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A grande alegria de Maria Santíssima

Costuma-se representar Nossa Senhora com o Coração transpassado por sete gládios, símbolo das sete principais dores pelas quais sua alma santíssima passou.
Eu gostaria de ser pintor para representar a Mãe de Deus subindo ao Céu com seu Imaculado Coração à mostra e dos gládios saindo raios refulgentes. Porque essa era a grande alegria d’Ela: os tormentos sofridos, as lutas aceitas.
Também vai ser a nossa. Quanto mais sofrermos, mais devemos nos lembrar da glória e alegria que teremos na passagem desta Terra para o Céu e, sobretudo, na visão beatífica pelos séculos dos séculos.
Peçamos a Maria Santíssima, nesta festa de sua Assunção, que essas considerações tenham vida em nossas almas.
(Extraído de conferência de 15/8/1966)

Combateu os vícios propulsores da Revolução

São João Batista disse a Herodes aquilo que hoje ninguém tem coragem de dizer à Revolução: “A ti não é lícito!”
Aquele que era o modelo da penitência foi chamado a preparar as almas para receber Nosso Senhor, abatendo as colinas, isto é, quebrando o orgulho, e preenchendo os vales, ou seja, eliminando a impureza. Portanto, suprimindo os dois vícios que são as causas da Revolução: orgulho e sensualidade.
Quem de tal maneira calcou aos pés a soberba e a luxúria foi também uma magnífica manifestação do destemor.
Sem dúvida, o homem que abateu o orgulho, lutou contra a impureza, disse as verdades e cortou o caminho à impiedade, era digno de ser o precursor de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Deveríamos nos inspirar nesse modelo para ser varões sérios, altaneiros, intrépidos, corajosos, que falam em nome de uma verdade eterna e, por isso, não se sentem intimidados nem diminuídos diante de ninguém.
Rezemos a São João Batista pedindo-lhe que nos obtenha o ódio aos dois vícios propulsores da Revolução e a coragem de dizer a verdade integral em face de quem quer que seja.

(Extraído de conferências de
24/6/1965 e 20/9/1965)

Auxílio dos Cristãos, solicitude maternal concedida aos homens

 

Ao comemorar a festa de Nossa Senhora Auxiliadora a Santa Igreja evoca o auxílio maternal dispensado pela Santíssima Virgem a todos os homens. Considerando cada um como se fosse filho único, Maria se desdobra em desvelo e atenções, realizando assim sua missão de Medianeira de todas as graças.

No dia 24 de maio a Santa Igreja comemora a festa de Nossa Senhora Auxiliadora. Essa invocação foi introduzida na Ladainha Lauretana por São Pio V, em comemoração da vitória alcançada contra os turcos, em Lepanto. A festa foi instituída por Pio VII, em ação de graças por sua volta à Roma depois de ter sido preso por Napoleão.

Lepanto, um dos fatos mais gloriosos da história da Civilização Cristã

Temos para comentar uma ficha a respeito da Batalha de Lepanto. Convém sempre relembrar as glórias da Civilização Cristã e, portanto, trazer à memória esse acontecimento, o qual é um dos mais gloriosos dentro dessa história. No entanto, será a respeito de Nossa Senhora Auxiliadora que teceremos considerações.

A ficha é tirada do livro sobre Lepanto, de Garnier1:
Agostinho Barbarigo, capitão veneziano, era o chefe da ala esquerda das galeras, na batalha de Lepanto. Soldado famoso, era aceito

como verdadeiro líder da armada de Veneza.

Em Lepanto, em meio à luta, foi cercado habilmente pelos generais Siroco e Uluç Ali.
Pelo menos cinco adversários o contornaram e seus navios lançavam nuvens de flechas que cobriam a popa da nau capitania de Barbarigo. Durante uma hora inteira ele sustentou o assalto turco. Depois, com o auxílio de outras galeras conseguiu, finalmente, passar à ofensiva. Na confusão desse ataque furioso, conseguiu aprisionar o capitão Siroco.

Sempre hábil na manobra e corajoso até a audácia, Barbarigo abordou depois a galera de Uluç Ali, cujo mérito guerreiro era bem conhecido e o fez prisioneiro também. A batalha prosseguiu violentamente. Em dado momento, Barbarigo percebeu que não era bem entendido pelos seus comandados, porque seu capacete cobria-lhe o rosto. Lançou-o então fora para ser melhor ser ouvido. Nesse momento, os inimigos intensificaram o lançamento das setas.

Preveniram então o capitão do perigo de lutar sem capacete. Respondeu ele: “É menor o perigo de correr tal risco do que ser mal compreendido em tal momento”. Logo foi atingido por uma flecha no olho e entregou o comando a seu imediato.
No dia seguinte, o excelente Barbarigo ouviu dizer que a vitória coubera aos cristãos. Ele levantou as mãos aos céus, pois não podia abrir a boca para pronunciar uma palavra; sua ferida o impedia. Ele exprimiu sinais de alegria e reconhecimento a Deus.
O episódio é muitíssimo bonito, quer pela audácia de Barbarigo, quer pelo espírito de fé, integridade e inteireza de alma com que ele aceitava esse ferimento o qual deveria ser terrível. Uma flecha no olho, que chega a impedir a pessoa de falar, podemos imaginar as profundidades atingidas por ela e quais os efeitos causados.

Como crianças, abandonados aos cuidados de Maria Santíssima

Passo a comentar Nossa Senhora sob o título de Auxiliadora dos Cristãos. Por mais evidente que seja, há ocasiões em que as coisas óbvias devem ser lembradas.
Auxiliadora dos Cristãos é a invocação de Nossa Senhora enquanto tendo a missão, a vontade e o hábito de socorrer os cristãos. Cada um desses conceitos: missão, vontade e hábito, merece um comentário.
Primeiro, a missão. Maria Santíssima foi criada para ser Mãe de todos os cristãos, de forma especial, e de todos os homens, de modo geral. Ela tem essa incumbência, entregue pela Providência a todas as mães, de velar por seus filhos. Esse encargo não deve ser visto como o da mãe junto ao filho crescido. Por mais respeitável e dileta que seja a figura materna em todas as idades do homem, há uma fase na qual ele carrega a responsabilidade de seu próprio destino, inclusive protege a sua mãe mais do que é protegido por ela. Porém, nós devemos ver as nossas relações com a Santíssima Virgem não como a de um adulto com sua mãe, mas como a de uma criança. Porque o papel d’Ela junto a nós é este.

Como explicar isso sendo algo tão contrário à piedade moderna, da concepção antipaternalista, do indivíduo evoluído, amadurecido, “desalienado”? O que estou dizendo, do ponto de vista hodierno e revolucionário, é uma barbaridade. Entretanto, é o melhor suco da piedade católica nesse gênero de assuntos.
O ser humano está nesta Terra em estado de prova e de luta, no qual sua alma vai se desenvolvendo para a maturidade plena a ser atingida no momento da morte. Vistos do Céu, somos como crianças em formação. A nossa verdadeira idade adulta é aquela na qual Deus colherá a nossa alma, pois aí teremos alcançado – se formos fiéis à graça – a perfeição para a qual fomos criados. De maneira que, desde o aspecto sobrenatural, a vida terrena é um educandário, e a maturidade é a morte. Nossa Senhora nos vê, por conseguinte, como espíritos em evolução.
Coloquemo-nos na perspectiva da sociedade contemporânea, com todos os desastres, as desordens, os desregramentos morais e o caos nela existentes, e perguntemo-nos qual a impressão transmitida por ela ao ser analisada por um bem-aventurado, o qual vê Deus face a face e está confirmado em graça. É tal a precariedade, a incerteza, a debilidade e o desatino do gênero humano, que, considerado pelos Anjos e Santos, ele é uma criança de maus bofes, mal encaminhada.
Compreendemos, portanto, que a Virgem Maria tenha para conosco a missão que se tem para com um filho bem pequeno, dando uma assistência inteira, ajudando em todas as horas, protegendo de todos os modos.
Do alto do Céu Maria Santíssima tem constantemente presente a existência de cada um daqueles que estão na Terra, no Purgatório, como também dos que se encontram na morada celeste. A cada instante Ela tem conhecimento simultâneo e perfeito de todos.

Nossa Senhora ama a cada um como sendo filho único

De outro lado, Ela ama a cada um como nunca uma mãe terrena amou seu filho. Não conseguimos medir as solicitudes da Santíssima Virgem, como Ela acompanha, reza, obtém graças e guia a vida de cada um. E faz isso de maneira tal como se aquele fosse o único a existir; e sobre esse ponto eu gostaria muito de fazer uma insistência.
Quando rezamos para Nossa Senhora, temos a impressão de que Ela olha para todos, como para uma multidão e, assim sendo, mal discerne a cada um. Quando chega de nossa parte um brado muito angustiado, Ela pode prestar um pouco mais de atenção. Mas fora disso, aquilo se perde no tumulto da humanidade e dos séculos.
Essa visão é completamente antiteológica e falsa, a ponto de quem sustentasse isso não poderia lecionar Catecismo, de tal maneira o contrário é elementar. A impostação de alma que deveríamos ter ao nos dirigirmos à Virgem Maria é, antes de tudo, nos lembrarmos disso: Ela me vê, conhece e ama como se existisse só eu.
Suponhamos que aparecesse nosso Anjo da Guarda e nos dissesse: “Nossa Senhora irá parar, durante uma hora, de atender as orações do mundo inteiro, para olhar só para você. No universo inteiro se fará silêncio. E vai ser apenas a sua súplica que subirá a Ela e as graças d’Ela descerão para você”. Em primeiro lugar, nós ficaríamos para lá de comovidos. “Como é possível isso? Que honra! Eu não mereço! Eu tenho medo…! Mas, de outro lado, que maravilha!” Enfim, produziria inúmeras reações.
Todavia, isso se dá sempre. Quando rezamos em conjunto, é como se cada um o fizesse sozinho e o universo inteiro tivesse parado, e Ela estivesse prestando atenção só em um. Eu acho indispensável termos isso bem fincado na alma, do contrário não há piedade mariana viva e sincera. Fica-se apenas no esquema pseudoteológico, limitado, sem voo nem realidade.
De fato, se Nossa Senhora, durante uma hora, abandonasse tudo para olhar só para um, o universo ruiria nessa ocasião, porque ele todo vive do olhar e da proteção d’Ela, sendo Ela a Medianeira de todas as graças de Deus, papel central e contínuo. Essa é a missão.

Completo desinteresse do autêntico amor materno

Discorramos agora sobre o conceito vontade.A Virgem Maria não é infinita, é mera criatura, mas insondavelmente perfeita. Não temos ideia de como é a excelência d’Ela. Ora, uma pessoa perfeitíssima ama com amor perfeitíssimo sua própria missão. Basta Deus ter mandado para Ela querer por inteiro. Mas não é só isso. Nossa Senhora quer bem a cada um de nós individualmente, do modo como nós somos. Com aquela espécie de desinteresse do amor materno autêntico, no qual a mãe não ama o filho por causa da carreira, nem do auxílio, nem de nada disso, mas porque ele é ele.

Tudo quanto uma mãe dedica de bom em relação ao fruto de suas entranhas, Maria Santíssima tem de modo inimaginável por nós. Ela gosta de nos olhar, de nos querer bem e de ser querida por nós. Em Deus, é claro. Ou seja, na medida em que formos conformes ao Divino Artífice ou possamos nos converter para Ele. É assim que Ela nos quer.
Quando nos ajoelhamos diante de uma imagem, ou até mesmo quando oramos interiormente, devemos ter a convicção de que esse ato é grato a Ela. Isso é assim mesmo se estivermos em estado de pecado, pelo desejo que Ela tem de nos tirar dessa via. Por tudo isto Ela tem a vontade de nos amparar. Quando uma mãe tem esse desejo em relação ao filho, ela quer assisti-lo de todo jeito, de qualquer modo, e a todo momento.

Liberdade filial, característica do verdadeiro devoto da Santíssima Virgem

Por fim, Maria tem o poder de nos ajudar a todo instante, nas coisas grandes, sobretudo na vida espiritual, para nos santificarmos, para servirmos a Igreja, a Causa Católica. Ela nos favorece também em nossas necessidades, inclusive pequenas. Portanto, um comprovado devoto de Nossa Senhora pede-Lhe qualquer coisa, as menores que queira, por exemplo, estando à espera de um táxi, pedir que este venha logo. Ele deve estar continuamente implorando tudo, desde que convenha para sua salvação e santificação.
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A Santíssima Virgem é tão boa, que podemos até dizer o seguinte: “Minha Mãe, dai um jeito de tal coisa convir à minha santificação, porque eu a estou querendo muito”. Pois devemos possuir uma total liberdade filial para com Ela, sem nada de hirto. Se Ela não nos atender é porque nos dará outra coisa melhor do que a pedida.
Conto um episódio da vida do grande Dom Chautard. Ele encontrou-se certa vez com Clemenceau, político francês, de muitíssima personalidade, muito inteligente, contudo, muito anticlerical.
Sabe-se que os anticlericais odeiam de modo peculiar os contemplativos, por os acharem inúteis. Com base nesse pressuposto, podemos conceber o contato entre ambos: Clemenceau, chamado “o Tigre” pelo jeito e pela força de personalidade, e Dom Chautard, que hipnotizava até leões, sendo isso histórico na vida dele.
No encontro, começaram a conversar e Dom Chautard contou todas as suas ocupações. Então, Clemenceau lhe disse:
— Mas o senhor precisa me ensinar como encher tanto o tempo, porque eu não consigo pôr todas as minhas ocupações dentro do dia e o senhor consegue dispor tantas dentro do seu.
Dom Chautard respondeu:

 

— Senhor Ministro, é muito fácil: se o senhor acrescentar a todas as suas ocupações o rezar todo dia, quinze minutos, um terço bem rezado, dará tempo para tudo, como dá para mim.

Isso pareceria uma afronta. Pois bem, o Tigre engoliu a provocação do domador. Não disse nada. Para propor a um anticlerical de rezar o terço todo dia… Não se pode cogitar algo de mais ousado, sobretudo se considerarmos como era o anticlericalismo do tempo de Clemenceau: um devora-frades horroroso.
Nesse desafio, o qual tinha qualquer coisa de hercúleo, entrava uma realidade: todo mundo vive no corre-corre, com falta de tempo. Se rezar mais, sobra mais tempo para os afazeres; os problemas se resolvem com menos enguiço, menos encrenca, se arranjam melhor. Para tudo se consegue tempo por sermos sustentados por Nossa Senhora até nas coisinhas. É questão de pedir com empenho.

O melhor de seu amor, Maria reserva para os lutadores da Fé

Aí está Nossa Senhora Auxílio dos Cristãos. Entretanto, o que significa a palavra “cristãos”?
Há uma tese de Teologia da História, famosa e admitida por todos os autores: o mundo existe para os bons e os outros existem pela intenção de Deus que eles acabem sendo bons. No entanto, o centro da História, por onde ela é governada, são os eleitos.Por conseguinte, a Virgem Maria é sobretudo Mãe dos cristãos, e por cristão devemos entender o católico apostólico romano. Em relação aos outros, Ela é Mãe para os trazer à Igreja ou para os salvar. Mas o melhor de seu amor materno é para os católicos, para os que professam a verdadeira Fé.
Se isto é assim, o que dizer do afeto d’Ela para com aqueles que dedicam a vida ao serviço da Religião? Sobretudo em uma época de apostasia universal, inclusive dentro da Igreja? Já não é uma prova de predileção ter recebido esse chamado, mesmo não merecendo? E, além disso, ser conservado nessa epopeia, dádiva que desmerecemos de tantos modos? Entretanto, Ela nos deu isto.
Consideramos um privilégio o fato de São João Evangelista ter estado ao pé da Cruz. Pois bem, ser filhos inteiramente ortodoxos dentro da Igreja, sem pacto nenhum com a Revolução, em luta contra ela, perseguidos por ela, é estar ao pé da Cruz numa hora de abandono como nunca houve desde que Nosso Senhor morreu, visto que nunca a Fé foi tão negligenciada como em nossos dias. De maneira que, quando dirigimos preces a Nossa Senhora, nós deveríamos nos considerar ao pé da Cruz, com o Divino Redentor agonizante e sua Mãe Santíssima tendo nos atraído para aquela solidão e para a participação naquela dor.
Quanta coisa nos atreveríamos a pedir nessa circunstância! Quanto perdão, quantas graças! É assim que devemos nos ver.

Recorrer é corresponder à solicitude de Deus

Uma última consideração: O bom ladrão, como diz Santo Agostinho, roubou o Céu. Foi o primeiro Santo a ser canonizado. Como ele obteve essa indulgência? Teologicamente é certo: pela oração de Maria Santíssima. Por ser Ela a Medianeira universal, só recebemos graça por meio d’Ela. Se ele conseguiu isto, quanto mais nós alcançaremos para a Santa Igreja, para nós e tudo o mais!
Isto devemos guardar e tomar o hábito de lembrar antes de rezar a Ela. Preparar o espírito e passar o dia inteiro suplicando. Quando não estivermos recitando as orações diárias, façamos jaculatórias. Então nossa alma encontrará a paz e teremos correspondido, de algum modo, à solicitude de Deus ao nos ter outorgado a Santíssima Virgem como auxílio. Com isso terminamos nossa meditação sobre Nossa Senhora Auxiliadora.v

(Extraído de conferência de 24/5/1969)

1) GARNIER, François. Journal de la bataille de Lepante. Éditions de Paris, 1956.

 

 

 

 

Deus deseja a pompa dentro da Igreja

Lendo as narrações da Légende Dorée sobre São Basílio Magno, temos uma sensação de distensão. Nossos olhos, exaustos de pousarem em coisas monstruosas deste século, fixam-se naqueles fatos meio encantados e maravilhados, e uma espécie de hino de admiração começa a subir de dentro de nós.

 

A propósito da festa de São Basílio Magno, bispo e doutor da Igreja, temos a comentar os dados tirados da famosa Légende Dorée, de Jacques de Voragine1.

Coluna de fogo que tocava o céu

Através de uma visão, o eremita chamado Efrém conheceu o grau de santidade que Basílio havia atingido. Em êxtase, Efrém viu uma coluna de fogo que partia da cabeça do Santo e tocava o céu, e ouviu uma voz vinda do alto dizer: “O grande Basílio é como essa imensa coluna que você vê.” Ele foi então à cidade no dia da Epifania para conhecer tão notável personagem. Ao vê-lo vestindo uma estola branca e caminhando majestosamente com seus clérigos, disse consigo mesmo: “Tive trabalho à toa em vir, pois esse homem rodeado de honrarias não pode ser aquele que apareceu na visão. Se nós, ermitãos, que carregamos o peso do dia e do calor, nunca alcançamos nada semelhante, como ele, cheio de tais honrarias, pode ser uma coluna de fogo?” Basílio, que por revelação soube dos pensamentos de Efrém, fez com que ele fosse vê-lo.
Levado diante do bispo, o eremita viu uma língua de fogo que saía de sua boca, e pensou: “Basílio é grande mesmo, é, sim, uma coluna de fogo. O Espírito Santo realmente fala pela boca de Basílio.” Dirigindo-se a ele, Efrém disse:
— Senhor, peço-lhe a graça de me fazer falar grego.
Basílio:
— Você pede uma coisa difícil.
Mas orou por ele, que imediatamente passou a falar grego.
Certa vez, outro eremita viu Basílio andando com trajes pontificais e desprezou-o, pensando consigo mesmo que aquele homem gostava demais de pompas daquele tipo. Uma voz então se fez ouvir, dizendo: “Você gosta mais de acariciar a cauda da sua gata do que Basílio aprecia seus ornamentos.”

As portas de uma igreja se abrem, confundindo os hereges

O Imperador Valente, defensor do arianismo, tirou uma igreja dos católicos para dá-la aos arianos. Basílio foi ter com ele e disse:
— Imperador, está escrito: “A majestade real brilha no amor à justiça. O julgamento do rei é a justiça.” Por que, então, ordenastes de livre e espontânea vontade que os católicos fossem expulsos dessa igreja e que ela fosse entregue aos arianos?
O Imperador respondeu:
— Basílio, não é conveniente que me faleis assim.

 

Ele replicou:
— Não me importo de morrer pela justiça.
Então o cozinheiro-chefe do Imperador, chamado Demóstenes, partidário dos arianos, tentou intervir, mas Basílio disse-lhe:
— Sua tarefa é cuidar dos guisados do Imperador, e não resolver questões de Fé.
O que o deixou confuso e o fez calar-se.
Disse então o Imperador:
— Basílio, ide e arbitre o problema entre os dois partidos, mas sem se deixar influenciar pelas opiniões do povo.
Ele propôs a católicos e arianos que se mandasse fechar as portas da igreja, nelas colocar os selos de cada um dos partidos, e aquele que conseguisse abrir as portas através de preces teria a posse da igreja. A proposta foi aceita por todos. Os arianos rezaram durante três dias e três noites, e quando chegaram diante das portas da igreja elas não estavam abertas. Então Basílio, à frente de uma procissão, foi até a igreja e, depois de ter feito uma prece, tocou levemente as portas com seu cajado pastoral dizendo: “Deixem o caminho livre, poderes celestes, abram-se, portas eternas, a fim de deixar entrar o Rei da glória.” E imediatamente as portas se abriram, todos entraram dando graças a Deus, e a igreja ficou novamente na posse dos católicos.

Uma legenda que correspondia às aspirações de santidade

Não são fatos rigorosamente históricos porque a Légende Dorée é constituída de narrações semilegendárias. Alguns dos fatos ali narrados aconteceram, outros não; e dentre os que aconteceram, nem todos são narrados como se passaram, mas foram embelezados pela imaginação popular.
Sem embargo, são fatos lindos que têm um grande valor espiritual, pois indicam como a piedade daqueles povos cheios de devoção ornou a figura dos Santos, imaginou como Deus deveria agir, e modelou uma legenda que correspondia a suas próprias aspirações de santidade. E isso não pode ser tido em conta de mentira, porque não é propriamente mentira, mas um devaneio, uma história contada de um para outro já sabendo que é estilizada, uma espécie de ficção maravilhosa narrada em louvor do Santo.
As narrações referentes a São Basílio são impregnadas daquela poesia e daqueles problemas do Oriente dos primeiros tempos. Esse Santo viveu numa época de heresias. A heresia dos arianos devastava, naquela época, a Igreja Católica, e São Basílio estava numa luta tremenda contra eles e contra o Imperador, porque em geral os imperadores de Bizâncio davam apoio aos arianos.
A razão disto estava em que esses potentados queriam mandar na Igreja, e os bispos arianos se prestavam a isso, enquanto na Igreja Católica não podiam mandar, porque segundo a Doutrina Católica a Igreja é uma sociedade perfeita e soberana, ou seja, na sua esfera própria – que é a espiritual; e a temporal, em matéria de Fé e Moral – ninguém manda nela. Os imperadores, encontrando na Igreja um dique para o seu absolutismo, evidentemente procuravam persegui-la. Era um transbordamento do orgulho humano.
Nesta época florescia na Igreja uma grande graça, a do eremitismo, entendido no seu rigor. O eremita verdadeiro é aquele que vive inteiramente só, numa gruta, num deserto, em geral não em lugares maravilhosos, mas naqueles que não atraem muito a imaginação, não seduzem muito a fantasia nem agradam os sentidos. O eremita vive ali, sozinho, cuidando apenas do louvor de Deus.
Esse estado eremítico é muito conforme à índole do oriental, porque este, com a alma felizmente cheia de fantasia, de imaginação, no sentido reto da palavra, sabe ver o que tantas vezes o ocidental, sobretudo o “hollywoodizado”, não sabe ver: as mil maravilhas do silêncio, os mil deslumbramentos da solidão.
Quando a pessoa vive isolada, seu espírito adquire grandeza, toma voo. Ela não se preocupa a não ser com coisas de ordem superior e então se aproxima de Deus.
O eremita que rola uma pedra à entrada da gruta onde mora para não entrar uma fera durante a noite, mas que também pode ser surpreendido por uma cobra, e corre os riscos do homem sozinho, exposto à luta contra a natureza; o eremita que jejua, se penitencia, se macera, este é o eremita perfeito cuja figura nos aparece aqui.

Então, nesse Oriente cheio da desolação do arianismo, ao que se somava a pretensão dos gregos de Constantinopla de estar em oposição a Roma, inventando doutrinas rebuscadas para opô-las à simplicidade sacrossanta da Doutrina Católica; nesse Oriente também repleto do deslumbramento do eremitismo, com uma explosão de santidade contrastando com o horror da heresia; é nesse Oriente com aspectos variados que nós vemos aparecer a grande figura de São Basílio.

O apego do homem não está necessariamente na proporção do que ele possui

o mal a figura de São Basílio, alguns eremitas. Com frequência aconteceu na Igreja que, quando se preconiza muito o ideal de pobreza, alguns exageram isso e se voltam, à maneira de protestantes, contra a pompa da Igreja. Assim, por exemplo, pouco depois da morte de São Francisco de Assis alguns franciscanos deram origem à heresia chamada dos fraticelli, que era comunista, contrária à propriedade privada, a toda honra e pompa, e a todo o brilho da civilização.
Assim também encontramos nesta narração eremitas que, vivendo completamente na solidão e, portanto, não sendo servidos por ninguém, não dispondo de nenhuma pompa, fizeram este raciocínio errado: “Se eu, eremita, vivesse nessa pompa, perderia a minha alma; logo, aqueles que vivem nessa pompa perdem a alma deles.” A primeira parte do raciocínio é verdadeira, a segunda é falsa. Porque cada um salva a sua alma no caminho que Deus quer. E assim o eremita salva a sua alma no isolamento, mas outro que é levado a servir a Deus na pompa salvará a sua alma na pompa. Nem um nem outro pode escolher outro caminho por mera arbitrariedade.
Esses dois eremitas viram São Basílio servindo a Deus na sua grandeza como bispo, e duvidaram então da santidade dele.
O primeiro foi Efrém que viu, num êxtase, uma coluna de fogo a qual subia até o Céu e ouviu uma voz dizer: “Este é Basílio.” Ele foi procurar então o Santo. Chegou lá e encontrou um homem rodeado da pompa episcopal numa cerimônia eclesiástica e pensou: “Não pode ser.” Quer dizer, ele contrariou o que a visão disse a ele. “Por que esse homem vive nessa pompa?”
Ele vai falar com São Basílio e a Providência afetuosamente lhe concede uma graça pela qual compreendeu o quanto estava errado, e acaba por sair sabendo falar grego. Para que ele quereria falar grego não se sabe. É de se esperar que fosse para estudos, pois uma vez que o eremita não deve falar, supõe-se que seria para ler. Ademais, o Santo não lhe teria obtido uma graça para ele violar seu bom propósito de ser eremita. De maneira que se deve entender que ele recebeu essa graça para, compreendendo o grego, conhecer os Padres e Doutores gregos, a versão grega do Evangelho, dos Atos dos Apóstolos.
Depois veio outro eremita e também teve um engano a esse respeito, julgando que São Basílio não era Santo. E a esse a Providência castigou de um modo que, entretanto, provoca um sorriso, mostrando que o apego do homem não está necessariamente na proporção do que ele possui.
São Basílio, embora rodeado de pompa, era desapegado. O eremita tinha uma gata pela qual tinha muito apreço. Então, enquanto fazia um juízo desfavorável a respeito do Santo prelado, ouviu uma voz que lhe dizia que ele gostava mais de acariciar a cauda da gata do que São Basílio apreciava seus ornamentos.

Duas psicologias muito bem expressas

Ainda que sejam casos inventados, são de um muito bom gosto, literariamente muito leves, que distraem a alma, fazem sorrir, e cheios de suco doutrinário. Porque os dois episódios resolvem o famoso problema da pompa dentro da Igreja e mostram que ela está de acordo com os desejos de Deus, e que uma pessoa pode santificar-se nessa pompa, quando é vontade do Criador que assim se santifique.
De outro lado, as finuras da alma humana estão muito bem expressas. O primeiro eremita possui um tipo de psicologia especial. Trata-se de um homem impressionável. Ele vê aquela coluna de fogo, fica muito impressionado, vai falar com São Basílio, tem uma impressão diversa e muda imediatamente de opinião. Pede logo uma graça inverossímil e Deus o atende. É um tipo de psicologia representado com muita finura.
Outro tipo de psicologia apresentado com finura é o do segundo eremita: sentimental, cansadão, sentado à porta de sua gruta, levando uma vida bem sossegada, sem amolação. Entra dia, sai dia, aquela tranquilidade, aquele sossego… Para divertir, uma gata que sabe dizer “miau”, mas não aborrece, não faz objeções, não traz problemas. Um animal que não temos que arrancar das garras do pecado e empurrar para os píncaros da vida espiritual, que se limita a comer alguma coisa que encontra no mato, pode ser uma companhia muito repousante.
Há gatos cujo temperamento é parecido com o de certos homens que se deixam agradar de todo jeito até a hora do arranhão. Isso existe. Mas creio que das menores ingratidões que um homem possa receber na vida é o arranhão de um gato. De maneira que se vê esse eremita adaptado à sua situação.
Então vem um aviso que toca no ponto psicológico diretamente, mas sem uma injúria, sem uma descompostura. É um caso que faz sorrir. Ele se lembra da sua gata e volta corrigido. Vejam como isso é bonito.

Cena grandiosa e profética

São Basílio é chamado diante do Imperador e discute com ele. Entra em cena o diretor da cozinha, que é muito mais do que ser um cozinheiro. Devemos pensar no luxo fabuloso dos imperadores bizantinos, nas grandes comilanças que eles faziam. Havia frequentemente banquetes. Portanto, um diretor de cozinha devia ser um homem bem entendido de gastronomia, de festas.
Ele quer fazer-se de zeloso diante do Imperador e se mete numa discussão onde não tinha nada que ver. São Basílio espirituosamente lhe dá uma resposta: “Você cozinhe comidas, não dogmas!”
É uma coisa prazenteira que se lê sorrindo, mas a lição está bem dada. Há um suco doutrinário, uma substância atrás disso.
Vem depois uma cena grandiosa, profética. Os fiéis da Religião Católica discutem com os ímpios, que constituem a seita ariana, pela propriedade de uma igreja católica que o Imperador tinha dado aos arianos.

O soberano confiou ao Santo a solução do caso. Então, segundo essa narração, São Basílio disse-lhes que selassem com seus respectivos lacres as portas da igreja e rezassem.
Pode-se imaginar a cena magnífica, a tranquilidade de São Basílio e a torcida dos arianos. Estes rezam, rezam, rezam e… nada! São Basílio com mitra, uma grande casula, um báculo, barba branca, olhos serenos, caminhando à frente de um clero piedoso. E todos cantando as ladainhas. Tem-se a impressão de que quando eles chegaram perto, as portas da igreja já estavam para se abrir. Ele se antecipa e, num gesto majestoso, com a ponta do báculo apenas toca na porta e esta se abre. Os hereges foram confundidos e o coro entra cantando, seguido de uma grande multidão de fiéis.

Se essas coisas não se passaram assim, inúmeras outras transcorreram, e as circunstâncias eram tais que podiam ter se passado dessa forma. De maneira que há um resíduo de verdade nisso, até mais verdadeiro do que a narração histórica. Porque aponta para certa maravilha das almas, que é a realidade histórica mais profunda. Pode não ter havido o fato externo, mas houve o fato profundo que é aquele tipo de piedade, de espírito sobrenatural presente por detrás disso.
Quando lemos essas narrações da Légende Dorée, temos uma sensação de distensão. Nossos olhos, exaustos de pousarem em coisas monstruosas, em toda espécie de sujeira e de borra deste século, fixam-se nisso meio encantados e maravilhados, e uma espécie de hino de admiração começa a subir de dentro de nós. Não é verdade que, sendo obrigados a interromper a leitura, sentimos uma espécie de desolação, como uma alma que visse um pouquinho do Céu e fosse obrigada a voltar para o Purgatório?

Admiração humilde e desinteressada

sso? É a seguinte: se nós fôssemos tais que conseguíssemos fixar o nosso espírito duravelmente nesse estado de admiração; se gostássemos, acima de tudo, de praticar a virtude da admiração, que desinteressadamente se detém, fica pensando e se maravilha com esses episódios; se tivéssemos dentro da alma um paraíso permanente, uma alegria fixa, estável e contínua que nos acompanhasse, apesar de todas as tristezas, teríamos a certeza de que o fundo da realidade não são as coisas efêmeras que vemos, nem os aborrecimentos que essas coisas nos dão, mas é esse fundo de maravilha, essa ordem de coisas virtuosa, admirável, indescritível que existe na alma das pessoas verdadeiramente santas. Eis o encanto de nossa vida: fazer dessa contemplação nossa alegria humilde e desinteressada.
Humilde porque isto nos alegra, em grande parte, na medida em que vemos não ter nenhuma proporção conosco, pois é muito superior a nós, a ponto de nos sentirmos pequenos diante disso e termos a alegria de nos sentir assim, de nos entusiasmar com algo que é mais do que nós.
Desinteressada porque não temos um papel para representar dentro disso. Não vamos representar nenhum papel ao lado de São Basílio contra o Imperador. Estamos fora. Aqueles fatos não nos engrandecem, não trazem vantagem nenhuma para nós. Nós os contemplamos apenas porque eles são eles. Nós olhamos desinteressadamente para isso.
Este é o modelo da alma medieval. Aqui está um traço do modo de ser medieval que é muito mais do que uma descrição do temperamento – embora entre profundamente no temperamento –: a capacidade de se maravilhar humilde e desinteressadamente. É isso que está nessa disposição de alma.

A alma assim é verdadeiramente fiel, realmente agrada a Deus. É sobre uma alma assim que baixa o Espírito Santo. Porque esses são os humildes que serão exaltados. Os poderosos que serão depostos são aqueles que se agarram a uma porção de coisas – ainda que seja apenas o rabo de um gato – e que fazem disso o seu apego. Esses serão depostos, ou seja, destituídos das coisas a que se apegam. Os humildes, os desinteressados, pelo contrário, serão elevados.
Como se dá essa elevação? Da seguinte maneira: a alma com essa capacidade de se maravilhar humilde e desinteressadamente é como que um mata-borrão. Toda perfeição que toca nela, ela inala, absorve. Aquilo que nós admiramos desinteressadamente nos modela e nós tomamos algo dessa maravilha.
A maravilha contemplada torna o indivíduo maravilhoso. Nada é mais bonito, não há maravilha mais autêntica do que a alma verdadeiramente maravilhável. Essa tem o amor de Deus, porque o amor de Deus é isto: maravilhar-se humilde e desinteressadamente com as coisas de Deus. Não só com as invisíveis conhecidas pela Fé, mas com as visíveis que o Criador colocou por todos os lados.
Eis, portanto, o que devemos procurar e pedir a Nossa Senhora, que foi a mais maravilhável das almas. Basta considerar que foi Ela quem teve mais de perto a maior maravilha que pousou nesta Terra: Nosso Senhor Jesus Cristo.

Megalomania: um defeito que está na linha oposta ao maravilhamento

Nosso Senhor disse que não se deve atirar pérolas aos porcos (cf. Mt 7, 6). Não se pode dar coisas maravilhosas para almas incapazes de se maravilhar. Deus deu o Menino Jesus a Nossa Senhora para viver no seio d’Ela, passar sua infância ao lado d’Ela, e Ele passou trinta anos maravilhando-A, porque Ela era dotada de uma potência de maravilhar-Se que estava na proporção dessa Maravilha.
Por aí compreendemos a capacidade de maravilhar-Se de Nossa Senhora. Resultado: todas as gerações A chamarão maravilhosa, porque quem A chama Bem-aventurada, chama-A maravilhosa. Por quê? Pelo desinteresse com que Ela amou, pela humildade com que admirou. Por isso Se tornou admirável.
Aqui está o mecanismo dessa virtude tão fundamental para a alma contrarrevolucionária, para o espírito católico.
Um dos muitos defeitos que estão na linha oposta ao maravilhamento é a megalomania. O megalômano não se maravilha com nada a não ser consigo. Quando vê algo de maravilhoso fora dele, irrita-se, olha um pouquinho e depois se aborrece, porque ele quer estar no centro de todas as coisas. Este é o contrário do homem verdadeiramente maravilhável.
Que essa citação da Légende Dorée nos sirva de ocasião para pedir a Nossa Senhora que nos dê essa faculdade de alma pela qual nos maravilhemos com o que está acima de nós, humildemente, amando aquilo precisamente por ser superior a nós, e admirando desinteressadamente.v
(Extraído de conferência de 19/6/1971)

Escudo da Igreja e gládio contra os demônios

Suscitado por Deus para precipitar no inferno os demônios, proteger a Igreja e os homens contras as investidas diabólicas, São Miguel Arcanjo, cavaleiro arquetípico da milícia celeste, é escudo e gládio em defesa dos planos divinos.

 

A respeito de São Miguel Arcanjo temos uma pequena nota:
São Miguel, Príncipe da milícia celeste, na batalha que houve no Céu combateu os anjos rebeldes. Compete-lhe continuar essa luta para nos livrar do demônio. Dele dependem os Anjos da Guarda. É o Anjo protetor da Igreja e o que apresenta ao Padre Eterno a oblação eucarística.

Cavaleiro leal, forte, puro e vitorioso

Eu chamo a atenção para o fato de que São Miguel comandou a luta contra o demônio e o precipitou no inferno e, além disso, é o chefe dos Anjos da Guarda dos indivíduos e das instituições. Ademais, é ele mesmo o Anjo da Guarda da Instituição das instituições, que é a Santa Igreja Católica Apostólica Romana.
Ele tem, portanto, uma função tutelar a respeito da qual podemos nos perguntar que relação há entre a sua missão, derrubando no inferno os que se levantavam contra Deus Nosso Senhor, e a proteção por ele dispensada à Igreja e aos homens neste vale de lágrimas, nesta arena que é a vida.
Estas duas missões se concatenam. São Miguel defendeu a Deus que quis servir-Se dele como seu escudo contra o demônio, e quer que ele seja também o escudo da Santa Igreja e dos homens contra as investidas diabólicas. Porém, um escudo que é, ao mesmo tempo, um gládio. Portanto ele não se limita a defender, mas derrota e precipita no inferno. Eis a dupla missão de São Miguel.
Por causa disso São Miguel era considerado na Idade Média como o primeiro dos cavaleiros, o cavaleiro celeste. Ideal e perfeitamente leal, forte, puro, vitorioso como um cavaleiro deve ser, pondo toda a sua confiança em Deus e em Nossa Senhora.

É, portanto, esta figura admirável de São Miguel que, vista assim, devemos considerar enquanto sendo nosso aliado natural nas lutas, porque não queremos ser outra coisa senão homens que executam, no plano humano, a tarefa de São Miguel Arcanjo, ou seja, defender a honra de Deus, a glória de Nossa Senhora, a Igreja Católica, a Civilização Cristã, mas em nível de contraofensiva, de maneira a prostrar no chão o império do demônio e a estabelecer nesta Terra o Reino de Maria.
Há, por conseguinte, uma afinidade enorme com nossa missão e procedem muito bem aqueles dentre nós que queiram constituir São Miguel Arcanjo seu especial patrono.

“Para a frente, não esmoreçam, ataquem!”

Em Anna Catarina Emmerich1, Visões e Revelações completas, encontramos os seguintes dados a respeito de São Miguel:
Vi novamente a Igreja de São Pedro com sua grande cúpula. Sobre ela resplandecia o Arcanjo São Miguel vestido de cor vermelha, tendo uma grande bandeira de combate nas mãos.
A Terra era um imenso campo de batalha.
Os verdes e azuis lutavam contra os brancos. Estes, sobre os quais reluzia uma espada de fogo, parece que iam sucumbir.
Nem todos sabiam por qual causa combatiam.
A Igreja era de cor sangrenta como a roupa do Arcanjo.
Ouvi que me diziam: “Terá um Batismo de sangue. A Igreja vai ser purificada no sangue do martírio e da perseguição.” Quanto mais se prolongava o combate, mais se apagava a viva cor vermelha da Igreja e se tornava mais transparente.
A purificação ia fazendo dela algo de diáfano, de puro.
O Anjo desceu e se aproximou dos brancos. Estes adquiriram grande coragem sem saber de onde lhes vinha. O Anjo derrotou os inimigos que fugiram em todas as direções. A espada de fogo que estava sobre os brancos desapareceu.
Era uma espécie de ação diabólica, de maldade, uma coisa assim que oprimia os brancos.Em meio ao combate, aumentava o número dos brancos. Grupos de adversários passavam para eles. E numa ocasião passaram em grande número. Sobre o campo de batalha havia, no espaço, legiões de Santos que faziam sinais com as mãos, diferentes uns dos outros, porém animados do mesmo espírito.

São sinais que exortavam: “Para a frente, avancem, não esmoreçam, ataquem!”, enquanto os bons combatem embaixo sob esse sopro. É, portanto, o Céu inteiro aberto para os bons, e estes vencendo os maus para a implantação do Reino de Maria.

Senso da bem-aventurança

Temos também uma ficha de Dom Guéranger a respeito da vocação contemplativa dos Anjos:
Assim, a Igreja considera São Miguel como o mediador de sua prece litúrgica. Ele se mantém entre a humanidade e a divindade. Deus que distribui, com uma ordem admirável, as hierarquias visíveis e invisíveis, emprega por opulência, para louvor de sua glória, o ministério desses espíritos celestes que contemplam sem cessar a face adorável do Pai, e que sabem, melhor do que os homens, adorar e contemplar a beleza de suas perfeições infinitas.
Mi-Ka-El: quem como Deus? Este nome exprime por si só, em sua brevidade, o louvor mais completo, a adoração mais perfeita, o reconhecimento mais inteiro da transcendência divina e a confissão mais humilde do nada da criatura.
Modelo, portanto, de humildade. Porque quem exclama que ninguém é como Deus, afirma que não é nada. E esta é a humildade perfeita.
A forma de humildade própria do cavaleiro é esta: Deus é tudo e ninguém é nada. Agora, a partir disto vamos conversar.

Também a Igreja da Terra convida os espíritos celestes a bendizer o Senhor, cantá-Lo, louvá-Lo e bendizê-Lo sem cessar. Esta vocação contemplativa dos Anjos é o modelo da nossa, como nos faz lembrar o belo prefácio do Sacramentário de São Leão: “É verdadeiramente digno render graças a Vós, que nos ensinais por vosso Apóstolo que nossa vida é dirigida aos Céus; que com benevolência quereis que nos transportemos em espírito ao lugar onde servem esses que veneramos, especialmente dirigirmo-nos para essas alturas na festa do Bem-Aventurado Miguel Arcanjo.”
Aqui está um traço da devoção aos Anjos que é preciso muito notar. Os Anjos são habitantes da corte celeste, onde vivem na eterna contemplação de Deus face a face. E as visões de todos os grandes místicos nos referem as festas que há no Céu e que são verdadeiras solenidades. Não são imagens ou quimeras, mas autênticas festas em que Deus vai manifestando sucessivamente suas grandezas e eles aclamam com triunfos novos, que não terminam jamais.
Há uma felicidade celeste, um senso de que é a pátria de nossa alma e propriamente a ordem de coisas para a qual fomos criados, que corresponde de modo pleno a todas as nossas aspirações. Algo desse senso da bem-aventurança celeste pela contemplação face a face de Deus, que é a perfeição absoluta de todas as coisas, pode e deve passar para a Terra. Nas épocas de verdadeira Fé alguma coisa dessa felicidade filtra, algo dessa piedade é sentida e comunicada pelas almas mais notavelmente piedosas, como um tesouro comum para toda a Igreja.

Desejo das coisas celestes

É isto que tanto falta hoje em dia, de maneira que não se tem a ideia de uma felicidade celeste. E sem essa ideia não se possui apetência do Céu, e as pessoas se chafurdam na pura apetência dos bens terrenos. Mas se pudessem compreender por um instante o que é uma consolação, uma graça do Espírito Santo, esse tipo de felicidade que a consideração dos bens celestes comunica, então começaria o desapego dos bens da Terra, viria a compreensão de como tudo é transitório, como há valores que estão acima das coisas terrenas e que tornam a Terra toda um pouco de poeira.
É exatamente isso que os Santos Anjos podem nos obter, eles que estão inundados dessa felicidade, a qual de vez em quando se comunica sob esta forma aos Santos. Há um modo de fenômeno místico que se manifesta como um concerto muito longínquo, de uma harmonia maravilhosa e extraterrena. Santa Teresinha do Menino Jesus teve isto e ela até menciona na História de uma alma. É um pouco do eterno cântico dos Anjos que chega, por esta forma, aos ouvidos dos homens para lhes dar a apetência das coisas do Céu.
Em nossa época esta apetência falta fabulosamente. As pessoas só se interessam e se empolgam pelas coisas da Terra, pelo dinheiro, pela politicagem, pelo mundanismo, pelas trivialidades do noticiário de todos os dias, mas não se empolgam pelos assuntos elevados, doutrinários e, menos ainda, pelas coisas especificamente celestes.
Vamos pedir aos Anjos que nos comuniquem o desejo das coisas celestes de que eles estão inundados. Esta é uma excelente intenção para ser apresentada na festa de São Miguel Arcanjo, junto com o pedido de que ele nos faça seus imitadores, perfeitos cavaleiros de Nossa Senhora nesta Terra.v

(Extraído de conferência de 28/9/1966)

1) Anna Catarina Emmerich (*1774 – †1824), terciária agostiniana alemã, beatificada em 2004. Recebeu os estigmas da Paixão e foi favorecida por muitas revelações místicas sobre Nosso Senhor Jesus Cristo, Maria Santíssima e outros temas religiosos.

Modalidades de sofrimento

Os sofrimentos da alma, por serem os mais penosos, podem levar a pessoa a buscar refúgio na irrealidade que, ao invés de aliviar os padecimentos, agrava-os, tornando o ser humano escravo de suas próprias mentiras.

A respeito do sofrimento da alma haveria ainda algo a acrescentar e que é o seguinte:
Sendo esta Terra um vale de lágrimas, a vida humana passa-se de maneira a fazer o homem sofrer tanto do ponto de vista físico, material, como do espiritual, conforme as várias formas de sofrimento de que tratei.

Dores causadas pela realidade e pela irrealidade

Na existência do homem o jogo de seus anseios, a finalidade a que ele se propõe ou para a qual Deus o destina — na medida em que ele conhece, segue, deseja ou não essa finalidade — fazem com que, para todo ser humano, viver acabe sendo uma batalha terrível.

Porque há uma irremediável desconexão entre o que ele quereria como satisfação, como prazeres de alma, inclusive legítimos — não estou me referindo apenas aos ilegítimos —, e aquilo que de fato a vida lhe dará. E ele tem que sorver o cálice duríssimo na vida que é o enigma de cada homem.

Adivinhar isso em outro homem é extraordinariamente difícil. E, em geral, o homem carrega esse seu problema de tal maneira que os outros imaginam que ele tenha todos os problemas, menos aquele que realmente tem. Quer dizer, ele carrega isso no isolamento.

Essa é propriamente uma dor de alma e não do corpo. A dor do corpo pode aumentar a da alma. É muito pior ter aborrecimento acrescido de uma dor ciática, do que ter só o aborrecimento. A dor ciática pode agravar muito. Mas, de fato, o aborrecimento é tanto mais, que a dor ciática não é nada em comparação com ele.

Nessa dor de alma entram os sofrimentos que a vida impõe por causa da realidade, e depois as dores que vêm para o homem por motivo da irrealidade.

Quando o homem não quer ir para onde Deus deseja, ele se põe a fazer imagens erradas das coisas e forma uma ideia irreal da vida. E ruma para uma meta que não é aquela para a qual ele deveria caminhar, e que não é realmente a dele. E se faz uma espécie de vida de mentira dentro dele e em torno dele, que o atormenta enormemente mais do que a realidade que ele seguiria, cheia de contradições, de absurdos, de fricções, etc. Mas, de outro lado, ele se convence cada vez mais de que ele não aguenta esta vida tão dura, a não ser carregando as mentiras. As mentiras que são uma causa potentíssima do sofrimento, ele julga que, se não as carregar, não suporta.

Então, ao mesmo tempo ele aguenta a causa do sofrimento e esta lhe produz efeitos pelos quais ele se julga necessariamente preso à causa. Isso forma um círculo vicioso que leva o indivíduo não se sabe até onde.

São Gregório VII: semelhante a um toureiro que investe contra o touro

Uma figura histórica pela qual tenho um respeito enorme é São Gregório VII. O que mais gosto nele é ver como ele viveu dentro da verdade. Isso é também assim nos outros Santos, mas nele esta característica fica particularmente clara aos meus olhos.

Se ele não visse inteiramente de frente a situação na qual se encontrava, poderia se tapear, levar uma vida mais ou menos cômoda como Papa, e até iludir-se, fazendo várias coisas boas. Mas ele não teria cumprido o seu dever.

Empolga-me e acho uma maravilha vê-lo à maneira de um toureiro que entra diretamente na arena e faz aquele lance com a capa e a espada por cima do touro, como a dizer:

“O caso que eu tenho é um só: com o Império(1). O próprio assunto dos sarracenos se resolverá se eu solucionar o caso do Império. Como seria agradável se eu pudesse combater os meus inimigos ostensivos. Tenho inimigos pendurados em mim e que são os meus filhos. E este meu filho a vários títulos primogênito, o Imperador do Sacro Império Romano-Alemão, está querendo me assassinar! Irei de encontro a ele e sustentarei a batalha. Verei o perigo inteiro como é, e lançarei a ele o contrário do que ele quer, de tal maneira que entre mim e ele não haverá paz possível.”

Vê-se nele um homem que em nada procurou iludir-se, em nada buscou um caminho que não era o seu, mas que olhou de frente.

Ele pediu auxílio para defender-se contra Henrique IV, e depois morreu exilado. Consta que, parafraseando o Salmo que diz: “Amas a justiça e odeias a iniquidade, por isso Deus te consagrou com o óleo da alegria”(2), São Gregório teria afirmado: “Amei a justiça e odiei a iniquidade, por isso morro no exílio!”

É o princípio axiológico(3) quebrado. Mas é um homem que não teve falsas dores de espírito em nada. Viu a coisa de frente!

Nosso Senhor Jesus Cristo fez exatamente isso: foi de encontro aos que O podiam matar e levar a obra d’Ele para a ruína. E Ele os enfrentou, ainda que desse embate saísse a solução anti-axiológica. Nisso estava a axiologia d’Ele.

Exemplo perfeito de amizade: os sete santos fundadores dos Servitas

Façamos agora a relação de tudo isso com almas muito especialmente chamadas. Ou essas almas avançam por cima de sua própria anti axiologia, e com coragem, ou não têm nada feito.

Quer dizer, devem compreender que, em vários episódios de sua vocação, esta vai lhes parecer anti axiológica, e precisam, apesar disso, continuar a avançar de qualquer jeito, mesmo para o absurdo e para a catástrofe, colocando sua confiança em Deus.

A alma que conserva qualquer nostalgia de tal alma irmã, no fundo espera de outra criatura o que ela só pode receber de Deus! Seja no terreno alma irmã homem-mulher, seja no terreno mais inocente, e por isso menos carregado de veneno, amigo a amigo. Não conseguirá! Ou Deus dá, ou não terá…

Para mim, o exemplo perfeito de amizade, que estou me lembrando no momento, é São Filipe Benício, um dos sete santos fundadores da Ordem dos Servos de Maria. Todos eles foram enterrados juntos, e as suas cinzas se misturaram. É uma coisa extraordinária!

As relações entre eles eram realmente admiráveis, mas não nesse sentido de uma alma que encontrou em outra o seu complemento. É algo diferente. É Deus que estava presente numa alma e vendo-Se também presente na outra, formou o amor que o Altíssimo tem a Ele mesmo. É outra coisa.

Esperar encontrar noutra criatura uma espécie de paraíso de contemplação em que a alma tem esse deleite, é inútil. Ou acha ali dentro Deus, então está certo, ou se encontrar apenas outra alma, deparou-se com um blefe. Garrafa vazia… É preciso compreender bem isso.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/11/1983)

1) Dr. Plinio se refere à contenda entre o Papa São Gregório VII e o Imperador do Sacro Império Romano-Germânico, Henrique IV. Esta luta, motivada pela questão sobre se as investiduras eclesiásticas poderiam ser conferidas pelo poder temporal, teve como alguns de seus pontos culminantes a excomunhão do Imperador, sua peregrinação ao castelo de Canossa para pedir perdão ao Papa e a posterior invasão de Roma, por Henrique IV, para tentar remover São Gregório VII e substituí-lo por um antipapa.
2) Sl 45, 8.
3) Termo derivado de “Axiologia”: ramo da Filosofia que estuda os “valores”, isto é, os motivos e as aspirações superiores e universais do homem, as condições e razões que dão rumo à sua existência, para os quais ele tende por insuprimível impulso da sua natureza.

Lumen honoris

A maior honra que o homem pode alcançar nesta Terra é a amizade com Deus, ou seja, o estado de graça. Partindo deste princípio, Dr. Plinio explica o que é honra e como cada nação da cristandade desenvolveu fórmulas e estilos de cortesia, respeito e honorificência

 

Honra é a forma particular de apreço que se deve àquilo que é excelente. A honra é distinta da aprovação. A simples aprovação é a declaração de que uma coisa está na altura de sua natureza, enquanto que a honra mostra a excelência de algo.

Nesta perspectiva, podemos distinguir na honra primeiramente um aspecto pelo qual a pessoa internamente percebe a sua própria excelência e tem para consigo próprio a noção do respeito que deve a si mesmo. Isso é especialmente agudo no católico, em virtude de dois pontos: o dogma do pecado original e o dogma, ou verdade de Fé, a respeito da vida da graça na alma.

Excelência e estado de graça

Só é verdadeiramente excelente aquele que está no estado de graça e a partir daí faz coisas excelentes. Quem está fora do estado de graça pode ter coisas boas, mas não é excelente. Por que razão? Imaginemos uma maçã que está quase toda podre, mas tem uma parte pequena não apodrecida. Se alguém, com uma colherinha, conseguir isolar essa parte e servir-se dela, talvez perceba que foi uma deliciosa maçã. Entretanto, dela não se pode dizer: “Que boa maçã!” Pode-se afirmar que foi, mas que é, não. Porque a podridão desnatura até aquela parte pequena, não podre, que na maçã existe. Então, o estado presente daquela maçã não é excelente.

Isso se dá com o homem, cuja natureza é muito elevada. O homem é uma síntese de todo o universo: tem o espírito como os anjos, a vida animal, vegetal e a existência mineral dentro de si. Mas entrou no homem a “podridão” do pecado original. E devido a isso ele é capaz de uma ou outra ação excelente, mas em todo o seu ser ele não será.

Assim, por exemplo, os antigos pagãos tinham uma ou outra atitude muito bonita, mas eles não possuíam toda a personalidade excelente. É como o exemplo da maçã, a qual tem um ponto em que se pode perceber que teria sido excelente, mas de fato ela não o é.

O católico é sempre auxiliado pela graça. Se ele diz “sim” à graça e se mantém na amizade de Deus, sobretudo quando está na posse habitual do estado de graça, o católico se torna bom. Se, além de possuir o estado de graça, faz alguma ação excelente, essa excelência repercute sobre todas as outras virtudes que ele possui. Ele fica excelente se tem várias disposições de alma excelentes e, mais ainda, se possui todas as disposições de alma excelentes, que é o santo.

Noção respeitosa da própria dignidade

Acontece que o católico, sabendo como é miserável por natureza, quando ele vê que se mantém em estado de graça e tem disposições de alma que vão além do que os Mandamentos exigem e entram na linha dos conselhos — relativos a atos que, mesmo não realizados, não fazem com que a alma se perca; ela os pratica por amor, sendo esses atos excelentes —, percebe que existe nele uma raiz de excelência, a qual o eleva muito acima do pecado original.

Seria mais ou menos como a maçã podre, sobre a qual Nossa Senhora pedisse a Deus que desse uma bênção e a transformasse numa maçã sadia. Ela se tornaria muito mais do que era antes de apodrecer, porque seria uma maçã “miraculada”, sobre a qual desceu o poder de Deus onipotente, como a água das Bodas de Caná: Maria Santíssima pediu e Nosso Senhor transmudou a água em vinho.

Assim também é o homem com o pecado original, que pela graça consegue praticar todos os Mandamentos. Sem a graça ninguém consegue praticar duravelmente todos os Mandamentos. Então, é uma excelência! Maior ainda é a excelência se o homem considera que, além de estar acima do nível do pecado original, habita nele a graça, uma participação criada na vida incriada de Deus.

O católico, que sente em si o pecado original — é um dos aspectos mais característicos da inocência o indivíduo sentir como ele, pelo pecado original, não vale nada —, vendo sua própria excelência, deve admirá-la, dar graças a Deus e ter uma noção respeitosa de sua própria dignidade. É semelhante ao leproso grato, a quem Nosso Senhor curou. Ele reconheceu que estava curado e se alegrou com o estado de saúde recuperado, a tal ponto que voltou para agradecer. Assim também nós, quando fazemos coisas excelentes, somos como leprosos curados. Devemos reconhecer a excelência daquilo que fazemos e, portanto, respeitar-nos por gratidão para com Deus, para com Nossa Senhora, sem A qual não teríamos obtido isso do Altíssimo, porque toda graça nos vem por meio da Santíssima Virgem.

Devemos compreender que não é por “megalice”(1) que precisamos reconhecer nossas qualidades, mas por respeito para com o dom de Deus. E esta vem a ser a primeira noção de honra: o fato de a pessoa se respeitar a si própria.

Um dos maiores ultrajes que se pode dizer a alguém é este: “Nem você sequer se respeita a si mesmo, quanto mais querer que os outros o respeitem!” Às vezes, para chamar a atenção de um homem que está fazendo uma ação indigna, pode-se dizer: “Respeite-se!”, como quem chama a atenção para razões que ele tem para se respeitar.

Admiração, respeito, benquerença

Então, a honra é um estado de excelência, o reconhecimento interno dessa excelência, com o agradecimento a Deus, por meio de Nossa Senhora. E também o reconhecimento que outro faz do que temos de excelente, por onde ele mostra uma admiração e um respeito especiais. E eu ponho exatamente em ordem: primeiro admira-se e, em razão disso, respeita-se; porque só se respeita aquilo que se admira; depois querer bem, porque a quem se admira e respeita, deve-se querer bem, ter carinho. E vou dizer mais: só se tem carinho verdadeiro por quem se admira e se respeita.

Então, numa civilização cristã e, sobretudo, no Reino de Maria — aonde, como diz São Luís Grignion de Montfort, os santos vão ser tão grandes, em comparação aos antigos, como os carvalhos em relação aos arbustos — o grau de excelência vai ser incomparavelmente maior do que conhecemos agora. E a noção que cada um terá de sua própria honra e do respeito para consigo mesmo será muito maior. Crescendo essa noção de respeito, cresce também a ideia que os outros têm do respeito a nós devido. Em consequência, no Reino de Maria o trato e o ambiente, serão impregnados de honra.

O que quer dizer “impregnado de honra”? Significa que se aproveitarão todas as ocasiões e todos os pormenores para dar a cada um a honra que merece. Será uma civilização eminentemente cerimoniosa.

O que é cerimônia? É um conjunto de palavras e de gestos por onde a pessoa exprime respeito. Portanto, uma civilização impregnada da ideia de honra é pervadida(2) de cerimônia e de cerimonial, é toda ela cerimoniosa. E a atitude das pessoas, o modo de se portar, de olhar, de se tratar, reproduzirá isto. De que forma? Com as antigas fórmulas de respeito, usadas neste ápice da respeitabilidade que houve no mundo, que foi a Idade Média? Ou com outras fórmulas ainda acrescidas? Que fórmulas?

Um problema bonito para se tratar é o seguinte: as fórmulas inventadas na Idade Média — algumas das quais decaíram no “Ancien Régime”(3), mas outras, pelo contrário, se requintaram até ao “delicioso” — são arbitrárias, podem variar ou estão de acordo com a natureza das coisas e são invariáveis? Algo de invariável elas têm, e isso devem conservar.

Relações entre o Papado e o poder temporal

Lembro-me de uma iluminura medieval representando uma cena que, tanto quanto eu saiba, não se deu; portanto, é uma cena imaginária. Era um Papa celebrando Missa, acolitado por dois coroinhas: o Imperador do Sacro Império e o Rei da França.

Tal iluminura exprime inteiramente a ideia que o católico deve ter das relações do Papado com os poderes terrenos, e o altíssimo e supremo grau de honorificência que reside no Papado, mas também no poder temporal. Sendo o Papa tão elevado, entretanto o poder temporal é digno de acolitá-lo; é uma honra ser coroinha. E um imperador que escrevesse para seu país relatando o fato, deveria redigir assim: “Tive a honra de servir de acólito na Missa celebrada pelo Vigário de Jesus Cristo na Terra, Pedro vivo em nossos dias, Sua Santidade, o Papa. Comigo acolitou o augusto Rei da França.”

O Rei da França deveria escrever: “Tive a honra etc., e também a honra de ser co-acólito com Sua Majestade Imperial.” Porque, como o Imperador é mais do que o Rei da França, é também para este uma honra ficar colocado numa situação análoga à do Imperador. E isso ele precisaria reconhecer.

E o último barão da Cristandade que estivesse presente na cerimônia deveria dizer: “Não cabia em mim de entusiasmo e de respeito. O Vigário de Cristo, o Imperador do Sacro Império Romano Alemão, o Rei da França participaram da Missa. O Imperador acolitou e o Rei também!”

São os vários graus de respeito devidos a cada um.

Origem dos Grandes de Espanha

A civilização ocidental, na Alemanha, na França, na Espanha, destilou manifestações de honorificência e de respeito, próprias à índole de cada país.

Por exemplo, um Grande de Espanha é uma coisa fenomenal!

A Espanha de si é grande, independente de ter ou não ter colônias ou grandes extensões geográficas. O grande império colonial foi um episódio de sua grandeza. Ela é grande por causa da grande alma que possui e do consórcio comum da alma do espanhol com o que há de maior, posto nas maiores proezas — às vezes, com um pouquinho de exagero.

Saint-Simon(4) narra a origem dos Grandes de Espanha. Havia naquelas primitivas monarquias espanholas, existentes antes da fusão dos vários reinos católicos, uma porção de outros reinos que foram se unindo, se aglutinando em dois grandes blocos: Aragão e Castela. Mas continuavam existindo aqueles vários pequenos reinos, cujos monarcas possuíam pouco poder.

Esses reis tinham em suas terras grandes vassalos, grandes senhores feudais, que por sua vez tinham sob a sua dependência grande número de trabalhadores manuais. E eram chamados “ricos homens”, e não condes ou barões, porque eram anteriores a esses títulos. E as mais antigas famílias espanholas e portuguesas descendem dos “ricos homens”, que chefiaram a rebelião do povo contra a invasão dos árabes.

Os “ricos homens” não possuíam títulos dados pelo rei, pois eram senhores naturais daquelas terras. E há uma beleza especial nisso, pois eles tinham uma nobreza que, por assim dizer, saiu do chão, das mãos de Deus, como uma flor. Poder-se-ia dizer do “rico homem” um pouquinho o que Nosso Senhor diz dos lírios do campo: “Considerai os lírios, como crescem; não fiam, nem tecem. Contudo, digo-vos: nem Salomão em toda a sua glória jamais se vestiu como um deles” (Lc 12,27). Quer dizer, o “rico homem” é como um lírio que nasceu da ordem natural das coisas e domina suas terras.

Os reis, querendo sujeitar esses “ricos homens”, começaram a dar-lhes o título de Duque. E para alguns “ricos homens” os monarcas não lhes concediam esse título, mas tiveram que reconhecer que eles eram grandes. E então, mais do que o título de Duque era o de Grande, que não era dado pelo rei, mas criado pela ordem natural das coisas. Era, por assim dizer, um título nascido das mãos de Deus, através dos dedos da História.

Os monarcas acabaram dando o título de Duque a todos os descendentes dos antigos “ricos homens”, mas esses descendentes tratavam com certo desdém esse título, porque o importante era ser Grande de Espanha.

Por estas e aquelas “vuelteretas”, os reis acabaram distinguindo os “ricos homens” em três classes: a primeira, a segunda e a terceira.

Eles responderam muito “hidalgamente” e à la espanhola à manobra dos reis: não se revoltaram, mas não contavam a ninguém quem era de primeira, segunda e terceira classe.

E Saint-Simon, que era apaixonado por coisas nobiliárquicas, depois de muito empenho, conseguiu somente a indicação de alguns Grandes de Espanha, que eram de primeira e de segunda classe, e mais nada. Porque eles mantinham isso em segredo.

Os reis podiam ter feito decretos dizendo: “Declaramos que de primeira classe é este, de segunda é aquele, de terceira é aquele outro”, mas não ousaram fazer, provavelmente porque perceberam que, se publicassem decretos assim, os Grandes não iriam tomar em consideração do mesmo jeito. E fariam uma espécie de greve dos duques, o que seria uma atitude eminentemente espanhola. E assim ficou o título de Grande de Espanha.

Não quero dizer que é mais do que tudo, mas é uma coisa acima da qual não há nada. A tal ponto que a própria condição de Príncipe da Casa Real espanhola, que é, teoricamente, mais, eu acho menos impressionante do que dizer que alguém é um Grande de Espanha.

Para ilustrar um pouco esse assunto, um dos Grandes de Espanha é o famoso Duque de Alba, que venceu os protestantes poloneses belamente. Ele adoeceu e mandou dizer a Felipe II que precisava falar com ele, pois estava para morrer. Felipe II não foi logo, mas, com aquela majestade solene, lenta e solar que lhe era própria, chegou alguns dias depois. Quando ele entrou no quarto do Duque de Alba, este o olhou e disse: “Es tarde, señor”, virou-se para a parede e não olhou mais para o Rei! Era um Grande de Espanha!

Uma cena de Cyrano de Bergerac e o Magnata húngaro

Há muitos anos, li o Cyrano de Bergerac(5). E havia uma heroína francesa, a Roxane, que atravessou as linhas espanholas para ir visitar o exército onde estava o Cristian, que era o noivo dela, e que se encontrava lá com o Cyrano. Porque a guerra era com a Espanha e, para não dar uma volta muito grande, Roxane precisou atravessar as linhas espanholas.  Rostand imagina a cena assim: ela se apresentava, vestida com a dignidade de uma nobre francesa, e dizia ao sentinela espanhol que desejava conversar com um “gentilhomme” francês, que estava do outro lado da linha, e perguntava se ele permitia. O soldado mandava chamar o superior, um espanhol “fier comme un prince” — altivo como um príncipe —, que tirava o chapéu para ela e dizia: “Pase, señora!”

Aqui está um gênero de categoria bonita, porque todo espanhol tem algo de sombrio no fundo, um ar de desafio. Esse “Pase, señora” está longe de ser: “Madame, veuillez passer —Senhora, queira passar”. É a beleza da Europa dos mil “esmaltes” e das mil “tonalidades”.

Consideremos agora o contrário, um Magnata húngaro: nome dado aos nobres da Hungria, que faziam parte da Câmara dos Lordes. Com aquela “aigrette”(6), pele de pantera, espada curva, aquele ar vagamente huno ou mongol, que lhe dava certo fundo de brutalidade e grandeza selvagem, tem-se a impressão de que cada um deles ainda carregava alguma árvore dos tempos pré-históricos debaixo do braço. Mas, ao mesmo tempo, sabem ser imponentes como marajás e finos a ponto de frequentarem, com garbo, qualquer corte europeia. Aquilo já é outro tom, completamente diferente do Grande de Espanha. É um outro mundo e uma outra atmosfera de cerimonial.

Para a coroação dos reis da Hungria, entravam na praça os Magnatas, todos a cavalo — e cavalos fortes —, no meio ficavam os Bispos, e exigia-se destes que fossem homens fortes também.

Eu vi um filme sobre a coroação do Rei Carlos, último monarca da Hungria — o Imperador Carlos da Áustria e Rei da Hungria. Estavam presentes três Bispos do rito oriental, com coroas, e outros Bispos ocidentais, com mitras altas, e todos cavalgando. Ao descerem dos cavalos, jogavam as rédeas com garbo para os escudeiros e entravam.

O rei, quando era coroado — acho que isso ocorria na Hungria, mas não tenho certeza —, tinha de saltar por cima de um monte de trigo em grãos, com uma espécie de vasilha na mão, enchê-la de trigo e jogar para o povo, a fim de provar que ele era um bom cavaleiro e um bom guerreiro, mas que ao mesmo tempo era generoso e prometia ao povo grande abundância.

Esse vago resquício de selvageria dá uma força e uma grandeza à majestade, que é uma coisa extraordinária! Entretanto, não tem as mil finuras da coroação de um rei da França. Por exemplo, a coroa de Luís XV, no Louvre, é uma coisa extraordinária, única no gênero.

Novas formas de cortesia e de cerimonial

Os reis da França, que eram os “Reis Cristianíssimos”, depois de toda a pompa da coroação, saíam da Catedral e ficavam diante da fila dos escrofulosos, parados do lado de fora da igreja, nos quais tocavam com as suas régias mãos, e diziam a cada um: “Le roi te touche, Dieu te guérisse — O rei te toca, Deus te cure.” Afirma-se, e eu creio nisso, que vários eram curados. O soberano acabara de receber do Bispo a unção, era o ungido do Senhor, com o óleo trazido do Céu por uma pomba, na santa ampola utilizada por Saint Rémy na coroação do primeiro rei católico dos francos, Clóvis. Aqui já é outra feeria!

Feérico também é o velho Kremlin, com a velha coroa dos imperadores da Rússia, ainda tão primitivos que a orla da coroa é de pele. Eu acho essa coroa forte como a força de um magiar, e possui algo de selvagem, que não faz mal ao homem.

Essas coisas constituem uma espécie de “lumen honoris” próprio. Esses eram os excelentes do povo. E cada povo elaborava assim uma excelência correspondente à sua luz primordial(7), e algo que era a matriz de sua própria civilização e cultura.

Esses homens inspiravam os poetas, os artistas, realizavam os grandes feitos. Eram propriamente a tintura-mãe da nação, segundo a qual esta se modelava, conforme um processo muito natural, a partir da formação primeira de um núcleo excelente. Encontra-se esse processo de formação em mil fenômenos naturais. Por exemplo, se alguém quiser ter um grande exército fará muito bem possuindo, antes de tudo, um arqui-regimento, e depois constituindo outros regimentos segundo aquele. Ou se faz primeiro o excelente, e depois o resto, ou nada se realiza como deveria ser feito.

A todos esses “lumens” de honra próprios correspondiam escolas de cortesia, estilos, modos próprios etc., que eram as honras das várias nações. Em determinado momento a Europa soube perceber como eram essas honras das várias nações, e cada nação soube tributar à outra o apreço correspondente a isso. Houve, então, uma espécie de sinfonia de harmonia cristã por toda parte.

E o Reino de Maria continuará isso? Ou essas serão tradições que morreram e o Reino de Maria inovará coisas que vão servir de tintura-mãe para toda uma nova escola de “lumens” de honra e de estilos de cortesia muito mais quintessenciados? É uma pergunta diante da qual eu não tenho muito o que responder.

Só sei uma coisa: que, além de muito mais cerimoniosas, essas escolas de cortesia vão ser muito mais sérias porque serão a réplica a um mundo que pecou por falta de seriedade e por “nhonhozeira”(8). E evidentemente muito mais sacrais.

O pensamento religioso e o caráter da origem religiosa de toda superioridade, qualquer que seja a sua natureza, serão muito mais marcados do que antigamente. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/2/1980)

 

1) A partir do termo “megalomania” Dr. Plinio criou a palavra “megalice”, a fim de designar o vício de quem atribui a si mesmo qualidades que não possui ou então as exagera.

2) Penetrada, embebida. Neologismo usado por Dr. Plinio, derivado do verbo latino pervadere.

3) Antigo Regime. Período da História da França iniciado em princípios do século XVII e extinto em 1789, com a Revolução Francesa. Naquele período, a sociedade caracterizou-se por um requinte de bom gosto e pela elevação no convívio humano.

4) Duque de Saint-Simon (1675-1755), cujas Memórias abrangem o reinado de Luís XIV e a Regência.

5) Obra em versos (1897), de Edmond Rostand.

6) Do francês: penacho, adorno de penas.

7) A “luz primordial”, segundo a conceitua Dr. Plinio, é a virtude dominante que uma alma — ou um povo no seu conjunto —, é chamada a refletir, imprimindo nas demais sua tonalidade particular.

8) Termo usado por Dr. Plinio para designar o espírito acomodatício, apegado ao conforto, à despreocupação e à vida  sem dedicação a um ideal.

Apresentação de Nossa Senhora no Templo

Todas as esperanças, o perdão, a reconciliação, a redenção, a misericórdia que se abriram para o mundo com o nascimento de Jesus, tiveram seu marco inicial e propulsor no aparecimento de  Nossa Senhora neste mundo.

A criatura de uma vida insondavelmente perfeita, pura e fiel, que seria a maior glória da humanidade em todos os tempos, abaixo da glória da Encarnação do Verbo.

Compreende-se, pois, que já em sua mais tenra infância Maria tenha começado a influir nos destinos da história, sendo, desde então, imenso e inesgotável canal de graças para todos os homens.

Plinio Corrêa de Oliveira (“Apresentação da Virgem no Templo”, por Vittore Carpaccio)

A sede de admiração

Conforme o pensamento de Dr. Plinio, quando o homem dirige seus anelos para uma ordem de coisas superior à terrena, onde tudo lhe fala da perfeição absoluta do Criador, caminha ele pelas vias da admiração, ao longo da qual tornar-se-á uma grande alma.

 

A partir de qualquer ser possível, podemos imaginar um ser parecido, naquela linha, mas de uma perfeição maior.

Suponhamos um ser dos mais modestos, uma formiga, a propósito da qual nos é dado pensar na formiga perfeita, descartando o que ela tem de feio e analisando apenas os seus aspectos bons e até bonitos. Seria então a arqui-formiga, a formiga obra-de-arte, a formiga-tesouro, que poderia ser representada num diadema ou numa coroa.

Na verdade, a perfeição pode ser considerada em dois níveis: no primeiro, o ser, mesmo com seus defeitos, é levado ao pináculo do que ele pode atingir; no segundo, ele é despido de suas imperfeições e galgado a um superior grau de maravilhamento.

O homem tende a conceber a perfeição absoluta

Por detrás dessa noção se percebe a tendência do homem para o Paraíso, para o Céu, que o leva a conceber o mais perfeito de cada ser e, em última análise, a ideia de perfeição absoluta, que é Deus.

Esta inclinação, por outro lado, faz com que o homem procure também conceber nesta Terra uma série de coisas “paradisáveis”, não com a perfeição absoluta de Deus, mas toda a perfeição de que são capazes. Portanto, quando possui certa elevação de espírito e amor ao Criador, o homem se põe a conceber as coisas com esses vários graus de pulcritude, perfeição e excelência, e estas produzem nele o que em francês se diria um “chatouillement”, uma impressão deleitosa.

Creio que todo homem tem essa tendência, que no período da infância se traduz por um maravilhamento diante das coisas mais diversas. Digamos, quando a criança está numa fazenda e observa o panorama campestre à sua frente, com um rio cujas águas produzem um espelhamento do céu e emitem cores muito bonitas, ela se encanta de modo superlativo com aquilo.

Aspectos maravilhosos da Ásia

É interessante notar que, de certa forma, esse mundo maravilhoso se apresenta em muitos aspectos da Ásia, considerada quer como obra de Deus, quer dos homens. Percebe-se ter havido ali almas que, em determinado momento, pararam, pensaram e admiraram algo da infinita perfeição de Deus e, em seguida, cantaram, musicaram e esculpiram essas admirações, expressando-as em ritos religiosos, danças, palácios, tecidos, porcelanas e outras obras do gênero.

Voôs da pulcritude na Civilização Cristã

E teríamos, assim também, a ideia que orientou as almas a realizarem os esplendores da Civilização Cristã. De fato, na Cristandade ocidental e européia, ao lado de belezas como o castelo feudal, surgiram pequenas populações modestas mas encantadoras, cujas casas eram adornadas com bom gosto e alegria, os vasos de flores colorindo os beirais das janelas, terreiros bem cuidados onde criavam ovelhas e outros animais domésticos, junto com a pocilga dos leitões e, portanto, admitindo um convívio com o prosaico e menos encantador.

Como não nos lembrarmos das aldeias alemãs, com suas características habitações no estilo germânico, no interior das quais havia sempre um forno aceso onde se coziam pães deliciosos, e a lareira fumegante, junto à qual a família reunida entoava festivas canções.

Ou seja, ombreando com monumentos magníficos, havia uma arte popular muito bonita, constituindo com aqueles um mundo contínuo, sem monstruosidades, que ia desde o prosaico do terra-a-terra, até o alto das torres do velho castelo medieval.

E a Civilização Cristã produziu isso de próprio: o castelão e seus convivas eram como as estrelas do céu para o camponês que vivia em torno do castelo. Existia um tal relacionamento entre eles que algo do brilho da vida dos primeiros fazia permear o maravilhoso para o ambiente do aldeão. Essa não é uma afirmação gratuita. Os dados relativos a esse tema são tão abundantes que se poderia fazer, não um álbum, mas uma biblioteca de fotografias sobre as condições do povo na tradição medieval, apenas para se compreender as torrentes de maravilhas que a vida dos superiores proporcionava à existência dos inferiores.

Almas especialmente sedentas de arquetipias

Aliás, tenho a impressão — e o digo como opinião pessoal — de que nos séculos de Civilização Cristã, mais ou menos em todos os ambientes, Deus suscitou almas especialmente sedentas de perfeição, nos vários patamares sobre os quais acima falamos. E, talvez sem perceberem, impulsionaram esse desejo para frente, transmitiram-no às gerações seguintes, não só formando pessoas, mas criando costumes cuja importância, nesse campo, é tal que não se pode aquilitá-la em toda a sua medida.

Ousaria dizer mais. Creio que o primeiro homem a cantar uma bela canção popular, fazendo com que fosse entoada pelos demais habitantes e se tornasse um emblema daquela região; ou o primeiro homem que resolveu colocar um pote de gerânios na frente de sua casa para enfeitá-la, com o desejo de oferecer a quem o admirasse, a carícia desse convite para elevar suas vistas a uma esfera mais alta — esses pioneiros desempenharam, na ordem natural, um papel semelhante ao de um profeta na ordem sobrenatural. Nesse sentido de que apontaram aos outros o caminho da perfeição e da pulcritude que conduz à beleza absoluta, que é Deus.

Um perigo a se evitar

O escolho a se evitar nessa tendência para o maravilhoso perfeito é de se deixar atrair e dominar pelos deleites que a admiração pode produzir em nós. Pois, não raro, o admirável é delicioso. O indivíduo sente-se agradado no exercício de seu intelecto admirando algo, mas também pode sentir uma delícia física, como, por exemplo, quando ouve uma bela música. É possível que, na convergência dessas duas formas de sensação prazeirosa ele seja tentado a preferir apenas o gosto físico. Cedendo a essa tentação, começa a decadência, e ele passará a procurar somente as delícias palpáveis, desprezando as delícias “alpinísticas” do pensamento.

Chegará o dia em que esse indivíduo será dominado pela preguiça de empreender qualquer voo de espírito, e deixará o tempo se esvair como a areia escorre na ampulheta. Seu único trabalho será o de inverter a posição dela e deixar o pó cair novamente. Pior. Ao cabo de alguns anos, o homem que morou no palácio e nos parques da admiração, começa a olhá-la como inimiga. Porque se ele quiser voltar ao palácios e aos parques, terá de se esforçar. E tudo quanto dele exige força é seu inimigo. Assim ele naufraga na vida de delícia.

Alcançando o ponto máximo da admiração

Pelo contrário, à medida que o homem progride na admiração autêntica, no fundo de seu horizonte vai tomando corpo algo novo que é o ponto máximo do que ele admira e com o qual nunca sonhou. À força de se encantar com as coisas intermediárias, começa a se delinear para ele o objeto supremo da sua admiração. Assim, vai criando uma série de pontos de atração pinacular, os quais constituem para ele como que um Céu nesta Terra.

Se ele souber vencer os apelos do delicioso e viver para a admiração, encontrará o caminho a seguir para se tornar uma grande alma. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 4/6/1994)
Revista Dr Plinio 127 (Outubro de 2008)