Unido à Cátedra de Pedro até a morte

Quando de sua primeira visita a Paris na idade adulta, logo após se instalar no hotel, Dr. Plinio se dirigiu a Notre Dame. Era noite, a cidade luz cintilava. Aproximando-se pela “rive gauche”, encantou-se com a vista da face lateral da catedral junto ao Sena, e mandou parar o automóvel para ficar um tempo contemplando aquela maravilha. Desejava glorificar a Deus refletido tão belamente no célebre edifício sagrado visto desse ângulo.

Essa atitude de admiração enlevada era manifestação de um amor pela Igreja que quase tocava nos limites da adoração, conforme declarou ele certa feita. Se São Francisco desposou a Dama Pobreza, aspirava Dr. Plinio com todo o coração fazer um desposório místico com a Santa Igreja Católica, Apostólica e Romana enquanto instituição.

E, como de direito, o máximo de seu afeto filial se dirigia ao Santo Padre, o Doce Cristo na terra. “Ubi Christus ibi Deus; ubi Ecclesia ibi Christus; ubi Petrus ibi Ecclesia”. “Só estaremos unidos a Nosso Senhor Jesus Cristo, mediante uma união sobrenaturalmente forte, união de vida e de morte, à Cátedra de São Pedro. Onde está Pedro, aí está a Igreja de Deus”, escreveu ele no Legionário (17/2/1946).

Devotadíssimo filho da Santa Sé, em outro artigo para o Legionário, fazia Dr. Plinio esta eloquente apologia de seu filial e entusiasmado amor pelo Papado: “De tal maneira a Igreja Católica está vincada à Cátedra de São Pedro que onde não há a aprovação do Papa não há Catolicismo. O verdadeiro fiel sabe que o Papa resume e compendia em si toda a Igreja Católica […]. Porque tudo quanto há na Igreja de santidade, de autoridade, de virtude sobrenatural, tudo isto, mas absolutamente tudo sem exceção, nem condição, nem restrição está subordinado, condicionado, dependente da união à Cátedra de São Pedro. As instituições mais sagradas, as obras mais veneráveis, as tradições mais santas, as pessoas mais conspícuas, tudo enfim que mais genuína e altamente possa exprimir o Catolicismo e ornar a Igreja de Deus, tudo isto se torna nulo, maldito, estéril, digno do fogo eterno, e da ira de Deus, se separado do Romano Pontífice. […] para nós, entre o Papa e Jesus Cristo não há diferença. Tudo que diga respeito ao Papa diz respeito direta, íntima, indissoluvelmente, a Jesus Cristo”(16/4/1944).

Fiel até o fim ao carisma recebido, desejou Dr. Plinio morrer tendo nas mãos o crucifixo e uma vela benta pelo Papa, como derradeira e suprema manifestação desse incondicional afeto e devotamento à Cátedra de São Pedro de que sua alma transbordava.

Foi Dr. Plinio, sem dúvida, em toda integridade um autêntico “vir catholicus, totus apostolicus, plene romanus”!

A Torre de Marfim

Poucas imagens poderiam dar tanto a id eia de intransigência, quanto a torre de marfim. É a fortificação feita de material limpíssimo, alvíssimo, duríssimo, que é bem a representação da pureza e da santa intolerância. É a torre da integridade, da segurança de quem não tem falsas condescendências, e onde o homem se mostra superior em relação às vulgaridades e baixezas deste mundo.

Na criação, Nossa Senhora, que é a Arca da Aliança, a Porta do Céu, vista sob outro aspecto, bem merece ser chamada a Torre de Marfim, pelo fato de que Ela, entre todas as criaturas, levanta-se como uma torre. Só Ela teve a conceição imaculada; só Ela obteve o privilégio da virgindade antes, durante e depois do parto; só Ela correspondeu à graça de modo a ser objeto inteiro de toda a predileção e de toda a complacência de Deus.

Nas guerras de outrora, as torres eram dispositivos de defesa, a partir dos quais eram repelidos os ataques dos inimigos. Ora, a Santíssima Virgem se apresenta como uma fabulosa antítese de toda sorte de erro e de mal. Assim, Ela é bem uma torre, e uma torre de marfim, no meio de todas as degradações, misérias e corrupções que existem no mundo. Ela é inteiramente casta, Virgem entre as virgens, sempre obediente a Deus, Rainha de tudo e de todos.

Verdadeiramente, Nossa Senhora se ergue como uma torre na planície: torre puríssima de marfim, invulnerável ao pecado, indiferente a todas as investidas de seus adversários, voltada apenas para Deus.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Sem amor a Deus, não se alcança a paz

A ordem internacional tem de se basear necessariamente no amor ao próximo. Enquanto os povos não se amarem, não souberem pôr um freio a suas ambições ilegítimas e suas vaidades nacionais, não haverá ordem internacional.

E como o amor ao próximo [é] uma realidade vivaz e profunda, que brota do amor de Deus; como não é possível ter verdadeiro amor de Deus quem não ama a Nosso Senhor Jesus Cristo; e como não pode amar verdadeiramente a Nosso Senhor Jesus Cristo quem não está na Igreja Católica, enquanto a Igreja  não for reconhecida como a base do edifício internacional, a alma das relações entre os povos e a guardiã de toda a moral, não poderá haver na esfera internacional, para os povos, paz verdadeira.

Em outros termos, ou o mundo se converte e reproduz fielmente a visão agostiniana da “Civitas Dei”, em que cada povo leva o amor de Deus a ponto de renunciar a tudo quanto lese aos outros povos; ou pelo contrário, o mundo será aquela cidade do demônio, em que todos levam o amor de si mesmos a ponto de se esquecer de Deus, de calcar aos pés a moral, e de fazer da violação dos direitos dos povos fracos a norma habitual de sua conduta.

De todas as fases em que se divide a história, foi sem dúvida a Idade Média aquela que mais se aproximou da realização perfeita de uma civilização católica. Na esfera internacional, o conceito dominante era de “Cristandade ”. Esse conceito político tem os mais sólidos fundamentos teológicos, e se baseia na doutrina do Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo, no qual nos inserimos por meio do santo Batismo.

Toda a tendência dos melhores doutrinadores consistia em reconhecer ao todo homogêneo formado pelos povos católicos, um só chefe espiritual, o Papa. Assim, obedientes a uma só doutrina, a um só pensamento, aos preceitos de uma só civilização — a católica — esses povos estavam sujeitos ao “veredictum” paternalmente imparcial de um só juiz, o Papa.

A pseudo-reforma protestante rompeu essa maravilhosa unidade, e retirou da alçada do tribunal internacional que era o Papado, numerosos povos. Rompido o elo de subordinação entre o Pai comum e tantos filhos rebeldes, evaporou-se das relações internacionais, de modo completo, o ambiente de família. E, à ordem cristã baseada no amor fraterno, se substituiu uma ordem baseada na desconfiança e no ódio. Nascer do ódio, significa nascer do mal, nascer do pecado, nascer do fracasso.

E, de fato, o pecado, o fracasso e o mal foram as três raízes mais profundas e mais ativas da nova ordem de coisas.

Plinio Corrêa de Oliveira (Excertos de artigo publicado no “Legionário”, nº 491, 8/2/1942. Título nosso.

Revista Dr Plinio (Fevereiro de 2012)

Sonhando com a Idade Média..

Incrustado nas montanhas da Baviera, famoso no mundo inteiro, o castelo de Neuschwanstein foi construído no século XIX pelo Rei Luís II, um homem apaixonado pelas coisas da Idade Média.

Seu entusiasmo por aquela época de fé e de grandezas cristãs o levou a idealizar um edifício que exprimisse todo o espírito medieval, e, mais ainda, chegasse a transcender em algo o estilo gótico.  Surgiu Neuschwanstein. O castelo se situa num panorama ultra favorável. Posto numa espécie de píncaro em relação a todas as circunjacências imediatas, servem-lhe de fundo de quadro três lindos aspectos da natureza. Primeiro, um longo movimento de montanhas que parecem convergir para ele, extinguindo-se aos seus pés. Depois, dois lagos cujas águas límpidas e cristalinas assemelham-se a espelhos, como são em geral as que se represam nos altos dos montes. Em terceiro lugar, uma floresta plantada, tão densa e tão vigorosa que parece uma mata virgem.

No meio de tudo, o castelo sobranceiro, dando a impressão de receber sua dignidade e sua força de todas as montanhas que nele desembocam. Domina de modo soberano tudo o que lhe fica  abaixo, como quem agarra a natureza em nome da majestade dos montes que o antecedem.

Como um rei procedente de uma genealogia fabulosa e de um passado grandioso, que no presente governa seus povos de forma altaneira. Assim temos esse castelo colocado no seu lugar. É uma  verdadeira garra subjugando a montanha, é um autêntico herói que olha do alto os panoramas, sentindo-se superior a todo o cenário que considera.

A primeira coisa que se nota no castelo é o jogo das torres. Sobretudo a mais elevada, que parece desafiar os montes às suas costas, como quem diz: “Não me contento em jugular o que está abaixo; eu discuto e rivalizo com aquilo que, acima de mim, quer contestar que me encontro, sozinha, no píncaro do orbe!”

Singularmente esguia, essa torre se divide em motivos ornamentais, culminando num telhado cônico que acentua a sensação de se tratar mesmo de um pináculo do universo. Terraços erguidos  sobre ameias, além de várias janelas, indicam uma torre própria para ser habitada.

E quando pensamos no que significa morar numa construção dessas, figuramos logo um quarto de paredes de pedra, com uma grande lareira onde o fogo aquece no inverno, projetando reflexos de labaredas num bonito vitral, enquanto se ouvem os ventos uivantes lá fora.

Ou então, na proximidade da primavera e do estio, sentindo que a natureza toda estremece e a torre continua firme. Compreende-se que é alguma coisa viver num local como esse! Bem diferente da existência num edifício de apartamentos…

Há depois o prédio principal do castelo, constituído de vários andares e que se prolonga em dois corpos laterais, mais baixos, entrecortados e finalizados por torres de diferentes feitios. Dir-se-ia que a grandeza de Neuschwanstein segue um ziguezague de torre a torre, sendo  rematada pelo pátio interno, como se este fosse uma taça que recolhe  em si toda a atmosfera de magnitude ali contemplada.

Existe ainda outra fachada do castelo, edificada em pedra (ou tijolo) de cor avermelhada, aberta por um portal magnífico e dando para um terraço de onde se domina a natureza.  Ali se ergue a última torre, reminiscência de todas as outras, que reproduz em ponto menor a grandiosidade da construção. Fosse esta última composta apenas por tal torre, dotada de uma vida própria, e já  teríamos um lindo castelo. Mas, por trás disso sobe uma verdadeira sinfonia de torres, ameias e tetos cônicos, até a suprema ponta que desafia as montanhas.

Todo esse conjunto nos transmite a ideia de uma grandeza sumamente hierárquica, que se desdobra nos seus respectivos degraus até se abrir para o que lhe é inferior, ter um afago para quem deseja ultrapassar seus portões com boa intenção, ou ter uma ameaça para quem se aproxima imbuído de maus sentimentos.

Porque este castelo tem qualquer coisa de fortaleza; e esta fortaleza, algo de cárcere. Para aquele que entra de acordo com a vontade do dono, não há maravilhas que não lhe sejam aí desvendadas. Para o inimigo e o criminoso, porém, reservam-se castigos e punições. Eis o Neuschwanstein, um castelo altamente simbólico do senso de batalha, de combate e de dignidade afidalgada do homem medieval.

Castelo tão belo de se ver, esplêndido sonho de um rei que poderia ter sido grande e não o foi, mas que deixou à humanidade uma extraordinária figura de tudo quanto estava destinado a realizar…

Plinio Corrêa de Oliveira

CAUSA DE NOSSA ALEGRIA

EMBORA SENDO MERA CRIATURA, MARIA SANTÍSSIMA FOI DE TAL MODO CUMULADA DE GRAÇAS PELA PROVIDÊNCIA DIVINA QUE – PODE-SE AFIRMAR – TODAS AS SANTAS ALEGRIAS DA TERRA E DO CÉU NÃO SE COMPARAM COM A ALEGRIA D’ELA.

NA VERDADE, NOSSA SENHORA, SOZINHA, É MAIS INUNDADA DE GLÓRIA, TEM UMA MAIOR ABUNDÂNCIA DE FELICIDADE E DE INTIMIDADE COM DEUS, UMA MAIOR VENERAÇÃO PARA COM ELE E RECEBE DA PARTE D’ELE UM MAIOR RESPEITO, DO QUE TODAS AS CRIATURAS ANGÉLICAS E HUMANAS REUNIDAS!

SE, COMO ARDENTEMENTE DEVEMOS DESEJAR, NOSSA SENHORA NOS OBTIVER A GRAÇA DA SALVAÇÃO ETERNA, A NOSSA MAIOR ALEGRIA NO CÉU, DEPOIS DA VISÃO BEATÍFICA, SERÁ CONTEMPLAR A ALMA SANTÍSSIMA DE MARIA E, NELA, OS REFLEXOS DAS INFINITAS PERFEIÇÕES DE DEUS NOSSO SENHOR.

Devoção ao Sagrado Coração de Jesus

Atendendo ao pedido de um discípulo, Dr. Plinio tece comentários transbordantes de ardoroso amor acerca da devoção ao Sagrado Coração de Jesus.

Estando na contingência de tratar sobre um tema tão caro, a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, meu modo de ser me levaria a procurar estudar, pensar e meditar a respeito dele, até ter conhecido a respeito do assunto tudo quanto seja possível. A meu ver, assim também deve ser o amor, feito do máximo sentimento possível, mas a par do sentimento deve estar também o raciocínio pelo qual nós buscamos entender ao máximo aquilo que se sente. Da soma destes dois fatores resulta o verdadeiro amor.

Contudo os deveres de meu apostolado não me permitem agir de acordo com este princípio, ao menos não tanto quanto gostaria. Mas, ainda que eu não tenha podido fazer estudos profundos a respeito deste tema, algo sempre se conhece, proponho assim que entremos no assunto valendo-nos, sobretudo, daquilo que sentimos a respeito desta devoção.

Duas concepções de coração

Primeiramente, eu gostaria de analisar duas concepções distintas, mas não contrárias, a respeito do que representa o coração.

Uma é a concepção moderna, segundo a qual o coração é símbolo do sentimento puro, divorciado da razão. Debaixo desta visualização, o coração de alguém deve vibrar à vista de algo que lhe causa boa impressão, enternecimento, e produz um sentimento de bondade e condescendência.

Algo disso, por exemplo, se dá comigo sempre que vejo uma imagem do Sagrado Coração de Jesus que está numa Igreja da cidade de São Paulo, a Ele dedicada. Ao ver aquela imagem, lembro-me de uma série de emoções de ordem religiosa que tive diante dela. Estas emoções, evidentemente, de nenhum modo eu as considero ruins. Mas pergunto: Será que o coração representa só isso? Devemos considerar que os antigos entendiam o coração num sentido mais profundo; para eles o coração representava o conjunto de tudo aquilo que o homem conhece e ama. Porém, com um amor segundo a concepção que apontei acima, ou seja, sentindo, raciocinando, julgando, e conforme o caso, aderindo e amando. Tudo quanto desta forma o homem ama, constitui um conjunto que é a mentalidade do homem, a qual é representada pelo coração.

Diante desta concepção, a devoção ao Sagrado Coração de Jesus adquire uma profundidade insondável.

Diversos aspectos de uma mesma cena

Imaginemos como alguém, que conhecesse Nosso Senhor Jesus Cristo durante sua vida terrena, deveria amá-Lo, a ponto de saber reconhecer o majestoso e suave timbre de sua voz. Consideremos que essa pessoa tivesse visto um olhar repleto de bondade e misericórdia d’Ele para alguém. Por outro lado pudesse contemplá-lo açoitando os vendilhões do Templo, ou respondendo aos guardas do Templo: “Ego sum”, e todos caírem no chão.

Creio que se eu fosse pintor, seria capaz de fazer ao menos uns cinquenta quadros representando diferentes aspectos que n’Ele deveriam transparecer naquele momento. O mesmo se poderia fazer a respeito da cena onde, do alto da Cruz, entre gemidos Ele disse: “Mãe eis o teu filho! Filho eis aí tua mãe!”(Jo 19, 26-27). Com que fisionomia Jesus terá dito isso? Ou então, quando Ele afirmou ao bom ladrão: “Hoje estarás comigo no Paraíso”. Nesta mesma cena é preciso considerar não só as palavras d’Ele ao bom ladrão, mas também, o silêncio gélido d’Ele em relação ao mau ladrão.

Quanta expressividade tem o silêncio de uma pessoa como Nosso Senhor Jesus Cristo!

Pois bem, se a mim fosse dada a graça de presenciar tudo isso, creio que, apesar do meu empenho em conhecer as mentalidades, eu esqueceria tudo para só prestar atenção n’Ele. Evidentemente, também em Nossa Senhora e um pouco nos Apóstolos, fora deles, mais nada. Mas, sobretudo eu teria procurado conhecer Nosso Senhor o quanto me fosse possível. Não por controle ou desconfiança, mas, pelo contrário, para poder amá-Lo e entregar-me cada vez mais a Ele.

Como será a mentalidade de Nosso Senhor?

Tomada esta concepção de coração, podemos nos perguntar como deve ser a mentalidade de Cristo.

A resposta é muito difícil, pois o tema é tão alto que estando em baixo tem-se medo de subir. Por outro lado, quando se chega em cima não se tem vontade de descer. Se considerarmos, sobretudo, a natureza humana de Nosso Senhor, podemos tentar explicitar algo, pois no tocante à divindade o assunto atinge tal altura que se torna impossível ao homem alcançá-lo.

A Fé nos ensina que Jesus Cristo é o Verbo de Deus encarnado que passou a habitar entre os homens (Cf. Jo 1,14). Na Pessoa dele a natureza humana e a divina se unem hipostaticamente (Cf. Cat. 467). Esta união é insuperável e inatingível por qualquer criatura humana, nem sequer Nossa Senhora, à Qual acredito ter sido dado o dom da permanência eucarística, pode ter uma união com Deus comparável à que teve a natureza humana de Jesus.

A relação entre a humanidade e a divindade na Pessoa de Jesus é algo tão extraordinário que São Luís, Rei de França, tinha o belo costume, depois adotado por toda a Igreja, de inclinar-se quando durante o Credo se afirmava: “Et Verbum caro factum est et habitavit in nobis”.

A maior alegria e o mais terrível sofrimento

Que alegria tal união deveria produzir na natureza humana de Jesus? Sem considerar a divindade pela qual Cristo é a própria Fonte de toda alegria. Apesar disso, por algum mistério, durante sua oração no Horto esta alegria parece ter cedido lugar a uma terrível sensação de abandono que o levou a pedir: “Pai, se for possível afasta de mim este cálice!”(Lc 22, 42).

Ainda mais eloquente é o brado lançado do alto da cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonaste?”(Mc 15, 34). O que terá se passado naquele momento com esta união da natureza humana e a divina, que possa ter causado um tão grande sentimento que O levou a, pouco depois, dizer: “Consummatum est!” (Jo 19,30) e render seu espírito?

Por aí se vê que, apesar da união da natureza humana de Nosso Senhor com a divina, Ele podia sofrer. E por certo equilíbrio que nesta vida costuma haver entre a felicidade e a dor, considerando as alegrias de Jesus, podemos medir quão profundos devem ter sido seus padecimentos.

Creio que um dos mais pungentes sofrimentos pelos quais Cristo passou deve ter sido o do inexplicável. Pois nenhuma dor humana é tão grande quanto à de sofrer sem saber a razão. Apesar de Nosso Senhor enquanto Deus conhecer tudo, e saber que Ele não é passível de culpa, de alguma forma misteriosa Ele deve ter passado por esta forma de dor, do contrário seu sofrimento não seria completo.

Tenho a impressão de que assim como Deus, após criar cada ser que existe no Universo, considerou o conjunto e viu ser este melhor, de modo análogo, Nosso Senhor, após haver passado por todos os tormentos da Paixão, deve ter olhado a beleza do conjunto de seus padecimentos, e deve ter pensado: “Está tudo oferecido; tudo quanto podia sofrer, sofri, para a redenção do gênero humano”, então exclamou: “Consummatum est!”

Mentalidade composta de contrários harmônicos

Ora, é preciso termos presentes estes aspectos de grandeza e fortaleza de alma que vemos transparecer nos últimos atos da Paixão do divino Redentor ao analisarmos cada momento de sua vida terrena. Pois, Ele que sofreu uma morte como essa, é o mesmo que acariciou as criancinhas quando se aproximaram d’Ele, e a respeito das quais disse: “Deixai vir a Mim os pequeninos, porque deles é o Reino do Céu” (Mc 10, 14). Não há homem, de qualquer idade, que ouvindo estas palavras não se sinta nelas concernido, pois diante d’Ele quem não se sente pequenino? E pensa: “Então também para mim há um lugar junto a Jesus”.

Devemos considerar que estas palavras transbordantes de doçura saíram dos lábios d’Aquele que durante a Paixão mostrou possuir inigualável força e decisão.

Mas, como pode a alma humana reunir num só quadro todos estes aspectos, de maneira que, à vista de Nosso Senhor, O considere como Aquele que expulsou os vendilhões do Templo, ao mesmo tempo veja n’Ele aquele que com indizível bondade acariciava as criancinhas, curava os doentes, espargia em torno de Si alegria, consolação, tranquilidade, saúde e encanto? Mais ainda, como conjugar numa só visão o Varão tão forte, único e incomparável que se vê no Santo Sudário, com o Menino Jesus recém-nascido, abrindo os braços e sorrindo para Nossa Senhora?

Se bem que já ao abrir os braços os punha em forma de cruz, prenunciando que nascia para ser crucificado, como pode alguém imaginar que naquela Criança cândida, inocente e frágil, já estava o Herói que iria suportar os mais terríveis padecimentos que já se viu e se verá até o fim do mundo?

Males de uma visão unilateral

Como então condensar todas estas perfeições do Homem-Deus numa só visão?

Estas perfeições são tantas que seríamos propensos a nos contentar com a consideração de um só aspecto. De fato, cada um O adora da forma que se sente chamado a fazê-lo, mas em meu caso particular, pelo meu modo de ser, eu nunca me satisfaria em adorá-Lo sob um só destes aspectos, sem procurar reuni-lo aos outros, de modo a formar, ainda que sumariamente, uma noção de conjunto.

Por isso, se eu pudesse conhecê-Lo nesta vida, o que mais me aprazeria admirar n’Ele seriam as transições de estados de espírito, para que nessas variações eu pudesse ver a harmonia que elas formavam.

No teto da Igreja do Sagrado Coração de Jesus há uma pintura no estilo do século XIX, a qual tem a característica, proveniente de uma tendência dos homens desse século, de representar as coisas exatamente como elas são na realidade prática. Daí surgiu a escola de arte chamada Realismo. Isso para mim não é verdadeira arte. Pois o valor de uma obra de arte está em representar algo de imponderável que só os olhos de verdadeiros observadores captam.

Se representar as coisas tal como a vemos tem valor artístico, a mais perfeita das artes deveria ser a fotografia. Ora, a maior lacuna tanto do Realismo quanto da fotografia está em não retratar estas transições de alma de que acima me referia. Por isso, nos quadros de Jesus que seguem esta escola, nota-se que o artista escolheu um só aspecto de Jesus e procurou representa-lo. E geralmente o que se procura representar de Nosso Senhor é sua misericórdia infinita, o que apesar de ser muito justo é, porém, incompleto.

Na ladainha do Coração de Jesus há a seguinte invocação: “Coração de Jesus, abismo de todas as virtudes”. Isto quer dizer que a profundidade das virtudes d’Ele é tal que constitui um abismo para os homens. Poderíamos até chama-lo Céu de todas as virtudes, considerando o Céu como sendo um abismo para cima.

Pintando belezas esquecidas

Quão bom seria se alguém pintasse quadros representando outras cenas da vida de Cristo. Por exemplo, Ele meditando no deserto quando lá passou quarenta dias em jejum e oração. Poder-se-ia até imaginá-Lo junto a uma pedra, em meio a um deserto árido, onde houvesse somente uma vegetação ordinária e parca, em contraste com a grandeza daquela cena, ao longe vastidões cobertas de uma bonita areia que se encontra com o horizonte, no qual se nota um por de sol cor de brasa, recortado pelo perfil de Jesus.

Ou ainda, poderia ser feito um quadro de Cristo agradando a Nossa Senhora. Pois, se Ele já se tinha deleitado na contemplação do Universo, quanto não Lhe agradaria olhar para Aquela que era superior a todo o Universo! Então representá-Lo olhando nos olhos de Nossa Senhora, Ela cheia de enlevo para com Ele que por sua vez pensava: “Minha obra prima!” e, enquanto filho: “Minha Mãe! Que perfeição!”

O que não daríamos em troca de contemplar uma cena como essa, ainda que pelo buraco de uma fechadura? Depois de vê-la, para que continuar vivendo? Pois, se alguém nos dissesse: “Olha o mar, que bonito!” Eu que gosto tanto do mar, pensaria: “O que é ver o mar depois de ter visto Maria?”

Enfim, como gostaria que se procurasse representar todos os estados de espírito d’Ele, pois não me contento em adorar e aderir somente à sua misericórdia.

Consideração de tudo quanto fez pulsar e vibrar o Sagrado Coração de Jesus

Além disso, outra coisa que muito me agradaria fazer seria uma coleção dos timbres de voz de Nosso Senhor. Por exemplo, d’Ele enquanto ensinava, Ele que é o Divino Mestre, quanta clareza, sabedoria, profundidade, vastidão de horizontes e simplicidade deveriam transparecer em seu timbre de voz!

Talvez, ainda mais do que os timbres de voz, o que não se daria para ter a representação de alguns olhares de Jesus? Para falar só de dois. Como teria sido o olhar que Ele deu a São Pedro, a ponto de convertê-lo e fazê-lo chorar amargamente de arrependimento durante toda a vida? Ou então o último olhar que Ele dirigiu à sua Mãe junto à Cruz. Quanto carinho, apreço e amor deveriam se manifestar neste olhar? Por outro lado, como terá sido o olhar severo dele, expulsando os vendilhões do Templo; ou o olhar desgostoso d’Ele para Pilatos; ou então o olhar de repreensão para Anás e Caifás?

Todo esse conjunto está contido no Sagrado Coração de Jesus, e repercutiu n’Ele de tal forma que, em cada um destes vários momentos, Ele deve ter pulsado de modo diferente, ora mais intensamente, ora menos.

Sendo o Coração de Jesus composto por todos estes aspectos, para termos verdadeira devoção a Ele não basta conhecer e amar somente um destes aspectos, mas é necessário ter uma visão de todo o conjunto que Ele representa. Isto evidentemente ninguém é capaz de atingir inteiramente sem um especial auxílio da graça, mas para os que almejam e empenham-se em conhecer e amar o quanto seja possível este magnífico, indizível e inestimável conjunto, que compõe o Sagrado Coração de Jesus, essa graça em certo momento virá.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/4/1984)

Os pastorinhos de Fátima e o Segredo de Maria

Que maravilhas da graça se operaram nos corações dos Pastorinhos de Fátima por ocasião de seus encontros com a Santíssima Virgem? Que virtudes a ação da celeste Senhora fez desabrochar naquelas humildes crianças? No presente artigo Dr. Plinio nos dá a resposta desvendando algo do Segredo de Maria ao constatar a vitória do Imaculado Coração de Maria nas almas dos dois videntes de Fátima.

Há uma ficha para nós comentarmos aqui: “Última aparição de Nossa Senhora em Fátima”, do Pe. João M. de Marchi, IMC, no livro: “Era uma Senhora mais brilhante que o sol”(1). A verdadeira diretora espiritual das crianças foi, todavia, essencialmente Nossa Senhora. Falo das crianças: Jacinta, Francisco e Lúcia (os Pastorinhos de Fátima).

A bondosa Senhora da Cova da Iria tomou à sua conta a realização desta obra-prima. E como não podia deixar de ser, levou a cabo com pleno êxito. Das suas mãos prodigiosas saíram três anjos revestidos de carne, mas que ao mesmo tempo eram três autênticos heróis. A matéria-prima era de uma plasticidade admirável. E da Artista, que mais dizer?

Na sua escola, os três serranitos deram, em breve tempo, passadas de gigante no caminho da perfeição. Neles se verificou, à letra, as palavras de um grande devoto de Maria, o Beato Grignion de Montfort: “Na escola da Virgem a alma progride mais numa semana do que em um ano fora dela”. A pedagogia da Mãe de Deus não sofre confrontos. Em dois anos, a Virgem Santíssima conseguiu erguer os dois irmãozitos, Francisco e Jacinta, até os cumes mais elevados da santidade cristã.

O retrato que a mão segura de Lúcia nos traça sobre Jacinta é revelador: “A Jacinta tinha um porte sempre sério, modesto e amável que parecia traduzir a presença de Deus em todos os seus atos. Próprio das pessoas já avançadas em idade e de grande virtude. Não lhe vi nunca aquela demasiada leviandade e o entusiasmo próprio das crianças pelos enfeites e brincadeiras isto depois das aparições). Não posso dizer, que as outras crianças corressem para junto dela, como faziam para junto de mim. E isto talvez porque ela não sabia tanta cantiga e historieta para lhes ensinar e as entreter, ou então porque a seriedade de seu porte era demasiado superior à sua idade. Se na sua presença alguma criança, ou mesmo pessoas grandes, diziam alguma coisa ou faziam qualquer ação menos conveniente, repreendia-as dizendo: “Não façam isso, que ofendem a Deus Nosso Senhor. E Ele já está tão ofendido!” (…)

Francisco sentia-se atraído por uma vida de asceta e de contemplativo. Frequentemente desaparecia da vista das duas meninas, mantendo-se em lugares ermos e ficava a pensar.

— Que estavas aqui a fazer há tanto tempo? Perguntou-lhe Lúcia.

— Estava a pensar em Deus que está tão triste por causa dos muitos pecados! Se eu pudesse O consolar! Jesus está tão triste e eu quero confortá-lo com oração e penitência.

Em outra ocasião dizia: “Gosto muito de Deus. Mas Ele está tão triste por causa de tantos pecados. Nós não devemos fazer nem o mais pequeno pecado!”

Um dia em que a Lúcia cedeu às instâncias das amiguinhas para tomar parte em divertimentos próprios da idade, Francisco chamou-a de lado e disse-lhe muito sério:
— Então tu voltas a essas brincadeiras depois de Nossa Senhora nos ter aparecido?
— Então, pediram-me tanto!… — escusava-se a Lúcia.

Mas o Francisco lógico e severo lhe retorquia:
— Toda a gente sabe que Nossa Senhora te apareceu, então não devem estranhar que tu já não queiras bailar!…

Trata-se aqui daquele bailado português em que as pessoas se tocam com as mãos. São aquelas figuras de bailado camponês.

As crianças aproveitavam as entradas e as saídas das escolas para irem visitar Nosso Senhor, passando longas horas ao pé do Tabernáculo.

A Jacinta e o Francisco, sobretudo, que tinham a promessa da Virgem de os vir buscar, em breve, para o Céu e que, portanto, se julgavam dispensados das lições, recolhiam-se mais vezes na igreja a falar a sós com “o Jesus escondido”.

Jesus escondido é o nome com o que chamavam a Eucaristia.

Jacinta dizia a Lúcia:
— Já fizestes hoje muitos sacrifícios? Eu fiz muitos. Rezei também muitas jaculatórias. Gosto tanto de Nosso Senhor e de Nossa Senhora que nunca me canso de Lhes dizer que Os amo. Quando eu Lhes o digo muitas vezes, parece que tenho lume no peito, mas não me queima.

Outras vezes:
— Olha Lúcia, Nossa Senhora veio nos ver esses dias. E veio dizer que vem buscar o Francisco muito breve para o Céu. E a mim, perguntou-me se ainda queria converter mais pecadores. Disse-lhe que sim. Ela disse-me então que quer que eu vá para dois hospitais, mas não é para me curar. É para sofrer mais por amor de Deus, pela conversão dos pecadores, em desagravo das ofensas cometidas contra o Coração Imaculado de Maria. Disse-me que tu não irias, que iria lá minha mãe levar-me e que depois ficaria sozinha.

Tempos depois, Francisco para Lúcia:
— Estou muito mal, falta-me pouco para ir para o Céu.

Lúcia:
— Então vê lá, não te esqueças de lá pedir muito pelos pecadores, pelo Santo Padre, por mim, e pela Jacinta.

Francisco:
— Sim, eu peço. Mas que essas coisas peças antes à Jacinta, que eu tenho medo de me esquecer, quando vir a Nosso Senhor. E depois, antes O quero consolar.

Na obra de Nossa Senhora com os videntes de Fátima, um começo do triunfo do Imaculado Coração de Maria nas almas

Esta ficha tem uma graça marcante, porque ela nos indica uma porção de aspectos grandes e pequenos da obra de Nossa Senhora com estas três crianças.

Mas nós devemos, antes de tudo, considerar o valor simbólico da obra de Nossa Senhora nas crianças. Enganam-se aqueles que imaginam ser apenas uma obra sobre três crianças. É uma obra que transformou suavemente essas crianças de um momento para outro, pelo simples fato das reiteradas aparições de Nossa Senhora.

Com uma dessas crianças até, Nossa Senhora disse estar aborrecida. E esta criança era o Francisco, que não ouviu Nossa Senhora por causa disso. E, portanto, pode ser considerado um convertido. As três mudaram extraordinariamente em consequência das revelações.

Nós temos aqui algo de parecido com o Segredo de Maria. Quer dizer, uma dessas ações profundas da graça na alma, ações que se desenvolvem sem a pessoa dar-se conta. Ela vai sentindo-se cada vez mais livre, cada vez mais desembaraçada para praticar o bem, e os defeitos que a tolhem e a prendem no mal vão se dissolvendo. E a pessoa cresce em amor de Deus, cresce em vontade de se dedicar, cresce em oposição ao pecado, mas tudo isso se dá maravilhosamente dentro da alma.

De maneira que a alma não trava as grandes e metódicas batalhas da ascensão admirável ao Céu, à virtude, à santidade, daqueles que lutam de acordo com o sistema clássico da vida espiritual; mas Nossa Senhora as transforma de um momento para o outro. E se a obra de Nossa Senhora em Fátima — especialmente com essas duas crianças chamadas para o Céu — foi assim, nós podemos bem nos perguntar se isto não tem um valor simbólico, e se não indica qual vai ser a ação de Nossa Senhora sobre toda a Humanidade quando Ela cumprir as promessas feitas em Fátima, e se não é lícito prever o cumprimento das promessas de Fátima executado à maneira do ocorrido com Jacinta e Francisco, mais notadamente, como cogita esta nossa ficha.

E, portanto, se nós não devemos ver aí um começo, podemos ver um dos múltiplos começos — porque as coisas enormes têm muitos começos — do Reino de Maria, enquanto sendo o triunfo do Imaculado Coração sobre duas almas pregoeiras da grande revelação de Nossa Senhora; as quais, pelos seus sacrifícios e orações na Terra e, depois, as orações no Céu, ajudaram e ainda ajudam enormemente as almas a aceitarem a mensagem de Fátima.

Quer dizer, nós devemos ver nessa transformação, creio eu, ao menos de um modo muito provável, um símbolo dessas transformações profundas que marcarão o Reino de Maria.

Os Pastorinhos de Fátima: intercessores apropriados para obter de Nossa Senhora o início de seu Reino em nossos corações

Esta primeira observação me parece conduzir diretamente ao seguinte: se isto é assim, então os pastorinhos de Fátima são os intercessores naturais para se pedir e obter de Nossa Senhora que comece o Reino de Maria em nós desde logo, por essa transformação misteriosa que é o Segredo de Maria.

E, então, nós devemos suplicar instantemente, tanto à menina quanto a ele, que comecem a nos transformar, comecem a nos dar os dons que eles receberam. E que eles velem especialmente sobre aqueles cuja missão é a de pregar a mensagem de Fátima, viver da mensagem de Fátima, como acontece conosco.

Isto é uma razão a mais para nós termos uma marcante devoção a eles.

Efeitos da ação de Maria sobre os videntes

É interessante notar, também, o efeito do Segredo de Maria sobre essas crianças. Elas mudaram, está bem. Mas quais os sintomas externos dessa mudança? Quais foram as manifestações externas dessa transformação? São apontadas aqui três coisas: grande seriedade, espírito de oração e espírito de sacrifício. Por cima de tudo isso, uma convicção muito grande da missão deles e o desejo de viver para essa missão, de onde vinham essas três consequências.

Espírito de seriedade

Espírito de seriedade. Os senhores viram o Francisco censurar a Lúcia por esta não ser bastante séria e aceitar de bailar, ou seja, fazer aquela dançazinha portuguesa com crianças. E a razão dada por Francisco para repreender a Lúcia foi essa:
— Você, que viu Nossa Senhora aparecer, não deveria participar desses brinquedos.

A Lúcia respondeu:
— Mas, afinal de contas, pediram tanto!

Disse o Francisco:
— Mas como eles sabem que a você Nossa Senhora apareceu, a você eles não deviam pedir.

Como quem diz: “Eles compreenderão a sua recusa ou, ao menos, têm todos os dados para compreender. Se eles não compreendessem, seria por culpa deles, mas você deveria ter recusado”.

É a ideia de que para agradar Nossa Senhora precisa ser muito sério. Não se agrada Nossa Senhora sem ser muito sério.

E de Francisco, a ficha diz que ele era lógico, raciocinava muito, com muita firmeza no tocante a seus deveres. O autor emprega até uma palavra muitas vezes utilizada hoje em sentido pejorativo: que ele era “severo”. Ele possuía uma lógica completa e deduzia de sua missão que era preciso ser daquele jeito: sério, não dizer nada inconveniente, agir corretamente. Por isso ele não perdia ocasião de dar o exemplo e de proceder segundo a lógica.

Mais ainda, esta seriedade, nas condições insignificantes de crianças, levava-as à combatividade. A Jacinta não via uma pessoa dizer ou fazer algo errado, sem que ela a repreendesse: “Isto aqui não está bom!” E dava a razão religiosa: “Deus não deve ser ofendido! Já está tão ofendido em nossa época, você ainda quer ofendê-lo mais? Quer acrescentar algo a esta montanha de pecados que se cometem?”

Então, os senhores percebem como a seriedade e a lógica são o fruto do Segredo de Maria. E se nós quisermos corresponder às graças de Nossa Senhora, devemos agir de maneira a sermos sérios e lógicos. E, pelo menos, quando virmos pessoas sérias e lógicas, tratarmos de admirá-las, de nos acercarmos delas, conversar com elas, e nos deixarmos penetrar pelo espírito delas.

Espírito de sacrifício

De outro lado, o espírito de sacrifício. As duas crianças recebem de Nossa Senhora a notícia de que morrerão dentro de um breve prazo. E a Francisco a notícia podia apavorar porque estava dito que ele morreria logo. Ora, a morte é um castigo imposto ao homem, e sua proximidade, em geral, apavora. Quando a pessoa não tem uma graça especial, diante da proximidade da morte fica aterrorizada. Francisco viu, alegre, a morte aproximar-se. Ele ia fazer o sacrifício pedido por Nossa Senhora. Não tinha saudades de nenhum dos bens deste mundo. Queria ir para o Céu e deixar esta Terra com a imolação de sua vida para a vitória da causa católica.

De Jacinta Nossa Senhora pediu algo que, por um aspecto, apavorava menos. Pediu que ela vivesse por mais algum tempo. É o espectro colocado um pouco mais longe. Entretanto, disse-lhe que viveria mais para sofrer. Quem não tem medo de uma vida de sofrimentos? E revelou-lhe um dos sofrimentos que mais apavoram as crianças: ficar doente e longe dos pais. Nossa Senhora disse: “Tu serás levada a Lisboa e tua mãe vai deixar-te”. Portanto, “tu adoecerás e morrerás sem a assistência dos teus”. E ela morreu, de fato, sem o socorro materno. Ela aceitou também. Eu creio ser o mais pesado sacrifício que se pode pedir a uma criança. O Segredo de Maria levou-a a esse sacrifício.

Espírito de oração

Depois, espírito de oração. Rezavam continuamente. E para que rezavam? Pela causa católica. Porque rezavam para Deus não ser ofendido, Deus ser glorificado, o que é a própria essência da causa católica. Tudo, em última análise, consiste nisso: que Deus seja glorificado e não seja ofendido. E isto eles tinham em mente sempre e rezavam muito.

Mas qual era a fonte que ininterruptamente estava dando-lhes este alimento espiritual? Era a crença na própria missão. A crença em que se cumpriria sobre eles a palavra de Nossa Senhora.

Virtudes a serem pedidas a Nossa Senhora por intercessão dos Pastorinhos de Fátima

Nós podemos fazer dessas considerações uma aplicação para nós? Eu creio que facilmente. Porque essas são as virtudes às quais nossa vocação nos convida. A nossa vocação contém uma espécie de raiz do Segredo de Maria. Sem dúvida, quem entra para nosso Movimento com as disposições normais experimenta desde logo várias melhoras em sua alma. E depois tem de passar pelo embate das provas que todos nós, infelizmente, conhecemos. Mas, de si, há algo de parecido — parecido não quer dizer idêntico — com o Segredo de Maria. E todo novato tem um grande impulso para a frente que consiste numa certa transformação. Essa transformação opera com o caráter rápido, célere, fácil, atraente com que age a graça do Segredo de Maria. Além disso, nossa vocação é ordenada aos fatos anunciados por Nossa Senhora em Fátima. Isto estabelece mais uma relação entre nossa vocação e a deles.

E eu creio que quem peça a Nossa Senhora de Fátima, por intercessão deles, auxílio para sermos fiéis a essa nossa vocação, fará a Ela uma oração especialmente grata. E poderá receber favores enormes para ser fiel à vocação, mesmo em circunstâncias dificílimas, graças precisamente ao Segredo de Maria.

E nossa vocação necessita das quatro virtudes que eles praticaram: a virtude básica, crermos em nossa vocação como eles creram na deles; e, em consequência: seriedade, espírito de sacrifício e espírito de oração.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/10/1971)

1) Cf. DE MARCHI, I. M. C., Pe. João. Era uma Senhora mais brilhante do que o Sol… Fátima: Edições Consolata. Na 7a edição (1978) o trecho resumido para Dr. Plinio encontra-se nas páginas 251-267.

Pastorinhos de Fátima

Aos pastorinhos Jacinta e Francisco, Nossa Senhora destinou a missão de sofrer pela salvação dos pecadores. O exemplo de suas vidas nos faz compreender como o apostolado do sofrimento é verdadeiramente insubstituível.

Todas as grandes obras de Deus, máxime as que tratam da salvação das almas, em geral se fazem com a participação de outras almas que lutaram, sofreram e rezaram para que essas obras de fato se realizassem. Sempre é preciso a participação do sofrimento humano. Sem ele, nada de grande se faz.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 19/2/1965)

Santos Pastorinhos

Nossa Senhora quis que Jacinta e Francisco morressem em circunstâncias tão difíceis e sofrendo tanto, por serem necessárias vítimas que associassem suas dores e o sacrifício de suas vidas ao mistério de Fátima, bem como à fecundidade desejada pela Santíssima Virgem, na ordem sobrenatural, para os fatos anunciados na Cova da Iria.

Apesar de ter havido ali uma intervenção direta da Mãe de Deus, atestada por milagres estupendos como, por exemplo, a movimentação do Sol, Ela quis que duas almas oferecessem as suas vidas e se imolassem para que aquele plano da Providência tivesse a fecundidade necessária.

Isso nos faz compreender bem como o apostolado do sofrimento é insubstituível e abre os caminhos para a Igreja.

Peçamos a Jacinta e Francisco que nos obtenham o senso do sofrimento, indispensável para qualquer católico ser verdadeiramente generoso e dedicado.

Plino Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/2/1965)

Modalidades de sofrimento

Em sua vida de quase 87 anos, Dr. Plinio teve grandes consolações, mas também passou por sofrimentos inenarráveis. E pronunciou inúmeras conferências a respeito da dor, como a que transcrevemos abaixo, na qual mostra um panorama grandioso, descrevendo, com muitos exemplos, os diversos sofrimentos que podem ocorrer na existência do homem.

Para tratarmos a respeito do sofrimento em termos inteiramente utilizáveis por nós, devemos fazer algumas distinções entre modalidades de padecimentos. Porque a atitude do homem diante dessas formas varia, mas a atitude legítima, quer dizer, as diversas vias de Deus a respeito dessas modalidades de sofrimento também variam. Precisamos ter isto bem claro, sob pena de criar um “imbroglio” que acaba, por alguns lados, sendo nocivo.

Sofrimentos intrínsecos a toda ação séria

Há uma primeira modalidade de sofrimento que é intrínseca a toda ação séria. É o sofrimento do trabalho, do estudo, do esforço físico, da ginástica, da luta; são coisas que fazem parte da contextura comum da vida do homem ou da vida dos povos.

Ainda não coloco dentro disso as doenças, porque o estado normal do ser humano não é a enfermidade, como não é, por exemplo, ter sofrido um desastre. Essas coisas não são o comum da vida. Para uma pessoa ter verdadeiro interesse pelo estudo, o empenho, a concentração mental, a energia de espírito que ele exige, a abnegação de uma série de coisas mais baixas são sofrimentos iniciais.

Quando esses sofrimentos são aceitos, podem se tornar familiares e até fonte de alegria. Que efeito esses sofrimentos têm para a vida, para a alma humana?

Eles enrijecem a alma, dão-lhe profundidade de espírito, continuidade de intenções, seriedade e, com isto, tornam o homem verdadeiramente varonil. Um indivíduo incapaz desses sofrimentos torna-se indigno de ser homem.

A pessoa deve procurar esse tipo de sofrimento, endurecer-se diante dele, ser inclemente consigo à vista dele, e quanto mais ela seja dura consigo, mais a vida lhe será suportável.

Quando nessa gama certas coisas não fazem sofrer, em algum ponto acabará aparecendo um grande sofrimento, porque não se escapa da regra de que em algum aspecto, maior ou menor, o esforço é muito penoso, como um argueiro no olho ou um pedregulho no sapato.

Por exemplo, um homem pode ser muito estudioso, mas certa forma de estudo indispensável lhe dá preguiça. Isso tudo faz parte do tal sofrimento que o indivíduo deve enfrentar.

Qual é a utilidade desse sofrimento para a ordem da Comunhão dos Santos, como caráter expiatório? Evidentemente, desde que o indivíduo tenha intenção de oferecer, isto é útil à Comunhão dos Santos, enriquece o tesouro da Igreja.

Padecimentos que agridem

Mas um peculiar título de valor ele não possui, que vem de outra coisa: é do sofrimento que agride todo homem na vida, o qual está fora da ordem comum e se diria até que é destrutivo desta ordem.

Por exemplo, o indivíduo começa a estudar com decisão e adquire o hábito do estudo. Vem a mãe dele e lhe informa: “Até agora temos vivido do comércio de seu pai. Mas ele teve uma embolia cerebral e não vai mais poder continuar esse trabalho. Por isso, será preciso que você o assuma”;

Ele que já se dedicara inteiramente a certo ramo, fica colocado diante de um sofrimento de outra ordem, com isto de meio desagregador: com dificuldade, rezando, ele conseguiu tornar-se inteiramente familiar ao estudo. Agora, vem uma surpresa que o lança nessa história.

Imaginemos que o pai tenha uma casa de comércio pequena, de arrabalde, onde vende louças e ferragens. E a primeira coisa que esse gênero de negócio exige é boas relações na redondeza, porque há nos arredores duas ou três outras casas novas que estão fazendo competição. E ele também precisa estar muito a par do que as fabriquetas de São Paulo vão lançando de novo a esse respeito, porque, do contrário, não oferece artigos que disputem a clientela.

Portanto, isso não só absorve o tempo de trabalho dele, mas a capacidade de luta e de reflexão. E ele se vê descido de São Tomás até o problema de saber se a louça fabricada com pó de pedra e vendida em tal lugar agrada a Da. Fulana que é a mandachuva de tal quarteirão, e com a qual ele precisa conversar antes. Então Da. Fulana convida-o para tomar chá em casa dela, e o indivíduo tem que lhe contar uma piada, senão ele não mantém a freguesia.

A moeda da dor nos ”bancos” do Céu

Outra possibilidade é que o próprio estudioso fique doente. Ele se habitua a estudar, mas vem, de repente, uma enfermidade qualquer que o obriga a ficar pelo menos três anos afastado dos estudos.

Diante disso o indivíduo tem várias saídas possíveis. Uma delas é encontrar uma fresta e afirmar-se ainda mais. Esta é a solução providencial que o leva a lutar contra o infortúnio, suportar este sofrimento, além do anterior de que falamos, e vencer.

Isso tem um mérito muito maior porque o indivíduo sofre muito mais do que o comum dos homens. E, portanto, dá a Deus essa moeda da dor que tem nos “bancos” do Céu uma importância colossal, e abre um fundo de depósitos extraordinário para si nos “bancos” do Paraíso. Ele pertence à categoria de almas que Deus chama para isso.

A diferença entre os dois sofrimentos até aqui descritos está em que, no padecimento anterior, o indivíduo luta e pode eliminá-lo. E esse segundo tipo de sofrimento, ao menos durante muito tempo, não pode ser sanado.

Então, o que fazer? O indivíduo precisa acomodar-se àquele sofrimento porque, do contrário, estoura. Mas de um acomodar-se cujo verdadeiro nome é resignação e cujo triunfo está em superar o sofrimento, sem deixar-se cair em deformações sentimentais por onde ele fique mole, covarde e sem vigor. Neste caso, ele pode ser um grande benemérito na Comunhão dos Santos.

O sofrimento penitencial e o de enriquecimento da Igreja

Outra espécie de sofrimento é aquele que a pessoa procura. Isso pode se dar de dois modos: ou ela se penitencia, ou escolhe um gênero de atividade que de si não seria obrigada a escolher, mas fá-lo por idealismo.

Por exemplo, alguém que, sendo rico, quisesse entrar para a Legião Estrangeira a fim de praticar o heroísmo. Ele procurou o sofrimento. Ou um homem que pede a Deus que lhe mande sofrimentos, como o caso de Monsieur Martin, pai de Santa Teresinha, a quem Deus inundava de consolações e que Lhe dizia: “Meu Deus, isso não pode continuar, eu tenho que, em algum momento, sofrer!” E pedia o sofrimento para Deus. E veio!

Este é ainda mais nobre do que os sofrimentos anteriores. Foi por um ato de amor que ele fez isso, compreendendo o valor enorme do sofrimento e querendo fazer aos tesouros da Igreja o beneficio de enriquecê-los, entrando com a gota d’água de sua própria dor.

Às vezes é um sofrimento de penitência. Aí ele quase paga aos tesouros da Igreja o que ele roubou pecando.

Outras vezes não é um sofrimento penitencial e sim de enriquecimento da Igreja. Uma alma que tem a felicidade de poder dizer: “Sou inocente, mas quero sofrer como Nosso Senhor Jesus Cristo inocente sofreu, para, por esta forma, derrubar a Revolução. Meu Deus, mandai-me a tragédia, eu a aceito e me afundo nela! Morro dentro da tragédia! Só Vos peço a força de aguentar”. São modalidades diferentes de sofrimento.

Não se pode padronizar os caminhos de Deus para cada alma

Diante desses padecimentos, a pessoa que os pediu deve endurecer-se contra eles, fazendo esforço para sofrer pouco?

Por exemplo, um indivíduo que tenha rogado a Deus que lhe mande um sofrimento, e ele verifica que está ficando cego. É provavelmente o atendimento do pedido que ele fez. Ele deve rezar a Deus para não vir essa cegueira? Fazer toda espécie de tratamento para evitá-la?

Os tratamentos que entram na vida comum da Medicina e que a Moral obriga, ele deve fazer, não tem por onde escapar.

Os outros… aí vem o mundo dos contatos da alma com Deus: se ele tem uma autêntica moção interna de que está sendo atendido, será heroico e compreende-se que não recorra. Mas pode ser que, para outra alma igualmente dedicada a Deus, a Providência não queira isso, mas sim que ela tente e faça uma luta heroica para evitar o sofrimento, ficando só provado que a oração dela foi atendida, porque o sofrimento se impõe apesar de ela fazer a luta. Depende do caminho de Deus, que não se pode padronizar, para cada alma. Estou mostrando a variedade de vias.

Vindo o sofrimento, o que o indivíduo deve fazer?

Voltemos ao exemplo do cego. Ele deve fazer o necessário para suprir sua cegueira: comprar aparelhos magníficos, aprender métodos por onde ele possa ler, etc., de maneira a, tanto quanto possível, remediar os inconvenientes do estado em que caiu?

Vale aqui o raciocínio anterior: para alguns sim, para outros não. Depende do que internamente a graça peça a cada um. Não há uma regra assim peremptória. Para algumas almas Deus tem um desígnio, para outras, outro. De todas Ele quer que saibam ouvi-Lo e obedecer-Lhe. É a regra que precisa ser seguida.

A provação axiológica

O mais terrível dentro disso é o sofrimento anti axiológico(2). É outro tipo de padecimento. A dor anti axiológica é maior em si, como gênero, do que todas as outras dores porque, tendo certeza de que se encaixou numa determinada ordem, a pessoa encontra nisto um elemento de ação. Porém, quando ela não tem esta certeza, não sabe se não está sendo castigada, se é uma coisa temporária da qual pode pular fora, não sabe nada, a sua vida se torna sem sentido.

Qualquer um dos sofrimentos acima descritos pode acontecer tomando uma nota anti axiológica. O indivíduo, por exemplo, faz uma reflexão: “Realmente eu deveria oferecer a minha vida, minha saúde, qualquer coisa assim…” Interrompe seu pensamento e vai ocupar-se com outra coisa. Internamente não recusou. Deus viu que ele estaria disposto, ou espera dele um ato de aceitação no decurso dos padecimentos. Em certo momento, uma doença pula em cima dele!

A Providência está permitindo que dois tormentos o aflijam especialmente: um é o da enfermidade, outro o de não saber se aquilo lhe veio por um castigo. Ele não sabe se, por exemplo, rezasse mais, a doença não o acometeria, se deve orar ou não para cessarem os sofrimentos; e vai suportando como pode, enquanto Deus Se mantém mudo. Nisto pode estar embuçado tanto um castigo quanto um modo magnífico de carregar a cruz, sem que o interessado saiba por quê.

Deus não lhe dá os meios de resolver a questão, porque nisto está a maior prova. E às vezes a graça pode pôr na alma da pessoa a seguinte ideia: “Procure resolver, mas não peça graças especiais para isso, porque talvez você fuja do sofrimento mais duro e que não quereria sofrer”.

É terrível porque não adianta consolar o sujeito com a ideia de que é a mais alta forma de sacrifício, porque para ele não está claro se é mesmo a mais elevada forma de imolação ou se ele está sendo castigado. Quer dizer, não sabe se está no fundo de um poço ou no alto do monte. E assim morrerá e se apresentará ao Juízo de Deus.

Até lá a incógnita axiológica pode sombrear a vida de uma pessoa sem ela se dar conta. Por isso digo ser essa provação axiológica aquela que, entre todas, mais faz o homem sofrer. ”Deus meus, quare Me dereliquisti?”(3)

Tem-se a impressão de que, durante toda a Paixão, Nosso Senhor sofreu eminentemente do ponto de vista anti axiológico, culminando no “Deus, Deus meus, quare Me dereliquisti?” No teto da Igreja do Coração de Jesus há pintado Nosso Senhor aparecendo a Santa Margarida Maria. Ele diz a ela, mostrando seu Sagrado Coração: “Eis o Coração que tanto amou os homens e foi por eles tão pouco amado.” Este é um sofrimento moral maior do que os padecimentos físicos inenarráveis.

Ora, isto tem qualquer coisa de anti axiológico. A dor que sofre quem foi assim renegado é, no fundo, uma dor anti axiológica. Ele era o Justo e seria normal que fosse acolhido de outra maneira. Entretanto, vem o sofrimento da Cruz! Levaram a coisa a tal ponto que Longinus crava a lança n’Ele, e ainda sai água, quer dizer, não restou nada! Um dos Salmos diz: “Transpassaram minhas mãos e meus pés, posso contar todos os meus ossos.”

Acima de tudo, a fidelidade do amor d’Ele restaura o princípio axiológico rompido. Nosso Senhor continua a amar os homens; tudo o que estes fizeram para romper a ordem, Ele, com sua obstinação sacrossanta em continuar a amá-los, recompõe.

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/11/1983)

1) Do latim: Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonaste? (Sl 22, 2; Mt 27, 46).
2) Termo derivado de “Axiologia”: ramo da Filosofia que estuda os “valores”, isto é, os motivos e as aspirações superiores e universais do homem, as condições e razões que dão rumo à sua existência, para os quais ele tende por insuprimível impulso da sua natureza.
3) Sl 22, 17-18.