Quando voltamos nossos olhos para o passado e consideramos certos momentos áureos da Cristandade, não nos é difícil compreender como a boa harmonia entre o espiritual e o temporal, entre o religioso e o social constitui a perfeita ambientação para a existência da Civilização Cristã.
Numa atmosfera assim formada, nascem costumes, tradições e instituições abençoadas pela Providência Divina, e cujas belezas, em que pese o volver dos séculos, ainda perduram na lembrança dos homens.
Um exemplo? Fins da Idade Média. Uma cidade à beira-mar, cercada de lagunas, recortada por canais. Durante o dia, as fachadas de seus edifícios góticos admiram-se a si mesmas, refletidas no imenso e irrequieto espelho de suas águas. Pela noite, as luzes que escapam dos interiores apalaciados se confundem com as cintilações das muitas lanternas acesas em pontas de estacas que se cravam no fundo do mar… É Veneza, a feérica! A célebre Rainha do Adriático tinha uma forma de governo peculiar.
Não era dirigida por monarquias hereditárias. A República Sereníssima de Veneza tinha por soberanos os chamados doges, que eram eleitos e ocupavam o cargo por um período determinado. Ora, essa instituição doganal é uma das jóias preciosas da História da humanidade. Em torno dela nasceram e desabrocharam diversas maravilhas que não existiriam se aqueles homens desistissem de ser doges, se quisessem ser reis ou príncipes como os de outros povos. Porém, como assumiam a sua qualidade especial de dirigentes, a bênção ligada àquela instituição prevalecia e se estendia sobre toda a sociedade veneziana.
A começar pelo próprio Palácio dos Doges, edifício magnífico como símbolo do poder público e da grandeza de um povo, com seus amplos salões ricamente decorados, suas paredes recobertas de tapeçarias e pinturas lavradas por mestres famosos, e com sua arquitetura externa que é um verdadeiro e quase insuperável requinte do estilo gótico.
Mas o doge era também o protagonista de um costume em que se pode perceber de modo particular a mencionada harmonia entre o espiritual e o temporal. Trata-se dos desponsórios de Veneza com o mar.
De longe se vê a movimentação na Praça de São Marcos, os sinos do Campanile dobram festivamente, a multidão se acotovela e vai abrindo passagem para o cortejo do doge que, após ouvir a Missa solene, deixa a Catedral com o seu séquito, cercado de toda pompa e esplendor.
De longe se vêem miríades de gôndolas dirigindo-se para o meio do
Adriático, com músicos tocando composições de Vivaldi, pessoas cantando e festejando. A melodia se faz ouvir cada vez mais perto, o som das vozes e cantigas torna-se mais intenso.
Dali a pouco esse cortejo de pequenas embarcações estaciona no mar alto, enquanto as águas continuam a ser remexidas pelas batidas pesadas dos remos de uma imensa nau que surge logo atrás. É o famoso Bucentauro, todo esculpido e todo folheado a ouro, todo elegante com suas tape çarias pendentes do tombadilho, trazendo a figura majestosa do doge em trajes de gala, revestido do barrete frígio, acompanhado do famoso Conselho dos Dez, dos altos membros do Clero, das damas e cavalheiros da aristocracia veneziana.
As batidas nas águas se tornam mais suaves, os remos se levantam. Expectativa geral. Então, de um escrínio precioso o doge retira um anel ainda mais rico e o lança ao fundo do mar. A música recobra intensidade,
ecoam vivas e aplausos, bandeiras e bandeirolas se agitam: estava afirmado, uma vez mais, o poder de Veneza sobre o Adriático e o Mediterrâneo.
Os remos do Bucentauro feriam novamente as águas e o barco imponente retornava para a Praça de São Marcos, entre músicas de violinos e os brados da população que aclamava o seu governante. A festa prosseguiria no Palácio dos Doges, nas luxuosas residências, nas praças e canais venezianos, até que se extinguissem os últimos ecos dos violinos, até que se emudecessem as vozes envolvidas na noite da velha e sereníssima República.
Quando, tempos depois, o advento das grandes navegações abaloua supremacia marítima e comercial de Veneza, esta se deu conta de uma outra realidade: perdera o império dos mares, mas ganhara o império da beleza.
Ela aproveitara o tempo de sua opulência para se encher de palácios, de obras-primas imortais, para fazer-se umas das cidades mais lindas e talvez a mais original de todo o universo. E no momento em que decaía comercialmente, as nações insaciáveis das maravilhas dela começaram a visitá-la, a freqüentar a feérica moribunda que ia expirando. E todos lhe traziam o tributo de sua admiração: o mundo inteiro ali se encantava e ali bastava, não querendo que Veneza morresse!
Então Veneza compreendeu que, continuando a vida de luxo, a vida de festa, a vida de arte, ela prolongava sua própria existência. Ela tinha uma beleza imorredoura.
Sim, mais do que casar-se com o mar, a venturosa Rainha do Adriático desposara-se com o pulchrum…
Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 64 (Julho de 2003)