O sacrossanto olhar de Jesus

Para Dr. Plinio, o Evangelho era um tesouro de onde se tiram “coisas novas e antigas”. Com seu apurado discernimento, tecia ele considerações de uma profundidade emocionante a propósito de  vários aspectos e passagens desse texto sagrado. Por exemplo, sobre algo que o comovia entranhadamente: o olhar do Divino Mestre.

 

Em Jesus, o semblante, as expressões da face e até o timbre da voz não são senão comentários ao que mais O exprime, isto é, seu olhar. Este é sumamente ordenado e feito de gradualidades.

Quando fulgura, é como um sol. Quando não, mostra-se sempre de um certo modo, semelhante ao que representa o barítono para a música vocal: nem muito alto nem muito baixo.

Não é um olhar que sai de si para penetrar nos outros, a não ser raramente. Antes, convida a que se entre nele, para entabular elevados colóquios conosco. Olhar muito sereno, aveludado quase…  No fundo, porém, revelando uma sabedoria, retidão, firmeza e força que nos enchem ao mesmo tempo de encanto e de confiança.

A meu ver, todas as perfeições existentes na ordem do Universo  — a das estrelas como as de uma Gruta de Capri, ou as de qualquer outra maravilha — estão contidas no olhar de  Nosso Senhor Jesus Cristo,  e os estados de alma d’Ele correspondem a todas as belezas do mundo. Por isso, ao apreciarmos algum esplendor da criação, seria bastante proveitoso meditarmos na excelência do olhar d’Ele que se acha espelhada naquela grandeza criada.

Por exemplo, quando estou sozinho e contemplo o céu todo estrelado acima de mim, experimento a curiosa impressão de que sou visto, e de que aquele firmamento todo converge sobre mim. Esta é a sensação que se tem quando Nosso Senhor nos olha.

É todo um céu que se debruça sobre nós. Mas quando somos nós que nos pomos a fitá-Lo e colhemos o fundo de seu olhar, nos sentimos melhor do que ao sermos olhados por Ele. Pois ali, no conjunto dos olhares d’Ele, a ordem do Universo se reflete inteiramente, as regras da estética se resumem de modo perfeito, os princípios da lógica se articulam de maneira admirável. Numa palavra, o “pulchrum” e o significado interno de tudo quanto existe estão contidos no olhar de Nosso Senhor.

De sorte que, por exemplo, ao conversar com Lázaro, com Marta ou Maria Madalena, a fisionomia, a voz e o olhar de Jesus — sem indiscrição alguma — iam muito naturalmente mudando, e em sua expressão se podia compreender um número incontável de coisas.

 Olhar que acompanha a História

Por isso mesmo, considero o olhar de Nosso Senhor Jesus Cristo como se fosse quase outro Evangelho, e uma prodigiosa “leçon des choses”. De fato, Jesus é Rei do Universo e, portanto, Rei da História. Não o é apenas da história das nações, mas também da existência individual de cada um de nós. E os desígnios d’Ele vão se fixando e se traçando na medida em que a nossa trajetória neste mundo se desenvolve. Ele vai olhando para nós, e se pudéssemos vê-Lo em cada momento, teríamos o sentido daquilo que estamos vivendo a cada passo.

Imaginemos Nosso Senhor por ocasião da multiplicação dos pães, considerando o povo reunido em torno d’Ele: “Tenho piedade desta multidão” (Mt 15, 32). É concebível que Ele tenha proferido  essa frase com os olhos fechados? Não pode ser.

Se os olhos de Jesus não estivessem abertos enquanto Ele falava ou caminhava, teria atraído aquela multidão? Claro está que, se assim o quisesse, Nosso Senhor tocaria aquelas almas mesmo sem lhes dirigir o olhar. Porém, não procedeu dessa forma, e foi o olhar d’Ele que as atraiu.

Outra passagem do Evangelho na qual me parece que o divino olhar do Salvador se reveste de maior expressividade é o momento em que Jesus, flagelado e coroado de espinhos, foi apresentado ao ovo por Pilatos. Para mim, excetuando o instante em que Nosso Senhor fita o Apóstolo Pedro que acabara de negá-Lo, não há episódio do Evangelho onde o papel do olhar se manifesta tão evidente como no “Ecce Homo”. Tanto mais quanto, naquela circunstância, o Redentor não proferiu qualquer palavra, permanecendo num majestoso silêncio.

Cumpre ressaltar, aliás, o fato impressionante de que os algozes de Nosso Senhor, quando O esbofetearam durante a Paixão, não suportaram o divino olhar que os fitava. Para consumar as suas  atrocidades contra Jesus, tiveram de Lhe vendar os olhos…

 Devoção ao Sacrossanto olhar

Essas considerações nos fazem compreender bem que noite tremenda se fez para o mundo quando o olhar d’Ele se extinguiu! Noite na qual se teria vontade de pedir a Deus que nos levasse desta Terra. Pois uma vez que alguém se habituou ao convívio daquele olhar, tendo este se apagado, nenhum sentido restaria para se continuar a viver no mundo. Para fazer o quê? Turismo em alguma linda cidade européia? Visitar Paris, conhecer Viena? Como estas nos parecem pobres e insípidas, em comparação com a graça de ver aquele divino olhar! As maravilhosas jóias da casa d’Áustria, a extraordinária coroa do  Sacro-Império, nada seriam para o homem sobre quem pousaram os olhos misericordiosos do Salvador.

Muito embora a devoção ao Sagrado Coração de Jesus me fale tanto à alma, na realidade toca-me ainda mais a devoção ao olhar d’Ele. Talvez, pela razão mesma de ser o olhar a melhor expressão do coração. E esta seria, caso não o impugnasse a Teologia, a “devoção ao Sacrossanto  Olhar”…

A partir dessa ideia, poder-se-ia introduzir no “Anima Christi” outras  invocações como: olhar padecente, olhar misericordioso, olhar de divino Juiz… penetrai em mim e fazei-me entrar em vós.

Poder-se-ia, igualmente, compor uma “Ladainha dos olhares de Jesus”, a qual reluziria de uma beleza arrebatadora. Concluo, fazendo notar que, quando se analisa assim o Evangelho, encontram- se nele profundidades insuspeitadas. Suas páginas constituem um tesouro repleto de “nova et vetera” — coisas antigas e recentes.

Tudo quanto acima foi dito nos revelou algo imensamente valioso, mas é natural que se procurem também outras gemas preciosas nesse tesouro. As jóias que acabamos de admirar, a nós nos regalam, porque são as meditações que se acrescentam ao cântico antigo, em função de nossa vida, nossas batalhas e nossos sofrimentos nesta terra de exílio.

Plinio Corrêa de Oliveira

São Paulo, o Apóstolo das Gentes

São Paulo é o modelo da argúcia, intrepidez, capacidade de realização, postas ao serviço do apostolado. Depois do Príncipe dos Apóstolos, ninguém o excedeu, em nenhum sentido, entre os que evangelizaram o mundo.

As virtudes desse grande Santo tem uma atualidade perene na Igreja, que o honra de todos os modos. Um esplendido monumento em seu louvor é a grandiosa Basílica de São Paulo, construída em Roma, de que nosso clichê fixa um aspecto.

Sejam o seu exemplo e as suas preces um auxílio para que os católicos, e especialmente os desta sua Arquidiocese, se esmerem mais e mais no serviço da Igreja.

O que mais chama a nossa atenção na vida de São Paulo é a sua decisão, sua atitude integral, diante de um ideal. Quando o apóstolo quer alguma coisa, ele a quer deveras. Vive integralmente por um ideal, e tudo é sacrificado pela realização do mesmo.

O perseguidor da Igreja

Enquanto moço em Jerusalém, o ideal de sua vida era o Judaísmo, e é no Cristianismo que ele descobre o inimigo mais perigoso do mesmo. Sem medir fadigas, dedica-se então a extirpar pela raiz este inimigo. É um entusiasta! Não de um entusiasmo platônico e gesticulador que nada vale, e sim de um entusiasmo interior e profundo que constantemente se traduz em atos: “Saulo, respirando ameaças e morte contra os discípulos do Senhor”. E como tal era conhecido até em Damasco, duzentos e cinquenta quilômetros distante de Jerusalém. Ele mesmo escreve aos Galatas (1, 13): “Certamente ouvistes dizer do meu modo de vida de outrora no Judaísmo, com que excesso eu perseguia a Igreja de Deus e a expugnava. E avantajava-me no Judaísmo a muitos dos meus companheiros de idade e nação, extremamente zeloso das tradições de meu país”.

Um entusiasmo sadio e verdadeiro traduz-se em obras e São Paulo entrega-se deveras à perseguição da Igreja: “Respirando ameaças e morte…” Espírito perspicaz e de vistas largas, ele compreende logo que a extirpação eficiente deve começar nos grandes centros de irradiação mundial. A cidade de Damasco, para onde fugiram muitos cristãos, é um tal centro perigoso. E, como vive inteiramente para o seu ideal, não mede esforços nem perigos, não quer saber de medidas incompletas e pusilânimes, e espontaneamente se dirige ele mesmo a Damasco, viagem de mais ou menos uma semana (250 kms), a fim de “levar presos para Jerusalém a quantos homens e mulheres achasse desta doutrina cristã”.

O Apóstolo

Convertido ao Cristianismo, São Paulo devia tornar-se um grande apóstolo. Mudou de ideal, mas não de mentalidade e caráter e com o mesmo entusiasmo produtivo procura a realização de seu novo ideal – Cristo. O mesmo zelo, ardor, perspicácia, constância, destemor. As mesmas medidas completas e enérgicas, o mesmo gosto pelo essencial que de preferência o faz procurar os grandes centros de irradiação mundial. A mesma dedicação incondicional! A vida apostólica de São Paulo, um verdadeiro prodígio e assombro, é uma prova constante e cabal desta afirmação.

Para mim, viver é Cristo

Com esta mentalidade purificada ainda pela graça, vive perpetuamente com o ideal “Cristo” diante de seus olhos. Mais ou menos 330 vezes aparece o nome de Jesus nas suas epístolas. Sem a menor hesitação escreve: “Mihi vivere Cristus est”. Ou então: “Vivo … iam non ego, vivit vero in me Christus”. Textos que provam seu amor, sua identificação com o ideal da sua vida: Cristo. Tudo está subordinado a este ideal, e enumerando, por exemplo, seus honrosos títulos de judeu, escreve: “Tudo isto tenho por perdas pelo eminente conhecimento de Jesus Cristo, Meu Senhor, pelo qual tenho tudo perdido e eu avalio por esterco, a fim de ganhar a Cristo” (Fil. 3).

É desta fibra que se fazem os grandes apóstolos, os heróis de Jesus Cristo.

Outro característico digno de nota é que São Paulo soube unir a espontaneidade e ao ardor da sua alma um raciocínio severo e uma dialética rigorosa.

“E eu me fiz tudo para todos”… – Mais outro belo característico do grande apostolo, também muito pronunciado, é a sua bondade, a delicadeza para com os que o rodeiam. A sua compaixão para com os que sofrem, com quanto interesse e dedicação ele cumpre a sua missão de angariar esmolas para os pobres de Jerusalém e da Palestina (Rom. 15, 25; Cor. 16, 1 ss; 2 Cor., 8 e 9).

Com quanto engenho ele inventa piedosos artifícios para aumentar estas coletas pelos pobres!

Acha tempo, no ardor das lides apostólicas, para escrever uma bela e delicada carta de recomendação em favor de um pobre escravo fugitivo, pedindo que o senhor novamente o aceite com bondade e espírito de perdão, sem os castigos de costume. Também não recua em granjear o próprio sustento com o trabalho de suas mãos a fim de não incomodar a ninguém.

É com grande delicadeza que trata dos fiéis de todos os lugares. Com uma fineza admirável sabe descobrir as boas qualidades dos homens, elogiando-os alegremente na prática do bem. Em cada carta aparecem os traços inconfundíveis desta bondade e lhaneza de trato. Com grande instância recomenda sejam seus colaboradores bem tratados nas igrejas, e com muita e santa alegria, toma nota dos bons resultados por eles alcançados.

Numa palavra, todos os que entravam em contato com o grande Apóstolo, do maior ao menor, sabiam e sentiam constantemente que São Paulo se interessava por eles, que não eram para o Apóstolo um mero número, que ele se lembrava todos os dias de cada um, até do mais humilde, que São Paulo jamais se esquecia de um serviço prestado, fosse à sua própria pessoa ou aos seus. Todos enfim percebiam que São Paulo era um verdadeiro amigo, um pai para cada um.

Assim também compreendemos que, dando vazas aos seus sentimentos de amor, São Paulo escrevesse a frase quase incompreensível: “porque eu mesmo desejara ser anátema quanto a Cristo, por amor de meus irmãos que são os meus parentes segundo a carne, os israelitas” (Rom. 3, 3). E enumerando os seus trabalhos e fadigas pela causa de Cristo, compreendemos que em último e mais importante lugar enumere os seus cuidados de pai: “além das coisas extenues, há o que pesa sobre mim cada dia, o cuidado de todas as igrejas (“instantia mia quotidiana: sollicitudo omnium ecclesiarum)”.

 

Plínio Corrêa de Oliveira – Legionário, 20 de janeiro de 1946, N. 702, pag. 1

 

São Paulo e a glória do estado eremítico

Ao estado eremítico é inerente a profundidade e a ordem do pensamento, a elevação do espírito, a familiaridade com as mais altas cogitações da mente humana, que são as de caráter religioso. E isto lhe confere uma alta respeitabilidade que constitui o seu maior adorno.

As seguintes considerações a respeito da festa de São Paulo, primeiro eremita e confessor, são feitas por Dom Guéranger(1).

Do fundo de sua caverna, acompanhava as lutas da Igreja

Não devemos pensar, entretanto, que esta vida passada no deserto, esta contemplação sobre-humana do objeto da beatitude eterna fizessem Paulo desinteressar-se da Igreja e de suas lutas gloriosas. Ninguém se encontra seguro de estar no caminho que conduz à visão e à posse de Deus se não se mantém unido à Esposa que Cristo escolheu e estabeleceu para ser a coluna e o sustentáculo da Verdade.

Ora, entre os filhos da Igreja, aqueles que devem mais estreitamente unir-se e abraçar-se a seu coração são os contemplativos, porque eles percorrem vias sublimes e árduas, onde muitos encontram perigo.

Do fundo de sua caverna, Paulo, esclarecido por uma luz superior, seguia as lutas da Igreja contra o arianismo. Ele se mantinha unido aos defensores do Verbo Substancial ao Pai e, a fim de mostrar sua simpatia por Santo Atanásio, o valente atleta da Fé, Paulo Eremita pediu a Santo Antão, a quem deixava sua túnica de folhas de palmeira, para enterrá-lo com uma manta que lhe fora dada de presente pelo Patriarca de Alexandria, que amava ternamente o Santo Abade.

Neste trecho, Dom Guéranger põe em foco o seguinte aspecto da nobreza do estado eremítico:

Ao eremita, vivendo no deserto e entregue essencialmente a considerações elevadas, parecem alheias a movimentação das paixões humanas e, portanto, também a luta do bem contra o mal e da verdade contra o erro. Quer dizer, o combate das paixões ordenadas orientadas pela razão, contra as paixões desordenadas dirigidas pelo demônio. No fato de um eremita, afastado assim de todas essas lutas, entretanto ter uma visão tão clara do mérito de estar no mundo, lutando pelos interesses da Igreja, vê-se a harmonia destas duas concepções de vida: a ativa e a contemplativa.

São Paulo Eremita, do fundo da caverna onde ele se encontrava completamente isolado e meditando as coisas de Deus, seguia em espírito as lutas do grande Santo Atanásio. E, ao morrer, quis ser revestido da manta deste magnífico Doutor da Igreja, como uma manifestação de seu ardente entusiasmo por aquele varão que, nas lutas deste século, estava sustentando a causa da Santa Igreja contra o arianismo penetrante.

Alta respeitabili­dade do estado eremítico

Esta consideração mostra bem como o apostolado está ligado à vida interior, e como a vida mista — contemplativa e ativa — está relacionada com a vida puramente contemplativa. Há, entretanto, outra consideração a respeito do estado eremítico a ser feita a propósito desta ficha.

Em geral, quando se fala a respeito do estado de vida eremítico, põe-se em relevo a força e o sacrifício realizados pelo eremita para se separar de todas as coisas desta Terra e isolar-se.

Então, o grande mérito do ermitão seria de ficar sozinho e vencer a vontade torrencial de falar, inerente a todo homem, sobretudo quando está só. Porque nós, homens, somos feitos assim: quando estamos muito tempo no meio dos outros, queremos ficar quietos e isolados; mas, quando permanecemos muito tempo quietos, queremos estar no meio dos outros.

Logo, nesta vitória sobre si mesmo estaria uma das maiores glórias do estado eremítico.

Na realidade, uma das belezas desse estado encontra-se na profundidade de pensamento intrínseca a ele. A nobreza do estado eremítico não vem do fato de o ermitão estar quieto, mas de que, estando silencioso, ele fala com Deus. E falar com Deus não significa ter continuamente aparições ou revelações, mas é também entreter o espírito a respeito das coisas sobrenaturais.

O espírito é tocado pela graça, com a qual a pessoa consegue entreter-se com as coisas de Deus, ou seja, com os temas mais profundos, mais elevados, mais nobres.

Então, a vida eremítica é, por excelência, um estado ao qual é inerente a profundidade e a ordem do pensamento, a elevação do espírito, a familiaridade com as mais altas cogitações da mente humana, que são as de ordem religiosa. E isto confere exatamente ao estado eremítico uma alta respeitabilidade que constitui o seu maior adorno.

O contrário da mentalidade “hollywoodiana”

Este é, debaixo de certo ponto de vista, o estado em que se pratica mais altamente a virtude do respeito. O eremita pensa, medita, elucubra; para ele nada é pequeno, nada é sem importância, nada é trivial. Ele compreende as altas razões de todas as coisas e o caráter sagrado e augusto que, a seu modo, cada criatura e cada fato apresenta. Ele está constantemente com o espírito posto nas coisas de Deus, e sua voz, quando fala, é como o som de um sino de bronze, grave, sério, que chama os homens para os temas mais elevados e para as cogitações mais profundas.

Eis o sentido do estado eremítico.

Como o mundo de hoje necessita disso! Se pensarmos na mentalidade difundida pelo cinema de Hollywood, veremos que o homem por ela formado é inteiramente desprovido disso, não tem a virtude da respeitabilidade em nenhum grau. E como esta mentalidade difundiu-se pelo mundo inteiro, compreende-se o quanto essa virtude está desertando — ou acabando de desertar — do mundo.

A trivialidade, a superficialidade, a banalidade de espírito, o engolfar-se apenas nas coisas visíveis e passageiras, com as quais o indivíduo se distrai, mas que não têm um sentido profundo, tudo isto é inerente à mentalidade “hollywoodiana” e corresponde ao contrário do caráter nobilíssimo da condição eremítica que, como tal, é um estado no qual os homens são como tochas ardentes dessa gravidade de espírito, desse respeito para com Deus e para com todas as criaturas enquanto espelham a Deus. Este estado de seriedade, de sobranceria, de distância psíquica(2) e de auto equilíbrio é exatamente a glória do estado eremítico.

Feitas essas considerações, resta-nos a pedir a São Paulo Eremita que reze por nós para nos conseguir a compreensão e a apetência dessa virtude, porque sem ela, entendida e praticada, não existe perfeição moral, nem verdadeiro santo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/1/1966)

 

1) GUÉRANGER, Prosper. L’Année Liturgique. Tomo II. 3ª ed. Paris: Henri Oudin, Libraire-éditeur, 1873. p. 354.
2) Expressão utilizada por Dr. Plinio para significar uma calma fundamental, temperante, que confere ao homem a capacidade de tomar distância dos acontecimentos que o cercam.

São Paulo Apóstolo

São Paulo soube pôr a serviço da maior das causas, a de Cristo e da sua Igreja, um idealismo abrasador, uma energia inexaurível, uma combatividade invencível, uma audácia viril e realizadora.

O Apóstolo das Gentes não concebia limites para sua atividade evangelizadora. 0 mundo inteiro era pequeno para a grandeza de seu ardor apostólico. Nem a distância dos lugares, nem a dificuldade dos empreendimentos, nem a diversidade dos povos, puderam conter-lhe o passo vigoroso e a palavra de fogo.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Grandeza infinita

Ao adorar o Homem-Deus, Dr. Plinio buscava explicitar o cume de suas perfeições infinitas, cujos maravilhosos aspectos, aparentemente antagônicos — compaixão, cólera, serenidade, seriedade, perdão, gáudio, tristeza — deveriam enfeixar-se em um ponto supremo.

Durante toda a vida, na contemplação de Nosso Senhor Jesus Cristo, o ponto mais alto da minha admiração é considerar como Ele é perfeitíssimo debaixo de todos os pontos de vista. E procurar na personalidade d’Ele o ponto supremo, no qual todas as virtudes convergem para uma que é um sol de todas as outras.

Píncaro de toda a Criação

Como é esse ponto? Se pudéssemos ver isso n’Ele, como O consideraríamos?

Imaginem uma catedral composta de numerosas ogivas que se sucedem umas às outras, desde a porta principal até o presbitério, e — existe isso em certas catedrais — há uma ogiva mais alta que abarca todas as outras. Qual é, em Nosso Senhor, essa ogiva suprema?

Gosto de figurar que é uma grandeza a qual contém todos os abismos de perfeição d’Ele. Por exemplo, analisando toda a Criação, considerar aquilo que podemos chamar o ponto alfa de todo o criado, o ponto mais alto que, em última análise, é Ele mesmo, porque é o Homem-Deus. Enquanto Deus, Ele está infinitamente acima dos seres criados, mas enquanto Homem é o píncaro de toda a Criação.

Outro aspecto: uma seriedade infinita, olhando todas as coisas pelos seus mais altos e mais profundos aspectos, pela ordenação que as coisas têm entre si, e amando-as enquanto tais, porque são e devem ser assim.

Depois, uma serenidade insondável, que absolutamente não é indiferença para com os outros. Pelo contrário, um amor a cada ser, sobretudo às criaturas humanas, um amor transcendente do qual não podemos nem ter uma ideia!

Se o olhar d’Ele pousasse sobre uma multidão com dez milhões de pessoas, e nós pudéssemos acompanhar esse olhar enquanto incidindo sobre uma delas, ficaríamos conhecendo como ela é, como é o amor d’Ele para com ela, qual o gáudio que Ele tem se essa pessoa for fiel, e a tristeza se for infiel. Que amor, que alegria e que tristeza!

É um olhar cheio de serenidade e de seriedade, compreendendo o que vale cada criatura humana, disposto a fazer-lhe todo o bem possível, e amando-a totalmente. De maneira que essa pessoa, se salvando, é para Nosso Senhor um estremecimento de alegria.

Mas se ela se perde, é uma iracúndia sublime! As tempestades do mar mais terríveis não são senão brincadeira em comparação com isso. E quando Ele expulsa alguém para o Inferno, então ficamos pasmos do horror que Jesus tem àquela criatura que até o fim não quis atender o chamado d’Ele, e que por causa disso se precipita no Inferno. Não podemos ter ideia do que é a cólera se não pensamos na cólera divina de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Grandeza fulgurante de Nosso Senhor

Ao mesmo tempo em que n’Ele existe esse amor e essa cólera, há uma compaixão enorme, porque Nosso Senhor sabe perfeitamente que todos nós, homens, fomos postos nesta vida para sofrer, somos filhos de Adão e Eva e, portanto, herdamos o pecado original, temos defeitos e estamos na Terra para purgá-los e expiá-los, sermos fiéis e irmos para o Céu.

Jesus manda as provações, as dificuldades, as tormentas, e Ele mesmo prepara para nós a solução, arranja um jeito de, suportando-as e vencendo-as, acabarmos sendo fiéis.

Considerar que tudo isso em relação a todos os homens, desde o primeiro até ao último, cabe naquela mente e naquele Coração, nos dá uma ideia da grandeza d’Ele. Perto da qual, o que adianta dizer que fulano é um grande homem? Ninguém é grande, todo o mundo é pequeno, insignificante diante da grandeza fulgurante de Nosso Senhor.

A consolação d’Ele quando via — porque conhecia o futuro — os cruzados montarem a cavalo e irem até a Terra Santa para libertar Jerusalém! Que alegria! Ele via São Fernando tomar Sevilha, e pouco depois Isabel e Fernando conquistarem Granada, e o reino maometano acabar. Nosso Senhor exultou de alegria pensando no grande São Fernando, que vingaria a glória d’Ele. Tudo isso são grandezas fulgurantes.

Mas, ao mesmo tempo, lembrando o bom pastor que tem pena de sua ovelha, tira-a do carrascal, leva-a sobre os ombros e a cura. E o pai do filho pródigo que perdoa, etc. Há uma pluralidade tão grande de aspectos, que ficamos sem ter o que dizer.

Eis a grandeza, a majestade de Nosso Senhor, fazendo com que queiramos muito a invocação que está na Ladainha do Coração de Jesus: Coração de Jesus, de majestade infinita, tende compaixão de nós!

Majestade do abandono

Este é também o divino equilíbrio que há no Coação de Jesus. Por exemplo, a serenidade, a calma e a visão geral das coisas que Ele conservou durante sua Paixão.

A agonia no Horto é uma perfeição de equilíbrio e de majestade. Ali Nosso Senhor entra diretamente em colóquio com o Padre Eterno e tratando de todos os destinos do mundo, vertendo gotas de seu Sangue. E, depois, a majestade do abandono! Quer dizer, tão grande que nenhum homem conseguiu ficar junto d’Ele.

Portanto, a soledade, a tristeza, mas tudo tão equilibrado, tão extraordinário, que se a pessoa tomasse o trabalho de raciocinar um pouco sobre isso, sairia mais equilibrada e menos nervosa.

Uma pessoa que conhecesse o grande São Fernando — o qual conquistou terras sem conta aos mouros e que, de fato, foi quem os expulsou da Espanha — e tratasse com ele, seria impossível falar com o Santo sem ter diante dos olhos continuamente a ideia: esse expulsou os mouros. E na hora em que ele pedisse água para beber, talvez se pusesse de joelhos por causa dessa ideia, indissociável da noção da mouraria enxotada da Espanha, e da coragem do grande São Fernando.

Ao menos eu não saberia olhar para ele sem ter isso em mente.

Assim também, se eu conhecesse São Tomás de Aquino — o Doutor que é como um sol da Igreja Católica —, como me seria possível vê-lo passar por uma estrada, ainda que distante, montado a cavalo e meditando sobre um ponto de Filosofia, e não imaginar que dentro daquela cabeça estava nascendo um sol? Sol de inteligência, de sabedoria, de santidade. E o que vale mais do que tudo é a santidade, evidentemente.

Antegozo do Céu

Diante de Nossa Senhora também pensaríamos tudo isto, mas com uma particularidade.

Imaginar, por exemplo, Nossa Senhora, que foi virgem antes, durante e depois do parto. Durante o nascimento de Nosso Senhor Ela se conservou virgem; como esse mistério se deu?!

Outro episódio da vida de Maria Santíssima: quando Ela notou a perplexidade de São José, viu seu esposo passar por aquele sofrimento sem nome, e percebeu a santidade dele que não duvidou d’Ela em nenhum momento. O demônio com certeza queria que ele duvidasse de Nossa Senhora; São José não duvidou em nenhum instante, mas resolveu retirar-se. E a tristeza com que ele se acomodou sobre a cama para dormir, antes de partir pela estrada para o desconhecido, porque era o homem que estava colocado na maior perplexidade que houve na História.

Quem sabe se Ela o olhou dormindo em paz, mas afogado na dor? E se Ela de repente notou — quando já era quase madrugada, perto da hora de ele se levantar e partir, no último sonho noturno — a fisionomia de São José se iluminar como um sol, e percebeu que na última hora Deus teve pena dele e revelou-lhe o que havia?

Ele no sonho viu o Anjo, não acordou logo, mas pouco depois um vulcão de alegria estourou dentro dele. São José ficou junto à porta do quarto de Nossa Senhora prostrado, à espera do momento em que Ela saísse, osculou o chão e os pés d’Ela, e a Virgem Santíssima entendeu tudo e nunca falaram sobre nada. É uma coisa para lá de sublime!

Conversar sobre temas desses é antegozar o Céu. Imaginem a hora em que cheguemos ao Paraíso e vejamos, de repente, São José com aquele bastão e aqueles lírios, cercado de uma coorte intérmina de Anjos, mas com uma alegria enorme no olhar porque estava vendo Nossa Senhora a pouca distância dele. E um pouco mais adiante Nosso Senhor, que sem ser filho dele segundo a carne, mas sim segundo a lei, sorriu para ele e disse: “Meu pai!”

Só de vermos essa cena teríamos uma felicidade própria para encher a eternidade.

Tenho a impressão de que, diante de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, o tema é tão grande que a graça penetraria em torrentes dentro de nós para, por assim dizer, pensar em nós e por nós a respeito desses temas, porque não somos dignos, nem estamos à altura de cogitar convenientemente sobre isso.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 12/1/1992 e 31/1/1993)

São Francisco de Sales: Como devemos combater os nossos vícios

Quando São Francisco de Sales morreu, resolveram fazer a autópsia. Para surpresa geral, encontraram seu fígado endurecido, como se fosse de pedra…

De fato, embora tivesse um gênio péssimo, ele se dominou de tal maneira que ficou famoso por sua doçura: era considerado o santo da doçura.

Assim devemos ser: se possuímos dificuldade de trato, procuremos ter gênio angélico; se somos inclinados à preguiça ou temos medo de lutar, procuremos ser heróis ao serviço de Nossa Senhora. A exemplo dos santos, sejamos exímios no combate aos defeitos que julgamos mais difíceis de vencer.

Para isso, devemos examinar nossos atos implacavelmente, sem nunca pensarmos em atenuantes. Porque nós só os reconheceremos se formos implacáveis, analisando-os com lupa, um por um.

 

Plinio Correa de Oliveira – Extraído de conferência de 11/11/1989

Dignidade e sapiencialidade de um monumento

As belas construções conforme o espírito católico são menos custosas que os prédios de estilo moderno, que se espalham pelas megalópoles atuais. Isso mostra que o dinheiro não é o principal fator na edificação de uma civilização, e sim a Fé.

 

Temos aqui o Palácio da Comuna de Piacenza, na Itália, edifício gótico onde funcionam a Câmara Municipal e a Prefeitura.

Agradável contraste entre a estátua e o edifício

O edifício é constituído de três linhas. A parte branca é de pedra, a de cima, com janelas, é feita de tijolos, e depois vemos esses enfeites no alto.

O número três tem uma misteriosa capacidade de beleza relacionada, de modo inefável, com a Santíssima Trindade.

Essas janelas todas dão para uma praça, onde vemos duas estátuas muito bem colocadas. Um modo banal de posicionar esses monumentos seria o seguinte: traçar uma linha reta a partir do meio desses cinco arcos e sobre ela colocar, bem no centro, uma das estátuas.

Ora, essas estátuas foram colocadas meio fora de lugar, sem muita relação com o edifício. Mas elas estão num ponto muito poético e constituem uma surpresa agradável para quem olha. Portanto, são bonitas no ponto onde se encontram. É um belo indefinível. Enquanto falo, estou procurando encontrar palavras para exprimir o que há de bonito e não as consigo encontrar. Ademais, a figura representa um cavaleiro numa marcha muito bonita, e este “movimento” contrasta agradavelmente com o que o edifício atrás tem de sério, de estático, de solene.

Nota-se que essa área de baixo é vazada e constitui uma espécie de passeio público que, provavelmente, acompanha o prédio em toda a sua extensão. Em certas regiões da Itália, onde chove e neva muito, esse espaço coberto é de grande auxílio para a população.

Encontramos nessa parte uma série de arcos. De um lado são cinco arcos e, logo acima, seis janelas, sucedidas por elementos decorativos, no topo. Essa sucessão de elementos que se repetem dá uma sensação de unidade ao edifício; entretanto, uma impressão, ao mesmo tempo, extremamente variegada. Porque na base está o arco gótico todo feito em pedra, com uma inegável nota aristocrática, forte, dando quase a ideia de uma porta de fortaleza ou de castelo.

Diversas gamas de maravilhoso

Já as janelas de cima são elegantes, distintas, mas não são tão nobres e nem tão fortes quanto os arcos embaixo. Elas têm qualquer coisa de boa burguesia rica e correspondem muito a uma classe meio nobre, meio burguesa que floresceu na Itália naquele tempo.

Analisando essas janelas, encontramos cinco colunas, mais uma vez. Essas colunas tornam leve a fachada a qual ficaria muito pesada com esses cinco arcos grandes que a compõem. Ademais, essas pequenas colunas constituem uma continuidade em relação ao que está embaixo, porque elas são de pedra também.

Por outro lado, combinam muito bem com a parte que está acima, constituída de tijolos. A mudança de materiais está habilmente preparada pelo artista, e as passagens de um lance para outro do edifício são muito definidas.

Bem no alto, nota-se este cuidado do arquiteto: encerrando essa parte de tijolos, vemos posta, na próxima passagem de um elemento a outro, uma barra com uma espécie de ameias, num estilo ainda gótico, que corta esse lance e faz com que se possa imaginar o edifício sem essa parte superior.

No alto surge o campanário cujos sinos serviam para alertar a população em caso de incêndio, guerra ou outras eventualidades.

Essas ameias são feitas com uma finalidade decorativa e não militar. Notem como são interessantes, altas e se abrem em cima como que para deixar escapar qualquer coisa que penetra no céu. E, como se não sentissem em si bastante poder de elevação, elas são superadas por esses elementos que, mais do que os outros, rumam para o alto.

De maneira que quem olha para o alto do edifício tem a impressão de que ele termina subindo para o céu e perdendo-se no horizonte do panorama.

O conjunto dá uma ideia de bom senso, de peso, de ordem, de solidez que exprime bem o que seria a pequena aristocracia de uma pequena cidade. Possui a dignidade e a sapiencialidade de um monumento da Civilização Cristã, e nisto tem qualquer coisa de maravilhoso, fazendo com que, ao compararmos este edifício com qualquer casa de plutocrata em uma megalópole moderna — cuja construção e materiais utilizados custam vinte vezes mais do que este prédio —, vemos, contudo, ser este aqui um verdadeiro palácio. Um príncipe pode morar aqui, mas não poderia residir em certas casas de plutocratas.

É, exatamente, a presença da sabedoria e da arte da Civilização Cristã.

Notamos neste Palácio da Comuna de Piacenza aspectos do maravilhoso. Não o maravilhoso no grande, mas no miúdo, para demonstrar que há gamas diversas de maravilhoso. E para provar também não ser por falta de dinheiro, mas sim de Fé, que não se constrói uma grande civilização, pois o dinheiro não é o principal fator na edificação de uma civilização.

Onde há Fé, essas coisas aparecem. Tire a Fé, elas morrem completamente.

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/3/1967)

 

Admiração: doutrina e exemplos

Em Dr. Plinio a admiração surgia da conjugação dos princípios com os símbolos que os representavam. Este fenômeno atingia seu auge na consideração das coisas sagradas e da Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo.

 

Todos nos lembramos dos cursos de Catecismo que fizemos, os quais eram inteiramente padronizados. Se compararmos os manuais de Catecismo de diversas épocas, veremos haver entre eles apenas mudança de ortografia, o que, aliás, tem seu lado muito louvável: “És cristão? Sim, sou cristão pela graça de Deus. Ser cristão é ser batizado, crer e professar a Doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo, etc.” É um escachoar de esplendores, mas apresentado sob a forma da estrita doutrina.

Parabolização

Aquilo causa admiração? Causa, e todos nós tivemos fugazes movimentos de admiração ao longo do curso de Catecismo, e depois, no decurso da vida, com aquilo que aprendemos na catequese. Quer dizer, de vez em quando, um ou outro aspecto vem à memória, achamos bonito, e aquilo fica depositado no espírito. Essa é uma admiração de caráter meramente doutrinário diante da qual o homem comum não se sustenta por muito tempo.

Minha posição admirativa perante esses princípios teve mais longevidade porque Nossa Senhora me deu, de um lado, certa profundidade de espírito e, de outro lado — coisa muito importante que, a meu ver, convém frisar —, uma facilidade de compreender estados de alma de pessoas que conheci, ou sobre as quais li ou ouvi falar, como também interiores de casas, aspectos de fachadas, paisagens, plantas, animais e uma série de coisas relacionadas com isso, o que me permitia fazer uma fabulação, isto é, transformação do princípio na fábula. Mas seria muito mais correto dizer “parabolização” daquilo que foi visto no Catecismo; é a aplicação dos princípios.

Princípios assimilados através de objetos

Dou um exemplo característico: enquanto, em toda a minha vida, tive desinteresse por calicezinhos de licor, pequenos, bonitinhos, mas que não me dizem nada, os cálices grandes, de um tipo que se deixou de usar já no século XIX, sempre me interessaram muito. Primeiro de tudo, os cálices usados na Missa sempre me falaram enormemente.

De outro lado, certas taças mais antigas que tinham a forma de cálice. Por exemplo, na Idade Média, cálices pesados, com cabos cheios de pedras preciosas, nos quais se punha um vinho generoso e abundante, e que eu, amigo do vermelho, gosto de imaginar o “Bourgogne”. Beber aquilo me parece que é nobre, dá alento ao homem, circulação à vida, a natureza se torna mais robusta. Sobretudo se o cálice é um pouco rústico, de um cristal grosso, quase uma rocha dentro da qual se cavou um cálice para ser usado por algum par de Carlos Magno… Parece-me muito convidativo.

Isso me fala muito da mentalidade humana enquanto realizando a síntese do pensamento. A forma do cálice me sugere um pensamento cuja conclusão e síntese estão no ponto onde o cálice encosta na haste.

No cálice da Missa está presente o holocausto por várias razões considerado, que se fecha efetivamente no propósito e na consumação do martírio. Levantar um cálice de ouro é de “toute beauté”!(1) A elevação do cálice sempre produz em mim muito efeito, porque a Fé me ensina que ali estão o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, e também porque, para mim, o holocausto feito na Missa se simboliza muito no cálice.

Então, vemos a verdade de Fé muito relacionada com um objeto a serviço desta verdade. Assim, há uma facilidade muito grande de guardar o princípio, por causa exatamente de um objeto que fixa a parábola ao princípio, dando a este uma espécie de vida que, para o meu modo de ser — para um indivíduo mais intelectual talvez não seja assim —, é absolutamente indispensável.

Lamparina do Santíssimo Sacramento, mármores e incenso

Um objeto que tem algo a ver com o cálice e produz em meu espírito um efeito análogo é a lamparina. Lamparinas bonitas, bem arranjadas, havia muitas antigamente. As lamparinas nem sempre têm um valor extraordinário, mas possuem um elevado aspecto simbólico.

Eu tenho, graças a Nossa Senhora, uma facilidade por onde, numa vigília noturna, por exemplo, diante do Santíssimo Sacramento, olhando para a lamparina, as considerações doutrinárias que faço pousam sobre a lamparina, tomando-a como símbolo, conferindo uma proporção humana àquelas considerações teóricas.

Para meu uso pessoal, isso significa muito e dá, então, aos princípios do Catecismo um complemento que me facilita admirar.

Mármores muito bonitos empregados em igrejas me dizem muito também. Havia igrejinhas paroquiais na São Paulinho, que eu conheci no meu tempo de menino, e diante das quais me extasiei a justo título. A Igreja de Santa Cecília, por exemplo, é igrejinha paroquial. Mas tem uma capela do Santíssimo Sacramento com mármores de Carrara, representando desenhos geométricos.

Fiquei encantando com aquilo. E aqueles princípios geométricos se assimilaram em meu espírito a uma lógica, a um vigor, a uma coerência, que a força conferida pelo Santíssimo, pela Comunhão, dá à alma e exige dela.

E, assim, mil outras coisas!

Por exemplo, o incenso é uma coisa fenomenal! Simboliza a alma humana que se eleva na oração, mas a alma sacrificada, dolorida, que está queimando, e faz subir a Deus uma oração de agradável odor. Mas também a homenagem respeitosa, nobre, aristocrática, que sobe até o trono de Deus.

E, depois que o incenso se espalha bem na igreja e dá a impressão de que as nuvens vieram povoá-la, tornando-a meio conatural com o céu. Assim, há uma porção de coisas que a mim falam muito agudamente e que, em toda a minha vida, relacionei com os princípios, facilitando a admiração por eles.

Admiração: conjugação elevada de diversos princípios

Em nós a admiração não é uma operação de Anjos, mas de homens, em que os princípios precisam estar associados, conjugados, relacionados com símbolos, e daí subir — por assim dizer, explodir — à admiração.

Isso eu fazia com uma multidão de coisas da vida. Por exemplo, certa ocasião meus olhos caíram num quadrinho colocado na parede de uma sala, o qual representava uma caravela saindo da laguna de Veneza e demandando o mar. Não pretendo nem um pouco dizer que se tratava de um grande quadro, uma maravilha, mas era um bom quadro. A água era apresentada num colorido muito matinal, uma espécie de azul ligeiramente esverdeado, que parecia quase uma pedra preciosa.

Por detrás, em contraste com a serenidade matinal do mar, uma acumulação de nuvens ainda luminosas, mas que para mim falavam de um porvir borrascoso para a nau. O navio parecia sair da laguna com a tripulação inconsciente dessas nuvens e toda enlevada com a água. As velas enfunadas pareciam exprimir o desígnio humano de navegar, enfunado pela esperança da navegação bem sucedida e pela alegria da viagem, da mudança, do lucro e do risco.

Daí uma facilidade muito grande de admirar aquilo. Não estou analisando o quadro enquanto quadro, mas a paisagem. Teria mais valor ainda se eu a visse, não numa tela, mas na realidade.  O valor da cena representaria mil aspectos nobres da alma humana, que eu passo a definir.

Primeiro, uma mobilidade leve e decidida rumo ao desconhecido, que é o passo da coragem, do destemor. Depois, uma espécie de altura; o mastro central parecia desafiar o mar, com uma atitude ligeiramente de senhorio em relação ao mar, como quem diz: “Eu te vejo de cima, e tu não me engolirás!”

Mas, de outro lado, as saudades pesam em algo. O barco não dava a impressão de estar saindo muito depressa. Ele parecia dizer um discreto adeus à terra. E, por fim, a borrasca atrás parecia afirmar que os navegantes estavam com a alma decidida ao risco. A cena lembrava estados de alma muito bonitos.

Ou seja, por detrás disso estavam princípios que se tornam mais fáceis de serem amados quando se fazem essas correlações.

Daí nasce a admiração. Porque assim é fácil admirar. Imaginemos que colocassem em nossas mãos um tratadinho intitulado: “Das virtudes do navegante”. Pode ser muito verdadeiro, apreciável. Eu gostaria enormemente de ter esse tratadinho para ordenar, dar o sentido profundo das impressões que aquilo me causou. Mas no “éclat”(2) da admiração, a impressão tem seu papel.

Grandeza enquanto atraindo, protegendo, perdoando

Gosto muito da imagem do Coração de Jesus que se encontra na sala de visitas de meu apartamento, venero-a muito. Mas ela é muito menos expressiva, como imagem, do que o quadro acima descrito.

Diferente é a impressão que me causa, não a imagem, mas o próprio Coração de Jesus. É, em seu aspecto afável e doce, a própria perfeição, de uma superioridade infinita em relação a qualquer pessoa que se achegue a Ele. Mas de uma dessas superioridades que nem sei como qualificar; é total! Os homens só não se surpreendem com o Sagrado Coração de Jesus porque são de pedra mais dura do que o alabastro com o qual foi feita aquela imagem.

É a grandeza enquanto atraindo, protegendo, perdoando, e não enquanto pondo o indivíduo no lugar e dando uma lição de hierarquia. Entretanto, a lição de hierarquia está ali presente. Quer dizer, é impossível olhar para Nosso Senhor sem cair de joelhos. Em qualquer leitura do Evangelho, queiramos ou não, fazemos uma imagem mental de Nosso Senhor. E esta imagem mental sempre leva a pessoa a se ajoelhar. E com o Coração à mostra, ainda muito mais.

Nosso Senhor dormindo no barco

Consideremos as várias cenas do Evangelho, que estão na linha do Sagrado Coração de Jesus. Nosso Senhor dormindo no barco, durante a tempestade, por exemplo.

É a coisa mais comum que pode haver. Um marzinho, um barquinho ordinário e um homem com uma túnica pobre — mas, segundo uma bela tradição, esta túnica era inconsútil e crescia com Ele! —, deitado e dormindo. E o sono de Jesus, que harmonia! Que doçura, que perfeição! Quanta reflexão dentro deste sono! Que elevação a deste repouso! O mérito santíssimo daquele cansaço que assim se desprendia d’Ele e subia como holocausto até o Céu.

O contágio do repouso, da paz d’Ele, para quem O olhasse. Nunca seria possível aproximar-se d’Ele e vê-Lo dormindo, sem imediatamente se ajoelhar. No que diz respeito a mim, uma vontade enorme de tocar n’Ele, e uma falta de coragem! Como é possível tocar n’Ele? Nem em suas vestes, em que tocou aquela mulher, eu ousaria tocar. O lugar onde se soube que Ele pousou os pés, se não deixou marca, ali eu ousaria oscular; se deixou, não ousaria. Porque é Deus!

Podemos imaginar como os cabelos d’Ele, durante o sono, se dispunham em torno dos ombros… Não ornamentalmente, mas com certa naturalidade. Porém, que efeitos produziam! Sua respiração perfeitíssima, enquanto dormia, exalando amor àquele que de olhos fechados Ele via! O que se passava durante o sono d’Ele, o que significa seu sono? Incontestavelmente dormia. Mas, não é como o nosso sono… Não será que Ele rezava enquanto dormia, dirigindo-Se ao Padre Eterno? A natureza divina d’Ele certamente falava. E o que falava?

Será que não teria conhecimento de que nos encontrávamos ali perto? E não estava nos comunicando graças durante este tempo, enquanto dormia?

E nosso furor se alguém viesse dizer que, do lado de lá do lago, há gente que trama a morte d’Ele. “Acontecerá qualquer coisa, menos que toquem n’Ele. Bandidos!” Creio que a única coisa que poderia distrair um homem do fato de Ele estar lá seria a ideia de que os assassinos estivessem ali perto. Mas, ainda nisso, entrava uma admiração sem limite. Como é maravilhoso admirar! Aí sim, sentir-se pequeno, que coisa maravilhosa!

Nisso entraria toda uma teoria da admiração!

Porém, isto tem uma recíproca: a pessoa não ser capaz de ver uma coisa sem reportar até os princípios. E, portanto, certas admirações que eu tive, deixando-me “écrier”(3) de encantamento.

As correlações ajudam a alimentar a admiração…

A grande casa de modas em São Paulo era “La Saison de l’Année”, que fazia vestidos para senhoras de acordo com a estação do ano. A casa não era francesa, devia ser de uma Da. Francisquinha, que parecia entender do “métier”; sabia, sobretudo, ganhar dinheiro, fazia muita fortuna. E sabia muito bem agradar senhoras ricas. Ela era “francesosa”.

Mas, então, chegavam lá na Francisquinha, com um pimpolho chamado Plinio, conduzido pela mão e desolado de ter que entrar na casa de modas. Sentia uma caceteação sem nome, tanto mais que a cliente e a Da. Francisquinha esqueciam absolutamente que o pimpolho existia. E embarcavam nas suas elaborações infindas. Porque a Da. Francisquinha devia fazer a crítica, mas quão amável e respeitosa para não perder a freguesa.

E surgiam novas sugestões. Então, as vendedoras traziam pilhas de revistas que colocavam sobre a mesa, e debatiam. De maneira que uma sessão com a Da. Francisquinha, o mínimo que levava era meia hora. Mas para um menino, ficar meia hora sem ar… Devemos imaginar tudo isso na São Paulinho pequena, muito rica — sempre foi rica — e totalmente europeizada.

Havia uma casa de flores chamada, se não me engano, “La Rose de France”. Vemos em tudo a influência francesa, a qual eu hauri de todos os jeitos, a plenos pulmões e de todos os modos. Como nas outras casas de flores, havia uma vitrine. De repente, “La Rose de France” resolveu pôr um sistema de umectar continuamente a vitrine, de maneira a conservar melhor as flores. E, ao longo de toda a vitrine, pequenos arcos de água caíam formando filas. Tornava-se uma espécie de cortina de água transparente, constituindo como que um babadozinho, mas que era uma coisa linda!

Lembro-me de que, indo ao colégio de bonde, passei em frente dessa casa de flores e, de repente, notei aquela modificação na vitrine e pensei: “Ah, que maravilha! Se pudesse, eu descia para ir olhar lá em frente. Não posso descer. Mas que coisa estupenda!”

Encantei-me, ­admirei enormemente porque há uma porção de estados de espíritos no homem que cortinas desse gênero me sugerem, e que a água disposta assim sugere ainda mais. Donde uma admiração, porque tem uma relação com a alma humana, com situações históricas que foram assim, etc.

Esse relacionamento fácil ajuda enormemente a admiração.  E eu me pergunto se nós todos não poderíamos adquirir isso, se quiséssemos.

…e esta, por sua vez, torna-se uma evidente defesa da pureza

A expressão “Santa Igreja” diz que a Igreja é santa. Intelectivamente se compreende o que é a santidade, mas há uma beleza na expressão “Santa Igreja”, que faz reluzir esta verdade. A Santa Igreja é uma coisa celeste, divina! A Santa Igreja Católica Apostólica Romana… A própria cadência dos adjetivos é de uma beleza extraordinária!

Um simples tratado de Teologia, para quem é insensível a isto que nós estamos dizendo, deixa a alma com todos os elementos para a admiração? Eu não creio. Estou longe de menosprezar o tratado de Teologia. Eu penso que ele, como contém a verdade expressa, é muito mais importante do que isso. Mas não quero dizer que a alma humana deve estar dissociada disso.

Inclusive o vocabulário humano é criado para exprimir essas coisas. Não é criado só para isto, mas também para isto, numa função que a meu ver é altamente conveniente ou necessária.

São Paulo afirma que os romanos, por não terem o desejo de amar essas coisas, caíram na imoralidade. A meu ver, isto que estou explanando é uma defesa da pureza; é até uma evidente defesa da pureza.

Entretanto, no espírito dos homens contemporâneos, a Revolução pôs a ideia de que se devem estancar os surtos de alma que vão nesse sentido, porque formam um homem fantasioso, inútil e desviado nas suas elucubrações.

Unir-se é ver, admirar e inalar!

Lembro-me bem de como o carinho de mamãe ajudou-me a fazer correlações como essas.

Eu acordava durante a noite com insônias, ia até a cama dela e tinha a inconsciência de me sentar sobre o peito dela, e abrir seus olhos com as mãos. Eu percebia que mamãe estava com muito sono, mas ela abria os olhos, olhava-me com afeto e imediatamente dizia: “Meu filho!” E tirava o seu travesseiro e me punha sentado sobre ele — era uma criança de dois, três anos — e começava a brincar comigo.

Ela tinha me salvado daquele “naufrágio” de estar acordado sozinho num quarto escuro, onde apenas um pouco de luz entrava por uma bandeira de uma porta. Ela me havia salvado do desespero. Mas com que abundância de bondade!

Quando vinha o sono, ela me deitava, brincava ainda um pouquinho comigo, e eu dormia. Naquele tempo eu já pensava: “Querer bem é assim, e com ela eu me arranjo!” Mas não era um pensamento utilitário. O querer bem é assim… Minha ideia era: “Eu preciso querê-la assim, e já estou querendo”.

Ao chegar a velhice dela, eu a ajudei no “naufrágio”. Porque a solidão naquela idade seria um naufrágio, do qual a solidão da criança, no quarto durante a noite, era uma imagem. E creio ter feito com ela o que ela fez comigo.

Vendo-a querer-me bem daquele jeito, eu aprendi com ela, nela, a querê-la bem do mesmo modo. Quando se vê alguma coisa em alguém e ama de maneira a modelar seu espírito de acordo com aquilo, isto é união.

Subindo infinitamente de ponto, quem olhasse Nosso Senhor dormindo na barca, ou era de uma ingratidão soberana, ou sairia de lá com outra alma. Porque unir-se é isso. É ver, admirar e inalar! Receber, acolher e modelar-se. Isto é unir-se!

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/10/1984)

 

 

1) Do francês: de toda beleza.

2) Do francês: brilho.

3) Do francês: gritar, proclamar fortemente.

São Francisco de Sales – Doutor da doçura e da suavidade

São Francisco de Sales foi o anti-calvinista, o anti-jansenista por excelência. Lutou contra aquela forma hirta de piedade protestante que nos queria apresentar um Deus justo, entretanto mau, e que está louco para dizer: “Agora te peguei! Você pecou e vai pagar, está compreendendo?!” Daí todos os rigores horrorosos do calvinismo, o qual fez um grande mal à Europa.

Doutor da doçura e da suavidade, São Francisco de Sales tinha um verdadeiro carisma para fazer sentir os aspectos doces da Religião Católica e levar as almas, através da doçura, a realizar verdadeiros sacrifícios, maiores e mais numerosas penitências do que os jansenistas impunham aos seus sequazes.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/2/1966)

São Paulo, prefigura dos apóstolos dos últimos tempos

Para Dr. Plinio, ao Apóstolo São Paulo dever-se-ia aplicar a descrição feita por São Luís Grignion de Montfort sobre os missionários a serem suscitados por Deus nos últimos tempos: “Pregarão com grande força e virtude, e tão grande, tão esplêndida, que hão de comover todos os espíritos e todos os corações nos lugares em que pregarem; a eles haveis de dar vossa palavra, à qual nenhum dos vossos inimigos poderá resistir”.
Acompanhemos os comentários de Dr. Plinio sobre o episódio da conversão de São Paulo.

O Apóstolo, digno desse título pelo seu zelo e heroísmo extraordinários na evangelização dos povos, sobrepujando talvez a dedicação dos primeiros escolhidos pelo próprio Nosso Senhor. São Paulo se transformou nesse ardoroso discípulo de Cristo, após uma espetacular conversão, cuja festa a Igreja celebra em 25 de janeiro.

No caminho de Damasco

Para recordá-lo, creio ser oportuno ler e comentar o seguinte trecho dos Atos dos Apóstolos:
Enquanto isso, Saulo só respirava ameaças e morte contra os discípulos do Senhor. Apresentou-se ao príncipe dos sacerdotes, e pediu-lhe cartas para as sinagogas de Damasco, com o fim de levar presos a Jerusalém todos os homens e mulheres que achasse seguindo essa doutrina. Durante a viagem, estando já perto de Damasco, subitamente o cercou uma luz resplandecente vinda do céu.

Caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: Saulo, Saulo, por que me persegues? Saulo disse: “Quem és, Senhor?” Respondeu ele: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues. Duro te é recalcitrar contra o aguilhão”. Então, trêmulo e atônito, disse ele: “Senhor, que queres que eu faça?” Respondeu-lhe o Senhor: “Levanta-te, entra na cidade. Aí te será dito o que deves fazer.”

Os homens que o acompanhavam enchiam-se de espanto, pois ouviam perfeitamente a voz, mas não viam ninguém. Saulo levantou-se do chão. Abrindo, porém, os olhos, não via nada. Tomaram-no pela mão e o introduziram em Damasco, onde esteve três dias sem ver, sem comer nem beber. Havia em Damasco um discípulo chamado Ananias. O Senhor, numa visão, lhe disse: “Ananias!” — “Eis-me aqui, Senhor”, respondeu ele.

O Senhor lhe ordenou: “Levanta-te e vai à rua Direita, e pergunta em casa de Judas por um homem de Tarso, chamado Saulo; ele está orando.” (Este via numa visão um homem, chamado Ananias, entrar e impor-lhe as mãos para recobrar a vista.) Ananias respondeu: “Senhor, muitos já me falaram deste homem, quantos males fez aos teus fiéis em Jerusalém.E aqui ele tem poder dos príncipes dos sacerdotes para prender a todos aqueles que invocam o teu nome”.

Mas o Senhor lhe disse: “Vai, porque este homem é para mim um instrumento escolhido, que levará o meu nome diante das nações, dos reis e dos filhos de Israel. Eu lhe mostrarei tudo o que terá de padecer pelo meu nome”.

Ananias foi. Entrou na casa e, impondo-lhe as mãos, disse: “Saulo, meu irmão, o Senhor, esse Jesus que te apareceu no caminho, enviou-me para que recobres a vista e fiques cheio do Espírito Santo”. No mesmo instante caíram dos olhos de Saulo umas como escamas, e recuperou a vista. Levantou-se e foi batizado. Depois tomou alimento e sentiu-se fortalecido. Demorou-se por alguns dias com os discípulos que se achavam em Damasco.

Imediatamente começou a proclamar pelas sinagogas que Jesus é o Filho de Deus. Todos os seus ouvintes pasmavam e diziam: “Este não é aquele que perseguia em Jerusalém os que invocam o nome de Jesus? Não veio cá só para levá-los presos aos sumos sacerdotes?”

Saulo, porém, sentia crescer o seu poder e confundia os judeus de Damasco, demonstrando que Jesus é o Cristo.

Um homem decidido

Essa história é tão rica em pormenores saborosos, que não se tem quase o que lhe acrescentar. Porém, para tecermos alguns comentários, seria interessante destacar um dos traços curiosos da narração, presente em suas linhas gerais e nas principais passagens: é a força.

Saulo nos é apresentado como um homem decidido. Ele toma a iniciativa de pedir aos líderes religiosos cartas de autorização para perseguir os cristãos. Percebe-se que tais autoridades estavam um tanto encostadas e ele era o zeloso, disposto a acabar com aquela — no entender dos fariseus — seita propagadora de doutrina errônea e perigosa. Ou seja, é ele quem desencadeia a ação de exterminar os vários núcleos da pseudo-heresia nascente.

Como dizem os Atos dos Apóstolos, “respirando ameaças e morte”, munido dessas carta, dirige-se a Damasco, pois queria prender ali todos os seguidores da nova “seita”.

Esse indivíduo era famoso pela sua rijeza, o que se confirma pela resposta de Ananias a Deus: “Muitos já me falaram deste homem, quantos males fez aos teus fiéis em Jerusalém”. Saulo era tido, portanto, como um inimigo capital dos católicos.

Vem a propósito observar os termos curiosos empregados pela Sagrada Escritura em sua narração: “Durante a viagem, estando já perto de Damasco…”. Tratava-se de trajeto um pouco longo, e tem-se a impressão de que, avançando no seu caminho, a raiva dele se tornava cada vez maior, até acontecer de se aproximar da cidade. Então, àquele homem duro sucede um duro fato. Envolto por uma luz celeste, ele ouve uma voz que o interroga: “Saulo, por que me persegues?”

A ordem das coisas invisíveis se abria para ele. E a pergunta importa numa forte censura, pois ele estava resistindo a intensas graças anteriormente lhe concedidas, como se infere das palavras seguintes: “Duro te é recalcitrar contra o aguilhão”. Quer dizer, as graças eram como um aguilhão a incidir sobre Saulo, mas este as rejeitava. Em razão disso, para dar à ponta a sua máxima penetração, Deus empregou uma força ainda maior e o derrubou na estrada.

A cegueira, aflição para o poderoso

E Saulo sentiu o impacto!
— Senhor, que queres que eu faça?

A essa queda seguiu-se uma severidade ainda maior: a cegueira. Para um homem de temperamento como o de São Paulo, ser privado da visão é a pior coisa possível, pois uma das carências humanas mais incompatíveis com o vigor é a cegueira. E ele, outrora repleto de agilidade e empreendimento, para caminhar tinha de ser conduzido pela mão. Não havia outro remédio…

Certamente a notícia desse acontecimento circulou célere na comunidade católica de Damasco, e muitos foram ver e falar com Saulo. Compreende-se que o episódio tenha produzido essa efervescência, enquanto o protagonista passou a se tratar de modo veemente: durante três dias entregou-se a um rigoroso jejum, sem comer nem beber. Pouco depois lhe caíram as escamas dos olhos e ele recuperou a vista, alimentou-se e recobrou igualmente as forças. Ou seja, não se achava nem um pouco alquebrado: tão logo lhe deram o necessário, empertigou-se, alçou-se de novo e se dispôs à luta.

Operou-se nele uma mudança completa e estrepitosa, pois de líder anticristão passou a pregar nas sinagogas e lugares públicos o nome de Jesus, contra o Qual se levantara.

O prêmio do bom combate

Esse homem de importância capital para o desenvolvimento da Igreja nascente, atuará na posição chave daquela época, que era o mundo mediterrâneo. Tomando a palavra de Deus como um gládio de dois gumes — para usar sua própria expressão — que atinge a junção da alma com o espírito, operava conversões extraordinárias, quer pela qualidade, quer pela quantidade de pessoas atraídas à Fé cristã. De tal modo que ele abriu um sulco sobre o qual a Igreja Católica prosperou, além de dar o primeiro passo essencial para a derrubada do paganismo no Império Romano.

E no final de sua vida, fez ele uma prece que tem algo de santamente forte em relação a Deus Nosso Senhor. Ele se dirige a Jesus com palavras que certos hagiógrafos piegas qualificariam de falta de humildade, mas nada objetam em se tratando de uma afirmação de São Paulo. Aproximando-se da morte, seria tão legítimo que ele dissesse: “Senhor, tende piedade de mim e, segundo a multidão de vossas misericórdias, apagai meus pecados”. Porém, sua oração foi outra: “Senhor, combati o bom combate, só me resta agora receber de Vós a coroa da justiça!”

Tais palavras constituem uma espécie de atestado brilhante de sua própria fidelidade, como se declarasse: “Senhor, o cheque está preenchido, e estou perto do guichê. Pagai-me. Minha vida valeu o prêmio que vossa justiça me prometeu”. E com sua consciência tranquila, ele se apresentou diante de Deus.

Tudo isso é bem exatamente o contrário de uma das facetas que a pieguice manifesta. Pois esta não se compraz com conversões veementes, nem lhe agrada cogitar na mudança de vida de homens sábios ou dos que alteram o rumo dos acontecimentos. Ela não considera o corpo da Igreja nem a sociedade temporal como um conjunto no qual há homens-chaves. Aprecia apenas umas conversões pequenas, individuais, narradas assim: “Fulano estava com a alma muito agitada. E, num momento de suavidade, às seis horas da tarde, quando ouvia pela rádio a Ave-maria mesclada com uma música melosa, ele se converteu. Ficou então em paz, recolheu-se, afastou-se do bulício, desinteressou-se por todas as coisas humanas e agora não faz senão rezar…”

Não discuto a autenticidade e a oportunidade de uma conversão assim, posto serem muitos os caminhos de Deus para as almas. Contudo, não me parece legítimo apresentá-la como sendo a única digna de consideração.

Voltemos nossos olhos para o exemplo de São Paulo: logo depois de convertido, desferiu trombadas nos adversários da Igreja, primeiro nos ambientes que ele próprio frequentava quando perseguidor dos cristãos, e em seguida pelas vastidões do Império romano. Bem ao contrário do que lhe recomendaria um desses piegas…

O espírito dos apóstolos dos últimos tempos

Seria o caso, então, de nos perguntarmos o quê devemos pedir a São Paulo nesta festa de sua conversão.

Nossa Senhora lhe obteve o dom de uma santa firmeza, porque à frente dele se erguiam muitos obstáculos a serem derrubados. Era uma época de luta, na qual se tornava necessário extirpar o paganismo. Creio que seria de todo conveniente pedirmos para nós esse santo vigor, em todos os sentidos da palavra, a fim de batalharmos contra nossos defeitos morais e más inclinações, assim como para enfrentarmos a Revolução, hoje em seu auge e muito mais poderosa do que foi o paganismo no tempo do Império Romano.

Donde poder-se compreender que os apóstolos dos últimos tempos tenham uma rigidez a la São Paulo. Aliás, é curioso, mas sob alguns aspectos este pode ser considerado uma prefigura deles. Lendo-se a Oração Abrasada de São Luís Grignion de Montfort, e aplicando-a ao Apóstolo dos Gentios, percebe-se que as analogias são imensas e uma série de coisas se reportam umas às outras, admiravelmente.

Aí temos algumas considerações a respeito de São Paulo, e ser-nos-ia lícito acrescentar mais uma.

É significativo que, numa cidade fundada no dia da conversão dele e batizada com seu nome, haja surgido nosso movimento e daqui se irradie para outros países. Tem-se a impressão de ser desejo do Apóstolo São Paulo que os nascidos nessa cidade tomem tal iniciativa.

Por outro lado, o que outrora se chamou “espírito paulista” possuía qualquer coisa do vigor, da força, intrepidez, iniciativa, do senso organizativo próprio àqueles que devem desenvolver uma ampla e firme ação num certo sentido universal. Os bandeirantes, assim como os autênticos paulistas, manifestavam qualidades naturais que eram símbolos daquelas que um membro de nosso grupo deve ter no plano sobrenatural.

Não convém tirar disso grandes conclusões, porque tais coincidências na História não são raras. Mas, em todo o caso, pode-se fazer uma interrogação ou conjectura: não haverá nisso um pouco mais do que uma coincidência? É bem possível.

Lembremo-nos, portanto, de rezarmos de modo muito particular a São Paulo nessa sua festa, rogando-lhe alcançar-nos o espírito dele, ou seja, o espírito dos apóstolos dos últimos tempos.

 

Plinio Corrêa de Oliveira