou as de ter feito algo na vida. Qual delas escolher?

Descortinava-se, então, diante de mim, uma vida inteira de esforço para chegar ao pináculo. Na insegurança e na incerteza de não ter êxito como várias pessoas que conheci, as quais terminaram infelizes, eu pensava: “Assim eu não posso ser. Mas para isso eu devo levar uma vida duríssima.” E então, me perguntava: “Felicidade, onde estás?”

As amarguras da vida e a felicidade

Por outro lado, eu nasci naturalmente muito afetivo, gostando das pessoas e querendo que elas gostem de mim. Mas logo percebi que isto era uma ilusão.

Lembro-me de haver em meu tempo uma brincadeira que consistia em entrar em um automovelzinho todo ladeado de borracha, o qual devia ser conduzido de modo a ir batendo uns nos outros. Eu pensava: “A vida é como este carrinho, mas sem as borrachas! Nela se recebe pancada de todos os lados; a lei que a rege parece ser como a lei da selva, a lei das feras.” Mais uma vez a indagação: Felicidade, onde estás?

Uma de minhas preocupações mais sérias vinha ao ver certos homens ateus, os quais eu conhecia em grande número. Diante deles me perguntava: “Será que eu também vou perder a Fé?” A isto eu preferia morrer!

Estes eram os problemas que mais pesavam ao jovem que queria ter uma vida feliz naqueles idos anos de 1924.

A felicidade está no porvir?

Eu apenas entrava para a vida, tinha 16 anos, e o número de meus problemas deixava-me pasmo. Percebia que os demais jovens do meu tempo não falavam sobre seus próprios problemas, pois ficava feio. Pelo contrário, cada um devia fingir ser perfeitamente feliz, o que me parece ser do mesmo modo até hoje.

Mas, com todos estes problemas eu olhava para o futuro no qual parecia ver uma ponta de felicidade. Imaginava que ficando velho teria uma vida sossegada, pois não sentiria mais essa pressão das pessoas que me circundavam. Poderia, então, me dedicar a leituras, teria dinheiro necessário para viver bem, faria algumas viagens. Encontraria, enfim, o porto para o qual eu rumava.

Não suspeitava que na idade onde eu esperava encontrar sossego e despreocupação, teria de estar em meio às mais duras lutas e dificuldades.

No entanto, apesar de estar à espera de uma felicidade futura, eu guardava a recordação de já ter sido muito feliz. E nisso está o cerne da questão.

Ai que saudades da aurora de minha vida…

Perguntava-me então: Quando é que eu realmente fui feliz? Lembrava-me que em minha primeira infância, antes de entrar no Colégio São Luís, até os dez anos de idade, mais ou menos, eu tinha sido enormemente feliz. Que felicidades inundavam minha alma naquele tempo e que indizível alegria eu sentia dentro de mim! Perguntava-me se só eu sentia aquilo. E na leitura de certas obras literárias, às vezes de autores brasileiros, mas quase sempre de franceses, eu encontrava referências a esta felicidade da infância. Um deles, Casimiro de Abreu, dizia: “Ai que saudades da aurora de minha vida, de minha infância querida, que os tempos não trazem mais!”

De fato, lembrando-me das intensas alegrias que eu tinha naquele tempo, comecei a filosofar sobre elas e analisar quanto eram superiores às que tenho hoje.

Recordo-me de ter lido um dito de Napoleão que, apesar de minhas restrições em relação ao autor, encheu-me de admiração. Certa vez perguntaram-lhe: “Qual foi o dia mais feliz de sua vida?” Pensava que ele responderia ter sido o dia de sua coroação. Pois, qual não teria sido sua satisfação ao ficar imperador?

Porém, para minha surpresa, Napoleão respondeu: “Foi o dia da minha Primeira Comunhão.” Logo que ouvi isto me veio à lembrança o dia da minha Primeira Comunhão, bem como outros inúmeros fatos de minha infância, os quais me encheram de saudades e fizeram-me pensar o seguinte: “Será que vale a pena todo este esforço para ser algo na vida, uma vez que quanto mais nela se avança, mais se tem impressão de estar deixando para trás aquilo que se busca? Não haverá algo de errado neste caminho?”

Inigualáveis alegrias da infância

Em meu tempo de infância, a vida se dividia em duas partes: os dias excepcionais e os dias comuns.

Os dias excepcionais eram geralmente os de festa. Neles eu sentia certas alegrias que provinham mais do interior de minha alma do que da própria festa.

Lembro-me, por exemplo, de um parque que havia na Avenida Francisco Matarazzo, chamado Parque Antárctica, o qual era aberto ao público e muito bem organizado, com um jardim plantado à la alemão e, portanto, muito bonito e agradável, apesar do que, poucos o frequentavam.

No dia de Páscoa, meus primos e eu íamos para lá, dirigidos por Mamãe, a qual era assistida por duas ou três Fräuleins. Sendo o parque enorme e possuindo vastos canteiros verdes, lá se podia correr à vontade, desfrutando do ar puro, da beleza e do perfume das flores. Ali permanecíamos brincando durante muitas horas.

Dentre outras coisas, lembro-me de que tirávamos de uma bonita caixa, um jogo chamado croquet o qual consistia em alguns paus muito bem pintados que eram fincados no chão de modo a formar um arco dentro do qual se devia fazer passar as bolas. Entre os que jogavam pior estava eu, talvez porque, como todo brasileiro, eu não levava o jogo muito a sério e não fazia questão de ganhar a partida, mas sim de gozar daquela alegria.

Terminados os jogos, chegava a hora dos ovos de Páscoa. Enquanto nós estávamos brincando, Mamãe com as Fräuleins tinham escondido os ovos pelo parque. Ao terminar, chamavam as crianças para começarem a procurar. Cada criança poderia ficar com os ovos que encontrasse. E como também para isso eu não tinha muita agilidade, Mamãe acompanhava-me com o olhar, e quando percebia que eu ia me aproximando dela um tanto desolado por estar com fome e não ter encontrado nenhum ovo, ela então sorrindo dizia: “Filhão, vá por ali que você vai encontrar uma coisa muito boa.”

Naquilo tudo eu sentia uma alegria muito superior à da comida, pois ela provinha de algo que estava no fundo de minha alma, o qual me enchia de satisfação.

Terminado o passeio, voltávamos para casa na hora da sesta, o que — ao contrário de todas as outras crianças — eu achava uma delícia. Eu ia contente para a minha cama macia, num quarto muito agradável, o qual já estava em certa penumbra, pois as venezianas eram fechadas, enquanto as janelas permaneciam abertas, deixando entrar um delicioso ar puro. Com a pouca luminosidade que havia no ambiente, eu permanecia prestando atenção no papel de parede de meu quarto, o qual era de origem francesa e tinha figuras de medalhões, pendentes de fitas azuis; eu os analisava enquanto ouvia os ruídos da cidade até adormecer tranquilo.

Só não era feliz a hora de levantar-me para estudar… Porém, ainda assim, este esforço era largamente compensado por todo o resto. No que consistia, então, essa felicidade?

À procura de um sentido para a vida

Quando essas perguntas começaram a surgir em meu espírito, compreendi que se eu encontrasse no fundo de minha alma a resposta para elas, teria com isso encontrado aquilo que deveria dar sentido a toda minha vida.

Levei anos refletindo sobre isso sem conseguir decifrar inteiramente a questão. Cheguei a pôr-me o problema de que aquilo não passava de mera imaginação. No entanto, lembrava-me que ao lado de toda aquela felicidade, havia algo superior, proveniente da sensação de ter a consciência tranquila.

Recordo-me, por exemplo, que quando eu fazia bem meus estudos, a Fräulein, geralmente, dava-me algo que eu gostava de comer. E quando eu cumpria meu dever em algo mais relevante, era a própria Dona Lucilia que me agradava de forma especial. Assim, a ideia de mérito e de prêmio para a consciência justa, ou seja, para aqueles que são bons, levavam ao auge a sensação que eu tinha de felicidade. Parecia-me com isso ter encontrado o ponto pelo qual até mesmo o cumprimento do dever tornava-se atraentíssimo. Tratava-se da feliz sensação de ter cumprido o dever.

A constante alegria da alma inocente

Dessa forma, minha ideia a respeito da felicidade de infância foi se acrisolando, até chegar à compreensão de que ela era fruto da inocência. Ou seja, daquele estado de alma próprio aos que não tiveram a desgraça de ofender a Deus.  

Lembro-me das borboletas azuis e verdes que me deixavam encantadíssimo, e me levavam a tentar apanhá-las, pois a inocência me fazia ver nelas um brilho, um fulgor e uma beleza que me deleitavam de forma inexplicável, o que no fundo provinha do fato de ver refletido nelas algo de Deus. Aquilo me fazia sentir um antegozo da alegria celeste, fruto da eterna contemplação da face de Deus.

E não só em uma borboleta ou alguma outra coisa, mais em tudo a alma inocente vê uma imagem de Deus, por isso sente constantemente sua alma inundada da mais pura e verdadeira felicidade.

Minha maior alegria

Entretanto, eu tive a maior felicidade de minha vida em algo que me encheu de entusiasmo, desde pequeno: a Santa Igreja Católica Apostólica Romana! Mais do que qualquer panorama ou qualquer flor, incomparavelmente mais do que qualquer delícia ou iguaria, ela me falava à alma.

Isso me dava a convicção de que por mais que fosse preciso sofrer, lutar, enfrentar dificuldades para levar uma vida digna, na Igreja eu encontraria toda a alegria que nesta vida se pode ter.  v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/5/1984)

Revista Dr Plinio 155 (Fevereiro de 2011)

 

 

 

1) “Il dolce far niente”. Expressão italiana que significa “A doçura de não fazer nada”.

 

Intercessores para obter o Reino de Maria em nós

Devemos considerar o valor simbólico da obra de Nossa Senhora que transformou suavemente essas crianças pelo simples fato de lhes aparecer reiteradas vezes em Fátima. As três mudaram extraordinariamente em consequência das revelações. Com uma delas, inclusive, a Santíssima Virgem disse estar aborrecida. Era Francisco, que não A viu por causa disso. Portanto, ele pode ser considerado um convertido.

Temos aqui algo de parecido com o Segredo de Maria, ou seja, uma dessas ações profundas da graça na alma, que se desenvolvem sem a pessoa dar-se conta. Ela cresce em amor de Deus, em vontade de se dedicar, em oposição ao pecado, mas tudo isso se dá maravilhosamente dentro da alma.

Se a obra de Nossa Senhora em Fátima foi assim, especialmente com essas duas crianças chamadas para o Céu, Jacinta e Francisco, podemos nos perguntar se isso não tem um valor simbólico e se não indica qual será a ação d’Ela sobre toda a humanidade, quando Ela cumprir as promessas que fez na Cova da Iria.

Seria, portanto, um começo do Reino de Maria, enquanto sendo o triunfo do Imaculado Coração sobre duas almas pregoeiras da grande revelação de Nossa Senhora, e que, por seus sacrifícios e preces na Terra e por suas orações no Céu, ajudaram e ainda ajudam enormemente as almas a aceitarem a mensagem de Fátima.

Assim sendo, Francisco e Jacinta são os intercessores naturais para se pedir e se obter de Maria Santíssima que comece o seu Reino em nós, desde logo, por essa transformação misteriosa que é o Segredo de Maria.

Peçamos que eles velem especialmente sobre aqueles que têm a missão de pregar e viver a mensagem de Fátima.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/10/1971)

Revista Dr Plinio 251 (Fevereiro de 2019)

Apostolado e sacrifício, ações inseparáveis

Por que razão Nossa Senhora quis a morte precoce de Jacinta e Francisco, videntes de  Fátima?

Em geral, quando se trata da salvação dos homens, é necessário haver vítimas que se associem à intervenção de Deus com o sacrifício de suas vidas.

Isto é especialmente frisante no que diz respeito às aparições de Fátima: trata-se de uma intervenção direta da Santíssima Virgem — atestada por milagres estupendos como, por exemplo, a rotação do Sol — com a transmissão de uma das mais importantes mensagens de Nossa Senhora aos homens ao longo de toda a História.

Pois bem, nesta ocasião Maria Santíssima quis a imolação de duas almas, as quais se ofereceram na intenção do pleno cumprimento dos planos da Providência.

Este oferecimento nos atesta como o sofrimento é insubstituível e como ele abre, verdadeiramente, os caminhos para a Igreja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/2/1965)

Catedra de São Pedro – Rocha inabalável

A festa da Cátedra de São Pedro celebra o Papa como mestre infalível, e o Papado como a rocha inabalável do alto da qual o Soberano Pontífice se dirige ao mundo inteiro, revestido da infalibilidade que Deus lhe outorgou.

Uma bela forma de nos unirmos a essa importante celebração seria oscularmos em espírito os pés da imagem de São Pedro que se encontra no Vaticano, nos quais a delicadeza do beijo alquebrou a força do bronze.

E assim, em espírito, oscular o Papado, esse princípio de sabedoria ou de infalibilidade da autoridade que governa a Igreja Católica.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/2/1964)

Reflexo do senhorio divino

Recolhido nas grandiosas e abençoadas solidões de Subiaco, São Bento idealizou a Civilização Cristã que, pouco depois, começaria a ser edificada em solo europeu.

Para o santo Patriarca, era preciso que houvesse uma vida religiosa no ápice de toda a existência humana, seguida pela vida temporal dos homens que se entregam às meras atividades terrenas.

Porém, era igualmente necessário, por vontade de Deus, que esses homens tivessem um alto pensamento, uma alta mentalidade e elevados anseios, a fim de engendrarem uma sociedade temporal toda marcada por aquela sociedade espiritual.

Uma bela manifestação deste ideal encontra-se na praça e no Palácio Público de Siena, na Itália. Ali se notam esplendores que nasceram com São Bento e com a obra beneditina no retiro de Subiaco. Sobretudo em determinados momentos em que a praça se acha praticamente vazia, tem-se a impressão de que toda a história do lugar conseguiu fugir do século atual e voltar, reconfortada, para as centúrias em que não tinha em torno de si a não ser suas próprias maravilhas e homens cheios de fé.

Num cenário bastante bonito, o palácio se ergue como um rei, dominador, pronto para governar as outras casas. Dir-se-ia que, através de seu relógio, ele possui um olhar com o qual supervisiona os acontecimentos ao seu redor. É um olhar ordenador, de quem conhece a situação própria de cada coisa se o bem que há no fato de elas estarem em seus respectivos lugares, cobrando-lhes, pelo mesmo olhar, a permanência delas nas suas posições.

Este o palácio, esplêndido e digno, amplo, confortável, severo e forte, que não depende a não ser de si para dirigir, e que exerce esta função tão parecida com a de Deus: governar os homens. O poder que se aloja ali, embora temporal, é exercido em nome de Deus, e representa eminentemente o domínio divino sobre a humanidade.

É um poder que não se exprime com a leveza e o esplendor das coisas sobrenaturais, como por exemplo, numa linda catedral gótica, as ogivas elegantes e os vitrais paradisíacos.

Não, a natureza é mais pesada que a graça. Ela nasce do chão, santa e legitimamente, mas é do solo que ela vem. A graça desce do Céu. Elas se encontram e se osculam: a natureza, serva, beija os pés da graça, a senhora.

Contudo, os dirigentes e os súditos do tempo em que o Palácio Público de Siena foi construído, estavam profundamente compenetrados da ideia de que, quem governa, mesmo na ordem temporal, o faz por desígnio de Deus. E que, para corresponder de modo perfeito a essa disposição divina, o governante deve, não raras vezes, demonstrar a sua força persuasiva natural, equivalente ao dom de mover as almas que tem a graça. Daí, um ligeiro ar de fortificação, uma certa aparência de quartel no Palácio Público, em cujos porões poderiam caber alguns cárceres, os quais, entretanto, não comprometem o conjunto de majestade desse edifício. Pormenor curioso, os dois torreões levantados nos ângulos do corpo central parecem braços e mãos erguidos ao Céu, pedindo a ajuda de Deus para o exercício de mando das coisas temporais…

Assim, por trás da magnífica temporalidade desse palácio, brilha a missão de velar sobre a Igreja para protegê-la, para favorecer a expansão dos missionários por toda a terra, para facilitar aos sacerdotes católicos a livre pregação da palavra de Deus.

O Estado tem, portanto, essa missão muito mais elevada que a de governar os homens: a de favorecer a Igreja. Este lado altíssimo do poder estatal é muito bem representado pela torre do palácio.

Esta se alça nos ares, sobe e sobe, como quem diz: “Vós, olhando para o lado terreno das coisas tendes toda a minha figura temporal. Vede como ela é bela! Mas vós não vistes nada. Vós não conheceis minha missão divina. Olhai!”

O interior do Palácio acompanha sua grandeza e esplendor externos. Salas cobertas de pinturas de extremo valor. Em Subiaco abriam-se as vastidões que têm como cúpula o próprio céu, e que alimentaram as reflexões de São Bento. Nesse palácio há tetos e arcos que convidam ao recolhimento do espaço pequeno, onde o homem pode também meditar nas coisas de Deus.

E então somos levados a imaginar um governante dessa Siena medieval, passeando pelas salas, terraços e torres do seu palácio. Um espírito ponderado e pensativo, cuidando da magnitude de seu poder temporal, das grandes responsabilidades e dos grandes serviços que pode prestar à salvação das almas, para o bem dos homens e, sobretudo, para o da Igreja.

Enquanto toda a cidade dorme, e apenas se ouve, de tempos em tempos, um tilintar dos relógios e um eco dos sinos a indicarem as horas que correm, ele está lá em cima, sozinho, rezando e pensando, pensando e rezando, como São Bento em Subiaco meditava…

São homens assim que sofrem e se tornam solitários nas grutas de Deus e são construções e monumentos como o Palácio de Siena que se transformam em instrumentos da graça, para conduzir as almas ao Paraíso Celestial.