Lembrança do Céu

Para as condições da época, a civilização Cristã foi, tanto quanto possível, um espelhar fulgurante da ordem paradisíaca e angélica entre os homens.

Foi uma superior disposição da vida temporal, por onde o espírito humano subiu tão alto que chegou a realizar coisas e a se exprimir em símbolos nos quais superou toda beleza contenível nesta terra – a ponto de lembrar o céu.

Magnífica expressão do holocausto divino

Entre os tesouros da arte barroca conservados em Minas Gerais reluz uma peça de extrema beleza, exposta à veneração dos fiéis na Igreja de São Francisco de Assis, na histórica cidade de São João del Rei. A origem dessa preciosidade é assim narrada pelas crônicas:

Estava já a igreja no século XVII inteiramente terminada, inclusive em sua decoração interna, quando se percebeu faltar o elemento que deveria coroar o cimo do altar-mor: o Crucifixo, em que o Divino Crucificado dirigia a palavra a São Francisco.

Pasmo da comissão encarregada da decoração! O que fazer? Os artistas contratados negavam-se a continuar por mais tempo os afazeres naquela igreja, alegando contratos a cumprir em outros lugares. E assim, ficou-se numa grande indecisão. Foi quando por aquelas plagas apareceu um nobre ancião, de feições muito dignas, oferecendo-se para esculpir o Crucificado, e desse modo encerrar a obra artística daquele templo. Não sendo conhecido de ninguém, e não podendo apresentar referências à altura da tarefa, mandaram-no embora.

Passado um certo período, voltou o ancião, reiterando a sua oferta. Novamente, por falta de referências, foi rejeitado sem escrúpulos. Após mais um tempo, e não se tendo achado ainda nenhum  outro artista que quisesse levar a obra a cabo, voltou pela terceira vez o bom velho, apresentando seus serviços. Não tendo outra escolha, os encarregados decidiram aceitá-lo, perguntando-lhe quais eram suas condições.

Respondeu o ancião que não pedia nada antes de findo o serviço. Terminado, retribuiriam, caso julgassem a obra bem feita. Solicitava apenas que recebesse uma refeição e uma medida de água por dia, à hora do almoço. Por outro lado, exigia fazer todo o trabalho sozinho, trancado em uma sala, sem comunicação com o exterior, a qual só seria rompida estando tudo acabado.

Assim foi-lhe concedido. Transcorridos vários dias, verificaram os responsáveis que os alimentos deixados para o bom velho junto à porta da sala não estavam mais sendo retirados por ele. Reuniram-se então as autoridades e tomaram a decisão de arrombar a porta, a fim de saberem o que ali estava se passando. Entraram  e… surpresa! O respeitável ancião havia desaparecido, e um Crucifixo magnífico, de traços como jamais se vira, estava ali inteiramente esculpido! Esse Crucifixo é o que se encontra hoje no topo do altar-mor da Igreja de São Francisco de Assis, em São João del Rei.

Muitos crucifixos exprimem com doçura, dignidade e profundidade de alma extraordinárias a dor d’Aquele que está para expirar, e até o sangue divino escorre nobremente pelo corpo chagado.

Dir-se-ia um desenho de beleza, os filetes vermelhos irrigando magnificamente a figura do Salvador. Mas nesse de São João del Rei —  um dos mais belos e comovedores  Crucifixos que tenho visto  em minha vida —, está expresso de modo único, preciso e extremo o sofrimento espantoso de Nosso Senhor no alto da cruz. Não O magoa apenas a imensa tristeza causada pela perseguição injusta e pela ingratidão de que Ele é objeto.

Os olhos escancarados e salientes, a tensão de toda a carnatura da face e a posição do pescoço incutem a impressão de algo muito mais aflitivo do que a dor: é o mal-estar. Um mal-estar terrível,   pior do que qualquer padecimento, inundando completamente a Alma adorável e o sagrado Corpo de Nosso Senhor no madeiro.

Dir-se-ia que, nesta posição e com essa expressão fisionômica, o Divino Redentor não estaria distante de exalar o brado sublime que precedeu de momentos a sua morte: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?

Tudo n’Ele está prestes a estalar, a desaparecer. O “consummatum est” se aproxima. Sofrimento indizível cuja consideração deve nos preparar para nos unirmos a Jesus, pelos rogos de Maria Santíssima, em nossas dores, em nossas perplexidades e aflições de espírito, nas horas em que parecemos sucumbir ao peso da angústia e pensamos estar, nós também, abandonados pela Providência.

Sim, também para nos infundir ânimo e coragem esse Crucifixo é verdadeiramente sublime! Como não nos enchermos de confiança e de força de alma, ao considerarmos tudo quanto Ele padeceu por nós? Ei-Lo no auge do estertor, do não caber mais em Si. É o mal-estar nos seus aspectos mais terríveis. E assim como o poeta francês cantou “le charme plus beau que la beauté” — o encanto mais belo que a beleza —, deste Crucificado eu diria que sofre “o mal-estar mais dolorido que a própria dor!”

É o holocausto do Homem-Deus retratado de um modo magnífico. E essa perfeição de talhes justifica a suspeita de que o artífice, aquele “bom velho” desaparecido misteriosamente, não era senão um anjo, enviado por Deus para esculpir ali essa obra prima da arte católica. Esse é um Crucifixo cinzelado por mãos angélicas.

Dir-se-ia, mesmo, que o artista celestial esteve presente no Calvário, viu a Nosso Senhor nesse estado, lembrou-se da adorável fisionomia que então contemplou e a reproduziu. De tal maneira essa face divina corresponde, não ao que poderíamos imaginar, mas ao que não logramos conceber. Somente depois de admirá-lo, percebemos que deve ter sido realmente assim…

De passagem, cabe outro comentário. Nada há de mais contagioso do que o mal-estar. Por exemplo, se nos achamos perto de alguém que esteja padecendo de asfixia, facilmente nos deixamos  tomar pela aflição dele, e logo parecemos acometidos por igual tormento. Ora, o divino mal-estar de Jesus, como seria contagioso para quem tivesse um mínimo de compaixão! Quiçá, não terá sido a consideração desse mal-estar em sua fase ascensional que tocou e converteu o bom ladrão?

Mais. Incomparavelmente mais. Ao pé da Cruz encontrava-se Maria Santíssima: como A terá contagiado esse mal-estar? Que disposições de alma, que permuta de sentimentos determinou entre Ele e Ela, tão íntima, tão profunda, tão completa, tão total como nem podemos imaginar! Era preciso que um artista se inspirasse nesse Crucifixo para esculpir uma “Mater Dolorosa”. Então compreender íamos melhor Nossa Senhora das Dores, a sua aflição, o gemido do mal-estar levado, n’Ela também, ao seu extremo.

Modalidades de sofrimento

Em sua vida de quase 87 anos, Dr. Plinio teve grandes consolações, mas também passou por sofrimentos inenarráveis. E pronunciou inúmeras conferências a respeito da dor, como a que transcrevemos abaixo, na qual mostra um panorama grandioso, descrevendo, com muitos exemplos, os diversos sofrimentos que podem ocorrer na existência do homem.

Para tratarmos a respeito do sofrimento em termos inteiramente utilizáveis por nós, devemos fazer algumas distinções entre modalidades de padecimentos. Porque a atitude do homem diante dessas formas varia, mas a atitude legítima, quer dizer, as diversas vias de Deus a respeito dessas modalidades de sofrimento também variam. Precisamos ter isto bem claro, sob pena de criar um “imbroglio” que acaba, por alguns lados, sendo nocivo.

Sofrimentos intrínsecos a toda ação séria

Há uma primeira modalidade de sofrimento que é intrínseca a toda ação séria. É o sofrimento do trabalho, do estudo, do esforço físico, da ginástica, da luta; são coisas que fazem parte da contextura comum da vida do homem ou da vida dos povos.

Ainda não coloco dentro disso as doenças, porque o estado normal do ser humano não é a enfermidade, como não é, por exemplo, ter sofrido um desastre. Essas coisas não são o comum da vida. Para uma pessoa ter verdadeiro interesse pelo estudo, o empenho, a concentração mental, a energia de espírito que ele exige, a abnegação de uma série de coisas mais baixas são sofrimentos iniciais.

Quando esses sofrimentos são aceitos, podem se tornar familiares e até fonte de alegria. Que efeito esses sofrimentos têm para a vida, para a alma humana?

Eles enrijecem a alma, dão-lhe profundidade de espírito, continuidade de intenções, seriedade e, com isto, tornam o homem verdadeiramente varonil. Um indivíduo incapaz desses sofrimentos torna-se indigno de ser homem.

A pessoa deve procurar esse tipo de sofrimento, endurecer-se diante dele, ser inclemente consigo à vista dele, e quanto mais ela seja dura consigo, mais a vida lhe será suportável.

Quando nessa gama certas coisas não fazem sofrer, em algum ponto acabará aparecendo um grande sofrimento, porque não se escapa da regra de que em algum aspecto, maior ou menor, o esforço é muito penoso, como um argueiro no olho ou um pedregulho no sapato.

Por exemplo, um homem pode ser muito estudioso, mas certa forma de estudo indispensável lhe dá preguiça. Isso tudo faz parte do tal sofrimento que o indivíduo deve enfrentar.

Qual é a utilidade desse sofrimento para a ordem da Comunhão dos Santos, como caráter expiatório? Evidentemente, desde que o indivíduo tenha intenção de oferecer, isto é útil à Comunhão dos Santos, enriquece o tesouro da Igreja.

Padecimentos que agridem

Mas um peculiar título de valor ele não possui, que vem de outra coisa: é do sofrimento que agride todo homem na vida, o qual está fora da ordem comum e se diria até que é destrutivo desta ordem.

Por exemplo, o indivíduo começa a estudar com decisão e adquire o hábito do estudo. Vem a mãe dele e lhe informa: “Até agora temos vivido do comércio de seu pai. Mas ele teve uma embolia cerebral e não vai mais poder continuar esse trabalho. Por isso, será preciso que você o assuma”;

Ele que já se dedicara inteiramente a certo ramo, fica colocado diante de um sofrimento de outra ordem, com isto de meio desagregador: com dificuldade, rezando, ele conseguiu tornar-se inteiramente familiar ao estudo. Agora, vem uma surpresa que o lança nessa história.

Imaginemos que o pai tenha uma casa de comércio pequena, de arrabalde, onde vende louças e ferragens. E a primeira coisa que esse gênero de negócio exige é boas relações na redondeza, porque há nos arredores duas ou três outras casas novas que estão fazendo competição. E ele também precisa estar muito a par do que as fabriquetas de São Paulo vão lançando de novo a esse respeito, porque, do contrário, não oferece artigos que disputem a clientela.

Portanto, isso não só absorve o tempo de trabalho dele, mas a capacidade de luta e de reflexão. E ele se vê descido de São Tomás até o problema de saber se a louça fabricada com pó de pedra e vendida em tal lugar agrada a Da. Fulana que é a mandachuva de tal quarteirão, e com a qual ele precisa conversar antes. Então Da. Fulana convida-o para tomar chá em casa dela, e o indivíduo tem que lhe contar uma piada, senão ele não mantém a freguesia.

A moeda da dor nos ”bancos” do Céu

Outra possibilidade é que o próprio estudioso fique doente. Ele se habitua a estudar, mas vem, de repente, uma enfermidade qualquer que o obriga a ficar pelo menos três anos afastado dos estudos.

Diante disso o indivíduo tem várias saídas possíveis. Uma delas é encontrar uma fresta e afirmar-se ainda mais. Esta é a solução providencial que o leva a lutar contra o infortúnio, suportar este sofrimento, além do anterior de que falamos, e vencer.

Isso tem um mérito muito maior porque o indivíduo sofre muito mais do que o comum dos homens. E, portanto, dá a Deus essa moeda da dor que tem nos “bancos” do Céu uma importância colossal, e abre um fundo de depósitos extraordinário para si nos “bancos” do Paraíso. Ele pertence à categoria de almas que Deus chama para isso.

A diferença entre os dois sofrimentos até aqui descritos está em que, no padecimento anterior, o indivíduo luta e pode eliminá-lo. E esse segundo tipo de sofrimento, ao menos durante muito tempo, não pode ser sanado.

Então, o que fazer? O indivíduo precisa acomodar-se àquele sofrimento porque, do contrário, estoura. Mas de um acomodar-se cujo verdadeiro nome é resignação e cujo triunfo está em superar o sofrimento, sem deixar-se cair em deformações sentimentais por onde ele fique mole, covarde e sem vigor. Neste caso, ele pode ser um grande benemérito na Comunhão dos Santos.

O sofrimento penitencial e o de enriquecimento da Igreja

Outra espécie de sofrimento é aquele que a pessoa procura. Isso pode se dar de dois modos: ou ela se penitencia, ou escolhe um gênero de atividade que de si não seria obrigada a escolher, mas fá-lo por idealismo.

Por exemplo, alguém que, sendo rico, quisesse entrar para a Legião Estrangeira a fim de praticar o heroísmo. Ele procurou o sofrimento. Ou um homem que pede a Deus que lhe mande sofrimentos, como o caso de Monsieur Martin, pai de Santa Teresinha, a quem Deus inundava de consolações e que Lhe dizia: “Meu Deus, isso não pode continuar, eu tenho que, em algum momento, sofrer!” E pedia o sofrimento para Deus. E veio!

Este é ainda mais nobre do que os sofrimentos anteriores. Foi por um ato de amor que ele fez isso, compreendendo o valor enorme do sofrimento e querendo fazer aos tesouros da Igreja o beneficio de enriquecê-los, entrando com a gota d’água de sua própria dor.

Às vezes é um sofrimento de penitência. Aí ele quase paga aos tesouros da Igreja o que ele roubou pecando.

Outras vezes não é um sofrimento penitencial e sim de enriquecimento da Igreja. Uma alma que tem a felicidade de poder dizer: “Sou inocente, mas quero sofrer como Nosso Senhor Jesus Cristo inocente sofreu, para, por esta forma, derrubar a Revolução. Meu Deus, mandai-me a tragédia, eu a aceito e me afundo nela! Morro dentro da tragédia! Só Vos peço a força de aguentar”. São modalidades diferentes de sofrimento.

Não se pode padronizar os caminhos de Deus para cada alma

Diante desses padecimentos, a pessoa que os pediu deve endurecer-se contra eles, fazendo esforço para sofrer pouco?

Por exemplo, um indivíduo que tenha rogado a Deus que lhe mande um sofrimento, e ele verifica que está ficando cego. É provavelmente o atendimento do pedido que ele fez. Ele deve rezar a Deus para não vir essa cegueira? Fazer toda espécie de tratamento para evitá-la?

Os tratamentos que entram na vida comum da Medicina e que a Moral obriga, ele deve fazer, não tem por onde escapar.

Os outros… aí vem o mundo dos contatos da alma com Deus: se ele tem uma autêntica moção interna de que está sendo atendido, será heroico e compreende-se que não recorra. Mas pode ser que, para outra alma igualmente dedicada a Deus, a Providência não queira isso, mas sim que ela tente e faça uma luta heroica para evitar o sofrimento, ficando só provado que a oração dela foi atendida, porque o sofrimento se impõe apesar de ela fazer a luta. Depende do caminho de Deus, que não se pode padronizar, para cada alma. Estou mostrando a variedade de vias.

Vindo o sofrimento, o que o indivíduo deve fazer?

Voltemos ao exemplo do cego. Ele deve fazer o necessário para suprir sua cegueira: comprar aparelhos magníficos, aprender métodos por onde ele possa ler, etc., de maneira a, tanto quanto possível, remediar os inconvenientes do estado em que caiu?

Vale aqui o raciocínio anterior: para alguns sim, para outros não. Depende do que internamente a graça peça a cada um. Não há uma regra assim peremptória. Para algumas almas Deus tem um desígnio, para outras, outro. De todas Ele quer que saibam ouvi-Lo e obedecer-Lhe. É a regra que precisa ser seguida.

A provação axiológica

O mais terrível dentro disso é o sofrimento anti axiológico(2). É outro tipo de padecimento. A dor anti axiológica é maior em si, como gênero, do que todas as outras dores porque, tendo certeza de que se encaixou numa determinada ordem, a pessoa encontra nisto um elemento de ação. Porém, quando ela não tem esta certeza, não sabe se não está sendo castigada, se é uma coisa temporária da qual pode pular fora, não sabe nada, a sua vida se torna sem sentido.

Qualquer um dos sofrimentos acima descritos pode acontecer tomando uma nota anti axiológica. O indivíduo, por exemplo, faz uma reflexão: “Realmente eu deveria oferecer a minha vida, minha saúde, qualquer coisa assim…” Interrompe seu pensamento e vai ocupar-se com outra coisa. Internamente não recusou. Deus viu que ele estaria disposto, ou espera dele um ato de aceitação no decurso dos padecimentos. Em certo momento, uma doença pula em cima dele!

A Providência está permitindo que dois tormentos o aflijam especialmente: um é o da enfermidade, outro o de não saber se aquilo lhe veio por um castigo. Ele não sabe se, por exemplo, rezasse mais, a doença não o acometeria, se deve orar ou não para cessarem os sofrimentos; e vai suportando como pode, enquanto Deus Se mantém mudo. Nisto pode estar embuçado tanto um castigo quanto um modo magnífico de carregar a cruz, sem que o interessado saiba por quê.

Deus não lhe dá os meios de resolver a questão, porque nisto está a maior prova. E às vezes a graça pode pôr na alma da pessoa a seguinte ideia: “Procure resolver, mas não peça graças especiais para isso, porque talvez você fuja do sofrimento mais duro e que não quereria sofrer”.

É terrível porque não adianta consolar o sujeito com a ideia de que é a mais alta forma de sacrifício, porque para ele não está claro se é mesmo a mais elevada forma de imolação ou se ele está sendo castigado. Quer dizer, não sabe se está no fundo de um poço ou no alto do monte. E assim morrerá e se apresentará ao Juízo de Deus.

Até lá a incógnita axiológica pode sombrear a vida de uma pessoa sem ela se dar conta. Por isso digo ser essa provação axiológica aquela que, entre todas, mais faz o homem sofrer. ”Deus meus, quare Me dereliquisti?”(3)

Tem-se a impressão de que, durante toda a Paixão, Nosso Senhor sofreu eminentemente do ponto de vista anti axiológico, culminando no “Deus, Deus meus, quare Me dereliquisti?” No teto da Igreja do Coração de Jesus há pintado Nosso Senhor aparecendo a Santa Margarida Maria. Ele diz a ela, mostrando seu Sagrado Coração: “Eis o Coração que tanto amou os homens e foi por eles tão pouco amado.” Este é um sofrimento moral maior do que os padecimentos físicos inenarráveis.

Ora, isto tem qualquer coisa de anti axiológico. A dor que sofre quem foi assim renegado é, no fundo, uma dor anti axiológica. Ele era o Justo e seria normal que fosse acolhido de outra maneira. Entretanto, vem o sofrimento da Cruz! Levaram a coisa a tal ponto que Longinus crava a lança n’Ele, e ainda sai água, quer dizer, não restou nada! Um dos Salmos diz: “Transpassaram minhas mãos e meus pés, posso contar todos os meus ossos.”

Acima de tudo, a fidelidade do amor d’Ele restaura o princípio axiológico rompido. Nosso Senhor continua a amar os homens; tudo o que estes fizeram para romper a ordem, Ele, com sua obstinação sacrossanta em continuar a amá-los, recompõe.

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/11/1983)

1) Do latim: Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonaste? (Sl 22, 2; Mt 27, 46).
2) Termo derivado de “Axiologia”: ramo da Filosofia que estuda os “valores”, isto é, os motivos e as aspirações superiores e universais do homem, as condições e razões que dão rumo à sua existência, para os quais ele tende por insuprimível impulso da sua natureza.
3) Sl 22, 17-18.

A Virgem do Bom Sucesso

Nosso Senhor Jesus Cristo foi gerado pelo Espírito Santo em Maria Santíssima, virgem antes, durante e depois do parto. Quando a gestação tem como resultado o bom nascimento do filho, chama-se “bom sucesso”. Assim, Nossa Senhora do Bom Sucesso é o título conferido a Ela enquanto tendo dado à luz, maravilhosamente e do modo mais feliz possível, o Filho Divino que o Espírito Santo gerou em suas entranhas virginais.

A Lei mosaica ordenava que todo primogênito fosse apresentado no Templo e oferecido a Deus. Embora não precisasse cumprir esse preceito, pois seu Filho era o próprio Deus, Nossa Senhora nos deu um lindo exemplo de amor e de obediência à Lei, levando o Menino Jesus ao Templo onde o Profeta Simeão O aclamou como “luz para iluminar as nações” e “sinal de contradição” (Lc 2, 32 e 34).

O Bom Sucesso da Santíssima Virgem foi assim consagrado pela Apresentação do Menino Jesus no Templo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 2/2/1983 e 1/2/1984)

Onde o Arcanjo um dia pousou…

O Tibre, o velho rio Tibre, corre suavemente por uma das mais pitorescas zonas da Cidade Eterna. Em suas águas tranquilas, deixa refletir os arcos de uma robusta ponte e a silhueta de uma construção monumental, conferindo particular beleza a esse cenário romano.

A ponte, de linhas fortes e traçado muito lógico, foi feita para resistir às vicissitudes e desgastes dos séculos. Nas margens onde ela toca cresce uma vegetação nascida ao léu, com um certo espontâneo e desordenado que a tornam ainda mais atraente. Ao longo de suas balaustradas se erguem, em intervalos regulares, imagens de santos e de anjos, diante das quais os fiéis costumam rezar, enquanto se dirigem para aquele grande edifício que se espelha no Tibre. Esses peregrinos vão visitar o Castelo Sant’Angelo.

Os antigos imperadores romanos, pagãos, tinham o hábito de preparar monumentos nos quais deveriam ser enterrados. Por suas características arquitetônicas, esses mausoléus procuravam imortalizar o César ali sepultado.

Mais que um túmulo, era uma glorificação à memória do homem que, por tempo maior ou menor, governara os destinos de Roma e de seus vastos domínios. Um desses perpetuados foi o imperador Adriano, cujos restos mortais descansariam para sempre no monumento que ele mandou construir, próximo às plácidas águas tiberinas.

Na época imperial chamava-se “Mole Adriana”, nome bastante adequado se considerarmos tratar-se de um edifício de grandes e sólidas proporções. De diâmetro colossal, ele impressiona pelo sério, pelo compacto, pelo imenso. É uma afirmação do poder quantitativo, qualitativo e ordenativo de Roma, bem como de seu incontestável domínio sobre extensa parcela do mundo.

Porém, com o passar dos séculos, os ossos desse Adriano se desfizeram e dele nada sobrou. A história não o celebra, apenas o registra, porque ainda permaneceu de pé seu imponente mausoléu.

E metida a cidade de Roma nas contínuas guerrilhas e guerras da Idade Média, esse túmulo começou a ser utilizado para finalidades diversas, transformando-se numa importante fortaleza. Seu papel defensivo pode ser notado até hoje, por quem visita a sede do Papado e a Basílica de São Pedro. Visto de fora o Palácio do Vaticano, nota-se em determinado ponto um corredor todo coberto, construído sobre arcadas que, mais adiante, atravessam o Tibre e se emendam na antiga Mole Adriana, agora Castelo Sant’Angelo. De maneira que, sentindo-se ameaçado, o Sumo Pontífice podia facilmente escapar por esse corredor e se refugiar entre os robustos muros do velho monumento. Era a suprema defesa do Vigário de Cristo.

Cessados os períodos de convulsões e saques a que se expunha a Cidade Eterna, o Castelo Sant’Angelo passou a ser outro lugar de descanso e recolhimento, à disposição do Papa.

E assim, como tantas outras construções de passadas eras, esse monumento de um imperador pagão foi incorporado às tradições e aos valores cristãos, tornando-se mais um símbolo das grandezas da Igreja.

No alto desse gigantesco castelo paira, sobranceira e protetora, a imagem de São Miguel Arcanjo. Ela é quem deu o novo nome ao antigo túmulo imperial.

Narram as crônicas que, durante a Idade Média, devastadora epidemia se alastrou por Roma, ceifando incontáveis vidas.

Compadecido e angustiado diante de tanta calamidade, o Soberano Pontífice ordenou que se fizessem procissões em toda a cidade, a fim de se alcançar dos Céus o fim daquele inclemente flagelo.

E suas preces foram atendidas. Pouco depois, como sinal da misericórdia divina, viu-se o gladífero Arcanjo pairar sobre a Mole Adriana, numa atitude de quem conjurava a peste.

Roma voltou à vida. E, desde então, a glória de um imperador em pó transformou-se em escabelo para o Príncipe da Milícia Celeste…

 

A Paz de Cristo no Reino de Maria

Na Sagrada Família, o menor de todos era o chefe: São José. Em seguida, vinha a Mãe, enormemente superior ao esposo; e depois o Filho, infinitamente maior do que os dois.

Em torno dessa Família se reúnem, desde os primeiros dias, os grandes e os pequenos da Terra: expressão significativa de que Cristo Nosso Senhor veio trazer a paz como característica das relações entre as classes sociais.

São José, nobre como um príncipe e humilde como um carpinteiro; os Magos, dignos como reis e súplices como mendigos; o jovem pastor, um casto adolescente que parece trazer no cordeiro o símbolo de sua pureza e ver no Menino-Deus a fonte de toda castidade.

Queira a Sagrada Família obter para nós, para nossas famílias, para nossa querida nação, que se afastem tantos fatores de preocupação e de tensão, por efeito da única solução que uns e outros podem ter validamente: a Paz de Cristo no Reino de Maria.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 30/8/1977 e 16/12/1991)

GLÓRIA A DEUS NO CÉU, E PAZ NA TERRA AOS HOMENS DE BOA VONTADE

As reflexões sobre o Natal es-critas em 1936 por Dr. Plinio parecem feitas, de algum modo, mais para os dias de hoje do que para aquela época, tanto no tocante às nuvens negras que toldam o quadro dos acontecimentos, quanto aos raios de esperança que o perpassam.

Enquanto os Anjos de nossos piedosos presépios ostentam dísticos em que se lê: “Glória a Deus nos Céus, e paz na terra aos homens de boa vontade”, a imprensa diária está cheia de notícias  terríveis que destoam tristemente da promessa angélica. […] Por toda parte só encontramos ódio, rancor, perseguição.

E, no entanto, cumpre que não desanimemos. Não seríamos dignos da graça inestimável do Batismo que recebemos, se permitíssemos que o pânico se apoderasse de nós. Nem na ordem natural, nem na ordem sobrenatural, há motivos que justifiquem a inércia e o pessimismo.

Cristo, como único Salvador do mundo: lição do Natal

O que a Igreja espera, hoje em dia, de seus filhos, é a realização de uma tarefa ao mesmo tempo muito grande e muito simples. Ela quer que todos os católicos (os católicos dignos deste nome, e  não a turbamulta dos pagãos que usam rótulo católico), com uma persuasão vigorosa e magnífica, se ergam no tumulto do mundo contemporâneo, proclamando o cristianismo como seu único Salvador.

Único, dissemos. E insistimos sobre esta palavra. Erraria crassamente quem supusesse que o Cristo só veio salvar a humanidade de seu tempo. Em todos os tempos, em todos os países, para todos os povos, em todos os perigos, em todas as dificuldades, apesar de todos os pecados, Cristo é o ÚNICO Salvador.

[Alguns países] pensam que podem atingir a prosperidade e a paz, por meio de pequenas receitas políticas em que misturam, em doses variáveis, a autoridade e a liberdade. Loucura e ilusão. Se  eles não aceitarem as normas sociais e morais da Igreja, se não derem ao catolicismo a influência preponderante a que tem direito, não escaparão à ruína. De reforma em reforma, rolarão para o abismo.

[Outros países] pensam que o braço vigoroso de um ditador lhes pode restituir a felicidade. Loucura, ainda, e ilusão. Porque o maior homem do mundo, dotado da mais lúcida inteligência, da mais alta moralidade, da mais vigorosa energia, do mais formidável poder, não conseguiria organizar convenientemente um povo que vivesse entregue à anarquia intelectual e efetiva que, fora da Igreja, é inevitável. Um povo é um conjunto de homens. Um povo disciplinado não pode ser composto de homens anarquizados no mais íntimo do seu ser, como um copo de água pura não pode constar de um conjunto de gotas de água impuras.

Cristo como base da civilização, e as formas do governo como aspectos secundários e acidentais da vida de um povo, eis aí uma das grandes lições do Natal.

Trabalhar, lutar, sofrer e rezar pela Igreja

Mas, dirá alguém, Cristo é um Salvador ausente. Eternamente mudo, atrás da cortina de nuvens que o escondem no Céu. Ele não se mostra à humanidade aflita. E esta então corre à busca de outros pastores.

É horrível dizê-lo, mas há entre católicos quem fale assim. Há ainda quem não ouse falar, mas pense assim. E há quem não ouse pensar, mas sinta assim! Daí o existirem católicos que têm mais  esperança na ação da política do que na ação do Cristo.

Ah! São esses os corações que recebem a visita eucarística do Cristo, mas não recebem o seu Espírito: “in propria venit, et sui eum non receperunt” (veio para que era seu, e os seus não o receberam).

Ah! São esses os corações que ouvem a palavra do Cristo, vinda do Vaticano, e não conhecem na voz do Papa o timbre da voz de Deus. A palavra do Papa ecoa no mundo, e o mundo não a conhece:  “lux in tenebris lucet, et tenebrae eam non conprehenderunt” (a luz brilha nas trevas, e as trevas não a envolveram).

Cristo, para o bom católico, não está ausente. Na Eucaristia, Ele está tão realmente quanto esteve na Judeia. E do Vaticano fala tão verdadeiramente quanto falou ao povo de Israel. A Igreja é tão  seguramente guiada por Cristo em 1936, quanto o eram os Apóstolos, antes da Ascensão.

O que Cristo quer fazer, fá-lo por meio da Igreja. O que Cristo quer dizer, di-lo por meio do Papa. Logo, a Igreja em certo sentido é onipotente e onisciente porque é instrumento da onipotência e porta-voz da onisciência de Deus.

Se Cristo é o Salvador único, a Salvação virá da Igreja. Trabalhar, lutar, sofrer, rezar, imolar-se ou sacrificar-se alegremente pela Igreja, deve ser o fruto desta meditação de Natal. Porque todas as  causas e todos os ideais devem vir depois da suprema Causa e do supremo ideal da Igreja.

GLÓRIA A DEUS NAS ALTURAS, E PAZ NA TERRA AOS HOMENS DE BOA VONTADE.

Plinio Corrêa de Oliveira (Excertos, com ligeiras adaptações, de artigo do Legionário nº 224, de 27/12/1936. Subtítulos nossos.) 
Revista Dr Plinio 57 – Dezembro de 2002