São José, modelo de confiança em meio à perplexidade

“Eis como nasceu Jesus Cristo: Maria, sua mãe, estava desposada com José. Antes de coabitarem, aconteceu que ela concebeu por virtude do Espírito Santo. José, seu esposo, que era homem de bem, não querendo difamá-la, resolveu rejeitá-la secretamente. Enquanto assim pensava, eis que um anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: José, filho de David, não temas receber Maria por esposa, pois o que nela foi concebido vem do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo de seus pecados. (…) Despertando, José fez como o anjo do Senhor lhe havia mandado e recebeu em sua casa sua esposa” (Mt 1, 18-24).

Como nos mostra Dr. Plinio, nessa passagem do Evangelho transparece uma das eminentes virtudes de São José: sua inabalável confiança na superior vontade de Deus.

 

A grandiosa figura de São José sempre foi exaltada da maneira conveniente ao esposo de Maria Santíssima e pai adotivo de Jesus. Contudo, não será de todo supérfluo ressaltarmos uma faceta dessa luminosa alma, cujo brilho deve atrair de modo especial nossa admiração. Trata-se da heroica confiança por ele manifestada em decisivas ocasiões de sua vida ao lado de Maria e do Homem-Deus.

Voto de castidade e casamento

Como se sabe por fontes não inspiradas — as quais, entretanto, foram incorporadas pela Igreja na sua iconografia e na piedade popular — São José, por uma moção interna da graça, fizera voto de virgindade. Disposição esta que o afastava de uma existência matrimonial.

Ora, algum tempo depois, ele e outros varões da Casa de David são chamados a comparecer diante do Sacerdote a fim de participar da escolha de um esposo para Nossa Senhora. Reza a piedade católica que o eleito seria aquele cujo bastão florescesse miraculosamente. Para a surpresa de São José, em seu cajado brotaram lindos lírios brancos…

Assim, depois de a Providência incutir em sua alma os mais nobres desígnios de castidade perfeita, parece agora contrariá-los, realizando um milagre a fim de mostrar que ele deveria abraçar o casamento. Se nos colocarmos por um instante no lugar de São José, não será difícil compreendermos o dilacerante de tal perplexidade!

Deus estaria permitindo ao demônio ludibriar um desejo de castidade? Não era possível, pois tal anelo acendia na sua alma toda forma de bem. Deus queria seu casamento? Não podia admiti-lo, pois tal ideia, legítima e louvável para qualquer outro, nele determinava o fenecimento de tudo aquilo que o levava para o ideal, para a renúncia, enfim, para o perfeito amor a Deus.

Então, que caminho trilhar diante de duas vozes de Deus, diretamente contraditórias?

Dilaceração cruel. Entretanto, inteiramente submisso à vontade divina, confiando contra toda confiança, ele se dispõe a casar com Nossa Senhora.

Perplexidade das perplexidades

Os dois cônjuges, levados por mútuo desejo de perfeição, revelam um ao outro seu propósito de manter a virgindade perpétua. Imensa alegria, profunda compreensão das duas almas, e o mistério se resolve.

Por pouco tempo. Os meses passam e, num determinado dia, São José percebe que Nossa Senhora está esperando um filho. A dilaceração cruciante se lhe apresenta uma vez mais. Maria era tal que ele não podia duvidar de sua virtude. Mas, o fato era inegável, patente aos olhos de qualquer um. Como explicá-lo? Como não duvidar?

São José não duvidou. Foi embora. Preparou-se para abandonar o lar, pois não lhe ocorria outra solução.

Imagine quem possa a perplexidade na qual ele se abismava…

Mas, tratava-se de um varão tão confiante nos desígnios divinos que, no pináculo do seu drama, decidiu fazer as coisas de modo racional. Uma vez que partiria para uma longa viagem sem destino certo, devia estar bem repousado e munido de suficientes provisões de água e comida. Talvez terá preparado um meio de transporte animal, além de uma série de providências, em que cada coisa era um estrangulamento de sua alma. Mas, um estrangulamento tão pacífico, tão sereno, tão repleto de confiança que adormeceu sobre isso.

É interessante notar que o esposo castíssimo de Maria, embora se encontrasse na perplexidade das perplexidades, entretanto conseguia dormir. E quão mais belo o fato de ele ter dormido do que se permanecesse acordado, pois aquele terá sido dos sonos mais sublimes da História!

Em sonhos, a revelação do anjo

Com efeito, foi durante o repouso que ele recebeu em sonhos a revelação do anjo, anunciando-lhe que o Filho esperado pela Santíssima Virgem era o Verbo encarnado, concebido pelo Espírito Santo nas entranhas virginais de sua esposa.

Dir-se-ia que essa revelação encerrava um fator de certeza menor do que o oferecido a Nossa Senhora durante a Anunciação, uma vez que uma aparição feita em sonho pode não passar de simples sonho. Porém, devemos crer que tal manifestação do Céu tenha sido acompanhada de elementos de persuasão interna, os quais racionalmente não permitiam qualquer dúvida.

Assim, São José se tranquilizou, readquiriu a serenidade, não porque tivesse “tocado” no anjo (o qual, é claro, sendo puro espírito não pode ser apalpado), mas porque aquela explicação era talvez a única possível para o mistério diante do qual se achava. E esse homem de confiança heroica, deve ter feito o seguinte raciocínio: “Embora eu conheça as altíssimas virtudes de Maria, não tive a luz suficiente para imaginar que Ela fosse a Mãe de Deus. Porém, no sonho tudo se explicou, e agora vejo inteiramente confirmado tudo quanto me foi dado contemplar da personalidade d’Ela. Eis-me tranqüilo”.

Então, pode-se dizer ter sido São José mais bem servido pelo fato de o anjo lhe aparecer “em sonhos” e não quando estivesse acordado. Porque, ao raciocinar daquele modo, ele fez um ato de fé extremamente belo e de incomparável louvor a Nossa Senhora.

Encontro com a Santíssima Virgem após a aparição

É-nos dado conjeturar que São José não tenha acordado com a aparição do anjo, mas permaneceu em repouso até a manhã seguinte. Quando despertou, estava todo impregnado pela suavidade e esplendor da revelação recebida.

Como terá sido o primeiro encontro dele com Nossa Senhora depois desse fato?

Quiçá, tivera Ela conhecimento das palavras do anjo a São José e não se surpreendeu quando este se apresentou para Lhe manifestar seu preito de amor e veneração à futura Mãe de Deus.

Ambos se encontravam numa linda composição de situações. Admirando Nossa Senhora, São José pensava: “Eis minha esposa, tabernáculo de meu Deus”, e adorava o Verbo encarnado no seio puríssimo de Maria. Esta, por sua vez, durante a refeição, por exemplo, humildemente lhe perguntava se queria um pouco mais de ensopado…

A partir de então, o que se depreendeu é algo de tanta beleza que ultrapassa nossa pobre capacidade imaginativa.

Em meio às nossas incertezas, apelo a São José

Recordo, ainda, outra perplexidade à qual São José, em companhia de Nossa Senhora, viu-se exposto: a perda do Menino Jesus em Jerusalém.

São Lucas nos descreve o episódio, e da narração evangélica se conclui que Jesus não quis participar aos seus pais a decisão de permanecer na Cidade Santa. Resultado, Nossa Senhora e São José, aflitos, passaram três dias à procura do Menino, e finalmente o encontram no Templo, sentado no meio dos doutores, ouvindo-os e interrogando-os.

Considere-se o contraste dessa situação. Maria e José estavam no auge do abatimento quando entraram no Templo e acharam Jesus. Este, já com o uso da sua inteligência, discutindo com os sábios, causando assombro e admiração ao seu redor. Nossa Senhora e São José O viram e a angústia se transformou em alegria, em júbilo. Tanto mais que ambos estavam certos da inocência e da retidão do Homem-Deus, o qual teria tomado aquela atitude movido por altos desígnios.

Mas a perplexidade floresce na pergunta: “Filho, por que fizestes assim conosco?”

Uma indagação sem desconfiança, de quem deseja ser ensinado por Jesus. São José sofreu com aquela provação, assim como Nossa Senhora, porém manteve a confiança inabalável nas superiores disposições de Deus.

Creio não haver melhor modo de encerrar essas considerações senão recomendando que, em nossas dúvidas e perplexidades, quando nos sentirmos abalados na virtude da confiança, apelemos a São José, perfeito modelo de homem que soube confiar em meio às maiores provações.

Plinio Corrêa de Oliveira

PASSIO CHRISTI, CONFORTA ME

Em outubro de 1944, Dr. Plinio começou a comentar, em sua coluna do “Legionário”, o plano pastoral do novo Arcebispo de São Paulo, destacando como dos mais  importantes o tópico sobre a caridade.

“Atrair todos os elementos supracitados do Clero e da Ação Católica para a obra social e multifária da caridade cristã, em socorro de todas as necessidades físicas ou morais do nosso próximo, sem distinção de cor, de raça, de nacionalidade ou de classes”. É este um dos itens mais importantes do plano de ação do novo Arcebispo de São Paulo.

Humildade e altivez cristãs

“Socorro das necessidades físicas ou espirituais”: é bem este o conceito das obras de misericórdia que Nosso Senhor ensinou ao mundo, e que a Santa Igreja vem realizando  ininterruptamente através dos séculos. Todo o espírito da Igreja é feito de contrastes fecundos que se resolvem em uma divina harmonia. Durante a Idade Média, viajava  pela Europa um potentado muçulmano, feito prisioneiro pelos guerreiros feudais, defensores da Fé. Encontraram-no um dia muito pensativo, e aos que lhe indagaram o  motivo, respondeu: “Não posso  compreender como constroem monumentos tão altivos, esses homens tão humildes”.

Almas humildes, construtoras de obras divinamente altivas, eis bem genuinamente representadas nesse traço as almas resgatadas pelo Precioso Sangue de Nosso Senhor  Jesus Cristo. Aparentemente, entre a humildade e a altivez, há uma contradição. O mundo pagão não compreendia essa contradição, e uma das acusações que os romanos  faziam aos mártires era precisamente que sua Religião glorificava a baixeza. Eles não sabiam que admirável sementeira de almas altivas eram aquelas escuras e misteriosas  catacumbas, em que patrícios e escravos, grandes e pequenos, se confundiam em torno dos altares, aprendendo de Jesus Cristo o segredo da humildade e da altivez de que Ele nos deu em sua vida terrena tão adoráveis exemplos.

“Christianus alter Christus” (o cristão é um outro Cristo), e a humildade do cristão, ou a altivez do cristão, não é senão um reflexo da altivez e da humildade de Nosso Senhor  Jesus Cristo.

Doçura e combatividade

Outro contraste que o mundo não compreende, e que entretanto é tão harmônico e fecundo quanto o da altivez e da humildade do verdadeiro cristão, é o da doçura e da combatividade. Se o árabe de que falamos  observasse a vida dos Santos, esbarraria por certo neste mistério, e diria deles: “Não posso     compreender como almas tão pacíficas são tão belicosas, como almas tão belicosas podem ser tão pacíficas”. É que no catolicismo tudo é amor, e mesmo quando, por  necessidade, e imitando a Nosso Senhor, alguém empunha o látego que há de fustigar os erros do século, fá-lo por amor. Fá-lo por amor, e fá-lo com amor.

A combatividade  cristã tem o sentido exclusivo de legítima defesa. Não há para ela outra possibilidade de ser legítima. É sempre o   amor de alguma coisa ofendida que move o cristão ao  combate. Todo combate é tanto mais vigoroso quanto mais alto for o amor com que se combate.

E, por isso mesmo, não há, no católico, combatividade maior do que aquela com que ele luta pela defesa da Igreja ultrajada, negada, calcada aos pés. Por que combate ele?  Para defender os direitos das almas que se quer arrancar à Igreja. Para manter livres e desobstruídas as portas de acesso que devem permitir aos eleitos de Deus a    aproximação de sua Igreja. Para abater a insolência da impiedade, e para exaltar a Santa Madre Igreja.

Para essas coisas é que se deve bater o católico. E, quando esgotados um a um, pacientemente, irremediavelmente, todos os meios pacíficos, o católico se ergue com o valor de um novo Macabeu, incendido em zelo pela Esposa de Cristo, ele bem pode dizer que em toda a sua combatividade só há uma coisa: amor.

Abandonemos esse quadro e, em vez de olharmos para o guerreiro cristão, olhemos para a irmã de caridade. Ela que docemente se aproxima do leito em que agoniza um doente repugnante. É para ela um desconhecido, em que ela vê, entretanto, um membro do Corpo Místico de Cristo, que é a Santa Igreja Católica.

E, por isso, aproxima-se dele cheia de sobrenatural ternura, desata os panos que ocultam a hediondez de suas chagas e recebe em pleno rosto, mais forte do que nunca, o  odor terrível das carnes em putrefação. No rosto da irmã de caridade a impassibilidade é completa. Ela olha para as chagas como se fossem pérolas, respira o odor da  podridão como se fosse um perfume.

Sabe Deus que terríveis repugnâncias ela está esmagando em seu interior, e que luta tenaz, violenta, titânica ela tem de desenvolver para não abandonar o lugar de sacrifício em que Nosso Senhor Jesus Cristo a quer! Quanto amor! dirão os que atentarem apenas para a placidez de seu semblante e de seus gestos. Quanta combatividade! dirão os que forem mais penetrantes e desvendarem o tumulto da luta interior diante da qual a Religião não cede. Quanto amor nessa combatividade! Quanta combatividade nesse amor!

Combatividade e amor, se o mundo contemporâneo pudesse compreender como se harmonizam essas virtudes, como é preciso amar até o que se combate… e combater com as duas mãos até o que, por vezes, se ama ternamente por mais de um título justo, como estaria diversa a face da terra!

É para as santas pugnas da caridade cristã, pugnas interiores que aumentem em nós os mananciais de amor, pugnas exteriores, vitórias tanto mais jubilosas quanto mais  pacíficas, porque Cristo é o Rei da Paz, mas em todo caso vitórias que não desdouram com a energia e não perdem seu lustre se a luta aberta tiver sido o único meio para as  conseguir — é para as santas pugnas da caridade cristã que nosso Arcebispo nos conclama.

Olhando de longe para seu rebanho espiritual, Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota tem palavras de ternura e compaixão que são um eco da exclamação divina:  “Misereor  super turbam” — tenho pena desta multidão. E com que razão! Pio XII, na alocução magistral que recentemente publicamos, diz que é preciso ter um heroísmo   comparável ao dos mártires, para praticar com fidelidade e esmero a Religião em nossos dias. Assim, pois, as grandes cidades modernas são verdadeiros lugares de luta e  tormenta para os “christifideles” (fiéis cristãos) de nossos dias.

No luxo dos salões aristocráticos, no conforto dos ambientes burgueses, na calma das classes pequeno-burguesas, na simplicidade das camadas operárias, na crua indigência  das classes pobres, em tudo isso se ocultam hoje terríveis tentações, cuja vitória custa e custa muito, custa sofrimento espiritual que é o sangue de alma. É preciso correr,  voar em auxílio dessas almas que sofrem para se manterem fiéis a Nosso Senhor ou para se aproximarem d’Ele. Toda demora é uma derrota, nesta tarefa, e toda negligência um crime. Por isso, Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota conclama uma verdadeira cruzada para a salvação de tantas almas aflitas em nossos dias.

Socorrer sobretudo os inocentes que sofrem

Mas isso não basta. Não basta fazer aceitar às almas o jugo duro e suave da moral cristã. É preciso ainda consolar os que sofrem  misérias físicas de toda a ordem.

Para que relembrar o quadro doloroso que temos sempre diante dos olhos, os hospitais repletos que rejeitam doentes por falta de espaço, as pessoas doentes que definham por falta de dinheiro para a aquisição de remédios caríssimos, as pessoas sãs que vão imergindo lentamente no estado de doença por excesso de trabalho, necessário para a manutenção da família, ou por falta de alimentação?

Por que relembrar com terror as inúmeras pessoas que, sem Fé nem horizontes  espirituais, arrastam na sombra de suas casas ou premidas nas paredes dos hospitais uma vida de desespero e de revolta? Tudo isso corta por demais o coração, e tudo isso ainda não é tudo. Existe o problema da infância, da infância inocente, da infância promissora, da infância que o ambiente deletério das grandes cidades torna tão cedo miserável e pecadora.

Como bem acentua nosso novo Arcebispo, muito já se tem feito entre nós nesse sentido. A Cidade dos Menores da Liga das Senhoras Católicas é simplesmente uma  maravilha. Mas… quanto ainda há por fazer! E se de todos temos pena, que especialíssimo lugar ocupa em nosso coração a infância, que Jesus Cristo tão entranhadamente  amou!

É necessária a caridade cristã

É preciso muita caridade. Mas as palavras de nosso Arcebispo são muito  nítidas: do que precisamos é de  caridade cristã, e não simplesmente e uma filantropia qualquer. Por quê? Simplesmente porque sem a Igreja de Jesus Cristo não há caridade verdadeira. Não negamos que possa haver almas que vivem fora da Igreja, em nossa civilização  atual, e que fazem bem ao próximo.

Elas possuíram a Fé, e essa Fé que perderam deixou nelas um vago perfume, como o que fica no vaso de que retiramos as rosas. São  essas as palavras do grande Pio X. Mas, de fato, a caridade ou é cristã ou não existe. […] E, no catolicismo, qual o maior foco da caridade? A contemplação da Paixão de  Nosso Senhor Jesus Cristo.

É na meditação minuciosa do que sofreu o “Homem das Dores”, é na rememoração afetuosa e constante daquele em quem “do alto da cabeça até a planta dos pés não havia  um só lugar que fosse são”, é tendo diante dos nossos olhos dia e noite aquele que, sob a mão violenta de seus adversários, foi desfigurado a ponto de ser “um verme e não  um homem, o opróbrio dos homens e o escárnio do povo”, que nosso coração se dilata para a comiseração para com os próximos.

Revendo em todo o sofrimento um sofrimento do próprio Cristo, em toda a chaga, uma chaga de Cristo, remediando todo sofrimento, curando toda chaga como se  debruçássemos nossa alma amorosa sobre tanta dor, como se aplicássemos com nossos próprios dedos à chaga de Cristo o bálsamo confortador, é com este meio que  verdadeiramente teremos a virtude da caridade.

Narra a História que antes de Cristo não havia hospitais nem instituições de caridade. Foi uma católica, Fabíola, quem fundou o primeiro hospital. De lá para cá, quantas  obras de caridade se têm fundado! De onde nasceram? Das chagas santíssimas de Nosso Senhor Jesus Cristo pregado na cruz. Foi da Paixão de Cristo que nasceu o  reconforto de tantas criaturas sofredoras.

Mas não é só. O melhor bálsamo para as dores humanas não é o remédio, é a compaixão. Compaixão, “com paixão”, é o sofrimento em união com o próximo, só porque o  próximo sofre. É o reflexo dos sofrimentos alheios em nossa própria alma. Como fazer brotar do coração humano, tão frio, tão duro, tão egoístico, a flor da compaixão?

Pela meditação da Paixão de Cristo. As almas saturadas dessa meditação sabem verdadeiramente condoer-se do próximo. Só elas têm em seus gestos bastante ternura, em  sua voz bastante sinceridade, em seu procedimento bastante discrição, para instilar na alma sofredora do próximo o remédio inigualável da compaixão.

Se, da Paixão de Cristo, brota a misericórdia, brotam as obras de misericórdia, brota a consolação, que jaculatória mais adequada para todos os que se aprestam a atender à grande mobilização da misericórdia cristã que Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota promoverá, senão esta: “Passio Christi, conforta me” (Paixão de Cristo, confortai- me)?

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do “Legionário”, 22/10/1944. Subtítulos nossos.)

Homens-torre!

Uma bela torre medieval posta ao lado de um simples edifício tem a capacidade de ressaltar a beleza e aumentar a importância deste. Dr. Plinio, com agudo senso de reversibilidades, transpõe este princípio para o papel de certos homens na História.

Não raras vezes, encontramo-nos enlevados ao considerar os admiráveis monumentos da arquitetura gótica como, por exemplo, uma torre audaciosa e imponente de uma catedral ou de um castelo.

Há um princípio peculiar que, aplicado nessas circunstâncias, resulta infalível: qualquer coisa posta em torno destas altaneiras edificações, por pouco de beleza que possua, parece tomar um esplendor incomum, ainda que seja em algo desproporcionado ao monumento que a sustenta.

A beleza de uma torre está ligada a vários fatores: as proporções entre a largura e a altura, o tamanho de sua base e a maneira de seu acabamento. Quando essas proporções estão harmonizadas entre si, há uma bela torre. Sobretudo quando ela é feita de um material valioso, como o granito, de pedras resistentes e duradouras, então a torre lucra ainda mais em esplendor.

Imaginemos a imensa torre de uma catedral em construção. Apenas a torre está inteiramente terminada, o restante da construção ainda está por se fazer e, por isso, quase não há nada edificado a sua volta. Entretanto, uma primeira capela pequenina, esboço da futura construção imponente, levanta-se como que aconchegada junto à torre.

Embora a torre seja enorme em relação à pequena capela, existe um jogo de proporções pelo qual a capelinha fica encantadora, apoiada na torre monumental: é o esplendor da desproporção!

Podíamos também imaginar uma construção de tamanho médio, a qual tivesse alguma proporção com a torre e, de algum modo, a complementasse. Este edifício, caso não houvesse a torre, seria comum, mas porque está ao lado de um torreão imponente, adquire uma beleza e um encanto próprios. A torre é que o realça, mas, de certa forma, ele também realça a torre.

Tomado um elemento muito belo, por menor que seja a beleza dos outros que o circundam, o primeiro espalha em torno de si a sua grandiosidade.

***

O que se dá com torres na arquitetura, dá-se também na História com personagens. Aparecem na História certos homens que são como torres. Alguns são esguios e se elevam com finura, inteligência e subtileza, como minaretes. Outros, pelo contrário, são atarracados e fortes, parecendo garras que se elevam até ao Céu. Outros, ainda, são proporcionados, nobres, equilibrados e parecem marcar a cadência dos tempos e a ordem das coisas, como o Imperador Carlos Magno.

O Grande Carlos é a grande torre a partir da qual se construiu toda a muralha do Ocidente Cristão. Respeitado por todos os homens — até por aqueles que o odiavam —, ele realçou as qualidades de seus súditos. Roland, Olivier, Turpin… tantos outros, foram tudo quanto lhes coube ser porque estavam juntos dele. É verdade que a glória dele se enriqueceu com os feitos de seus homens. Contudo, o que ele proporcionou aos seus foi muito mais do que aquilo que recebeu deles. Ele não é célebre por causa dos outros, mas os outros são célebres por causa dele. E dele se irradia uma determinada luz que cobre o seu século e o seu entourage com esplendor.

Pode-se dizer, em nível mais modesto, que há grandes personagens que aparecem na História de um povo, dos quais se tem impressão que todas as forças vivas da nação concorreram para produzir aquela figura; porém, quando passar a sua época, a nação entrará num período de “cansaço”, tal foi o esforço empregado para acompanhá-la. Durante algum tempo, a nação viverá agradavelmente da glória do passado. Até que — sendo uma nação amada por Deus — apareçam novamente personagens marcantes. Na esfera sobrenatural isto também ocorre: em determinado lugar, a Providência suscita repentinamente um santo. Este se ergue admiravelmente como padrão de perfeição espiritual para determinada época; ele, como que, personifica a virtude de sua era.

Isto de tal maneira é assim que, quando entra em cena alguém que teve um contato especial com um destes santos, as pessoas dirão: “Ele foi discípulo de São tal”, ou então, “a este, São Fulano tocou com a mão na cabeça quando era pequeno”. São repercussões e ressonâncias daquela santidade que se multiplicam pelos tempos, fazendo com que as figuras ou as recordações religiosas mais augustas fiquem interligadas àquela marcante figura.

Assim são os personagens capazes de personificar torres. São construções seguras nas quais os homens de sua época podem apoiar-se, tomando-os como guias seguros e fortes.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/12/1984)

Lembrança do Céu

Para as condições da época, a civilização Cristã foi, tanto quanto possível, um espelhar fulgurante da ordem paradisíaca e angélica entre os homens.

Foi uma superior disposição da vida temporal, por onde o espírito humano subiu tão alto que chegou a realizar coisas e a se exprimir em símbolos nos quais superou toda beleza contenível nesta terra – a ponto de lembrar o céu.

Magnífica expressão do holocausto divino

Entre os tesouros da arte barroca conservados em Minas Gerais reluz uma peça de extrema beleza, exposta à veneração dos fiéis na Igreja de São Francisco de Assis, na histórica cidade de São João del Rei. A origem dessa preciosidade é assim narrada pelas crônicas:

Estava já a igreja no século XVII inteiramente terminada, inclusive em sua decoração interna, quando se percebeu faltar o elemento que deveria coroar o cimo do altar-mor: o Crucifixo, em que o Divino Crucificado dirigia a palavra a São Francisco.

Pasmo da comissão encarregada da decoração! O que fazer? Os artistas contratados negavam-se a continuar por mais tempo os afazeres naquela igreja, alegando contratos a cumprir em outros lugares. E assim, ficou-se numa grande indecisão. Foi quando por aquelas plagas apareceu um nobre ancião, de feições muito dignas, oferecendo-se para esculpir o Crucificado, e desse modo encerrar a obra artística daquele templo. Não sendo conhecido de ninguém, e não podendo apresentar referências à altura da tarefa, mandaram-no embora.

Passado um certo período, voltou o ancião, reiterando a sua oferta. Novamente, por falta de referências, foi rejeitado sem escrúpulos. Após mais um tempo, e não se tendo achado ainda nenhum  outro artista que quisesse levar a obra a cabo, voltou pela terceira vez o bom velho, apresentando seus serviços. Não tendo outra escolha, os encarregados decidiram aceitá-lo, perguntando-lhe quais eram suas condições.

Respondeu o ancião que não pedia nada antes de findo o serviço. Terminado, retribuiriam, caso julgassem a obra bem feita. Solicitava apenas que recebesse uma refeição e uma medida de água por dia, à hora do almoço. Por outro lado, exigia fazer todo o trabalho sozinho, trancado em uma sala, sem comunicação com o exterior, a qual só seria rompida estando tudo acabado.

Assim foi-lhe concedido. Transcorridos vários dias, verificaram os responsáveis que os alimentos deixados para o bom velho junto à porta da sala não estavam mais sendo retirados por ele. Reuniram-se então as autoridades e tomaram a decisão de arrombar a porta, a fim de saberem o que ali estava se passando. Entraram  e… surpresa! O respeitável ancião havia desaparecido, e um Crucifixo magnífico, de traços como jamais se vira, estava ali inteiramente esculpido! Esse Crucifixo é o que se encontra hoje no topo do altar-mor da Igreja de São Francisco de Assis, em São João del Rei.

Muitos crucifixos exprimem com doçura, dignidade e profundidade de alma extraordinárias a dor d’Aquele que está para expirar, e até o sangue divino escorre nobremente pelo corpo chagado.

Dir-se-ia um desenho de beleza, os filetes vermelhos irrigando magnificamente a figura do Salvador. Mas nesse de São João del Rei —  um dos mais belos e comovedores  Crucifixos que tenho visto  em minha vida —, está expresso de modo único, preciso e extremo o sofrimento espantoso de Nosso Senhor no alto da cruz. Não O magoa apenas a imensa tristeza causada pela perseguição injusta e pela ingratidão de que Ele é objeto.

Os olhos escancarados e salientes, a tensão de toda a carnatura da face e a posição do pescoço incutem a impressão de algo muito mais aflitivo do que a dor: é o mal-estar. Um mal-estar terrível,   pior do que qualquer padecimento, inundando completamente a Alma adorável e o sagrado Corpo de Nosso Senhor no madeiro.

Dir-se-ia que, nesta posição e com essa expressão fisionômica, o Divino Redentor não estaria distante de exalar o brado sublime que precedeu de momentos a sua morte: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?

Tudo n’Ele está prestes a estalar, a desaparecer. O “consummatum est” se aproxima. Sofrimento indizível cuja consideração deve nos preparar para nos unirmos a Jesus, pelos rogos de Maria Santíssima, em nossas dores, em nossas perplexidades e aflições de espírito, nas horas em que parecemos sucumbir ao peso da angústia e pensamos estar, nós também, abandonados pela Providência.

Sim, também para nos infundir ânimo e coragem esse Crucifixo é verdadeiramente sublime! Como não nos enchermos de confiança e de força de alma, ao considerarmos tudo quanto Ele padeceu por nós? Ei-Lo no auge do estertor, do não caber mais em Si. É o mal-estar nos seus aspectos mais terríveis. E assim como o poeta francês cantou “le charme plus beau que la beauté” — o encanto mais belo que a beleza —, deste Crucificado eu diria que sofre “o mal-estar mais dolorido que a própria dor!”

É o holocausto do Homem-Deus retratado de um modo magnífico. E essa perfeição de talhes justifica a suspeita de que o artífice, aquele “bom velho” desaparecido misteriosamente, não era senão um anjo, enviado por Deus para esculpir ali essa obra prima da arte católica. Esse é um Crucifixo cinzelado por mãos angélicas.

Dir-se-ia, mesmo, que o artista celestial esteve presente no Calvário, viu a Nosso Senhor nesse estado, lembrou-se da adorável fisionomia que então contemplou e a reproduziu. De tal maneira essa face divina corresponde, não ao que poderíamos imaginar, mas ao que não logramos conceber. Somente depois de admirá-lo, percebemos que deve ter sido realmente assim…

De passagem, cabe outro comentário. Nada há de mais contagioso do que o mal-estar. Por exemplo, se nos achamos perto de alguém que esteja padecendo de asfixia, facilmente nos deixamos  tomar pela aflição dele, e logo parecemos acometidos por igual tormento. Ora, o divino mal-estar de Jesus, como seria contagioso para quem tivesse um mínimo de compaixão! Quiçá, não terá sido a consideração desse mal-estar em sua fase ascensional que tocou e converteu o bom ladrão?

Mais. Incomparavelmente mais. Ao pé da Cruz encontrava-se Maria Santíssima: como A terá contagiado esse mal-estar? Que disposições de alma, que permuta de sentimentos determinou entre Ele e Ela, tão íntima, tão profunda, tão completa, tão total como nem podemos imaginar! Era preciso que um artista se inspirasse nesse Crucifixo para esculpir uma “Mater Dolorosa”. Então compreender íamos melhor Nossa Senhora das Dores, a sua aflição, o gemido do mal-estar levado, n’Ela também, ao seu extremo.

Modalidades de sofrimento

Em sua vida de quase 87 anos, Dr. Plinio teve grandes consolações, mas também passou por sofrimentos inenarráveis. E pronunciou inúmeras conferências a respeito da dor, como a que transcrevemos abaixo, na qual mostra um panorama grandioso, descrevendo, com muitos exemplos, os diversos sofrimentos que podem ocorrer na existência do homem.

Para tratarmos a respeito do sofrimento em termos inteiramente utilizáveis por nós, devemos fazer algumas distinções entre modalidades de padecimentos. Porque a atitude do homem diante dessas formas varia, mas a atitude legítima, quer dizer, as diversas vias de Deus a respeito dessas modalidades de sofrimento também variam. Precisamos ter isto bem claro, sob pena de criar um “imbroglio” que acaba, por alguns lados, sendo nocivo.

Sofrimentos intrínsecos a toda ação séria

Há uma primeira modalidade de sofrimento que é intrínseca a toda ação séria. É o sofrimento do trabalho, do estudo, do esforço físico, da ginástica, da luta; são coisas que fazem parte da contextura comum da vida do homem ou da vida dos povos.

Ainda não coloco dentro disso as doenças, porque o estado normal do ser humano não é a enfermidade, como não é, por exemplo, ter sofrido um desastre. Essas coisas não são o comum da vida. Para uma pessoa ter verdadeiro interesse pelo estudo, o empenho, a concentração mental, a energia de espírito que ele exige, a abnegação de uma série de coisas mais baixas são sofrimentos iniciais.

Quando esses sofrimentos são aceitos, podem se tornar familiares e até fonte de alegria. Que efeito esses sofrimentos têm para a vida, para a alma humana?

Eles enrijecem a alma, dão-lhe profundidade de espírito, continuidade de intenções, seriedade e, com isto, tornam o homem verdadeiramente varonil. Um indivíduo incapaz desses sofrimentos torna-se indigno de ser homem.

A pessoa deve procurar esse tipo de sofrimento, endurecer-se diante dele, ser inclemente consigo à vista dele, e quanto mais ela seja dura consigo, mais a vida lhe será suportável.

Quando nessa gama certas coisas não fazem sofrer, em algum ponto acabará aparecendo um grande sofrimento, porque não se escapa da regra de que em algum aspecto, maior ou menor, o esforço é muito penoso, como um argueiro no olho ou um pedregulho no sapato.

Por exemplo, um homem pode ser muito estudioso, mas certa forma de estudo indispensável lhe dá preguiça. Isso tudo faz parte do tal sofrimento que o indivíduo deve enfrentar.

Qual é a utilidade desse sofrimento para a ordem da Comunhão dos Santos, como caráter expiatório? Evidentemente, desde que o indivíduo tenha intenção de oferecer, isto é útil à Comunhão dos Santos, enriquece o tesouro da Igreja.

Padecimentos que agridem

Mas um peculiar título de valor ele não possui, que vem de outra coisa: é do sofrimento que agride todo homem na vida, o qual está fora da ordem comum e se diria até que é destrutivo desta ordem.

Por exemplo, o indivíduo começa a estudar com decisão e adquire o hábito do estudo. Vem a mãe dele e lhe informa: “Até agora temos vivido do comércio de seu pai. Mas ele teve uma embolia cerebral e não vai mais poder continuar esse trabalho. Por isso, será preciso que você o assuma”;

Ele que já se dedicara inteiramente a certo ramo, fica colocado diante de um sofrimento de outra ordem, com isto de meio desagregador: com dificuldade, rezando, ele conseguiu tornar-se inteiramente familiar ao estudo. Agora, vem uma surpresa que o lança nessa história.

Imaginemos que o pai tenha uma casa de comércio pequena, de arrabalde, onde vende louças e ferragens. E a primeira coisa que esse gênero de negócio exige é boas relações na redondeza, porque há nos arredores duas ou três outras casas novas que estão fazendo competição. E ele também precisa estar muito a par do que as fabriquetas de São Paulo vão lançando de novo a esse respeito, porque, do contrário, não oferece artigos que disputem a clientela.

Portanto, isso não só absorve o tempo de trabalho dele, mas a capacidade de luta e de reflexão. E ele se vê descido de São Tomás até o problema de saber se a louça fabricada com pó de pedra e vendida em tal lugar agrada a Da. Fulana que é a mandachuva de tal quarteirão, e com a qual ele precisa conversar antes. Então Da. Fulana convida-o para tomar chá em casa dela, e o indivíduo tem que lhe contar uma piada, senão ele não mantém a freguesia.

A moeda da dor nos ”bancos” do Céu

Outra possibilidade é que o próprio estudioso fique doente. Ele se habitua a estudar, mas vem, de repente, uma enfermidade qualquer que o obriga a ficar pelo menos três anos afastado dos estudos.

Diante disso o indivíduo tem várias saídas possíveis. Uma delas é encontrar uma fresta e afirmar-se ainda mais. Esta é a solução providencial que o leva a lutar contra o infortúnio, suportar este sofrimento, além do anterior de que falamos, e vencer.

Isso tem um mérito muito maior porque o indivíduo sofre muito mais do que o comum dos homens. E, portanto, dá a Deus essa moeda da dor que tem nos “bancos” do Céu uma importância colossal, e abre um fundo de depósitos extraordinário para si nos “bancos” do Paraíso. Ele pertence à categoria de almas que Deus chama para isso.

A diferença entre os dois sofrimentos até aqui descritos está em que, no padecimento anterior, o indivíduo luta e pode eliminá-lo. E esse segundo tipo de sofrimento, ao menos durante muito tempo, não pode ser sanado.

Então, o que fazer? O indivíduo precisa acomodar-se àquele sofrimento porque, do contrário, estoura. Mas de um acomodar-se cujo verdadeiro nome é resignação e cujo triunfo está em superar o sofrimento, sem deixar-se cair em deformações sentimentais por onde ele fique mole, covarde e sem vigor. Neste caso, ele pode ser um grande benemérito na Comunhão dos Santos.

O sofrimento penitencial e o de enriquecimento da Igreja

Outra espécie de sofrimento é aquele que a pessoa procura. Isso pode se dar de dois modos: ou ela se penitencia, ou escolhe um gênero de atividade que de si não seria obrigada a escolher, mas fá-lo por idealismo.

Por exemplo, alguém que, sendo rico, quisesse entrar para a Legião Estrangeira a fim de praticar o heroísmo. Ele procurou o sofrimento. Ou um homem que pede a Deus que lhe mande sofrimentos, como o caso de Monsieur Martin, pai de Santa Teresinha, a quem Deus inundava de consolações e que Lhe dizia: “Meu Deus, isso não pode continuar, eu tenho que, em algum momento, sofrer!” E pedia o sofrimento para Deus. E veio!

Este é ainda mais nobre do que os sofrimentos anteriores. Foi por um ato de amor que ele fez isso, compreendendo o valor enorme do sofrimento e querendo fazer aos tesouros da Igreja o beneficio de enriquecê-los, entrando com a gota d’água de sua própria dor.

Às vezes é um sofrimento de penitência. Aí ele quase paga aos tesouros da Igreja o que ele roubou pecando.

Outras vezes não é um sofrimento penitencial e sim de enriquecimento da Igreja. Uma alma que tem a felicidade de poder dizer: “Sou inocente, mas quero sofrer como Nosso Senhor Jesus Cristo inocente sofreu, para, por esta forma, derrubar a Revolução. Meu Deus, mandai-me a tragédia, eu a aceito e me afundo nela! Morro dentro da tragédia! Só Vos peço a força de aguentar”. São modalidades diferentes de sofrimento.

Não se pode padronizar os caminhos de Deus para cada alma

Diante desses padecimentos, a pessoa que os pediu deve endurecer-se contra eles, fazendo esforço para sofrer pouco?

Por exemplo, um indivíduo que tenha rogado a Deus que lhe mande um sofrimento, e ele verifica que está ficando cego. É provavelmente o atendimento do pedido que ele fez. Ele deve rezar a Deus para não vir essa cegueira? Fazer toda espécie de tratamento para evitá-la?

Os tratamentos que entram na vida comum da Medicina e que a Moral obriga, ele deve fazer, não tem por onde escapar.

Os outros… aí vem o mundo dos contatos da alma com Deus: se ele tem uma autêntica moção interna de que está sendo atendido, será heroico e compreende-se que não recorra. Mas pode ser que, para outra alma igualmente dedicada a Deus, a Providência não queira isso, mas sim que ela tente e faça uma luta heroica para evitar o sofrimento, ficando só provado que a oração dela foi atendida, porque o sofrimento se impõe apesar de ela fazer a luta. Depende do caminho de Deus, que não se pode padronizar, para cada alma. Estou mostrando a variedade de vias.

Vindo o sofrimento, o que o indivíduo deve fazer?

Voltemos ao exemplo do cego. Ele deve fazer o necessário para suprir sua cegueira: comprar aparelhos magníficos, aprender métodos por onde ele possa ler, etc., de maneira a, tanto quanto possível, remediar os inconvenientes do estado em que caiu?

Vale aqui o raciocínio anterior: para alguns sim, para outros não. Depende do que internamente a graça peça a cada um. Não há uma regra assim peremptória. Para algumas almas Deus tem um desígnio, para outras, outro. De todas Ele quer que saibam ouvi-Lo e obedecer-Lhe. É a regra que precisa ser seguida.

A provação axiológica

O mais terrível dentro disso é o sofrimento anti axiológico(2). É outro tipo de padecimento. A dor anti axiológica é maior em si, como gênero, do que todas as outras dores porque, tendo certeza de que se encaixou numa determinada ordem, a pessoa encontra nisto um elemento de ação. Porém, quando ela não tem esta certeza, não sabe se não está sendo castigada, se é uma coisa temporária da qual pode pular fora, não sabe nada, a sua vida se torna sem sentido.

Qualquer um dos sofrimentos acima descritos pode acontecer tomando uma nota anti axiológica. O indivíduo, por exemplo, faz uma reflexão: “Realmente eu deveria oferecer a minha vida, minha saúde, qualquer coisa assim…” Interrompe seu pensamento e vai ocupar-se com outra coisa. Internamente não recusou. Deus viu que ele estaria disposto, ou espera dele um ato de aceitação no decurso dos padecimentos. Em certo momento, uma doença pula em cima dele!

A Providência está permitindo que dois tormentos o aflijam especialmente: um é o da enfermidade, outro o de não saber se aquilo lhe veio por um castigo. Ele não sabe se, por exemplo, rezasse mais, a doença não o acometeria, se deve orar ou não para cessarem os sofrimentos; e vai suportando como pode, enquanto Deus Se mantém mudo. Nisto pode estar embuçado tanto um castigo quanto um modo magnífico de carregar a cruz, sem que o interessado saiba por quê.

Deus não lhe dá os meios de resolver a questão, porque nisto está a maior prova. E às vezes a graça pode pôr na alma da pessoa a seguinte ideia: “Procure resolver, mas não peça graças especiais para isso, porque talvez você fuja do sofrimento mais duro e que não quereria sofrer”.

É terrível porque não adianta consolar o sujeito com a ideia de que é a mais alta forma de sacrifício, porque para ele não está claro se é mesmo a mais elevada forma de imolação ou se ele está sendo castigado. Quer dizer, não sabe se está no fundo de um poço ou no alto do monte. E assim morrerá e se apresentará ao Juízo de Deus.

Até lá a incógnita axiológica pode sombrear a vida de uma pessoa sem ela se dar conta. Por isso digo ser essa provação axiológica aquela que, entre todas, mais faz o homem sofrer. ”Deus meus, quare Me dereliquisti?”(3)

Tem-se a impressão de que, durante toda a Paixão, Nosso Senhor sofreu eminentemente do ponto de vista anti axiológico, culminando no “Deus, Deus meus, quare Me dereliquisti?” No teto da Igreja do Coração de Jesus há pintado Nosso Senhor aparecendo a Santa Margarida Maria. Ele diz a ela, mostrando seu Sagrado Coração: “Eis o Coração que tanto amou os homens e foi por eles tão pouco amado.” Este é um sofrimento moral maior do que os padecimentos físicos inenarráveis.

Ora, isto tem qualquer coisa de anti axiológico. A dor que sofre quem foi assim renegado é, no fundo, uma dor anti axiológica. Ele era o Justo e seria normal que fosse acolhido de outra maneira. Entretanto, vem o sofrimento da Cruz! Levaram a coisa a tal ponto que Longinus crava a lança n’Ele, e ainda sai água, quer dizer, não restou nada! Um dos Salmos diz: “Transpassaram minhas mãos e meus pés, posso contar todos os meus ossos.”

Acima de tudo, a fidelidade do amor d’Ele restaura o princípio axiológico rompido. Nosso Senhor continua a amar os homens; tudo o que estes fizeram para romper a ordem, Ele, com sua obstinação sacrossanta em continuar a amá-los, recompõe.

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/11/1983)

1) Do latim: Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonaste? (Sl 22, 2; Mt 27, 46).
2) Termo derivado de “Axiologia”: ramo da Filosofia que estuda os “valores”, isto é, os motivos e as aspirações superiores e universais do homem, as condições e razões que dão rumo à sua existência, para os quais ele tende por insuprimível impulso da sua natureza.
3) Sl 22, 17-18.

A Virgem do Bom Sucesso

Nosso Senhor Jesus Cristo foi gerado pelo Espírito Santo em Maria Santíssima, virgem antes, durante e depois do parto. Quando a gestação tem como resultado o bom nascimento do filho, chama-se “bom sucesso”. Assim, Nossa Senhora do Bom Sucesso é o título conferido a Ela enquanto tendo dado à luz, maravilhosamente e do modo mais feliz possível, o Filho Divino que o Espírito Santo gerou em suas entranhas virginais.

A Lei mosaica ordenava que todo primogênito fosse apresentado no Templo e oferecido a Deus. Embora não precisasse cumprir esse preceito, pois seu Filho era o próprio Deus, Nossa Senhora nos deu um lindo exemplo de amor e de obediência à Lei, levando o Menino Jesus ao Templo onde o Profeta Simeão O aclamou como “luz para iluminar as nações” e “sinal de contradição” (Lc 2, 32 e 34).

O Bom Sucesso da Santíssima Virgem foi assim consagrado pela Apresentação do Menino Jesus no Templo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 2/2/1983 e 1/2/1984)

Onde o Arcanjo um dia pousou…

O Tibre, o velho rio Tibre, corre suavemente por uma das mais pitorescas zonas da Cidade Eterna. Em suas águas tranquilas, deixa refletir os arcos de uma robusta ponte e a silhueta de uma construção monumental, conferindo particular beleza a esse cenário romano.

A ponte, de linhas fortes e traçado muito lógico, foi feita para resistir às vicissitudes e desgastes dos séculos. Nas margens onde ela toca cresce uma vegetação nascida ao léu, com um certo espontâneo e desordenado que a tornam ainda mais atraente. Ao longo de suas balaustradas se erguem, em intervalos regulares, imagens de santos e de anjos, diante das quais os fiéis costumam rezar, enquanto se dirigem para aquele grande edifício que se espelha no Tibre. Esses peregrinos vão visitar o Castelo Sant’Angelo.

Os antigos imperadores romanos, pagãos, tinham o hábito de preparar monumentos nos quais deveriam ser enterrados. Por suas características arquitetônicas, esses mausoléus procuravam imortalizar o César ali sepultado.

Mais que um túmulo, era uma glorificação à memória do homem que, por tempo maior ou menor, governara os destinos de Roma e de seus vastos domínios. Um desses perpetuados foi o imperador Adriano, cujos restos mortais descansariam para sempre no monumento que ele mandou construir, próximo às plácidas águas tiberinas.

Na época imperial chamava-se “Mole Adriana”, nome bastante adequado se considerarmos tratar-se de um edifício de grandes e sólidas proporções. De diâmetro colossal, ele impressiona pelo sério, pelo compacto, pelo imenso. É uma afirmação do poder quantitativo, qualitativo e ordenativo de Roma, bem como de seu incontestável domínio sobre extensa parcela do mundo.

Porém, com o passar dos séculos, os ossos desse Adriano se desfizeram e dele nada sobrou. A história não o celebra, apenas o registra, porque ainda permaneceu de pé seu imponente mausoléu.

E metida a cidade de Roma nas contínuas guerrilhas e guerras da Idade Média, esse túmulo começou a ser utilizado para finalidades diversas, transformando-se numa importante fortaleza. Seu papel defensivo pode ser notado até hoje, por quem visita a sede do Papado e a Basílica de São Pedro. Visto de fora o Palácio do Vaticano, nota-se em determinado ponto um corredor todo coberto, construído sobre arcadas que, mais adiante, atravessam o Tibre e se emendam na antiga Mole Adriana, agora Castelo Sant’Angelo. De maneira que, sentindo-se ameaçado, o Sumo Pontífice podia facilmente escapar por esse corredor e se refugiar entre os robustos muros do velho monumento. Era a suprema defesa do Vigário de Cristo.

Cessados os períodos de convulsões e saques a que se expunha a Cidade Eterna, o Castelo Sant’Angelo passou a ser outro lugar de descanso e recolhimento, à disposição do Papa.

E assim, como tantas outras construções de passadas eras, esse monumento de um imperador pagão foi incorporado às tradições e aos valores cristãos, tornando-se mais um símbolo das grandezas da Igreja.

No alto desse gigantesco castelo paira, sobranceira e protetora, a imagem de São Miguel Arcanjo. Ela é quem deu o novo nome ao antigo túmulo imperial.

Narram as crônicas que, durante a Idade Média, devastadora epidemia se alastrou por Roma, ceifando incontáveis vidas.

Compadecido e angustiado diante de tanta calamidade, o Soberano Pontífice ordenou que se fizessem procissões em toda a cidade, a fim de se alcançar dos Céus o fim daquele inclemente flagelo.

E suas preces foram atendidas. Pouco depois, como sinal da misericórdia divina, viu-se o gladífero Arcanjo pairar sobre a Mole Adriana, numa atitude de quem conjurava a peste.

Roma voltou à vida. E, desde então, a glória de um imperador em pó transformou-se em escabelo para o Príncipe da Milícia Celeste…

 

A Paz de Cristo no Reino de Maria

Na Sagrada Família, o menor de todos era o chefe: São José. Em seguida, vinha a Mãe, enormemente superior ao esposo; e depois o Filho, infinitamente maior do que os dois.

Em torno dessa Família se reúnem, desde os primeiros dias, os grandes e os pequenos da Terra: expressão significativa de que Cristo Nosso Senhor veio trazer a paz como característica das relações entre as classes sociais.

São José, nobre como um príncipe e humilde como um carpinteiro; os Magos, dignos como reis e súplices como mendigos; o jovem pastor, um casto adolescente que parece trazer no cordeiro o símbolo de sua pureza e ver no Menino-Deus a fonte de toda castidade.

Queira a Sagrada Família obter para nós, para nossas famílias, para nossa querida nação, que se afastem tantos fatores de preocupação e de tensão, por efeito da única solução que uns e outros podem ter validamente: a Paz de Cristo no Reino de Maria.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 30/8/1977 e 16/12/1991)

GLÓRIA A DEUS NO CÉU, E PAZ NA TERRA AOS HOMENS DE BOA VONTADE

As reflexões sobre o Natal es-critas em 1936 por Dr. Plinio parecem feitas, de algum modo, mais para os dias de hoje do que para aquela época, tanto no tocante às nuvens negras que toldam o quadro dos acontecimentos, quanto aos raios de esperança que o perpassam.

Enquanto os Anjos de nossos piedosos presépios ostentam dísticos em que se lê: “Glória a Deus nos Céus, e paz na terra aos homens de boa vontade”, a imprensa diária está cheia de notícias  terríveis que destoam tristemente da promessa angélica. […] Por toda parte só encontramos ódio, rancor, perseguição.

E, no entanto, cumpre que não desanimemos. Não seríamos dignos da graça inestimável do Batismo que recebemos, se permitíssemos que o pânico se apoderasse de nós. Nem na ordem natural, nem na ordem sobrenatural, há motivos que justifiquem a inércia e o pessimismo.

Cristo, como único Salvador do mundo: lição do Natal

O que a Igreja espera, hoje em dia, de seus filhos, é a realização de uma tarefa ao mesmo tempo muito grande e muito simples. Ela quer que todos os católicos (os católicos dignos deste nome, e  não a turbamulta dos pagãos que usam rótulo católico), com uma persuasão vigorosa e magnífica, se ergam no tumulto do mundo contemporâneo, proclamando o cristianismo como seu único Salvador.

Único, dissemos. E insistimos sobre esta palavra. Erraria crassamente quem supusesse que o Cristo só veio salvar a humanidade de seu tempo. Em todos os tempos, em todos os países, para todos os povos, em todos os perigos, em todas as dificuldades, apesar de todos os pecados, Cristo é o ÚNICO Salvador.

[Alguns países] pensam que podem atingir a prosperidade e a paz, por meio de pequenas receitas políticas em que misturam, em doses variáveis, a autoridade e a liberdade. Loucura e ilusão. Se  eles não aceitarem as normas sociais e morais da Igreja, se não derem ao catolicismo a influência preponderante a que tem direito, não escaparão à ruína. De reforma em reforma, rolarão para o abismo.

[Outros países] pensam que o braço vigoroso de um ditador lhes pode restituir a felicidade. Loucura, ainda, e ilusão. Porque o maior homem do mundo, dotado da mais lúcida inteligência, da mais alta moralidade, da mais vigorosa energia, do mais formidável poder, não conseguiria organizar convenientemente um povo que vivesse entregue à anarquia intelectual e efetiva que, fora da Igreja, é inevitável. Um povo é um conjunto de homens. Um povo disciplinado não pode ser composto de homens anarquizados no mais íntimo do seu ser, como um copo de água pura não pode constar de um conjunto de gotas de água impuras.

Cristo como base da civilização, e as formas do governo como aspectos secundários e acidentais da vida de um povo, eis aí uma das grandes lições do Natal.

Trabalhar, lutar, sofrer e rezar pela Igreja

Mas, dirá alguém, Cristo é um Salvador ausente. Eternamente mudo, atrás da cortina de nuvens que o escondem no Céu. Ele não se mostra à humanidade aflita. E esta então corre à busca de outros pastores.

É horrível dizê-lo, mas há entre católicos quem fale assim. Há ainda quem não ouse falar, mas pense assim. E há quem não ouse pensar, mas sinta assim! Daí o existirem católicos que têm mais  esperança na ação da política do que na ação do Cristo.

Ah! São esses os corações que recebem a visita eucarística do Cristo, mas não recebem o seu Espírito: “in propria venit, et sui eum non receperunt” (veio para que era seu, e os seus não o receberam).

Ah! São esses os corações que ouvem a palavra do Cristo, vinda do Vaticano, e não conhecem na voz do Papa o timbre da voz de Deus. A palavra do Papa ecoa no mundo, e o mundo não a conhece:  “lux in tenebris lucet, et tenebrae eam non conprehenderunt” (a luz brilha nas trevas, e as trevas não a envolveram).

Cristo, para o bom católico, não está ausente. Na Eucaristia, Ele está tão realmente quanto esteve na Judeia. E do Vaticano fala tão verdadeiramente quanto falou ao povo de Israel. A Igreja é tão  seguramente guiada por Cristo em 1936, quanto o eram os Apóstolos, antes da Ascensão.

O que Cristo quer fazer, fá-lo por meio da Igreja. O que Cristo quer dizer, di-lo por meio do Papa. Logo, a Igreja em certo sentido é onipotente e onisciente porque é instrumento da onipotência e porta-voz da onisciência de Deus.

Se Cristo é o Salvador único, a Salvação virá da Igreja. Trabalhar, lutar, sofrer, rezar, imolar-se ou sacrificar-se alegremente pela Igreja, deve ser o fruto desta meditação de Natal. Porque todas as  causas e todos os ideais devem vir depois da suprema Causa e do supremo ideal da Igreja.

GLÓRIA A DEUS NAS ALTURAS, E PAZ NA TERRA AOS HOMENS DE BOA VONTADE.

Plinio Corrêa de Oliveira (Excertos, com ligeiras adaptações, de artigo do Legionário nº 224, de 27/12/1936. Subtítulos nossos.) 
Revista Dr Plinio 57 – Dezembro de 2002