Sempre desvelado formador de seus seguidores, em especial os mais jovens, Dr. Plinio se empenhava em lhes fazer compreender esta verdade que todo apóstolo deve ter em conta: a via da Cruz e do sofrimento está em contradição com o espírito do mundo, o qual, por não aceitá-la, chega até a perseguir quem pratica o bem.
Há um ponto curioso em nosso apostolado, e de um modo geral na história da Igreja, que convém muito focalizar: o homem que se entrega à virtude, desejando progredir nas vias de Deus, é sujeito de vez em quando a movimentos de idiossincrasia ou de rejeição em relação àqueles mesmos que procuram levá-lo para o bem.
Ao considerarmos o fruto do trabalho de um apóstolo, será ingenuidade pensar que ele tomou contato com os que o seguem, abriu-lhes o caminho do Céu e, com toda a simplicidade, aceitaram o convite que lhes foi feito, pondo-se a acompanhar os passos indicados, com amor, dedicação e fidelidade a quem lhes serve de guia.
Na realidade — e a vida dos Apóstolos é cheia de exemplos em sentido contrário — as coisas não ocorrem com essa singeleza, porque na alma humana existem movimentos contraditórios. E se é verdade que em muitas ocasiões e circunstâncias somos levados a amar aqueles que nos servem de guia para a virtude, há também situações lamentáveis em que esses mesmos benfeitores são objeto de repulsa de nossa parte.
Por quê? Porque o caminho do bem é o caminho da cruz; o caminho da cruz é o caminho do sacrifício; o caminho do sacrifício é o caminho da dor. Ora, o caminho da dor não é aprazível… Se há um homem que nos diz: “Adianta-se nessa direção! Sei que ir por ali dói, mas, depois, na ponta dessa trajetória está o Céu”, nós temos vontade de responder: “Bendito és tu que nos levas para o Céu”. E logo em seguida somos tentados a acrescentar: “Que homem insuportável és tu que não encontras outro caminho para o Céu, a não ser pisando sobre espinhos!” É a miserável tendência do espírito humano.
A infidelidade dos Apóstolos na Paixão: o horror da cruz expulsou o amor
Isto se deu de um modo frisante nos Apóstolos com relação a Nosso Senhor. O Divino Mestre os tratou como sabemos, deu-lhes a abundância de suas graças, manifestou aos olhos deles perfeições que até hoje encantam e entusiasmam a humanidade.
Mas a resposta dos Apóstolos foi a que todos também conhecemos pelas narrações do Evangelho. Tome-se, por exemplo, o discípulo bem-amado, incumbido pelos outros de fazer uma pergunta a Nosso Senhor, e que foi erigido na qualidade de medianeiro de todos para discernir os arcanos de Deus. São João Evangelista, o primeiro homem que sentiu o pulsar do Coração de Jesus e, portanto, o primeiro devoto — exceção feita de Nossa Senhora e eventualmente de São José — do Sagrado Coração, recebeu a prova de que o Divino Mestre era grato àquele pedido e ao modo como era feito, isto é, pondo o ouvido sobre o peito d’Ele. Jesus respondeu: “Aquele a quem eu der o pão embebido no vinho, este é o traidor”. Mas, na hora da Paixão, São João Evangelista fugiu. Ele tinha dormido no momento em que devia estar acordado.
Quando Nosso Senhor repreendeu os Apóstolos por estarem imersos no sono, Ele não disse: “Com exceção de João Evangelista, por que dormis?” Ele pergunta a todos: “Por que dormis?!” Lembra-o magnificamente o canto polifônico de Tomás Luís de Victoria: “Quid dormitis? Vel Judam non videtis quomodo non dormit, sed festinat tradere me?” — “Vós não vedes Judas que não dorme, mas se apressa em me trair?!” O próprio discípulo amado estava nesse rol e dele não foi excluído.
Misteriosamente, São João aparece depois aos pés da cruz. Não se sabe em que instante nem de que modo ele se converteu, mas tudo me leva a supor que foi uma graça especial e personalíssima obtida por Nossa Senhora. A Santíssima Virgem o terá visto passar por algum caminho e lhe disse: “João!”
Quando ele a ouviu pronunciar seu nome, todas as resistências más dele se dobraram, e o futuro Evangelista se transformou. Terá sido esta ou alguma outra graça do gênero. Talvez, por um fenômeno de bilocação, Ela tenha aparecido e falado com ele num antro qualquer onde estaria escondido, e de algum modo tocou o seu coração. São hipóteses. Assim, vemos que São João Evangelista, apesar do grande amor que nutria por Nosso Senhor, de tê-Lo sempre seguido, em certo momento, quando percebeu como o Divino Mestre estava aterrado e compreendeu a avalanche que viria por cima dele, não resistiu ao espantalho da dor e da perseguição. Fugiu… O medo do sofrimento e o horror da cruz expulsaram o amor. Só ficou o temor. E ele fugiu. O mesmo se deu com todo o resto do Colégio Apostólico.
Um israelita no qual não havia fraude prevaricou na hora da Paixão
Quando trato deste assunto, costumo comentar o fato impressionante de São Bartolomeu. Ele foi apresentado a Nosso Senhor, que lhe demonstrou especial afeto e fez dele este elogio magnífico: “Eis um verdadeiro israelita, no qual não há fraude”. Tome-se em consideração que o israelita era o cidadão do povo de Deus.
São Bartolomeu era, pois, um verdadeiro israelita, com algo a mais: não havia fraude nele… O louvor de Nosso Senhor é extraordinário. Jesus, tendo-o visto, disse-lhe certas palavras que revelavam sua omnisciência; São Bartolomeu compreendeu e confessou que Ele era verdadeiramente Deus. Chega, porém, a hora da Paixão, e São Bartolomeu dorme, foge, não está presente em nenhum momento. Só se sabe dele que apareceu depois no Cenáculo. Nada mais.
A imprevidência, o pecado e a contrição de São Pedro
Percebe-se, assim, o mecanismo singular da vocação, do chamado e da torpeza na alma de homens insignes, que tinham dado provas não negligenciáveis de fidelidade.
Por exemplo, quando Nosso Senhor disse que sua carne é verdadeiramente comida e seu sangue verdadeiramente bebida, e muitos de seus discípulos horrorizados com essa afirmação se retiraram, Ele se voltou para os Doze e perguntou: “Vós também não quereis me abandonar?” Como quem diz: “Se quiserdes, ide! Porque o que Eu tinha que dizer, Eu disse. Está feita a minha afirmação!”
Nessa hora, São Pedro teve aquela frase lindíssima: “Para onde iremos, Senhor, se só Vós tendes palavras de vida eterna?” Mais tarde, Nosso Senhor lhe profetiza: “Antes que o galo cante, tu me terás negado três vezes”. São Pedro, depois que Nosso Senhor foi preso, dirigiu-se àquele átrio onde estava acesa uma fogueira, “ut videre in finem”, para ver o que ia acontecer com o Mestre. De espírito superficial, ele não se lembrou que deveria se acautelar, pois havia uma predição terrível de que ele renegaria, naquela noite, três vezes a Nosso Senhor! Ele se meteu dentro do perigo.
Ou seja, naquele momento, São Pedro revelou uma terrível imprevidência e uma grande superficialidade em não tomar a sério o que Nosso Senhor lhe havia dito. Sem embargo do que, Jesus teve pena dele, e se conhece todo o resto. Até o fim dos seus dias São Pedro chorava, quando lhe voltava a lembrança desse episódio. E segundo piedosa tradição, seu rosto ficou marcado com o sulco das lágrimas que lhe corriam continuamente ao se recordar daquele divino olhar que o Redentor condescendera em lhe dirigir. Pode-se imaginar o que esse olhar queria dizer! Se nos fosse dado ter um minuto de um olhar como aquele penetrando o nosso, estremeceríamos de reconhecimento, de confusão, de amor, de pedido de perdão…
Quanto tempo durou o olhar de Nosso Senhor para São Pedro? Como foi esta troca de olhares, a mais emocionante que houve na História dos olhares humanos, se excluirmos o primeiro olhar que ossa Senhora trocou com o Menino Jesus quando Ele nasceu, e o último olhar entre Ela e Ele antes da morte na Cruz? Esses últimos são olhares pinaculares, que ficam acima de tudo quanto se pode cogitar, mas depois, abaixo deles, é difícil imaginar que tivesse havido olhar mais comovedor do que esse para São Pedro.
Porém, antes desse olhar, colocado diante de Nosso Senhor que o atraía tanto, que o deslumbrava tanto, quanta infidelidade, quanta coisa irregular, quanta miséria — por que não dizer? — quanta torpeza! Esse é o mecanismo miseravelmente perigoso da alma e do coração humanos.
Nossos beneficiados nos apedrejam, porque não querem aceitar a cruz
E todos nós que desejamos levar outros a Nossa Senhora e, por meio d’Ela, a Nosso Senhor Jesus Cristo, devemos esperar essas resistências, essas grosserias de alma, essas recusas, esses apedrejamentos vindos da parte de quem beneficiamos. E devemos esperar como algo muito provável, presente no caminho daqueles que querem conduzir almas a Deus. Pois aqueles a quem fazemos bem, esses normalmente — salvo exceções raríssimas — nos apedrejarão, falarão mal de nós, objetarão nossas palavras, etc.
Por quê? Porque sentem a atração do Céu para o qual os convidamos, mas sentem também o convite da cruz. E diante deste chamado, sentem repulsa: “Eu terei que fazer tal coisa, terei de aceitar tal outra, terei de me conformar com tal situação! Esse homem quer isso de mim! Não haverá um meio mais simples de arranjar isso? Será que eu tenho de pagar todo esse preço?! Dizem-me: ‘Ele tem o direito de te exigir esse preço, porque ele mesmo o pagou’. Minha resposta é: que tenho eu lá a ver com o preço que ele pagou?! Ele quis pagar, pagou! Eu não tenho força para pagar e não pago! E me ponho contra ele, faço-me inimigo dele!”
imprevidência, o pecado e a contrição de São Pedro
Quantas vezes na história do apostolado católico vemos amizades se transformarem em indiferenças brutais, em hostilidades declaradas, em sistemáticas oposições, às quais cumpre responder como Nosso Senhor respondeu aos seus inimigos quando carregava a cruz: com mansidão, com paciência, sem um momento de cólera, oferecendo os seus sofrimentos por aqueles mesmos que O injuriavam e O traíam.
Pode-se imaginar, durante a Via Sacra, quantas vezes Nosso Senhor pensou nos Apóstolos que não estavam lá? E quantas vezes Ele terá oferecido a dor pungente que Lhe causava a ausência dos preferidos? E como Ele, pela voz da graça, pedia a Nossa Senhora, pedia a todas as almas fiéis, às Santas Mulheres que estavam ao pé da cruz, se unissem às orações d’Ele para que aqueles se convertessem? Imitemos, pois, o nosso divino modelo, e saibamos converter em outro precioso fruto de apostolado, as rejeições e indiferenças de que sejamos objeto.