A rainha dor e a irmã alegria

Nas décadas de 20 e 30, eu percebia que havia duas linhas na Moral. Uma afirmava, no fundo, o seguinte: todo sofrimento é um mal, e tudo que se faz para eliminar a dor é um bem. Portanto, a virtude é uma batalha contínua contra toda espécie de sofrimentos.

Outra linha dizia: toda regra posta por Deus é um bem, e tudo quanto é violação dessa regra é um mal. A virtude é a observância da Lei de Deus custe o que custar, tanto no impulso e na alegria da alma, como na dificuldade, na luta, na batalha. O que é mais belo: o homem virtuoso que, tomado por uma espécie de ventania onde sopra o que há de mais nobre nele, voa sem obstáculos interiores para a prática da virtude; ou o homem que, pelo contrário, sentindo as hienas e as cobras da oposição à Lei de Deus, freia, pisa e diz: “Eu cumprirei a lei divina!”? Ambas as coisas têm o apoio da Igreja.

Mas não é aprovado pela Moral católica o pensamento de que todo bem consiste em evitar o sofrimento.

Há ocasiões jubilosas da vida. Ocasiões em que a alma inteira voa para a virtude. Há ocasiões difíceis, em que o homem inteiro parece fugir da virtude e tem que se segurar a si mesmo pelo pescoço e dizer: “É assim! Custe o que custar e não tem conversa. Tem que ser assim!” E há uma conjugação harmoniosa de ambas as coisas, segundo os desígnios de Deus para cada alma. Às vezes, Deus envia o sofrimento do modo mais inesperado possível.

Quando, nas ocasiões mais inesperadas, a dor bate à nossa porta, como devemos fazer? Ir solícitos de encontro a ela! Recebê-la como uma rainha, abrir largas as portas para ela e colocá-la num trono. Para quem tem Fé, ela não se chama “dor”, mas sim a “Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo”.

Em sentido oposto, se a alegria irrompe, também devemos abrir-lhe as portas. Mas se recebemos a dor como rainha, a alegria deve ser recebida como uma irmã: de maneira amável, agradável, prazenteira, dando graças a Nossa Senhora por receber a visita dessa irmã.

Recebe-se a dor com coragem, e a alegria com este receio: Qual será minha atitude quando esta minha irmã me disser “adeus!”, desaparecer, e eu perceber, de repente, que houve uma mudança, e a dor está no lugar dela?

A dor é ciumenta. Ela quer que eu pense nela até no momento de receber a visita da alegria.

Não sei se a linguagem está muito metafórica, mas é assim: na hora da alegria eu tenho que me preparar para não fechar a porta para a dor. Na hora da dor eu não preciso me preparar para não fechar a porta para a alegria. A alegria eu sempre receberei bem. Eu não tenho que me preocupar. A questão é receber a dor .

(Extraído de conferência de 26/2/1983)

A “Carta circular aos Amigos da Cruz” – VII Amoroso apelo de Jesus

Na seqüência de seus comentários ao opúsculo de São Luís Grignion de Montfort, Dr. Plinio nos coloca diante desta imperiosa questão: temos retribuído como devemos — isto é, pelo nosso empenho em perseverar na virtude — aos sofrimentos que o Divino Redentor e sua Mãe Santíssima padeceram por nós no caminho do Calvário?

 

Na exposição anterior sobre a “Carta circular aos Amigos da Cruz” consideramos o pensamento de São Luís Grignion acerca dos dois partidos que se enfrentam na história humana: o de Jesus, constituído pelos que se despojam das coisas terrenas para segui-Lo com sua Cruz,  e o do mundo, composto pelos homens que se deixam levar pelas vãs ilusões mundanas.

Pungentes palavras de Nosso Senhor a seus seguidores

Na seqüência, o santo autor assim escreve:

Lembrai-vos, meus caros confrades, que nosso Bom Jesus vos olha neste instante e diz a cada um de vós em particular: “Eis que quase todos me abandonaram no caminho real da Cruz. Os idólatras cegos zombam de minha Cruz como de uma loucura; os judeus obstinados se escandalizam com ela, como se fosse objeto de horror (1Cor 1, 23); os hereges quebram-na e a derrubam como coisa digna de desprezo. Mas, e isto só posso dizer com lágrimas nos olhos e com o coração transpassado de dor, os filhos que criei em meu seio e que instruí em minha escola, os meus membros que animei com meu espírito abandonaram-me e desprezaram, tornando-se inimigos de minha Cruz (Is 1, 2)! “Numquid et vos vultis abire” (Jo 6, 67)?

“Quereis vós também abandonar-me, fugindo de minha Cruz, como os mundanos, que nisto são outros tantos Anticristos: antichristi multi?” (1 Jo 2, 18) Quereis, enfim, conformar-vos ao século presente, desprezar a pobreza de minha Cruz para correr após as riquezas? Evitar a dor de minha Cruz para procurar os prazeres? Odiar as humilhações de minha Cruz para ambicionar as honras? Tenho, na aparência, muitos amigos que me fazem protestos de amor, mas no fundo me odeiam, pois não amam a minha Cruz; muitos amigos de minha mesa, e pouquíssimos de minha Cruz.”

A este apelo amoroso de Jesus elevemo-nos acima de nós mesmos; não nos deixemos seduzir pelos nossos sentidos, como Eva; não olhemos senão o autor e consumador de nossa fé, Jesus crucificado. Fujamos da concupiscência do mundo corrompido; amemos Jesus Cristo da melhor maneira, isto é, através de toda sorte de cruzes. Meditemos bem estas admiráveis palavras de nosso amável Mestre, que encerram toda a perfeição da vida cristã: “Si quis vult venire post me, abneget semetipsum et tollat crucem suam, et sequatur me!” [Se alguém quiser vir após Mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me] (Mt 16, 24).

Sendo fiéis, podemos diminuir as dores de Jesus na Paixão

O que vimos até aqui é, portanto, uma espécie de prêmio do estilo de vida de renúncias que Nosso Senhor Jesus Cristo traçou para seus fiéis seguidores. E essas palavras exortam e preparam a alma a receber bem um programa tão austero.

Façamos uma análise desse trecho.

Lembrai-vos, meus caros confrades, que nosso Bom Jesus vos olha  neste instante, e diz a cada um de vós em particular: “Eis que quase todos me abandonaram no caminho real da Cruz”.

Esta imagem tem um fundamento histórico, ou seja, Jesus Cristo, do alto do Céu, vê todas as almas e lamenta que tantas delas O tenham abandonado no caminho da Cruz. Além disso, possui um sentido mais profundo, que sempre devemos tomar em consideração, referente às disposições de Nosso Senhor durante a Paixão.

Sabemos que Ele sofreu na previsão do mal que faríamos. E, portanto, de um modo misterioso, mas muito real, podemos diminuir as dores d’Ele na Paixão, de acordo com o bom procedimento que tenhamos. Nosso Senhor, em vários momentos de sua Paixão, se não em todos, teve-nos em vista, considerando as alternativas de nossas almas em seguir o caminho da Cruz, em aceitar ou não os sofrimentos.

Ser-nos-ia possível fazer essa meditação tomando cada passo da Via Sacra. Por exemplo, quando o Redentor caiu três vezes sob o peso da Cruz, poderia ter pensado: “Plinio Corrêa de Oliveira aguentará as cruzes sob as quais deverá cair? Ó Pai Eterno, eu Vos peço por ele, para que tenha força e ânimo, a fim de carregá-las”. Nossa Senhora, acompanhando seu Divino Filho, teve presente Plinio Corrêa de Oliveira e cada um dos que estão aqui, na previdência que ambos tinham dos acontecimentos vindouros, e se perguntavam o que faríamos das cruzes com as quais nos visitariam: se bem as receberíamos ou se as abandonaríamos; que proveito tiraríamos da imensa quantidade de sangue derramado, de seus gemidos, prantos, dores e tudo o mais que estavam sofrendo.

Não é, portanto, despropositado fazermos esse raciocínio, cheio de compunção. Para compreendermos tudo quanto esse pensamento tem de pungente, devemos imaginar um pai que fez tudo por seu filho e, ao chegar o momento de receber uma retribuição, pergunta-se: como meu filho vai me recompensar? Corresponderá ao bem que lhe fiz? Ou, pelo contrário, pagar-me-á com uma injúria, uma blasfêmia, um abandono? Ou, então, com uma dessas friezas que naturalmente enregela a alma de um pai?  Essas são algumas considerações — todas elas válidas, e haveria outras — a fazer a propósito desse trecho de São Luís Grignion de Montfort.

A necessidade da graça para compreender essas verdades

A partir da fé essas perguntas são muito coerentes e lógicas. Cumpre dizer, entretanto, que quando temos cogitações como essas, sentimos a necessidade da graça. Porque sabemos que tudo isso é muito razoável, porém muitas vezes nada disso nos fala sensivelmente à alma. Se recebermos uma graça, podemos nos transformar ao calor de raciocínios assim, baseados na fé. Compreendemos, desse modo, como a graça divina é indispensável para avançarmos na vida espiritual.

Alguém poderia indagar: “Por que, então, o senhor perde tempo com esses comentários, se acha que sem a graça não é possível aproveitar isso?”

São feitos na esperança de que Nossa Senhora, em certo momento, faça-os frutificar, concedendo graças que me ajudem, e a cada um dos meus ouvintes, a corresponder a essas verdades. Deve-se agir assim: repetir, repetir, até o momento em que Ela tenha pena de nós e nos obtenha uma grande graça para mover nossas almas. O valor disso, portanto, é exatamente o da repetição, à maneira de um mendigo que, do lado de fora da porta, bate, bate, bate até ela lhe ser aberta. Ou daquele homem importuno, elogiado por Nosso Senhor no Evangelho: para conseguir pão, bateu tanto à porta da casa de seu vizinho que este pensou: “Ainda que seja só nesta ocasião, para acabar com o incômodo, vou abrir e dar-lhe o que pede”. Assim também devemos fazer.

A Cruz: razão mais profunda pela qual se abandona Nosso Senhor

É interessante notar que, por esse trecho, percebe-se ter tido São Luís Grignion uma concepção do agir humano inteiramente de acordo com os princípios que procuramos traçar em nosso livro “Revolução e Contra-Revolução”. Ou seja, para ele, assim como pensamos nós, a razão mais profunda pela qual as pessoas abandonam Nosso Senhor é a Cruz. O Redentor quer que os homens carreguem a Cruz, e muitos não a aceitam. Donde poderem ser classificados de acordo com a atitude que tomam em função do sofrimento. Então diz ele:

Os idólatras cegos zombam de minha Cruz como de uma loucura.

Os idólatras, isto é, os que vivem para os prazeres, vêem a cruz e a consideram uma loucura. O gênero de vida levado pelos católicos coerentes com sua religião é tido como uma demência pelos mundanos.

Os judeus obstinados se escandalizam com ela, como se fosse objeto de horror. Os hereges quebram-na e a derrubam como coisa digna de desprezo.

Ele se refere aos protestantes que, em sua época, estavam ainda, sob certo ponto de vista, no auge de suas iniciativas, e quebravam as cruzes ao longo dos caminhos da Europa inteira. Diziam que venerar a cruz é uma forma de idolatria.

Mas, e isto só posso dizer com lágrimas nos olhos e com o coração transpassado de dor, os filhos que criei em meu seio e que instruí em minha escola, os meus membros, que animei com meu espírito, abandonaram-me e desprezaram, tornando-se inimigos de minha Cruz!

Por “membros” entende-se aqui os integrantes do Corpo Místico de Cristo, ou seja, da Igreja. Muitos abandonaram e desprezaram a Cruz, e não quiseram seguir Nosso Senhor. Vemos, assim, como muitas apostasias que presenciamos ocorrem em função da Cruz. Quer dizer, muitos homens não querem o sofrimento, por isso abandonam o Divino Salvador. Se Ele somente oferecesse vantagens terrenas, muitos O seguiriam.

 

(Continua em próximo artigo. Extraído de conferência em 8/7/1967)

 

Um perpétuo mês de Maria

No mês de maio, mês de Maria, comentava Dr. Plinio, sente-se uma particular proteção de Nossa Senhora estender-se sobre todos os fiéis, uma alegria que brilha e ilumina nossos corações, exprimindo a certeza dos católicos de que o indispensável patrocínio de nossa Mãe celestial se torna, durante esse período, mais solícito, mais amoroso, mais cheio de visível misericórdia e exorável condescendência. 

Tais sentimentos nutriram a devoção de Dr. Plinio à Santíssima Virgem, desde os anos de sua infância quando, numa penosa conjuntura, viu-se pela primeira vez amparado pela clemência da Auxiliadora dos Cristãos. A Ela passou a recorrer constantemente e, de modo especial, durante o “mês de Maria”, celebrado no Colégio São Luís onde ele estudava, assim como em todas as paróquias. Já homem feito, recordaria com saudades aquelas fervorosas homenagens tributadas à Mãe de Deus:

“As igrejas ficavam repletas, tomadas pelos membros de associações religiosas consagradas a Nossa Senhora — Filhas de Maria, Congregados Marianos, etc. —, além da multidão de fiéis que, nas noites de maio, compareciam a ditas cerimônias. Em geral, o sacerdote puxava o Terço e outras orações, entremeadas de cânticos em louvor da Virgem. Em seguida, o padre, do alto do púlpito, dirigia algumas palavras à assembléia, exaltando as augustas virtudes de Maria e exortando os paroquianos a imitá-La.

“Na seqüência, o momento culminante da celebração com a Bênção do Santíssimo. O sacerdote, revestido de belos paramentos brancos, tomava em suas mãos o ostensório que esplendia raios dourados e, em movimentos solenes, meio envolto nas névoas perfumadas do incenso, traçava no ar o Sinal da Cruz para todos os lados da igreja. Logo depois, depositava o ostensório sobre o altar, recitava as orações prescritas para o encerramento da bênção e, terminadas, guardava novamente o Santíssimo Sacramento no tabernáculo. A cerimônia chegara ao fim. As associações religiosas se retiravam pela sacristia e cada um voltava para sua casa.

“A meu ver, porém, talvez um dos aspectos mais bonitos de tudo aquilo era essa post-cerimônia: o templo que se esvaziava, ecos de cântico religioso ainda ressoando no seu interior, resquícios de incenso flutuando no ar, o sacristão que ia apagando as várias luzes, balançando suas chaves, conferindo se ninguém esquecera algo sobre os bancos ou nos confessionários. Então só restavam ali as almas aflitas, as almas recolhidas diante desse ou daquele altar lateral: ora uma senhora muito idosa, vergada pelo peso das provações, ora um rapaz corpulento, saudável; um obeso senhor de meia idade, uma mãe de família igualmente madura, ou um menino — todos elevando uma premente súplica à Homenageada da noite.

“Afinal, o sacristão balançava com mais força o seu molho de chaves, e aquelas pessoas entendiam que era preciso sair. Lá fora, pelas ruas já despovoadas, podia-se acompanhar os últimos fiéis que se dispersavam: a senhora idosa com sua bolsa estreitada ao corpo, o homem obeso com ar sofrido, o rapaz alegre e esperançado, distanciando-se, como se fossem as derradeiras bênçãos daquela cerimônia que se dirigiam para os vários cantos da cidade. Atrás ficava a igreja, fechada, com sua torre voltada para o céu, sob as nuvens tocadas de luar, à espera da manhã seguinte em que abriria de novo suas portas.

“No dia 31 de maio dava-se o magnífico encerramento do mês de Maria, quando a imagem da Virgem, posta sobre um andor emoldurado de flores, era solenemente coroada. Enquanto um “anjinho” trazia numa almofada a coroa para colocá-la sobre a cabeça da imagem, o povo, genuflexo, acompanhava os cânticos entoados pelo coro, acentuados pelo timbre do órgão tocado à “toute volée”. Depois, conduzida por algumas pessoas, a imagem coroada percorria o recinto da igreja, seguida pelo celebrante revestido com paramentos de gala. Outras orações, outros cânticos, e tudo estava terminado.

“Todos se despediam de maio com imensas saudades. Gostariam que o ano inteiro fosse um perpétuo mês de Maria. E eu espero que, quando vier para o mundo aquela época luminosa e marial do triunfo do Imaculado Coração da Santíssima Virgem, prometida por Ela em Fátima, tenhamos nós esse imenso mês de Maria, em que todos os dias se preste homenagem a Nossa Senhora e cante-se sua glória como Rainha do Universo.”

Nunca se ouviu dizer…

No mês de maio, mês de Maria, conforme dizia Dr. Plinio, “sente-se uma proteção especial de Nossa Senhora se estender sobre todos os fiéis, e uma alegria que brilha e ilumina nossos corações, exprimindo a universal certeza dos católicos de que o indispensável patrocínio de nossa Mãe celestial se torna, durante esse período, ainda mais solícito, mais amoroso, mais cheio de visível misericórdia e exorável condescendência”.(1)

Condescendência e misericórdia maternais que imploramos com plena confiança ao longo do “Lembrai-vos”, oração atribuída a São Bernardo de Claraval, e por Dr. Plinio não só recitada diversas vezes ao dia, mas também incansavelmente recomendada a seus filhos espirituais. Ouçamo-lo:

“Cumpre analisarmos e compreendermos as magníficas palavras dessa prece: Lembrai-Vos ó piíssima Virgem Maria, que nunca se ouviu dizer, que algum daqueles que têm recorrido à vossa proteção, implorado vossa assistência e reclamado o vosso socorro, fosse por Vós desamparado.

– é bastante categórica; “algum daqueles”, ou seja, qualquer um, ao longo de dois mil anos de história da Igreja;

– proteção, assistência, socorro: proteção para evitar que a tentação venha, assistência é um auxílio numa situação difícil,

– socorro é para uma pessoa que se acha periclitando, sumindo, afundando. Pois bem, “nunca se ouviu dizer que, tendo alguém pedido proteção, assistência e socorro a Nossa Senhora, fosse por Ela desamparado”.

“Animado eu, pois, com igual confiança, a Vós, ó Virgem entre todas singular, como a Mãe recorro, de Vós me valho”.

Quer dizer, se Vós nunca deixastes de proteger a ninguém, aqui estou eu, um ente humano, batizado na Igreja Católica; sou vosso filho, venho vos pedir auxílio, estou tentado, tive culpa, digamos que até caí perante uma tentação. Porém, continuo vivo, a vossa clemência me mantém neste mundo e, portanto, tenho o direito e o dever de rezar a Vós. Eis-me aqui, repleto de confiança na vossa misericórdia.

“E, gemendo sob o peso de meus pecados, me prostro a vossos pés”.

Note-se como é animadora essa expressão. Não diz: ‘Eu, o inocente, o puro, o límpido; eu, o homem sem mancha, me dirijo a Vós e peço socorro. A minha inocência me dá direito a vosso auxílio’. Não. ‘Gemendo sob o peso de meus pecados’. Ou seja, são tantas faltas que elas me prostraram no chão. Estou caído ao solo sob o fardo delas, e este me oprime de tal modo que eu chego a gemer. Ora, ‘gemendo sob o peso de meus pecados’, o que faço eu? ‘Prostro-me a vossos pés’. Venho para junto de Vós, minha Mãe, e a Vós me agarro, na opressão de meus pecados.

Em seguida, a conclusão: “Não desprezeis as minhas súplicas, ó Mãe do Verbo de Deus humanado, mas dignai-Vos de as ouvir propícia e de me alcançar o que Vos rogo. Amém”.

O pensamento é lindo. Dignai-Vos de ouvir com benignidade, com bondade, o que eu estou suplicando. De vossa parte eu espero um sorriso e que me alcanceis aquilo que Vos peço.

Essa é uma tocante e filial manifestação da confiança de qualquer alma, em qualquer estado, posta em qualquer situação, para com Nossa Senhora. Confiança que a reveste de ânimo e a faz se voltar à Santíssima Virgem, certa de receber o socorro da Virgem. O raciocínio que essa súplica encerra é simples: “Vós nunca abandonastes ninguém. Ora, eu sou alguém; logo, Vós não me abandonareis”. Trata-se de uma reflexão a mais lógica, concludente e convincente possível; a mais singela na sua esquematicidade e a mais irresistível, expressa numa linguagem de fervor e devoção.

“Assim, resta-me fazer essa recomendação, jamais supérflua: nunca, nunca, nunca deixemos de rezar a Nossa Senhora. É preciso invocá-La, é necessário que a Ela sempre recorramos, máxime nos momentos difíceis de nossa existência. Seja nas horas de tentações, de provações, angústias e sofrimentos, seja nos problemas comuns de todos os dias, Ela nos ajudará. E se, por infelicidade, sucumbirmos à tentação, redobremos de ânimo e brademos: ‘Lembrai-Vos ó piíssima Virgem Maria!’

“Ela, a melhor de todas as Mães, terá compaixão de nós, seus filhos, e nos reerguerá com um sorriso repassado de solicitude e carinho inimagináveis.”

1) Última Hora, 7/5/1984

Sagrada Família: três auges de perfeição

Na humilde casa de Nazaré verificava-se uma ascensão em graça e santidade, perante Deus e os homens, das três pessoas excelsas que ali moravam. Três perfeições que alcançaram o auge ao qual cada uma devia chegar. Eram três auges desiguais, que se amavam e se intercompreendiam de modo intenso, e que constituíam uma hierarquia — disposta pela Divina Providência — admiravelmente inversa: o chefe da casa no plano humano era o menor na ordem sobrenatural; e o menino, que devia obediência aos pais, era Deus.

A Sagrada Família, modelo de todas as famílias, compunha-se portanto de três perfeições altíssimas, magníficas, mas distintas, realizando uma extraordinária harmonia de desigualdades, como nunca houve nem haverá semelhante na terra.

Reino de Maria nos corações

Numa época tão marcada pela incerteza a respeito do futuro da humanidade, o mês dedicado a Maria nos coloca novamente diante da necessidade do reinado desta misericordiosa Mãe, na Terra. O que falta para que este Reino de Maria seja instaurado?

Como afirmava Dr. Plinio(1), a resposta a esta crucial indagação encontra-se no coração humano, e dependerá sempre do auxílio de Nossa Senhora.

A Civilização Cristã é possível ou não?

O reinado de Nossa Senhora pelo qual, gota a gota, estamos dando a nossa vida, é realizável e vem ao nosso encontro como nós caminhamos ao encontro dele? Existirá alguma vez na Terra isto que, no momento, se nos afigura como uma miragem maravilhosa chamada Reino de Maria? Ou é preciso reconhecer que o mundo é do demônio?

Primeiramente, consideremos o que se entende por Reino de Maria.

Ele será o conjunto de homens, de coisas que se conformarão com a Lei de Deus, porque Maria só é Rainha onde Deus é Rei. O Reino de Cristo é, evidentemente, o Reino de Deus; o Reino de Maria é o Reino de Cristo.

Ora, o Reino de Maria, o Reino de Deus, o que são?

Essas expressões tão bonitas só têm sentido se as considerarmos como uma era futura, de luz e de glória, na qual, não digo cada homem individualmente, mas a generalidade dos homens viverá em estado de graça, cumprindo a Lei de Deus.

E, portanto, o Reino de Maria se compõe de dois elementos essenciais. Um interno: se amará a Deus e se cumprirão os Dez Mandamentos; e outro, externo: como consequência, as famílias, as associações, as instituições, as áreas de civilização, tudo isso se organizará de acordo com o pensamento da Santa Igreja.

Põe-se, então, o problema-chave: a Lei de Deus é admiravelmente bela, os Dez Mandamentos são lindos, mas dificílimos de serem cumpridos duravelmente na sua integridade. Porque são muito grandes a atração do pecado e a preguiça do homem em realizar os esforços necessários para evitar as ocasiões de pecar. Habitualmente, quando uma circunstância concreta tenta alguém, o demônio acrescenta a essa ação natural uma tentação dele.

Como se pode evitar uma queda? Se ela não for evitável, a Civilização Cristã é uma quimera!

De fato, se Deus enviar sua graça e os homens quiserem corresponder a ela, não pecarão e permanecerão na amizade d’Ele.

Trava-se em nós, portanto, uma batalha constante entre o demônio — que exerce sobre nós uma ação preternatural para nos levar ao estado de criatura coberta de pecados — e Deus, que quer nos levar para o Céu, e para isso nos eleva à ordem sobrenatural, nos protege e ajuda.

Assim, o pêndulo de nossa vontade está continuamente convidado por Deus para subir e pelo demônio para descer.

A Civilização Cristã fica dependendo, em última análise, da correspondência que o homem dê à graça de Deus.

Então, a grande luta de nossa vida é, como leões, contra o demônio e contra aqueles que querem perder as pessoas. Devemos, pois, fazer todo o possível para que não pequemos e as outras almas sejam salvas.

O homem que se preocupe somente com sua alma e não com a salvação das outras, está fora da Lei de Deus, porque o homem deve amar o seu próximo como a si mesmo por amor a Deus. Portanto, ele tem a obrigação de salvar os outros, e não pode ser indiferente a que alguém se perca.

Se eu pedir, não só para mim, mas para os próximos a mim, para todo o gênero humano que se levantem como um só homem e passem a servir Maria, então terei lutado valentemente pela instauração do Reino de Maria.

De posse dessas considerações, devemos pedir a Nossa Senhora que faça de nós almas de oração, de fogo, que “incendeiem” o mundo.

Teremos, assim, a possibilidade — cada um dentro de si mesmo — de proclamar o Reino de Maria, e dizer: “Em mim, ó minha Mãe, Vós sois a Rainha, eu reconheço o vosso direito e procuro atender às vossas ordens. Dai-me luz de inteligência, força de vontade, espírito de renúncia para que as vossas ordens sejam efetivamente obedecidas. Ainda que o mundo inteiro se revolte e Vos negue, eu Vos obedeço”.

E no mundo, nessa torrente de desordem, de pecado, há um brilhante puro, um brilhante adamantino. Esse brilhante é a alma daqueles que podem afirmar: “Em mim Nossa Senhora manda”. A Santíssima Virgem continua a ter, assim, uns enclaves no mundo: aqueles que, pela consagração, se fazem seus escravos e, reconhecendo todo o poder d’Ela sobre eles, declaram: “Esteja o mundo revoltado como estiver, eu me levanto e começo a Contra-Revolução, para que Ela reine sobre os outros também”.

É o reinado de Nossa Senhora vista enquanto mandando em mim e fazendo de mim um soldado da Contra-Revolução, que luta para tornar efetiva a realeza de Maria na Terra.

1) Cf. conferências de 31/5/1975 e 11/5/1994.

Grandeza e bondade de Deus

Há belezas da natureza cuja formação desenrolou-se tão somente na presença de Deus, mas que eram destinadas por Ele para dar ao homem uma ideia do Céu, onde os legítimos anseios de grandeza, isolamento e convívio são plenamente atendidos.

 

Essa é uma lindíssima fotografia dos Alpes, tirada a partir de um avião. Talvez fosse interessante mostrar o contraste desse panorama com outros aos quais estamos habituados.

Grandeza e isolamento num píncaro nevado

Neva em pouquíssimos lugares do território brasileiro. Alguma coisa em Santa Catarina. Em Campos de Jordão não me consta que caia neve, mas de vez em quando forma-se uma espécie de geada muito grossa, a qual dá um pouco a impressão de neve.

Nessa fotografia temos caracterizada a paisagem coberta de neve, com toda a poesia e até magnificência que ela traz consigo.

Entretanto, confesso que o mais bonito do panorama, a meu ver, não é a neve, mas a configuração desse monte, com essa crista que chega bem no alto e, depois, levanta-se mais outra crista. O bloco onde está esse monte me sugere a ideia de uma fortaleza medieval. Nota-se ser ele cercado de uma muralha natural. Sua forma vagamente circular imita a de muitas fortalezas medievais. No centro da área fortificada se encontraria o castelo, e ali, como se fosse uma torre prodigiosa, esse outro píncaro mais alto.

O homem não pode olhar para uma paisagem como essa sem se imaginar a si próprio nesses píncaros, e que sensação ele teria se estivesse lá no alto. Se ele tivesse, por exemplo, meios financeiros e técnicos para construir uma fortificação naquele mais alto píncaro, o que sentiria? Tal pergunta não é a de um sonhador imbecil, mas é um modo de degustar melhor um panorama.

Esse homem teria a sensação de estar colocado no alto de uma grandeza colossal. Se possuísse um castelo cobrindo aquele píncaro, sentir-se-ia o castelão dos castelões, alguém que está numa altura fantástica a partir da qual ele domina, pelo olhar e pelo pensamento, tudo quanto de contemporâneo se desenvolve aos seus pés.

Mas ele sentiria, em compensação, um isolamento tremendo, porque a neve não é o seu “hábitat” natural. O homem não foi feito para viver na neve, e sim para morar em lugares onde de vez em quando neva. É verdade que os esquimós e outras populações conseguem viver num panorama nevado assim, mas em condições de vida inteiramente primitivas e com um desenvolvimento cultural dos mais elementares.

Céu: píncaro onde se unem as alegrias do isolamento e do convívio

A neve vista assim dá a impressão de um panorama no qual o homem está tão isolado como se estivesse na Lua, separado de seus contemporâneos, de todo mundo, incompreensível para todos, dominando tudo do alto, mas sofrendo daquilo que Deus diz no Gênesis, antes de criar Eva: “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2, 18). O isolamento, sobretudo quando é tornado mais imponente e esmagador pela grandeza, é uma coisa que pesa enormemente.

Um castelão morando nesse castelo imaginário, acompanhado apenas de dois ou três serviçais, vendo os dias se sucederem às noites e as noites aos dias, as tempestades de neve ou as nuvens que cercam de todos os lados, dando a impressão de o castelo estar voando, sentirá em determinadas horas um tal isolamento que poderá tornar-se angustiante.

Por outro lado, para quem não vive na neve, mas na trivialidade do dia a dia, há uma vontade de sair da banalidade, um desejo de voar para dentro dos horizontes da grandeza.

O ser humano é de maneira tal que, se tem elevação de alma e se encontra, por exemplo, na Praça do Patriarca no centro de São Paulo, vendo esse panorama, poderia pensar: “Mas como seria bom eu estar lá no alto!” Entretanto, quem estivesse no cume da montanha, se lhe mostrassem a Praça do Patriarca e lhe oferecessem descer, seria capaz de ter a fraqueza de dizer: “Então, vamos, porque lá é bem quentinho e gostosinho”.

Contudo, há um pouco de verdade em ambas as atitudes.

Considerando isso compreendemos melhor o Céu. Porque o Paraíso é de uma elevação, de uma altitude – não física, mas moral – incomparável. Mas, de outro lado, ali não se está só. O homem se encontra na presença d’Aquele que é sua finalidade, ele sente a companhia absoluta para a qual foi criado. Em presença de Deus ele está como que embriagado da alegria de ter contato e de conversar com Ele, Deus: infinitamente mais alto do que esse monte, mas ao mesmo tempo infinitamente mais condescendente, afável e amoroso do que as ideias que essa montanha sugere.

Ademais, no Céu a pessoa está inserida em toda a corte celeste, passa a ser príncipe dela. É a corte dos bem-aventurados, dos Santos e dos Anjos. Eles têm ali a felicidade completa que reúne as alegrias aparentemente contraditórias de fazer parte de uma multidão e de estar num píncaro sozinho. Ali se está no mais alto dos píncaros, cercado e num convívio idealmente afetuoso, respeitoso, amável, com a mais perfeita das multidões, que é a multidão imensa daqueles que se salvam.

Belezas que se desenrolaram aos olhos de Deus

Nessa outra fotografia vemos o céu azul, o dia límpido e podemos apreciar melhor a beleza, a magnificência dessa localização. Dir-se-ia que algo de semelhante aos contornos de uma fortaleza medieval ainda se torna mais claro do que na fotografia anterior, mas parecendo mais uma cratera de vulcão da qual saiu, em determinado momento, das entranhas mais quentes da terra uma matéria qualquer incandescente, levada por um jato enorme e que, quando chegou em cima, petrificou-se no frio e formou isso que vemos.

Não havia homens na Terra quando fatos geológicos assim deram origem aos panoramas que hoje existem. Mas que coisas lindas nessa ocasião se desenrolaram aos olhos de Deus! Através de paisagens como essa Ele nos faz suspeitar um pouco quais as belezas por Ele criadas antes de nós existirmos. Nesse sentido, quando milhares e milhares de anos antes dessas montanhas terem sido conhecidas pelo homem, Deus as modelou com a intenção principal de dar aos homens a oportunidade de fazer estas ou melhores reflexões a respeito da grandeza e da bondade d’Ele.               v

 

Plinio Correa de Oliveira, (Extraído de conferência de 21/12/1988)

 

Devoção a Nossa Senhora: condição essencial para a Contra-Revolução

Em seu prólogo à edição argentina de “Revolução e Contra-Revolução”(1), Dr. Plinio nos esclarece acerca de um ponto central: o profundo nexo existente entre a devoção à Santíssima Virgem e a obra magna “Revolução e Contra-Revolução”, por ele escrita.

 

Comecemos por expor aqui alguns pensamentos contidos em “Revolução e Contra-Revolução”.

Orgulho e impureza na origem da Revolução

A Revolução é apresentada nessa obra como um imenso processo de tendências, doutrinas, transformações políticas, sociais e econômicas, derivado em última análise — eu seria tentado a dizer, em ultimíssima análise — de uma deterioração moral provocada pelos vícios fundamentais: o orgulho e a impureza, que suscitam no homem uma incompatibilidade profunda com a Doutrina Católica.

Com efeito, a Igreja Católica, como Ela é, a doutrina que ensina, o Universo que Deus criou e que podemos conhecer tão esplendidamente através de seus prismas, tudo isso excita no homem virtuoso, no homem puro e humilde, um profundo enlevo. Ele sente alegria ao considerar que a Igreja e o Universo são como são.

Porém, se uma pessoa cede algo ao vício do orgulho ou da impureza, começa a germinar nela uma incompatibilidade com vários aspectos da Igreja ou da ordem do Universo. Essa incompatibilidade pode originar-se, por exemplo, de uma antipatia com o caráter hierárquico da Igreja, desdobrar-se em seguida e alcançar a hierarquia da sociedade temporal, para mais tarde manifestar-se em relação à ordem hierárquica da família. E, assim, por várias formas de igualitarismo, uma pessoa pode chegar a uma posição metafísica de condenação de toda e qualquer desigualdade, e do caráter hierárquico do Universo. Seria o efeito do orgulho no campo da Metafísica.

De modo análogo podem-se delinear as consequências da impureza no pensamento humano. O homem impuro, em regra geral, começa por tender ao liberalismo: irrita-o a existência de um preceito, de um freio, de uma lei que circunscreva o desbordamento de seus sentidos. E, com isto, toda ascese lhe parece antipática. Dessa antipatia, naturalmente, vem uma aversão ao próprio princípio de autoridade, e assim por diante. O anelo de um mundo anárquico — no sentido etimológico da palavra — sem leis nem poderes constituídos, e no qual o próprio Estado não seja senão uma imensa cooperativa, é o ponto extremo do liberalismo gerado pela impureza.

Tanto do orgulho, quanto do liberalismo, nasce o desejo de igualdade e liberdade totais, que é a medula do comunismo.

A partir do orgulho e da impureza se vão formando os elementos constitutivos de urna concepção diametralmente oposta à obra de Deus. Essa concepção, em seu aspecto final, já não difere da católica só em um ou outro ponto. À medida que, ao longo das gerações, esses vícios se vão aprofundando e tornando-se mais acentuados, vai-se estruturando toda uma concepção gnóstica e revolucionária do Universo. A individuação, que para a gnose é o mal, é um princípio de desigualdade. A hierarquia — qualquer que seja — é filha da individuação. O Universo — segundo os gnósticos — resgata-se da individuação e da desigualdade num processo de destruição do “eu” que reintegra os indivíduos no grande Todo homogêneo. A realização, entre os homens, da igualdade absoluta, e de seu corolário, a liberdade completa — numa ordem de coisas anárquica — pode ser vista como uma etapa preparatória dessa reabsorção total.

Não é difícil perceber, nesta perspectiva, o nexo entre gnose e comunismo.

A devoção a Nossa Senhora é essencial para a Contra-Revolução

Assim, a doutrina da Revolução é a gnose, e suas causas últimas têm suas raízes no orgulho e na sensualidade. Dado o caráter moral destas causas, todo o problema da Revolução e da Contra-Revolução é, no fundo, e principalmente, um problema moral. O que se diz em “Revolução e Contra-Revolução” é que, se não fosse pelo orgulho e pela sensualidade, a Revolução, como movimento organizado no mundo inteiro, não existiria, não seria possível.

Ora, se no centro do problema da Revolução e da Contra-Revolução há uma questão moral, há também e eminentemente uma questão religiosa, porque todas as questões morais são substancialmente religiosas. Não há moral sem religião. Uma moral sem religião é o que de mais inconsistente se possa imaginar. Todo problema moral é, pois, fundamentalmente religioso. Sendo assim, a luta entre a Revolução e a Contra-Revolução é uma luta que, em sua essência, é religiosa. Se é religiosa, se é uma crise moral que dá origem ao espírito da Revolução, então, essa crise só pode ser evitada, só pode ser remediada com o auxílio da graça.

É um dogma da Igreja que os homens não podem, somente com os recursos naturais, cumprir duravelmente, e em sua integridade, os preceitos da Moral católica, sintetizados na Antiga e na Nova Lei. Para cumprir os Mandamentos, é necessária a existência da graça.

Por outro lado, se o homem cai em estado de pecado, acumulando-se nele as apetências pelo mal, a “fortiori”(2) não conseguirá levantar-se do estado em que caiu sem o socorro da graça. Provindo da graça toda preservação moral verdadeira ou toda regeneração moral autêntica, é fácil ver o papel de Nossa Senhora na luta entre a Revolução e a Contra-Revolução. A graça depende de Deus, mas Deus, por um ato livre de sua vontade, quis fazer depender de Nossa Senhora a distribuição das graças. Maria é a Medianeira Universal, é o canal por onde passam todas as graças. Portanto, seu auxílio é indispensável para que não haja Revolução, ou para que esta seja vencida pela Contra-Revolução. Com efeito, quem pede a graça por intermédio d’Ela, a obtém. Quem tente consegui-la sem o auxílio de Maria, não a obterá. Se os homens, recebendo a graça, correspondem a ela, está implícito que a Revolução desaparecerá. Pelo contrário, se eles não corresponderem, é inevitável que a Revolução surja e triunfe. Portanto, a devoção a Nossa Senhora é “conditio sine qua non”(3) para que a Revolução seja esmagada, para que vença a Contra-Revolução.

Insisto no que acabo de afirmar. Se uma nação for fiel às graças necessárias e até suficientes que recebe de Nossa Senhora, e se se generaliza nela a prática dos Mandamentos, é inevitável que a sociedade se estruture bem. Porque, com a graça, vem a sabedoria, e com a sabedoria, todas as atividades do homem entrarão nos eixos.

Isso se verifica, de certo modo, com a análise do estado em que se encontra a civilização contemporânea. Construída sobre uma recusa da graça, alcançou alguns resultados estrepitosos. Estes, porém, devoram o homem. Na medida em que tem por base o laicismo e viola, sob vários aspectos, a ordem natural ensinada pela Igreja, a civilização atual é nociva ao homem.

Sempre que a devoção a Nossa Senhora seja ardorosa, profunda, de rica substância teológica, é claro que a oração de quem pede será atendida. As graças choverão sobre a pessoa que reza a Ela devota e assiduamente. Se, pelo contrário, essa devoção for falsa ou tíbia, manchada por restrições de sabor jansenista ou protestante, há grave risco de que a graça seja dada menos largamente, porque encontra por parte do homem nefastas resistências. O que se diz do homem pode dizer-se, “mutatis mutandis”(4), da família, de uma região, de um país, ou de qualquer outro grupo humano.

É costume dizer-se que na economia da graça, Nossa Senhora é o pescoço do Corpo Místico, do qual Nosso Senhor Jesus Cristo é a Cabeça, porque tudo passa por Ela.

A imagem é inteiramente verdadeira na vida espiritual. Um indivíduo que tem pouca devoção a Nossa Senhora é como alguém que tem uma corda atada ao pescoço e conserva apenas um fio de respiração. Quando não tem nenhuma devoção, se asfixia. Tendo uma grande devoção, o pescoço fica completamente livre e o ar penetra abundantemente no pulmão, podendo o homem viver normalmente.

A esterilidade e até a nocividade de tudo quanto se faz contra a ação da graça, e a enorme fecundidade do que se faz com seu auxílio, determinam bem a posição de Nossa Senhora nesse combate entre a Revolução e a Contra-Revolução, pois a intensidade das graças recebidas pelos homens depende da maior ou menor devoção que a Ela tiverem.

O concurso do espírito do mal

Uma visão da Revolução e da Contra-Revolução não pode ficar apenas nestas considerações. A Revolução não é o fruto da exclusiva maldade humana. Esta última abre as portas ao demônio, pelo qual se deixa estimular, exacerbar e dirigir.

É, pois, importante considerar, nesta matéria, a oposição entre Nossa Senhora e o demônio. O papel do demônio na eclosão e nos progressos da Revolução foi enorme. Como é lógico pensar, uma explosão de paixões desordenadas tão profunda e tão geral como a que originou a Revolução não teria ocorrido sem uma ação preternatural. Além disso, seria difícil que o homem alcançasse os extremos de crueldade, de impiedade e de cinismo, aos quais a Revolução chegou várias vezes ao longo de sua história, sem o concurso do espírito do mal.

Ora, esse fator de propulsão tão forte está inteiramente na dependência de Nossa Senhora. Basta que Ela fulmine um ato de seu império sobre o inferno, para que ele estremeça, se confunda, se encolha e desapareça do cenário humano. Pelo contrário, basta que Ela, para castigo dos homens, deixe ao demônio um certo raio de ação, para que a ação deste progrida. Portanto, os enormes fatores da Revolução e da Contra-Revolução, que são respectivamente o demônio e a graça, dependem de seu império e seu domínio.

Efetiva realeza de Maria

A consideração deste soberano poder de Nossa Senhora nos aproxima da ideia da realeza de Maria. É preciso não ver essa realeza como um título meramente decorativo. Embora submissa em tudo à vontade de Deus, a realeza de Nossa Senhora importa num poder de governo pessoal muito autêntico.

Tive ocasião de empregar certa vez, numa conferência, uma imagem que facilita a compreensão do papel de Nossa Senhora como Rainha.

Imaginemos um diretor de colégio com alunos muito insubordinados. Ele os castiga com uma autoridade de ferro. Depois de os ter submetido à ordem, retira-se dizendo à sua mãe: “Sei que governareis este colégio de modo diferente do que estou fazendo agora. Vós tendes um coração materno. Tendo eu castigado esses alunos, quero agora que os governeis com doçura.” Essa senhora vai dirigir o colégio como o diretor quer, porém com um método diverso daquele que usou o diretor. A atuação dela é distinta da dele; não obstante, ela faz inteiramente a vontade dele.

Nenhuma comparação é exata. Entretanto, julgo que, sob certo aspecto, esta imagem nos ajuda a entender a questão.

Análogo é o papel de Nossa Senhora como Rainha do Universo. Nosso Senhor Lhe deu um poder régio sobre toda a Criação, cuja misericórdia, sem chegar a nenhum exagero, chega entretanto a todos os extremos. Ele colocou-A como Rainha do Universo para governá-lo e, especialmente, para governar o pobre gênero humano decaído e pecador. E é vontade d’Ele que Ela faça o que Ele não quis fazer por Si, mas por meio d’Ela, régio instrumento de seu Amor. Há, pois, um regime verdadeiramente marial no governo do Universo. E assim se vê como é que Nossa Senhora, embora sumamente unida a Deus e dependente d’Ele, exerce sua ação ao longo da História.

Nossa Senhora é infinitamente inferior a Deus — é evidente —, porém, Deus quis dar a Ela esse papel por um ato de liberalidade. É Nossa Senhora quem, distribuindo ora mais largamente a graça, ora menos, freando ora mais, ora menos, a ação do demônio, exerce sua realeza sobre o curso dos acontecimentos terrenos. Nesse sentido, depende d’Ela a duração da Revolução e a vitória da Contra-Revolução. Além disso, às vezes Ela intervém diretamente nos acontecimentos humanos, como o fez, por exemplo, em Lepanto. Quão numerosos são os fatos da História da Igreja em que ficou clara sua intervenção direta no curso das coisas! Tudo isto nos faz ver de quantos modos é efetiva a realeza de Nossa Senhora.

Quando a Igreja canta a seu respeito: “Tu só exterminaste as heresias no mundo inteiro”, diz que seu papel nesse extermínio foi de certo modo único. Isso equivale a dizer que Ela dirige a História, porque quem dirige o extermínio das heresias dirige o triunfo da ortodoxia, e dirigindo uma e outra coisa, dirige a História no que ela tem de mais medular.

Haveria um trabalho de História interessante para fazer: o de demonstrar que o demônio começa a vencer quando consegue diminuir a devoção a Nossa Senhora. Isso se deu em todas as épocas de decadência da Cristandade, em todas as vitórias da Revolução. Exemplo característico é o da Europa antes da Revolução Francesa. A devoção a Nossa Senhora nos países católicos foi prodigiosamente diminuída pelo jansenismo, e é por isso que eles ficaram como uma floresta combustível, onde uma simples chispa pôs fogo em tudo.

Estas e outras considerações tiradas do ensinamento da Igreja abrem perspectivas para o Reino de Maria, isto é, uma era histórica de Fé e de virtude que será inaugurada com uma vitória espetacular de Nossa Senhora sobre a Revolução. Nessa era, o demônio será expulso e voltará aos antros infernais, e Nossa Senhora reinará sobre a humanidade por meio das instituições que para isso escolheu.

O Reino de Maria e a união de almas

Quanto a essa perspectiva do Reino de Maria, encontramos na obra de São Luís Maria Grignion de Montfort algumas alusões dignas de nota. Ele é, sem dúvida, um profeta que anuncia essa vinda. Disso fala claramente: “Quando virá esse dilúvio de fogo do puro amor, que deveis atear em toda a Terra de um modo tão suave e tão veemente, que todas as nações, os turcos, os idólatras, e os próprios judeus hão de arder nele e converter-se?”(5) Esse dilúvio, que lavará a humanidade, inaugurará o Reino do Espírito Santo, que ele identifica com o Reino de Maria. Nosso santo afirma que vai ser uma era de florescimento da Igreja como até então nunca houve. Chega inclusive a afirmar que “o Altíssimo, com sua Santa Mãe, devem formar para Si grandes santos, que sobrepujarão em santidade a maior parte dos outros santos, como os cedros do Líbano se avantajam aos pequenos arbustos”(6).

Considerando os grandes santos que a Igreja já produziu, ficamos deslumbrados ante a envergadura desses que surgirão sob o bafejo de Nossa Senhora. Nada é mais razoável do que imaginar um crescimento enorme da santidade numa era histórica em que a atuação de Nossa Senhora aumente também prodigiosamente. Podemos, pois, dizer que São Luís Maria Grignion de Montfort, com seu valor de pensador, mas, sobretudo, com sua autoridade de santo canonizado pela Igreja, dá peso, autoridade, consistência, às esperanças que brilham em muitas revelações particulares, de que virá uma época na qual Nossa Senhora verdadeiramente triunfará.

A realeza de Nossa Senhora, embora tenha uma soberana eficácia em toda a vida da Igreja e da sociedade temporal, realiza-se em primeiro lugar no interior das almas. Daí, do santuário interior de cada alma, é que ela se reflete sobre a vida religiosa e civil dos povos, enquanto considerados como um todo.

O Reino de Maria será, pois, uma época em que a união das almas com Nossa Senhora alcançará uma intensidade sem precedentes na História (exceção feita, é claro, de casos individuais).

Escravidão a Nossa Senhora e Apóstolos dos Últimos Tempos

Qual é a forma dessa união em certo sentido suprema? Não conheço meio mais perfeito para enunciar e realizar essa união do que a Sagrada Escravidão a Nossa Senhora, tal como é ensinada por São Luís Maria Grignion de Montfort no “Tratado da Verdadeira Devoção”.

Considerando que Nossa Senhora é o caminho pelo qual Deus veio aos homens e estes vão a Deus, tendo presente a realeza universal de Maria, nosso santo recomenda que o devoto da Santíssima Virgem se consagre inteiramente a Ela como escravo. Essa consagração é de uma radicalidade admirável. Ela abarca não só os deveres materiais do homem, como também até o mérito de suas boas obras e orações, sua vida, seu corpo e sua alma. Ela é sem limites, porque o escravo por definição nada tem de seu.

Em troca dessa consagração, Nossa Senhora atua no interior de seu escravo de modo maravilhoso, estabelecendo com ele uma união inefável.

Os frutos dessa união serão vistos nos Apóstolos dos Últimos Tempos, cujo perfil moral ele traça, a fogo, em sua famosa “Oração abrasada”. Ele usa, para isso, uma linguagem de uma grandeza apocalíptica, na qual parece reviver todo o clamor de um São João Batista, todo o fogo de um São João Evangelista, todo o zelo de um São Paulo. Os varões portentosos que lutarão contra o demônio pelo Reino de Maria — conduzindo gloriosamente, até o fim dos tempos, a luta contra o demônio, o mundo e a carne — São Luís os descreve como magníficos modelos que convidam desde já à perfeita escravidão a Nossa Senhora, os que, nos tenebrosos dias de hoje, lutam nas fileiras da Contra-Revolução.

Assim, com estas considerações sobre o papel de Nossa Senhora na luta da Revolução e da Contra-Revolução, e sobre o Reino de Maria, vistas segundo o “Tratado da Verdadeira Devoção”, creio ter enunciado os principais pontos de contato entre a obra-prima do grande santo e meu ensaio — tão apequenado pela comparação — sobre “Revolução e Contra-Revolução”.

 

Revista Dr Plinio 158 (Maio de 2016)

 

1) Buenos Aires, 1970.

2) Forçosamente.

3) Condição indispensável.

4) Mudando o que deve ser mudado.

5) “Oração Abrasada” de São Luís Maria Grignion de Montfort, “Oeuvres Complètes”, Editions du Seuil, Paris, 1966, p. 681.

6) “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem” de São Luís Maria Grignion de Montfort, “Oeuvres Complètes”, Editions du Seuil, Paris, 1966, p. 512 e 513, N° 47.

Senso da presença de Deus

Santa Isabel foi dotada pelo Espírito Santo de um dom que a fez sentir a presença do Menino Jesus em Nossa Senhora.

Em certa medida, o verdadeiro católico também recebe essa graça, de tal forma que, quando a ela corresponde, ele deve saber discernir onde está e onde não está Deus, não física, mas moral e sobrenaturalmente. Todo autêntico membro da Igreja deve ser munido de um senso tal, que lhe indique quando as coisas são ou não segundo Deus.

Para isso não é preciso ter grande cultura, inteligência ou conhecimento teológico; basta ter este verdadeiro senso católico, privilégio dos que correspondem à graça do batismo. Disto Santa Isabel nos dá um maravilhoso exemplo ao perceber a presença do Menino Jesus no claustro materno de sua Santíssima prima.

 

Plinio Corrêa de Oliveira, (Extraído de conferência de 2/7/1970)

Como os encantos do mar…

O mar… Objeto perpétuo de meu enlevo, meu encanto, meu entusiasmo! Eu seria capaz de passar uma  tarde inteira sozinho olhando para o mar, quieto, inteiramente entretido, sem nenhuma outra preocupação que me distraísse desse convívio com as águas do imenso oceano!

No mar sempre me chamou muito a atenção o fato de ele se apresentar variando entre dois pontos  extremos, com todas as gamas intermediárias. É agradável considerar tantas formas de belezas postas por Deus na Criação.

E a magnificência do Altíssimo se reflete de modo especial nessa capacidade que foi dada ao mar de passar do auge da serenidade para o auge da impetuosidade, através de etapas. Se, de repente, a sequência desse processo fosse bruscamente interrompida, saltando de um lado para outro, levaríamos um susto.

O ordenado e o bonito daquelas imensas ondas que avançam em ofensiva para a terra, sem se mostrarem descabeladas nem fazendo tumulto, evocam um ataque em regra de uma cavalaria nobre.

Já a maré montante de certos dias, que vai cobrindo a praia, tem seu esplendor próprio, lembrando uma “bataille rangée”, em fileiras.

É linda, igualmente, a variedade das ondas, porque às vezes algumas não chegam a rebentar: apenas formam aquelas eminências e vão adiante. Outras, pelo contrário, arrebentam e há um gáudio de gotas pelo ar que depois caem e seguem na sua ofensiva, detendo-se um pouco antes de atingir a praia, saltitando, porque vão se entranhar nas profundidades das areias, e terão de esperar um longo tempo até se tornarem água de novo. Elas então bailam pelo ar, jubilosamente, como guerreiros que, antes de desferir o ataque definitivo, entregam-se à dança da vitória.

Agrada-me também considerar o mar quando se acha calmo, quase imóvel. Dir-se-ia que está de tal maneira absorto na contemplação do firmamento, que nem pensa em si. De súbito, percebe-se que de um lugar qualquer virá uma surpresa. Algo começa a se mover, e dentro em pouco forma-se um vagalhão; é uma bagunça aquática, um assalto contra a terra em que os vários elementos do mar não vêm em “bataille rangée”, mas parecem se empurrarem uns aos outros para tomar a dianteira, a fim de conquistar a costa mais depressa. É o esplendor da variedade, do inesperado, do quase susto, do imprevisto, que tem seu encanto próprio. E a sucessão desses aspectos torna o mar muitíssimo entretido.

Esses diversos modos do movimento das águas têm “pulchrum”, porque é belo o mar. Se este fosse feio, suas variações também o seriam. Imagine-se um espetáculo em que aparecesse uma dançarina feia dançando bem. Ninguém quereria assisti-lo, porque a dança é bela quando é belo quem a executa.

Afigurem-se um exército que avança. Será muito bonito quando composto de homens fortes, robustos. Se, pelo contrário, formado de capengas a se arrastarem em certa ordem, não valerá coisa alguma.

Assim também o mar: é belo e a sua movimentação está à altura dele.