Lumen honoris

A maior honra que o homem pode alcançar nesta Terra é a amizade com Deus, ou seja, o estado de graça. Partindo deste princípio, Dr. Plinio explica o que é honra e como cada nação da cristandade desenvolveu fórmulas e estilos de cortesia, respeito e honorificência

 

Honra é a forma particular de apreço que se deve àquilo que é excelente. A honra é distinta da aprovação. A simples aprovação é a declaração de que uma coisa está na altura de sua natureza, enquanto que a honra mostra a excelência de algo.

Nesta perspectiva, podemos distinguir na honra primeiramente um aspecto pelo qual a pessoa internamente percebe a sua própria excelência e tem para consigo próprio a noção do respeito que deve a si mesmo. Isso é especialmente agudo no católico, em virtude de dois pontos: o dogma do pecado original e o dogma, ou verdade de Fé, a respeito da vida da graça na alma.

Excelência e estado de graça

Só é verdadeiramente excelente aquele que está no estado de graça e a partir daí faz coisas excelentes. Quem está fora do estado de graça pode ter coisas boas, mas não é excelente. Por que razão? Imaginemos uma maçã que está quase toda podre, mas tem uma parte pequena não apodrecida. Se alguém, com uma colherinha, conseguir isolar essa parte e servir-se dela, talvez perceba que foi uma deliciosa maçã. Entretanto, dela não se pode dizer: “Que boa maçã!” Pode-se afirmar que foi, mas que é, não. Porque a podridão desnatura até aquela parte pequena, não podre, que na maçã existe. Então, o estado presente daquela maçã não é excelente.

Isso se dá com o homem, cuja natureza é muito elevada. O homem é uma síntese de todo o universo: tem o espírito como os anjos, a vida animal, vegetal e a existência mineral dentro de si. Mas entrou no homem a “podridão” do pecado original. E devido a isso ele é capaz de uma ou outra ação excelente, mas em todo o seu ser ele não será.

Assim, por exemplo, os antigos pagãos tinham uma ou outra atitude muito bonita, mas eles não possuíam toda a personalidade excelente. É como o exemplo da maçã, a qual tem um ponto em que se pode perceber que teria sido excelente, mas de fato ela não o é.

O católico é sempre auxiliado pela graça. Se ele diz “sim” à graça e se mantém na amizade de Deus, sobretudo quando está na posse habitual do estado de graça, o católico se torna bom. Se, além de possuir o estado de graça, faz alguma ação excelente, essa excelência repercute sobre todas as outras virtudes que ele possui. Ele fica excelente se tem várias disposições de alma excelentes e, mais ainda, se possui todas as disposições de alma excelentes, que é o santo.

Noção respeitosa da própria dignidade

Acontece que o católico, sabendo como é miserável por natureza, quando ele vê que se mantém em estado de graça e tem disposições de alma que vão além do que os Mandamentos exigem e entram na linha dos conselhos — relativos a atos que, mesmo não realizados, não fazem com que a alma se perca; ela os pratica por amor, sendo esses atos excelentes —, percebe que existe nele uma raiz de excelência, a qual o eleva muito acima do pecado original.

Seria mais ou menos como a maçã podre, sobre a qual Nossa Senhora pedisse a Deus que desse uma bênção e a transformasse numa maçã sadia. Ela se tornaria muito mais do que era antes de apodrecer, porque seria uma maçã “miraculada”, sobre a qual desceu o poder de Deus onipotente, como a água das Bodas de Caná: Maria Santíssima pediu e Nosso Senhor transmudou a água em vinho.

Assim também é o homem com o pecado original, que pela graça consegue praticar todos os Mandamentos. Sem a graça ninguém consegue praticar duravelmente todos os Mandamentos. Então, é uma excelência! Maior ainda é a excelência se o homem considera que, além de estar acima do nível do pecado original, habita nele a graça, uma participação criada na vida incriada de Deus.

O católico, que sente em si o pecado original — é um dos aspectos mais característicos da inocência o indivíduo sentir como ele, pelo pecado original, não vale nada —, vendo sua própria excelência, deve admirá-la, dar graças a Deus e ter uma noção respeitosa de sua própria dignidade. É semelhante ao leproso grato, a quem Nosso Senhor curou. Ele reconheceu que estava curado e se alegrou com o estado de saúde recuperado, a tal ponto que voltou para agradecer. Assim também nós, quando fazemos coisas excelentes, somos como leprosos curados. Devemos reconhecer a excelência daquilo que fazemos e, portanto, respeitar-nos por gratidão para com Deus, para com Nossa Senhora, sem A qual não teríamos obtido isso do Altíssimo, porque toda graça nos vem por meio da Santíssima Virgem.

Devemos compreender que não é por “megalice”(1) que precisamos reconhecer nossas qualidades, mas por respeito para com o dom de Deus. E esta vem a ser a primeira noção de honra: o fato de a pessoa se respeitar a si própria.

Um dos maiores ultrajes que se pode dizer a alguém é este: “Nem você sequer se respeita a si mesmo, quanto mais querer que os outros o respeitem!” Às vezes, para chamar a atenção de um homem que está fazendo uma ação indigna, pode-se dizer: “Respeite-se!”, como quem chama a atenção para razões que ele tem para se respeitar.

Admiração, respeito, benquerença

Então, a honra é um estado de excelência, o reconhecimento interno dessa excelência, com o agradecimento a Deus, por meio de Nossa Senhora. E também o reconhecimento que outro faz do que temos de excelente, por onde ele mostra uma admiração e um respeito especiais. E eu ponho exatamente em ordem: primeiro admira-se e, em razão disso, respeita-se; porque só se respeita aquilo que se admira; depois querer bem, porque a quem se admira e respeita, deve-se querer bem, ter carinho. E vou dizer mais: só se tem carinho verdadeiro por quem se admira e se respeita.

Então, numa civilização cristã e, sobretudo, no Reino de Maria — aonde, como diz São Luís Grignion de Montfort, os santos vão ser tão grandes, em comparação aos antigos, como os carvalhos em relação aos arbustos — o grau de excelência vai ser incomparavelmente maior do que conhecemos agora. E a noção que cada um terá de sua própria honra e do respeito para consigo mesmo será muito maior. Crescendo essa noção de respeito, cresce também a ideia que os outros têm do respeito a nós devido. Em consequência, no Reino de Maria o trato e o ambiente, serão impregnados de honra.

O que quer dizer “impregnado de honra”? Significa que se aproveitarão todas as ocasiões e todos os pormenores para dar a cada um a honra que merece. Será uma civilização eminentemente cerimoniosa.

O que é cerimônia? É um conjunto de palavras e de gestos por onde a pessoa exprime respeito. Portanto, uma civilização impregnada da ideia de honra é pervadida(2) de cerimônia e de cerimonial, é toda ela cerimoniosa. E a atitude das pessoas, o modo de se portar, de olhar, de se tratar, reproduzirá isto. De que forma? Com as antigas fórmulas de respeito, usadas neste ápice da respeitabilidade que houve no mundo, que foi a Idade Média? Ou com outras fórmulas ainda acrescidas? Que fórmulas?

Um problema bonito para se tratar é o seguinte: as fórmulas inventadas na Idade Média — algumas das quais decaíram no “Ancien Régime”(3), mas outras, pelo contrário, se requintaram até ao “delicioso” — são arbitrárias, podem variar ou estão de acordo com a natureza das coisas e são invariáveis? Algo de invariável elas têm, e isso devem conservar.

Relações entre o Papado e o poder temporal

Lembro-me de uma iluminura medieval representando uma cena que, tanto quanto eu saiba, não se deu; portanto, é uma cena imaginária. Era um Papa celebrando Missa, acolitado por dois coroinhas: o Imperador do Sacro Império e o Rei da França.

Tal iluminura exprime inteiramente a ideia que o católico deve ter das relações do Papado com os poderes terrenos, e o altíssimo e supremo grau de honorificência que reside no Papado, mas também no poder temporal. Sendo o Papa tão elevado, entretanto o poder temporal é digno de acolitá-lo; é uma honra ser coroinha. E um imperador que escrevesse para seu país relatando o fato, deveria redigir assim: “Tive a honra de servir de acólito na Missa celebrada pelo Vigário de Jesus Cristo na Terra, Pedro vivo em nossos dias, Sua Santidade, o Papa. Comigo acolitou o augusto Rei da França.”

O Rei da França deveria escrever: “Tive a honra etc., e também a honra de ser co-acólito com Sua Majestade Imperial.” Porque, como o Imperador é mais do que o Rei da França, é também para este uma honra ficar colocado numa situação análoga à do Imperador. E isso ele precisaria reconhecer.

E o último barão da Cristandade que estivesse presente na cerimônia deveria dizer: “Não cabia em mim de entusiasmo e de respeito. O Vigário de Cristo, o Imperador do Sacro Império Romano Alemão, o Rei da França participaram da Missa. O Imperador acolitou e o Rei também!”

São os vários graus de respeito devidos a cada um.

Origem dos Grandes de Espanha

A civilização ocidental, na Alemanha, na França, na Espanha, destilou manifestações de honorificência e de respeito, próprias à índole de cada país.

Por exemplo, um Grande de Espanha é uma coisa fenomenal!

A Espanha de si é grande, independente de ter ou não ter colônias ou grandes extensões geográficas. O grande império colonial foi um episódio de sua grandeza. Ela é grande por causa da grande alma que possui e do consórcio comum da alma do espanhol com o que há de maior, posto nas maiores proezas — às vezes, com um pouquinho de exagero.

Saint-Simon(4) narra a origem dos Grandes de Espanha. Havia naquelas primitivas monarquias espanholas, existentes antes da fusão dos vários reinos católicos, uma porção de outros reinos que foram se unindo, se aglutinando em dois grandes blocos: Aragão e Castela. Mas continuavam existindo aqueles vários pequenos reinos, cujos monarcas possuíam pouco poder.

Esses reis tinham em suas terras grandes vassalos, grandes senhores feudais, que por sua vez tinham sob a sua dependência grande número de trabalhadores manuais. E eram chamados “ricos homens”, e não condes ou barões, porque eram anteriores a esses títulos. E as mais antigas famílias espanholas e portuguesas descendem dos “ricos homens”, que chefiaram a rebelião do povo contra a invasão dos árabes.

Os “ricos homens” não possuíam títulos dados pelo rei, pois eram senhores naturais daquelas terras. E há uma beleza especial nisso, pois eles tinham uma nobreza que, por assim dizer, saiu do chão, das mãos de Deus, como uma flor. Poder-se-ia dizer do “rico homem” um pouquinho o que Nosso Senhor diz dos lírios do campo: “Considerai os lírios, como crescem; não fiam, nem tecem. Contudo, digo-vos: nem Salomão em toda a sua glória jamais se vestiu como um deles” (Lc 12,27). Quer dizer, o “rico homem” é como um lírio que nasceu da ordem natural das coisas e domina suas terras.

Os reis, querendo sujeitar esses “ricos homens”, começaram a dar-lhes o título de Duque. E para alguns “ricos homens” os monarcas não lhes concediam esse título, mas tiveram que reconhecer que eles eram grandes. E então, mais do que o título de Duque era o de Grande, que não era dado pelo rei, mas criado pela ordem natural das coisas. Era, por assim dizer, um título nascido das mãos de Deus, através dos dedos da História.

Os monarcas acabaram dando o título de Duque a todos os descendentes dos antigos “ricos homens”, mas esses descendentes tratavam com certo desdém esse título, porque o importante era ser Grande de Espanha.

Por estas e aquelas “vuelteretas”, os reis acabaram distinguindo os “ricos homens” em três classes: a primeira, a segunda e a terceira.

Eles responderam muito “hidalgamente” e à la espanhola à manobra dos reis: não se revoltaram, mas não contavam a ninguém quem era de primeira, segunda e terceira classe.

E Saint-Simon, que era apaixonado por coisas nobiliárquicas, depois de muito empenho, conseguiu somente a indicação de alguns Grandes de Espanha, que eram de primeira e de segunda classe, e mais nada. Porque eles mantinham isso em segredo.

Os reis podiam ter feito decretos dizendo: “Declaramos que de primeira classe é este, de segunda é aquele, de terceira é aquele outro”, mas não ousaram fazer, provavelmente porque perceberam que, se publicassem decretos assim, os Grandes não iriam tomar em consideração do mesmo jeito. E fariam uma espécie de greve dos duques, o que seria uma atitude eminentemente espanhola. E assim ficou o título de Grande de Espanha.

Não quero dizer que é mais do que tudo, mas é uma coisa acima da qual não há nada. A tal ponto que a própria condição de Príncipe da Casa Real espanhola, que é, teoricamente, mais, eu acho menos impressionante do que dizer que alguém é um Grande de Espanha.

Para ilustrar um pouco esse assunto, um dos Grandes de Espanha é o famoso Duque de Alba, que venceu os protestantes poloneses belamente. Ele adoeceu e mandou dizer a Felipe II que precisava falar com ele, pois estava para morrer. Felipe II não foi logo, mas, com aquela majestade solene, lenta e solar que lhe era própria, chegou alguns dias depois. Quando ele entrou no quarto do Duque de Alba, este o olhou e disse: “Es tarde, señor”, virou-se para a parede e não olhou mais para o Rei! Era um Grande de Espanha!

Uma cena de Cyrano de Bergerac e o Magnata húngaro

Há muitos anos, li o Cyrano de Bergerac(5). E havia uma heroína francesa, a Roxane, que atravessou as linhas espanholas para ir visitar o exército onde estava o Cristian, que era o noivo dela, e que se encontrava lá com o Cyrano. Porque a guerra era com a Espanha e, para não dar uma volta muito grande, Roxane precisou atravessar as linhas espanholas.  Rostand imagina a cena assim: ela se apresentava, vestida com a dignidade de uma nobre francesa, e dizia ao sentinela espanhol que desejava conversar com um “gentilhomme” francês, que estava do outro lado da linha, e perguntava se ele permitia. O soldado mandava chamar o superior, um espanhol “fier comme un prince” — altivo como um príncipe —, que tirava o chapéu para ela e dizia: “Pase, señora!”

Aqui está um gênero de categoria bonita, porque todo espanhol tem algo de sombrio no fundo, um ar de desafio. Esse “Pase, señora” está longe de ser: “Madame, veuillez passer —Senhora, queira passar”. É a beleza da Europa dos mil “esmaltes” e das mil “tonalidades”.

Consideremos agora o contrário, um Magnata húngaro: nome dado aos nobres da Hungria, que faziam parte da Câmara dos Lordes. Com aquela “aigrette”(6), pele de pantera, espada curva, aquele ar vagamente huno ou mongol, que lhe dava certo fundo de brutalidade e grandeza selvagem, tem-se a impressão de que cada um deles ainda carregava alguma árvore dos tempos pré-históricos debaixo do braço. Mas, ao mesmo tempo, sabem ser imponentes como marajás e finos a ponto de frequentarem, com garbo, qualquer corte europeia. Aquilo já é outro tom, completamente diferente do Grande de Espanha. É um outro mundo e uma outra atmosfera de cerimonial.

Para a coroação dos reis da Hungria, entravam na praça os Magnatas, todos a cavalo — e cavalos fortes —, no meio ficavam os Bispos, e exigia-se destes que fossem homens fortes também.

Eu vi um filme sobre a coroação do Rei Carlos, último monarca da Hungria — o Imperador Carlos da Áustria e Rei da Hungria. Estavam presentes três Bispos do rito oriental, com coroas, e outros Bispos ocidentais, com mitras altas, e todos cavalgando. Ao descerem dos cavalos, jogavam as rédeas com garbo para os escudeiros e entravam.

O rei, quando era coroado — acho que isso ocorria na Hungria, mas não tenho certeza —, tinha de saltar por cima de um monte de trigo em grãos, com uma espécie de vasilha na mão, enchê-la de trigo e jogar para o povo, a fim de provar que ele era um bom cavaleiro e um bom guerreiro, mas que ao mesmo tempo era generoso e prometia ao povo grande abundância.

Esse vago resquício de selvageria dá uma força e uma grandeza à majestade, que é uma coisa extraordinária! Entretanto, não tem as mil finuras da coroação de um rei da França. Por exemplo, a coroa de Luís XV, no Louvre, é uma coisa extraordinária, única no gênero.

Novas formas de cortesia e de cerimonial

Os reis da França, que eram os “Reis Cristianíssimos”, depois de toda a pompa da coroação, saíam da Catedral e ficavam diante da fila dos escrofulosos, parados do lado de fora da igreja, nos quais tocavam com as suas régias mãos, e diziam a cada um: “Le roi te touche, Dieu te guérisse — O rei te toca, Deus te cure.” Afirma-se, e eu creio nisso, que vários eram curados. O soberano acabara de receber do Bispo a unção, era o ungido do Senhor, com o óleo trazido do Céu por uma pomba, na santa ampola utilizada por Saint Rémy na coroação do primeiro rei católico dos francos, Clóvis. Aqui já é outra feeria!

Feérico também é o velho Kremlin, com a velha coroa dos imperadores da Rússia, ainda tão primitivos que a orla da coroa é de pele. Eu acho essa coroa forte como a força de um magiar, e possui algo de selvagem, que não faz mal ao homem.

Essas coisas constituem uma espécie de “lumen honoris” próprio. Esses eram os excelentes do povo. E cada povo elaborava assim uma excelência correspondente à sua luz primordial(7), e algo que era a matriz de sua própria civilização e cultura.

Esses homens inspiravam os poetas, os artistas, realizavam os grandes feitos. Eram propriamente a tintura-mãe da nação, segundo a qual esta se modelava, conforme um processo muito natural, a partir da formação primeira de um núcleo excelente. Encontra-se esse processo de formação em mil fenômenos naturais. Por exemplo, se alguém quiser ter um grande exército fará muito bem possuindo, antes de tudo, um arqui-regimento, e depois constituindo outros regimentos segundo aquele. Ou se faz primeiro o excelente, e depois o resto, ou nada se realiza como deveria ser feito.

A todos esses “lumens” de honra próprios correspondiam escolas de cortesia, estilos, modos próprios etc., que eram as honras das várias nações. Em determinado momento a Europa soube perceber como eram essas honras das várias nações, e cada nação soube tributar à outra o apreço correspondente a isso. Houve, então, uma espécie de sinfonia de harmonia cristã por toda parte.

E o Reino de Maria continuará isso? Ou essas serão tradições que morreram e o Reino de Maria inovará coisas que vão servir de tintura-mãe para toda uma nova escola de “lumens” de honra e de estilos de cortesia muito mais quintessenciados? É uma pergunta diante da qual eu não tenho muito o que responder.

Só sei uma coisa: que, além de muito mais cerimoniosas, essas escolas de cortesia vão ser muito mais sérias porque serão a réplica a um mundo que pecou por falta de seriedade e por “nhonhozeira”(8). E evidentemente muito mais sacrais.

O pensamento religioso e o caráter da origem religiosa de toda superioridade, qualquer que seja a sua natureza, serão muito mais marcados do que antigamente. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/2/1980)

 

1) A partir do termo “megalomania” Dr. Plinio criou a palavra “megalice”, a fim de designar o vício de quem atribui a si mesmo qualidades que não possui ou então as exagera.

2) Penetrada, embebida. Neologismo usado por Dr. Plinio, derivado do verbo latino pervadere.

3) Antigo Regime. Período da História da França iniciado em princípios do século XVII e extinto em 1789, com a Revolução Francesa. Naquele período, a sociedade caracterizou-se por um requinte de bom gosto e pela elevação no convívio humano.

4) Duque de Saint-Simon (1675-1755), cujas Memórias abrangem o reinado de Luís XIV e a Regência.

5) Obra em versos (1897), de Edmond Rostand.

6) Do francês: penacho, adorno de penas.

7) A “luz primordial”, segundo a conceitua Dr. Plinio, é a virtude dominante que uma alma — ou um povo no seu conjunto —, é chamada a refletir, imprimindo nas demais sua tonalidade particular.

8) Termo usado por Dr. Plinio para designar o espírito acomodatício, apegado ao conforto, à despreocupação e à vida  sem dedicação a um ideal.

Apresentação de Nossa Senhora no Templo

Todas as esperanças, o perdão, a reconciliação, a redenção, a misericórdia que se abriram para o mundo com o nascimento de Jesus, tiveram seu marco inicial e propulsor no aparecimento de  Nossa Senhora neste mundo.

A criatura de uma vida insondavelmente perfeita, pura e fiel, que seria a maior glória da humanidade em todos os tempos, abaixo da glória da Encarnação do Verbo.

Compreende-se, pois, que já em sua mais tenra infância Maria tenha começado a influir nos destinos da história, sendo, desde então, imenso e inesgotável canal de graças para todos os homens.

Plinio Corrêa de Oliveira (“Apresentação da Virgem no Templo”, por Vittore Carpaccio)

A sede de admiração

Conforme o pensamento de Dr. Plinio, quando o homem dirige seus anelos para uma ordem de coisas superior à terrena, onde tudo lhe fala da perfeição absoluta do Criador, caminha ele pelas vias da admiração, ao longo da qual tornar-se-á uma grande alma.

 

A partir de qualquer ser possível, podemos imaginar um ser parecido, naquela linha, mas de uma perfeição maior.

Suponhamos um ser dos mais modestos, uma formiga, a propósito da qual nos é dado pensar na formiga perfeita, descartando o que ela tem de feio e analisando apenas os seus aspectos bons e até bonitos. Seria então a arqui-formiga, a formiga obra-de-arte, a formiga-tesouro, que poderia ser representada num diadema ou numa coroa.

Na verdade, a perfeição pode ser considerada em dois níveis: no primeiro, o ser, mesmo com seus defeitos, é levado ao pináculo do que ele pode atingir; no segundo, ele é despido de suas imperfeições e galgado a um superior grau de maravilhamento.

O homem tende a conceber a perfeição absoluta

Por detrás dessa noção se percebe a tendência do homem para o Paraíso, para o Céu, que o leva a conceber o mais perfeito de cada ser e, em última análise, a ideia de perfeição absoluta, que é Deus.

Esta inclinação, por outro lado, faz com que o homem procure também conceber nesta Terra uma série de coisas “paradisáveis”, não com a perfeição absoluta de Deus, mas toda a perfeição de que são capazes. Portanto, quando possui certa elevação de espírito e amor ao Criador, o homem se põe a conceber as coisas com esses vários graus de pulcritude, perfeição e excelência, e estas produzem nele o que em francês se diria um “chatouillement”, uma impressão deleitosa.

Creio que todo homem tem essa tendência, que no período da infância se traduz por um maravilhamento diante das coisas mais diversas. Digamos, quando a criança está numa fazenda e observa o panorama campestre à sua frente, com um rio cujas águas produzem um espelhamento do céu e emitem cores muito bonitas, ela se encanta de modo superlativo com aquilo.

Aspectos maravilhosos da Ásia

É interessante notar que, de certa forma, esse mundo maravilhoso se apresenta em muitos aspectos da Ásia, considerada quer como obra de Deus, quer dos homens. Percebe-se ter havido ali almas que, em determinado momento, pararam, pensaram e admiraram algo da infinita perfeição de Deus e, em seguida, cantaram, musicaram e esculpiram essas admirações, expressando-as em ritos religiosos, danças, palácios, tecidos, porcelanas e outras obras do gênero.

Voôs da pulcritude na Civilização Cristã

E teríamos, assim também, a ideia que orientou as almas a realizarem os esplendores da Civilização Cristã. De fato, na Cristandade ocidental e européia, ao lado de belezas como o castelo feudal, surgiram pequenas populações modestas mas encantadoras, cujas casas eram adornadas com bom gosto e alegria, os vasos de flores colorindo os beirais das janelas, terreiros bem cuidados onde criavam ovelhas e outros animais domésticos, junto com a pocilga dos leitões e, portanto, admitindo um convívio com o prosaico e menos encantador.

Como não nos lembrarmos das aldeias alemãs, com suas características habitações no estilo germânico, no interior das quais havia sempre um forno aceso onde se coziam pães deliciosos, e a lareira fumegante, junto à qual a família reunida entoava festivas canções.

Ou seja, ombreando com monumentos magníficos, havia uma arte popular muito bonita, constituindo com aqueles um mundo contínuo, sem monstruosidades, que ia desde o prosaico do terra-a-terra, até o alto das torres do velho castelo medieval.

E a Civilização Cristã produziu isso de próprio: o castelão e seus convivas eram como as estrelas do céu para o camponês que vivia em torno do castelo. Existia um tal relacionamento entre eles que algo do brilho da vida dos primeiros fazia permear o maravilhoso para o ambiente do aldeão. Essa não é uma afirmação gratuita. Os dados relativos a esse tema são tão abundantes que se poderia fazer, não um álbum, mas uma biblioteca de fotografias sobre as condições do povo na tradição medieval, apenas para se compreender as torrentes de maravilhas que a vida dos superiores proporcionava à existência dos inferiores.

Almas especialmente sedentas de arquetipias

Aliás, tenho a impressão — e o digo como opinião pessoal — de que nos séculos de Civilização Cristã, mais ou menos em todos os ambientes, Deus suscitou almas especialmente sedentas de perfeição, nos vários patamares sobre os quais acima falamos. E, talvez sem perceberem, impulsionaram esse desejo para frente, transmitiram-no às gerações seguintes, não só formando pessoas, mas criando costumes cuja importância, nesse campo, é tal que não se pode aquilitá-la em toda a sua medida.

Ousaria dizer mais. Creio que o primeiro homem a cantar uma bela canção popular, fazendo com que fosse entoada pelos demais habitantes e se tornasse um emblema daquela região; ou o primeiro homem que resolveu colocar um pote de gerânios na frente de sua casa para enfeitá-la, com o desejo de oferecer a quem o admirasse, a carícia desse convite para elevar suas vistas a uma esfera mais alta — esses pioneiros desempenharam, na ordem natural, um papel semelhante ao de um profeta na ordem sobrenatural. Nesse sentido de que apontaram aos outros o caminho da perfeição e da pulcritude que conduz à beleza absoluta, que é Deus.

Um perigo a se evitar

O escolho a se evitar nessa tendência para o maravilhoso perfeito é de se deixar atrair e dominar pelos deleites que a admiração pode produzir em nós. Pois, não raro, o admirável é delicioso. O indivíduo sente-se agradado no exercício de seu intelecto admirando algo, mas também pode sentir uma delícia física, como, por exemplo, quando ouve uma bela música. É possível que, na convergência dessas duas formas de sensação prazeirosa ele seja tentado a preferir apenas o gosto físico. Cedendo a essa tentação, começa a decadência, e ele passará a procurar somente as delícias palpáveis, desprezando as delícias “alpinísticas” do pensamento.

Chegará o dia em que esse indivíduo será dominado pela preguiça de empreender qualquer voo de espírito, e deixará o tempo se esvair como a areia escorre na ampulheta. Seu único trabalho será o de inverter a posição dela e deixar o pó cair novamente. Pior. Ao cabo de alguns anos, o homem que morou no palácio e nos parques da admiração, começa a olhá-la como inimiga. Porque se ele quiser voltar ao palácios e aos parques, terá de se esforçar. E tudo quanto dele exige força é seu inimigo. Assim ele naufraga na vida de delícia.

Alcançando o ponto máximo da admiração

Pelo contrário, à medida que o homem progride na admiração autêntica, no fundo de seu horizonte vai tomando corpo algo novo que é o ponto máximo do que ele admira e com o qual nunca sonhou. À força de se encantar com as coisas intermediárias, começa a se delinear para ele o objeto supremo da sua admiração. Assim, vai criando uma série de pontos de atração pinacular, os quais constituem para ele como que um Céu nesta Terra.

Se ele souber vencer os apelos do delicioso e viver para a admiração, encontrará o caminho a seguir para se tornar uma grande alma. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 4/6/1994)
Revista Dr Plinio 127 (Outubro de 2008)

 

O menino e o mar

Na primeira narração auto-biográfica de Dr. Plinio sobre sua meninice, publicada no número passado, deixamo-lo numa praia de Santos, contemplando o mar. Dr. Plinio continua aqui suas  lembranças de como foi discernindo e optando pelo bem, perante as coisas que observava na infância. E como daí surgia o combate ao mal que via em si.

 

Visitando o mar de Santos — a praia do José Menino ou o Boqueirão — lembro-me da impressão que me causavam as ondas quando eu as olhava quebrarem-se a certa altura. Vinham aquelas toalhas de água que se estendiam sobre superfícies mais ou menos amplas, e depois, como por uma força misteriosa, eram atraídas de volta e refluíam, refluíam, refluíam.

Em meu espírito elas evocavam dois outros movimentos que afetavam a sociedade em que eu vivia: o da onda enorme da influência e dos estilos de vida hollywoodianos da década de 30 que avançavam, e o da onda da influência européia que retrocedia. Era a velha Europa da qual eu conservava na retina, na imaginação e no coração alguns aspectos fugazes do tempo em que, com quatro anos, eu a visitara.

Era a velha Europa da qual ouvia falar sempre, nas conversas caseiras; a velha Europa que eu admirava num livro que papai trouxe da Alemanha, quando lá estivemos em 1913. Esplendores da Alemanha militar Esse livro intitulava-se “L’Alemagne Moderne”. Obra de um autor francês que escrevia sobre a Alemanha do tempo do Kaiser Guilherme II, fartamente ilustrado com cenas da  Alemanha daquele tempo. Havia fotografias das regiões industriais e da vida econômica e capitalista da Alemanha que não me interessavam. Mas havia também fotografias dos panoramas alemães e da Alemanha artística — que maravilha! Também da Alemanha de corte — que esplendores!

Eu folheava o livro longamente, embevecidamente, dez vezes, vinte vezes… Depois vinha a Alemanha militar. Eu não posso me esquecer de uma fotografia, colorida com os recursos gráficos do empo, mas que me encantava. Retratava uma parada militar na Berlim kaiseriana, no campo chamado “Tempelhof” (o “Pátio do Templo”), nos arredores de Berlim.

Era uma grande planície à maneira de tabuleiro onde as tropas do Kaiser evoluíam. O Kaiser montava um bonito cavalo, portava um capacete de aço com a águia imperial e passava o bastão de  comando a um general, porque ele devia partir.

Os exércitos do tempo tinham cavalarias magníficas. Não posso me esquecer de uma fotografia um pouco menor, que retratava o “hurrah” da cavalaria: o momento em que todos gritam “hurrah” e os  cavalos avançam contra o adversário de parada, o adversário imaginário. Sabia-se bem que, na mente dos alemães, eram os franceses que estavam do lado oposto.

Mas, com certeza, na tribuna dos diplomatas o embaixador francês assistia aquilo imprevidente, impávido, cético, fingindo achar que esse desfile nada tinha a ver com ele. “Un hurrah de chevalerie”,  lia-se na legenda da foto, na qual a gente via avançar a cavalaria com todos os soldados empunhando espadas. Quanto eu me entusiasmava com essas perspectivas! Alemanha tradicional X Alemanha industrial. Havia no livro fotografias da indústria alemã que tinha aquele quê de metálico, de mecânico, de material, de inanimado no sentido próprio da palavra, isto é, sem alma, inerente a todo ambiente industrial, ainda em nossos dias, e talvez principalmente em nossos dias.

E eu analisava o contraste daquelas fotografias com as cenas de Corte e os retratos do “Kaiser”. Lembro-me de uma fotografia muito bonita: o “Kaiser” e a “Kaiserin” (a Imperatriz) recebendo as  homenagens de seus pajens, numa sala esplendidamente iluminada.

A “Kaiserin” era uma dama simpática, cheia de bondade e distinção. Os dois estavam em pé e os pajens belamente vestidos, em trajes de “Ancien Régime”, formando um quadrilátero diante do Kaiser. Olhava aquilo e achava lindo. Mas havia alguma coisa de que eu não gostava; “algo que já cheirava a indústria ”: de repente, viro uma página e vejo uma fotografia do Kaiser, não mais vestido de  uniforme, como se vestiam os reis daquele tempo, mas em civil, com ar galante e com uma flor no peito. Pouco depois, uma outra fotografia, da célebre, famosa, histórica catedral de Colônia, uma  das mais bonitas do mundo, que foi terminada no tempo do Kaiser e que trazia, do lado de fora, entre as estátuas próprias ao edifício gótico, o Kaiser esculpido como profeta do Antigo  Testamento.

Ficava completamente ridículo! Era indústria de um lado, ridículo de outro, tradição no meio, formando um conjunto objetável. Quando um pouco depois disso assisti, no cinema, a cena do enterro do Imperador Francisco José, da Áustria- Hungria, fiquei deslumbrado. Tudo era como devia ser, exceto num ponto: faltava a força e o empenho que eu admirava no estilo prussiano. Eu me perguntava: “Não há jeito de juntar essas duas coisas? Quão belas, quão nobres são as coisas austríacas! Aqueles uniformes, que coisa esplêndida! Francisco José, que coisa magnífica! Mas essa gente toda, colocada em cima de cavalos, em seu “hurrah ” de cavalaria não é capaz de enfrentar o “hurrah” do Kaiser.

Ora, essas coisas bonitas só são verdadeiramente bonitas quando vitoriosas; e só são vitoriosas quando heroicas; e só são heroicas quando profundamente sérias. Eu percebia que era preciso filtrar, era preciso tamisar o que me vinha dessas nações. Eu não podia aceitar aquilo como um bloco.

De outro lado, que critério usar para filtrar? Que critério para tamisar?

As outras nações da Europa

Extasiava-me também com as outras nações da Europa, cujos produtos me chegavam em abundância, porque ainda não havia as grossas travas de alfândega que depois vieram. Por todo lado  éramos penetrados pela substância européia, enquanto soprava o vento norte-americano.

Nessa contradição, tomando contato com ares franceses, ao mesmo tempo que eu me maravilhava, dizia de mim para comigo: “mas falta seriedade nisso! Em todo esse mimo, em toda essa graça, falta algo”. Eu vejo que essa nação descende de cruzados, mas eu não vejo que cruzados descenderiam dessa nação. Santa Joana d’Arc, que admirável! Godofredo de Bouillon, nem sei o que dizer!

Olhava Versailles cujas carruagens  me tinham entusiasmado tanto; olhava o Trianon, olhava o Petit Trianon, Fontainebleau, as florestas… Como tudo ria e sorria de modo encantador! Mas eu pensava: “isto é o sorriso. Eu quero ver agora a carranca, eu quero ver a força!”

Um trabalho de seleção, com base no critério católico

Era preciso selecionar, era preciso tamisar; não bastava dizer “não” à influência hollywoodiana, mas era preciso rejeitar também a frivolidade francesa e recolher da Europa a pura seiva da Civilização Cristã com base no critério católico. Eu não via que as pessoas de minha época fizessem isso. Notava que, mesmo pessoas de posição na Igreja, pactuavam indolentemente com a influência “yankee” que entrava e olhavam sem saudades para a influência européia que recuava.

Mas quando eu estava sozinho, ao lado da reflexão sobre qualquer coisa — uma concha, um caramujo… —, vinham de modo natural à tona essas considerações que eram longamente analisadas por mim. Eu pesava, comparava, admirava, censurava, e a cada passo que via algo admirável, fazia uma comparação com a Revolução anticristã que entrava e compreendia melhor como esta era rejeitável.

Lembro-me que me sentava sozinho naquelas amuradas de canais que entram pelo mar de Santos. Meu pretexto, para poder me isolar, era pescar siri. Arrumava uma pedra, atava-a de um lado a um pedaço de carne crua que me davam na cozinha da casa de meus tios, e de outro lado a um barbante, e partia com um baldezinho. Era o pretexto para ficar sozinho, pensando. Voltava depois  para casa com três, quatro, cinco siris, que eram jogados fora.

Naquela amurada de pedras que invadia o mar, eu ficava cercado de ondas que vinham e voltavam. Às vezes andava pela praia vazia, ao longo da qual havia casas de família ainda dignas e antigas, e que me pareciam bonitos palacetes agradáveis de serem vistos de longe. E as reflexões começavam a me subir ao espírito. Contemplava o mar de Santos, que a meus olhos parecia grandioso.

Naquela época, o mar conservava algo de ameaçador; os que navegavam pelo oceano ainda tinham medo de alguma coisa. E o medo do mar dava- lhe prestígio…

A alguma distância de mim, do lado do Guarujá, havia uma ilha com uma nota de tragédia, quase colada ao continente. Uma ilha de um granito vagamente rosado, não especialmente bonita, mas agradável de se olhar. Era a ilha das Palmas, onde se dizia que havia um hospital de doenças contagiosas. Eu pensava no infortúnio daqueles que eram colocados fora do convívio humano: “fiquem longe, não queremos contato!” No extremo da terra, isolados, somente ouvindo as ondas do mar…

Esse infortúnio naquele ambiente se me afigurava impressionante. Eu tinha muito medo do contágio, mas considerava fascinantes as meditações que ali se pudessem fazer.

As grandezas do mar, os sorrisos do mar, o rumor do mar… O mar brilhando à luz das quatro horas da tarde, no crepúsculo das cinco ou das seis horas da tarde, e por fim, no ponto último onde no horizonte se encontrava com o céu: olhar aquilo me deixava como que intrigado.

Tudo isso me parecia muito belo. E eu refletia: como isso é diferente  da coisa americana! Como isso convida a pensar! Como, debaixo de vários pontos de vista, pode-se dizer que isso é profundo,  é grandioso, é infatigável, é incessante, é carinhoso, é jeitoso, é discreto. Mas, também, como é solene! Oh, o mar!

Como minha alma que comporta tudo isso é diferente da alma comprimida, achatada, passada na plaina pela Revolução, tão rasa, tão lisa, tão banal, tão corriqueira de tantos daqueles que eu conheço de minha idade! Que mundo está sendo preparado?! Que banalidade!

Combate à tendência para o romantismo

Essa constatação levava-me a deter o olhar não mais na formosura do mar e nas transcendentes belezas a que o mar conduzia, mas a me perguntar: “mas então, como sou eu?

Vou me descrever para mim mesmo

E na hora de me descrever para mim mesmo, o próprio enlevo pela tradição que eu amava, e pela Igreja que eu quase diria adorava, levava-me a perceber o reflexo dessas coisas na minha alma e a ser tentado de enlevar-me comigo. Era a hora exata em que os estampidos sonoros de Wagner, ou melodias ultra-melosas de Chopin me passavam pela memória.

Eu tinha tendência a identificar minha pessoa com a tradição — não por minhas próprias qualidades, mas porque em mim se refletia aquela tradição que eu amava. Ora, nessa identificação, havia o convite para uma posição admirativa e lânguida a respeito de mim mesmo. Era a tentação para o romantismo: a ilusão de ótica por onde a pessoa se põe no centro de tudo, põe-se como foco da  tradição, põe-se como o modelo da Contra-Revolução e já não tem interesse em olhar para o mar a não ser na medida em que o mar se reflete nela. Já não tem interesse em olhar para a História, a não ser na medida em que se sente encaixado  ou relacionado, ao menos pela fantasia, com a História. Pelo peso do pecado original, a pessoa acaba considerando secundário o que antes admirava  e tornando principal aquilo que o pecado original vulnerou, que é o próprio homem.

O mau efeito dessa tentação era como algo lânguido que eu sentia dentro de mim, e pensava: “Não posso consentir nesses pensamentos porque neles há alguma coisa de mau. O que seja, eu saberei depois. Mas o fruto é ruim. Eu preciso ter a serviço dos meus ideais o ímpeto dos ‘hurrah ’ de cavalaria. E tudo o que me afastar desse ímpeto é mau. Tais pensamentos podem ter coisas boas  misturadas, mas fundamentalmente têm algo ruim dentro. Não e não!” Nunca mais ouvi as músicas que eram conexas com esse estado de espírito: nunca mais Chopin, Wagner, Liszt, para não falar de Mendelsohn e Brahms.

Essa introspecção langorosa e derretida de si próprio é a substância do romantismo. Schumann tem uma música chamada “Revêrie”. “Revêrie” quer dizer sonho. A gente vai ver, o tema do sonho é ele,  nquanto se admirando e tendo entusiasmo consigo. O romantismo desnorteou as melhores almas O homem reto nunca se admira a si mesmo, nunca se contempla, nunca se compara, porque  sabe que isso é um poço envenenado, do qual uma gota de água que beba o intoxica. A perfeição nessa matéria, quando se contempla o mar, consiste em evitar ver o reflexos do mar em si, mas pelo contrário procurar vê-lo como simbolizando Deus Nosso Senhor, a Igreja Católica e todas as grandezas.

Ah, se isso tivesse sido feito pelos românticos, quantas almas se teriam salvo e teriam dado resultados esplendorosos! Como teriam sido outras as gerações!

O romantismo tomava as melhores almas daquele tempo, isto é, as que estavam ainda sujeitas à influência européia decadente, e as enleava nessas malhas da auto-contemplação. Enquanto que o dito americanismo hollywoodiano perdia os que eram menos bons. Diante de meus passos, exagerando algum tanto, eu poderia dizer que os caminhos que se abriam eram sendas de perdição.

As frivolidades dos pseudo-tradicionalistas românticos

Nossa Senhora me ajudou a fazer a escolha de tal maneira que do romantismo não ficasse nada e, espero eu, que algo tenha ficado do “hurrah” da cavalaria, da fidelidade à tradição. Aqui se tem, portanto, o que era essa batalha interna, e cada um pode fazer a si mesmo uma aplicação. Eu conheci pessoas bem apreciáveis apaixonadas pela tradição. Com elas acontecia por exemplo que  começavam a estudar história e de repente um inventava que era conde, começava a se vestir de conde, com roupinhas, gravatinhas, colarinhos, anéis — dois, três, quatro ou mesmo cinco anéis diferentes para serem usados conforme o dia — , e adotava modos de falar em que procurava representar um papel histórico. No fundo, tratava-se do egocentrismo. Eram pessoas das quais se ria e que ninguém tomava a sério, que não atraíam ninguém, que não impressionavam ninguém, não arrastavam ninguém. Porque não era a História, não era um ideal, não era um absoluto, não era Deus que estava presente nelas.

Quantas e quantas coisas desse gênero torciam os melhores. Ia-se conversar às vezes com um que tinha o ar mais tradicional, e ouvia-se só bobagens. Eu procurava em vão descobrir a que doutrina, a que pensamento, a que princípio queriam chegar. Nada: o interesse era o anelzinho. Ora, anelzinho não convence!

Havia uma deformação análoga a essa, que era o efeito do romantismo na esfera religiosa.

O que era o romantismo religioso?

Era uma sentimentalidade religiosa que desvirilizava, que afrouxava e debilitava a vontade, que não formava fiéis combativos, mas propunha um ideal de caridade mal concebido, que dava no tipo humano do carola, do beato ou da beata, tão caricatos. Voltemos à praia de Santos. Em meio às reflexões naturais de um menino que se retira sob o pretexto de pescar siri, intervém a Providência.

O Santuário do Embaré começava a ser construído. Uma igreja de um gótico muito provinciano, mas ainda gótico. Da praia, eu olhava para aquela construção e dizia: “Oh, Santa Igreja Católica que não mudas! Tu és fiel ao gótico, que é a morada de minha alma! Tudo muda em torno de ti. Mas tu aqui, diante do mar, em meio à tempestade hollywoodiana, tu ergues as tuas torres góticas aos olhos de Deus e do sol que vai nascer”.

Contemplá-la ajudava-me a discernir entre o bem e o mal, e me enchia de entusiasmo.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 66 (setembro de 2003)

Reflexo da sabedoria cristã

As primeiras impressões sobre a Idade Média que tocaram minha alma — as quais encontrariam mais tarde na palavra “Cristandade” a sua expressão adequada — vieram através de livros para crianças folheados por mim, um ou outro cartão postal que me caía sob os olhos, assim como fotografias e gravuras retratando paisagens e monumentos da antiga Europa, e que produziam no meu espírito verdadeiros frêmitos de entusiasmo na consideração das coisas medievais.

Encantavam-me as catedrais góticas, as ruínas de castelos ou as velhas construções conservadas intactas, admirava o mundo da heráldica que começou a luzir à minha vista como um conjunto de vitrais sem vidro, escudos medievais parecendo rosáceas impressas num papel resplandecente, tudo me falando da mesma época em que floresceu a música sacra, uma época em que a fé católica espargia grande influência sobre a mentalidade e a sensibilidade humanas, dando origem a uma ordem temporal de esplendor incomparável.

Ogivas, torres, campanários, vitrais, armaduras… Detenho-me na contemplação destas últimas.

Poucas vezes o homem se tem revestido, no sentido material da palavra, de tal manifestação de força como quando se cobre de ferro, com pequenas aberturas no elmo que o permitam ver e respirar. De resto, está todo envolto pelo ferro, manifestando um misto de prudência e de coragem que traduz o equilíbrio da sabedoria cristã. Coragem e prudência que indicam, ao mesmo tempo, um amor à vida, uma consciência plena do inestimável preço da existência humana para protegê-la de tal maneira, e uma inteira disposição para sacrificá-la, se preciso for, a serviço de Deus e da Igreja.

O homem se veste inteiro de metal, para se defender e para se lançar no centro do perigo, revelando a magnífica estatura do combatente que soube compreender e amar verdades eternas, preceitos morais, tesouros de fé cristã pelos quais vale a pena não só lutar, mas morrer. É praticar essa mesma fé cristã até as suas últimas e gloriosas conseqüências.

Assim, toda a sua personalidade se acha tão imbuída do espírito católico que ele se apresenta revestido de ferro, afirmando a serena convicção de seu direito e da santidade de sua causa. Na véspera de partir para uma batalha em que lutará pelos interesses da Igreja, ele se entregou à vigília das armas: rezou, implorou o socorro do Céu, pesou e mediu os sacrifícios, as dores e, quiçá, o holocausto supremo que se aproximavam. E ele a tudo aceitou de antemão. Os penachos de seu elmo deixaram de ser meros enfeites, e sua armadura uma simples afirmação de riqueza ou categoria.

Simbolizam, agora, a intrepidez de uma alma heroica. São reflexos da sabedoria cristã. Representam a força a serviço da sublimidade.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 102 (Setembro de 2006)

 

A entrega do Brasil ao Imaculado Coração de Maria

Tomando conhecimento de uma iniciativa que visava colocar nas mãos da Santíssima Virgem o Brasil, Dr. Plinio a apóia calorosamente.

 

Atendendo com a maior satisfação ao amável convite dos beneméritos Padres cordimarianos, venho prestar minha pequena contribuição para a vitória da gloriosa campanha, agora movida em  tantos lugares, em prol da consagração do Brasil ao Coração Imaculado de Maria.

Jamais será suficiente encarecer a importância desta providencial consagração. É possível que alguns católicos não percebam desde logo o que ela significa. Com efeito, dirão, a devoção a Nossa  Senhora é de tal maneira fundamental no católico, e se encontra tão fundamente enraigada no coração brasileiro, que qualquer trabalho que se faça no sentido de uma consagração do Brasil ao Imaculado Coração de Maria não logrará causar nos espíritos impressão muito profunda. Entre nós, a devoção a Nossa Senhora atingiu seu zênite. Insistir neste assunto é, de certo modo,  consumir tempo e forças na afirmação de um ponto pacífico, enquanto tantos e tantos outros pontos estão a reclamar nosso zelo e combatividade.

Esta argumentação [resulta] de uma série de pressupostos improcedentes. Em primeiro lugar, não se pode dizer propriamente que em qualquer país do mundo a devoção a Nossa Senhora tenha atingido seu zênite. É tal o amor, tão profundo respeito que se deve tributar a Nossa Senhora no culto de hiperdulia que lhe devemos, que Maria Santíssima jamais será suficientemente amada nem louvada pelos fiéis: “de Maria nunquam satis”. Assim, jamais será tempo perdido acentuar a devoção dos fiéis à sua Mãe celestial.

Aliás, se é certo que, graças a Deus, existe no Brasil uma ardente devoção a Nossa Senhora, ninguém poderá negar que essa devoção, como tudo quanto é bom, é passível de prejuízo e decréscimo  neste triste vale de lágrimas. Incrementar por todos os modos a devoção a Nossa Senhora significa, pois, evitar que essa devoção fique exposta aos riscos naturais que decorrem das incertezas do coração humano. E, finalmente, se é certo que nossa devoção é muitas vezes intensa, nem sempre é tão esclarecida quanto seria de se desejar.

Sendo Maria Santíssima a nossa Mãe, é óbvio que nossa devoção para com Ela se deve revestir de caráter de acentuada ternura. Enganam-se, entretanto, os que [pensam que] essa ternura sobrenatural pode confundir-se com certas expansões românticas e sentimentais em que se cifram por vezes algumas manifestações de piedade. São indispensáveis bons e sólidos conhecimentos sobre a posição de Maria Santíssima na economia da graça divina, para que a devoção mariana se torne sólida e perfeita. Ora, a consagração do Brasil ao Imaculado Coração de Maria constituiria excelente oportunidade para se divulgarem com método e perseverança os admiráveis ensinamentos da Santa Igreja sobre tão fundamental matéria.

Mas, é preciso acentuá-lo, os que propugnamos pela consagração do Brasil ao Coração Imaculado de Maria, se bem que apreciemos no seu alto e devido valor estes frutos  de tão solene ato, temos em vista um resultado muito mais alto e mais profundo.

Queremos que nossa Pátria seja consagrada ao Coração Imaculado de Maria antes de tudo e acima de tudo porque Maria Santíssima tem direito a esta homenagem. A realeza de Nossa Senhora, como função da realeza de seu Divino Filho, não pode ser posta em dúvida pelos católicos.

Rainha de todo o universo, Maria Santíssima já foi coroada Rainha do Brasil pela mão do ínclito Arcebispo do Rio de Janeiro, com coroa enviada especialmente pelo Santo Padre. Consagrado o  Brasil ao Imaculado Coração de Maria, consagramos o reino ao coração da Rainha, e, com isto, fazemos um ato excelente de confiança filial em sua misericórdia, e, ao mesmo tempo, atraímos  graças maiores e mais abundantes para nossa Pátria.

Não se trata aí de meras figuras de literatura. Trata-se de realidades sobrenaturais. O reinado de Maria Santíssima sobre o Brasil não é alegórico ou simbólico: é real. Nossa consagração também  não deverá ser um ato feito só para estimular as multidões e dar expansão, por meio de gracioso símbolo, a nosso afeto. Será um ato de caráter sobrenatural, que, se Deus quiser, se realizará em  todas as suas conseqüências. Consagrado o Brasil a Nossa Senhora, pertenceremos mais a Ela, e com nossa doação repararemos de modo mais conveniente todos os ultrajes que a Ela ou a seu  Divino Filho temos feito. E, ao mesmo tempo, Ela será mais nossa. Aceito nosso dom, sua assistência e sua proteção sobre nós serão ainda mais contínuas, mais vigilantes, mais misericordiosas.

Como se vê, não pode haver causa mais digna de ser apoiada com entusiasmo pelos fiéis do Brasil inteiro.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito da revista “Ave Maria”, de 31/7/1943)

Santo Estevão – Perfeito guerreiro e devoto de Nossa Senhora

A Igreja, vista na sua totalidade, possui uma harmonia de aspectos opostos, mas afins, que mostra toda a sua beleza. Santo Estêvão foi um exemplo dessa harmonia: incomparável em toda forma de misericórdia, mas por isso mesmo um homem forte, combativo, que lutou intrepidamente pelo bem.

 

As fichas a serem comentadas hoje versam sobre a vida de Santo Estêvão, Rei da Hungria, retiradas do livro Vida dos Santos, de Rohrbacher(1).

Particular devoto da Santíssima Virgem

Santo Estêvão é o grande monarca a cujo Batismo se deveu a conversão da nação húngara, até então pagã. O que Clóvis foi para a França, ele significou para a Hungria, com a imensa diferença de que Clóvis se converteu, mas ficou muito longe de ser um santo. Enquanto, pelo contrário, Estêvão foi um verdadeiro santo. Também os descendentes imediatos de Clóvis não foram santos, mas Santo Estêvão teve um filho canonizado: Santo Américo, sucessor de seu pai no trono real.

Esta primeira ficha nos traz um dado especial sobre Santo Estêvão: sua devoção a Nossa Senhora.

Santo Estêvão sempre manifestou predileção particular pela Santíssima Virgem. Por meio de um voto especial, colocou sua pessoa e seu reino sob a proteção de Nossa Senhora. Quanto aos húngaros, ao referirem-se à Mãe de Deus, não Lhe davam o nome de Maria, ou qualquer outro; diziam apenas “A Senhora” ou “Nossa Senhora”. À simples menção dessas palavras, inclinavam a cabeça e dobravam o joelho.

O santo rei mandou construir em Alba Real magnífica igreja em honra da Rainha do Céu. Os muros do coro eram ornados de esculturas, o piso de mármore, possuía várias mesas de altar de ouro puro, enriquecidas de pedrarias, e um tabernáculo para a Eucaristia maravilhosamente trabalhado. O tesouro estava repleto de vasos de ouro e prata, cristal e de ricos paramentos.

Santo Estêvão sempre desejou, pedindo mesmo em suas orações, que sua morte ocorresse no dia 15 de agosto, Assunção da Santíssima Virgem. Sua vontade foi satisfeita. Antes de expirar, erguendo as mãos e os olhos, exclamou: “Rainha do Céu, Co-Redentora do mundo, é ao vosso patrocínio que entrego a Santa Igreja, com os bispos e o clero, o reino com os grandes e o povo”; e, tendo recebido a Extrema-Unção e o Santo Viático, rendeu a sua alma.

Guerreiro e juiz

A segunda ficha apanha outro aspecto da personalidade dele: Santo Estêvão, guerreiro e juiz.

À piedade e ao zelo de um apóstolo, Santo Estêvão da Hungria juntava a coragem de um guerreiro e herói. Nas instruções a seu filho, Santo Américo, ele próprio observa que passara quase toda a sua vida na guerra, repelindo invasões de nações estrangeiras. Logo que subiu ao trono, ainda duque – ele foi duque até o momento de se converter, quando o Papa o elevou à dignidade de Rei da Hungria –, procurou manter a paz. Porém, dirigidos pelos fidalgos, seus súditos, ainda pagãos, revoltaram-se. Pilhavam cidades e campos, matavam seus oficiais e insultavam o próprio Duque.

O Duque Estêvão reuniu suas tropas e, levando nos seus estandartes a imagem de São Martinho e São Jorge, marchou contra os rebeldes que sitiavam Veszprém. Tendo-os derrotado, consagrou suas terras a Deus.

Em 1002, tendo seu tio Gyula, Duque da Transilvânia, atacado a Hungria por várias vezes, Estêvão marchou contra ele, fê-lo prisioneiro, assim como sua família, e juntou seus Estados à monarquia húngara. Venceu e matou com as suas próprias mãos Kean, duque dos búlgaros. Com o mesmo êxito repeliu os bessos, povo vizinho da Bulgária. Mas sua justiça igualava seu valor. Atraídos por sua fama, sessenta bessos da nobreza deixaram sua terra, levando com eles famílias e riquezas, e vieram pedir ao santo Rei permissão para se estabelecerem no Reino da Hungria.

Os fâmulos de um comandante de fronteira, levados pela cobiça dos despojos, atacaram-nos de improviso matando alguns, ferindo outros, e arrebatando os seus bens. Santo Estêvão deu ordem para que o comandante e suas tropas se apresentassem na corte. Ao defrontá-los, recriminou-lhes a desumanidade e comunicou-lhes que faria o mesmo com eles. Imediatamente mandou-os enforcar dois a dois em todas as avenidas do reino, a fim de que todos soubessem que a Panônia estava aberta aos estrangeiros e que nela encontrariam hospitalidade e proteção.

A Civilização Católica é a fonte de todo bem e de toda grandeza temporal

Aqui encontramos essas verdadeiras maravilhas da Igreja Católica sobre as quais jamais será suficiente insistir. Quando nos deparamos com uma acusação à Igreja, devemos procurar sua unilateralidade. Porque, em geral, tratando-se de uma acusação histórica, entra uma mentira; sendo uma acusação doutrinária, há uma unilateralidade. Os adversários da Igreja não querem tomar em consideração que ela, vista na sua totalidade, tem uma harmonia de aspectos opostos, mas afins, que faz toda a beleza da Esposa de Cristo. Aliás, também no universo, os contrários harmônicos constituem a beleza da ordem criada por Deus. Não se pode possuir verdadeiramente o espírito da Igreja se não se têm os olhos voltados para esta verdade e o espírito enlevado com ela.

Essas duas fichas nos dão a fisionomia completa de Santo Estêvão e, portanto, da Igreja que o canonizou. Porque quando a Esposa de Cristo canoniza alguém, declara que esse Santo teve perfeitamente o espírito dela. De maneira que cada Santo, a seu modo, é uma imagem do espírito da Igreja. Assim, se raciocinarmos com uma lógica elementar, com um bom senso primário, encontramos a plena justificação de ambos os aspectos na vida de Santo Estêvão.

Primeiro, o aspecto varonil e enérgico. Santo Estêvão está às voltas com inimigos irredutíveis que o odeiam por não ser pagão, querem depô-lo porque ele deseja trazer a luz do Evangelho para seu povo, e por isso se revoltam contra ele, dentro do reino, ou marcham de fora para o interior de seus domínios para exterminá-lo e eliminar a porção da nação húngara que já aderiu à verdadeira Fé. Esses homens são esses invasores, revoltosos, os inimigos da salvação eterna do povo húngaro.

Ao mesmo tempo, são inimigos da soberania do povo húngaro, do direito que tem esse povo de escolher a verdadeira Fé, de atender ao apelo de Nosso Senhor Jesus Cristo, dessa liberdade que o homem tem quando obedece a Deus.

Portanto, Santo Estêvão via seu povo atacado nos seus bens espirituais mais altos, porque a Fé é a fonte de todos esses bens, e agredido na sua própria soberania, no que ela tem de mais importante, porque o distintivo da soberania de uma nação é a mesma coisa do que o selo da liberdade de um homem: consiste em, sem embaraços, poder obedecer e servir a Deus. Essa é a própria definição de liberdade. Negar ao povo húngaro essa liberdade era recusar-lhe a sua soberania no que ela tem de mais essencial. Significava, ademais, comprometer o progresso do povo húngaro, porque a Civilização Católica, correspondendo inteiramente aos princípios da ordem natural e dando ao homem as forças sobrenaturais para obedecer aos princípios dessa ordem, é a fonte de todo bem e de toda grandeza temporal. De maneira que querer afastar a Fé católica de um país é desejar mantê-lo num paganismo abjeto e impedir seu verdadeiro progresso. Logo, tudo quanto consistia para a Hungria uma razão de ser e de viver estava empenhado nessa luta de Santo Estêvão.

O centro da resistência de um país era o rei

Naquele tempo a alma e o centro da resistência do país era o rei. O modo de desmantelar essa resistência era matar o monarca. Se um rei pagão pretendia eliminar Santo Estevão, não era belo, simbólico e nobre que o Rei santo o eliminasse com sua própria espada e suas próprias mãos? E que assim a infâmia cometida por um sangue régio fosse reparada pela fidelidade de outro sangue régio? Isso não é conveniente e bonito? Santo Estêvão cumpriu seus deveres de soberano, defendendo assim seu povo e a Santa Igreja Católica.

Por que ele agiu de um modo tão enérgico com os indivíduos que mataram e roubaram essas pessoas que iam se asilar na Hungria? Elas pertenciam à própria nação do rei que ele tinha morto, ou que ia matar. Eram pessoas de categoria que, descontentes com o rei pagão, querendo se converter, passavam com seus rebanhos e suas economias para o território da Hungria. Elas chegam à fronteira – naturalmente desejavam se batizar – e pedem: “Nós queremos ingressar no reino de Estêvão e no reino de Cristo. Pedimos licença para entrar impunemente nós e os nossos.” Consulta-se o Rei, o qual diz: “Podem entrar, eu dou garantias para as pessoas e para os bens.” Abrem a fronteira e elas entram com toda a confiança, deixando as armas de lado – naquele tempo todo homem, sobretudo o chefe de família, era um guerreiro.  Mas aparecem uns bandidos infames que assaltam, matam algumas pessoas para serem donos dos haveres. São assassínios vulgares, agravados pelo aspecto da traição. Então, Santo Estêvão, que punia com pena de morte um assassinato comum, não haveria de mandar castigar esses homens? Alguém dirá: “Mas eles foram muitos.” Prova a mais de que se devia punir com pena de morte. Porque, se são muitos os criminosos, isso prova que o povo não está muito distante da prática desses crimes. E então é necessário punir para que o crime não se repita. O fato de serem muitos é uma prova a mais de que precisava punir.

Praticou a justiça e a misericórdia ao mesmo tempo

Ele cumpriu o dever inerente à majestade régia. O rei tem os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. É o supremo juiz do país. E os antigos, aliás muito acertadamente, consideravam o Poder Judiciário mais alto do que o Legislativo. Porque as Leis fundamentais são feitas por Deus. E o rei é o juiz que julga de acordo com as Leis fundamentais. O monarca não possui a plenitude do Poder Legislativo, enquanto o Poder Judiciário ele tem no sentido de que aplica a Lei de Deus. Então, Santo Estêvão agiu perfeitamente bem.

Esse homem podia, portanto, quando rogava para Nossa Senhora, dirigir-se a Ela com o espírito completamente tranquilo, com a consciência inteiramente distendida. E verdadeiramente chamá-La de Mãe de Misericórdia, implorar a compaixão d’Ela porque ele usou de misericórdia. Ao castigar essa gente, Santo Estêvão foi misericordioso para com os que eram ou poderiam vir a ser vítimas desses homens maus, se não fossem intimidados; quer dizer, ele praticou a justiça e a misericórdia ao mesmo tempo. Então, nós deduzimos daí que Santo Estêvão agiu perfeitamente bem.

Temos, então, a imagem do perfeito guerreiro e devoto de Maria. Incomparável no perdoar, no estimar, em toda forma de misericórdia, mas por isso mesmo homem forte, valente, que passou o tempo inteiro na luta.

Fisionomia do combatente católico por excelência

Lembro-me de que certa vez, conversando com um senhor de uma lógica muito estrita, muito clara, com base em premissas extremamente pobres e limitadas, abrangendo sempre uma parte infinitesimal do horizonte, ele me dizia:

“Eu não gosto do livro Imitação de Cristo. Li e não compreendo, porque se eu fosse fazer constantemente o que está ali – voltar o outro lado do rosto, não tomar em consideração o mal que os outros nos fazem, perdoar sempre, etc. –, eu me deixaria roubar, saquear! É a conclusão lógica da Imitação de Cristo.”

Pensei com os meus botões: Para esse homem não há explicação possível. Ou lhe faço um simpósio, que de nenhum modo ele quer ouvir, ou ele não pode entender isso, porque se colocou previamente fora das perspectivas necessárias para essa compreensão.

É preciso exatamente compreender que a Imitação de Cristo foi escrita para um ambiente no qual esses princípios que apresentei eram claríssimos, e havia até a tendência a exagerar o lado belicoso. Então, a Imitação de Cristo constituía uma nota dentro de um concerto, ou seja, a insistência em uma das vias que, conjugada com a outra, dá a perfeição da Moral Católica.

Sem dúvida, sempre que possível é preferível perdoar, praticar a mansidão e não a violência. Mas não sendo possível é preciso arregaçar as mangas e lutar!

Nisso se vê nossa fidelidade aos princípios da Igreja Católica, pelo auxílio e bênção de Nossa Senhora. Por vezes, as pessoas não compreendem o desassombro com que enfrentamos o que imaginam ser a opinião pública. De outro lado, não entendem também como somos corteses, gentis, amáveis e nunca tomamos a iniciativa do ataque. Entretanto, quando atacados, damos uma surra! É a fisionomia do combatente católico por excelência: enquanto não me agridem, não agrido. Porém, ai de quem me agredir, porque saio “com um quente e dois fervendo!”(2) É uma pequena aplicação do que acabamos de ver na vida de Santo Estêvão.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/9/1971)

 

1) Cf. ROHRBACHER, René François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. vol. XV, p. 423, 428-430 e 442.

2) Antiga expressão popular portuguesa, significando aqui uma reação imediata e indignada.

Santa Josefina Bakhita

Nascida no Sudão em 1869, foi raptada por traficantes de escravos, os quais lhe impuseram o nome de Bakhita, que significa Afortunada.
 
Após ser vendida várias vezes no mercado, teve a dita de ser comprada pelo cônsul italiano, Callisto Legnani, em cuja casa foi pela primeira vez tratada com bondade e carinho.
 
Quando o cônsul retornou à Itália, a jovem escrava pediu que fosse levada junto com a família. Lá chegando, Legnani acedeu aos insistentes pedidos da esposa de um seu amigo, Augusto Michieli, e permitiu que a jovem fosse residir com eles. Dedicada e afável, em pouco tempo ela conquistou a simpatia e confiança dos novos patrões, tornando-se babá da filha recém-nascida.
 
Pouco depois, o casal Michieli mudou-se para o norte da África, deixando a filha e sua fiel guardiã sob os cuidados das Irmãs Canossianas, de Veneza.
 
Nesse Instituto religioso, Bakhita começou a ouvir falar de um Deus que ela já sentia em seu coração sem saber quem era Ele.. Após alguns meses de catecumenato, foi batizada, em 9 de janeiro de 1890, com o nome de Josefina.
 
Quando o casal Michieli quis levá-la para a África, ela manifestou com firmeza sua decisão de permanecer com as Irmãs Canossianas, a serviço daquele Deus que lhe havia dado tantas provas de seu amor.
 
Em 8 de dezembro de 1896, fez os votos perpétuos no Instituto de Santa Madalena de Canossa. Viveu nessa comunidade mais de 50 anos, exercendo diversas funções. Como irmã porteira, atraía as simpatias de todos, especialmente das crianças, que ouviam com encanto sua agradável e cadenciada voz. Chamavam-na de “Madre Morena”.
 
Suportou com grande paciência os sofrimentos de uma longa e dolorosa enfermidade que a levou à morte no dia 8 de fevereiro de 1947. Logo se espalhou a fama de sua santidade. Foi canonizada em 1º de outubro de 2000.

Consagração, liberdade suprema

Interior da igreja onde repousam as relíquias de São Frei Galvão, Convento da Luz, na capital paulista

Escreve-me um leitor:

“Entre outros títulos de glória, o Sr. atribuiu a Frei Galvão, em seu último artigo, o de “escravo de Maria”. O fato me choca. Este título não traz glória nem para Frei Galvão nem para Maria. A escravidão é a sujeição de um ente a outro, pela força. Ela resulta de que o mais forte tenha roubado ao mais fraco (pela superioridade física ou pela pressão econômica, pouco importa) o atributo essencial da dignidade pessoal, isto é, o direito de cada um a dispor de si segundo seu exclusivo entendimento e interesse. A palavra “escravidão” lembra o chicote, o açoite, as algemas, a subnutrição e as perseguições policiais. Como pode ter escravos Maria, a quem os católicos cultuam como Rainha da bondade? E como pode alguém ter por honra ser escravo, ainda que seja de Maria? Convenhamos, tudo isto é absurdo”.

Tal estilo de relacionamento entre Maria e um seu devoto seria efetivamente absurdo. Ora, sempre que uma pessoa sensata faz algo que parece absurdo, deve-se logicamente procurar para seu ato uma interpretação que o faça ver em seu verdadeiro aspecto, explicável e sensato. Se o grande Frei Galvão, tão obviamente sensato e virtuoso, julgou honrar seu burel de franciscano e seu sacerdócio fazendo-se escravo de Maria, ao missivista tocaria o dever de presumir que há para isto uma explicação razoável e elevada. Tal explicação pode ser encontrada facilmente na sua melhor fonte, o “Traité de la vraie dévotion à la Sainte Vierge” de São Luís Maria Grignion de Montfort, livro aprovado pela Igreja Católica e tido geralmente como uma das obras mais eminentes da Mariologia.

Tentarei explicar aqui, com vistas ao leitor, o que é essa escravidão marial, à qual São Luís Maria chama esclavage d’amour [escravidão de amor] e – note-se – não da força bruta, da coerção.

*  *  *

Ainda não há muitos anos, um dos mais belos elogios que se poderia fazer de alguém – Chefe de Estado, pai de família, sacerdote, magistrado ou militar – era qualificá-lo de “escravo do dever”. Afirmava-se, assim, que ele era capaz de arcar com quaisquer riscos ou prejuízos para não transgredir os deveres inerentes a seu cargo. Ou, até, para fazer tudo quanto fosse simplesmente aconselhável no sentido do mais esmerado cumprimento de sua missão.

Análogo significado tinha a afirmação de que um chefe de Estado ou de família, um magistrado ou militar fazia de sua missão “um verdadeiro sacerdócio”.

A palavra “escravo” tinha pois, aí, um sentido absolutamente distinto do mencionado pelo leitor. Qualificava alguém que, livremente persuadido da nobreza e elevação de seus deveres e de sua missão, resolvera, também livremente, imolar, a bem dela, se fosse o caso, até mesmo seus legítimos direitos e seus mais caros interesses.

Nessa “escravidão” cheia de amor ao dever, ao ideal, à missão, o homem nem de longe é escravo à maneira dos prisioneiros de guerra romanos ou dos negros embarcados à força para o Brasil. Pelo contrário, ele exerce racionalmente, e no mais alto grau, a sua liberdade, e faz um uso absolutamente lúcido e nobilitante, de si e de tudo quanto é seu.

Assim é o sentido que São Luís Grignion de Montfort dá à consagração de alguém como “escravo de Maria”.

É escravo de amor de Maria Santíssima, quem, persuadido sem qualquer coação, das prerrogativas excelsas que a Ela tocam como Mãe de Deus, e das perfeições morais de que Ela é modelo, a Ela consagra livremente e por amor “seu corpo e sua alma, seus bens interiores e exteriores, e até o valor de suas obras boas passadas, presentes e futuras, deixando a Ela o direito pleno e inteiro de dispor de si e de tudo o que lhe pertence, sem exceção, segundo o gosto dEla, para a maior glória de Deus, no tempo e na eternidade”; as palavras são do Santo. E em troca dessa lúcida e libérrima consagração, Maria, Mãe de misericórdia, não trata seu escravo nem de longe com o egoísmo baixo e violento do romano ou do negreiro, mas com o amor materno, cheio de afeto e consideração, da mais generosa, afável e indulgente das mães.

E passo aqui a outra analogia elucidativa. Essa posição do “esclave d’amour” de Nossa Senhora – considerada enquanto abnegada imolação dos direitos e interesses de alguém, em benefício de um ideal sacrossanto, como é o serviço da Virgem-Mãe tem muito de comum com o ato pelo qual um frade ou uma freira se integra em uma Ordem religiosa, renunciando, num gesto supremamente lúcido e livre, à disposição de si e ao próprio patrimônio, pelos votos de obediência, pobreza e castidade.

Só que quem se consagra como escravo de Maria, sob certo aspecto ainda é mais livre, pois ao contrário do frade ou da freira, não faz votos, e assim conserva a faculdade de desligar-se, a qualquer momento, dessa sublime consagração.

Em todos os países da terra, a faculdade de agir assim se considera liberdade. Exceto, é claro, nos países comunistas. – Mas nestes, o que é ser livre? – É ser escravo, ao pé da letra.

E por sinal: o autor da carta é anticomunista?

Plinio Corrêa de Oliveira

Ensino imparcial da História: TRIUNFO DA IGREJA

A Carta Apostólica “Annum Ingressi”, diz Dr. Plinio, é a chave de cúpula de uma brilhante série de documentos redigidos pelo Papa Leão XIII, para mostrar o papel benéfico e insubstituível da Igreja Católica no desenvolvimento da civilização e na promoção do verdadeiro progresso. Dentro da série estamos publicando, ele continua a comentar o pensamento do Pontífice.

Conforme vimos, os documentos publicados por Leão XIII sobre os mais diversos temas constituíam um conjunto que visava ao mesmo fim: esclarecer e alertar, na tormenta, o povo fiel.

As Encíclicas sobre doutrinas sociais, sobre a família, sobre o poder político não são senão episódios de uma só e grande reação em face das “opiniões perversas”. E de tal maneira esses documentos se entrelaçam uns com os outros, que os maiores condensam muitas vezes, e genialmente desenvolvem, ensinamentos para os quais as Encíclicas anteriores já haviam preparado os espíritos, tocando ex professo ou incidentemente o mesmo assunto. Ele nolo diz, aliás, expressamente quanto a mais de uma delas.

Numa série tão concatenada, o último documento, feito por um autor que, como vimos, não ignorava estar prestes a transpor as “portas da eternidade”, tem evidentemente o caráter de remate, o papel de chave de cúpula, a importância de um complemento final e supremo, de uma mensagem extrema na qual se resume, e chega à sua mais nítida e sintética expressão, tudo quanto de mais essencial fora anteriormente ensinado.

A história de Leão XIII, a análise de seus documentos, a própria história do século em que ele viveu e no qual sua figura alcançou projeção mundial, não podem abstrair do estudo da “Annum ingressi”.

O estudo da História não pode ser “desinteressado”

Essa Carta Apostólica, que constitui importante trabalho histórico — pois é como que a síntese de uma fase crucial da História da Igreja, escrita por ela mesma —, apresenta para a historiografia católica e, a este título, também para a historiografia em geral, um interesse inegável. Pois ela nos faz conhecer o pensamento do grande Papa sobre a missão da História, bem como sobre o “tratamento ” do fato histórico com os recursos de uma sã filosofia e de uma teologia ortodoxa.

O pensamento de Leão XIII se nos apresenta bem definido nesse documento: a História não pode ser “desinteressada ”, isto é, o historiador deve ser imparcial na pesquisa da verdade histórica, mas uma vez tendo-a encontrado, pode e deve tomar partido por ela. No caso concreto, o historiador imparcial, bem informado e capaz, verá na História uma justificação da Igreja. Cabe-lhe dar testemunho deste fato.

E mais: como a Igreja é uma sociedade viva, que age e luta no presente; como o testemunho da História é elemento essencial para o êxito ou o insucesso desta luta; o historiador está no seu direito quando se empenha especialmente em desfazer o falso testemunho de uma História mentirosa.

A História apologética, assim entendida, não é um subproduto da História, e muito menos uma caricatura.

É, pelo contrário, História genuína e excelente, voltada para a realização de uma de suas mais altas missões. Se o Papa coloca, no ápice da grandiosa construção doutrinária, um documento histórico-apologético, um de seus objetivos expressos é exatamente “reabastecer de Fé e coragem” as almas que, opressas pelas “graves provações da Igreja”, poderão “recobrar alento”.

A História tem também outro fim, que é dos principais para Leão XIII: buscar nos fatos do passado uma explicação do presente, que sirva para a solução dos problemas atuais (veremos depois que Leão XIII aponta outra utilidade para a História: proporcionar elementos para fundadas conjecturas do futuro). Com efeito, se Leão XIII se propõe demonstrar na “Annum ingressi”, com argumentos históricos, a grande lei que nela enuncia, fá-lo para “assinalar os remédios” aos males de seu tempo: História “Magistra Vitae” — a História é a mestra da vida, diziam os antigos.

Muitas vezes o ensino da História é preconceituoso Aliás, nessa Carta Apostólica, Leão XIII outra coisa não faz senão pôr em prática os conselhos que, em outros documentos famosos sobre a História, ele deu aos historiadores católicos.

Referimo-nos em especial ao Breve Saepenumero Considerantes (“Consideramos freqüentemente”), de 18 de agosto de 1883, documento famoso, pelo qual Leão XIII franqueou os arquivos do Vaticano ao estudo dos historiadores.

É interessante ver como a “Annum ingressi” constitui um modelo de trabalho histórico feito segundo o espírito desse Breve.

Começa o Breve por lamentar “a força e perfídia” com que os adversários da Religião procuram tirar proveito da História para “tornar suspeitos e odiosos a Igreja e o Papado ”. Dá ele um apanhado da historiografia anticatólica, desde os “Centuriadores de Magdeburgo” (Alemanha) até nossos dias¹.

Ora, esta historiografia “invadiu até as escolas”, onde “freqüentemente se dão às crianças, para as instruir, livros cheios de erros”. No ensino superior, o estudo da História é aproveitado para “construir teorias baseadas em preconceitos temerários, o mais das vezes em desacordo flagrante com a Revelação divina”, o que enche a “chamada Filosofia da História” de “densas trevas”.

Em suma, “sem descer a pormenores, o plano geral do ensino histórico tem por fim tornar suspeita a Igreja e odiosos os Papas, bem como persuadir, sobretudo a multidão, de que o governo pontifício é um obstáculo à prosperidade e grandeza da Itália”. Leão XIII manifesta aqui uma preocupação muito acentuada com a História da Itália, país no qual a investida anticlerical estava em seu clímax. Não obstante, o panorama descrito se aplicava, mutatis mutandis, ao mundo inteiro.

Nesse Breve fica, assim, caracterizada em termos impressionantes a ofensiva desenvolvida contra a Igreja no campo histórico: “Hoje mais do que nunca”, assevera Leão XIII, “a arte do historiador parece ser uma conspiração contra a verdade”. O Pontífice emprega, a este propósito, expressões que insistem muito sobre a má-fé da historiografia anticatólica.

História anticatólica, eivada de erros e de injustiças

O Papa fala de “injustos ataques contra a honra e dignidade da Sé Apostólica”, “mutilações e hábeis omissões sobre o que constitui os maiores lances da História, a fim de dissimular, pelo silêncio, os fatos mais gloriosos e gestos memoráveis, enquanto se redobravam esforços para de pôr em evidência e exagerar” o que, no passado da Igreja, poderia ter sido “menos prudente ou menos irrepreensível”; “malevolência e calúnias” contra o poder temporal dos Papas; “mentiras que audaciosamente se esgueiram nas volumosas compilações e nos delgados panfletos ”, na imprensa e no teatro; quando a própria evidência dos fatos não permitia que se voltassem contra a Igreja “todos os negrumes da calúnia”, narravam-se os fatos de maneira a subestimar tanto quanto possível a glória dos Papas, “à força de atenuações e dissimulação”.

Pouco depois, Leão XIII denuncia os livros escolares “cheios de mentiras”, a “perversidade e leviandade” de certos professores; mostra que nas escolas superiores as teorias contrárias à Revelação eram elaboradas “com o único intuito de dissimular e ocultar o que as instituições cristãs tinham de mais salutar”.

Com isto chegavam a “inconseqüências e absurdos”. Quanto ao “plano de ensino da História tendente a tornar a Igreja suspeita, os Papas odiosos, e persuadir a multidão de que o governo pontifício era um obstáculo à gradeza da Itália”, “nada se pode afirmar que mais revolte a verdade”, diz Leão XIII; isto é “mentir violentamente sobre fatos evidentes e notórios.

Enganar conscientemente a outrem, com intuito criminoso, é por maldade envenenar a História”.

Quanto aos efeitos deletérios dessa ação anticristã, que dissemina uma História “escravizada ao espírito de partido”, o Breve os enumera com precisão e força².

O dever dos historiadores católicos

Tudo isto convida, a um nobre esforço de História apologética, “homens probos e versados neste gênero de estudos, que se consagrem a escrever a História de maneira que esta seja o espelho da sinceridade e da verdade”.³

A História apologética não é, pois, uma História feita com retoques fraudulentos, para servir às conveniências de uma causa. É proba, honesta, veraz, científica, inflexivelmente subordinada ao tríplice ditame de toda História digna desse nome: “não mentir, não temer dizer a verdade, não ceder ao desejo de lisonjear, ou de hostilizar”.

Se se pode falar de uma História apologética segundo a mente de Leão XIII, é simplesmente no sentido de uma História tão autêntica e científica como outra qualquer, mas que escolhe por temas os assuntos em que a História falsa procura guerrear a Igreja.

Quando falamos de História científica aludimos tão-somente a uma História feita segundo os bons métodos, e com o auxílio dos recursos científicos hodiernos. Os historiadores católicos devem ter em conta que “nada do que o engenho dos modernos inventou é alheio ao objeto de seus trabalhos” — escreveu Leão XIII noutro de seus documentos.

Além de ser obra rigorosamente imparcial, uma obra dessa categoria presta alto serviço à causa da religião e da sociedade, bem se vê. Tarefa digna de particulares “eruditos e adestrados na arte de escrever a História” – “historia scribendi arte” 6.

Tão nobre que constitui para a própria Igreja um direito e um dever: “já que o inimigo busca na História suas armas principais, cumpre que a Igreja combata em paridade de condições, e redobre seus esforços para repelir o assalto com valentia maior onde ele é mais violento”7.

E foi essencialmente com este intuito que Leão XIII franqueou “os depósitos literários” do Vaticano aos estudiosos. Tanto é legítima e gloriosa atarefa de uma História apologética bem entendida.

E, com efeito, não teria sentido o papel dos estudos bíblicos indispensáveis à Igreja para que ela exerça seu ministério num ambiente cultural cada vez ais trabalhado pela crítica científica, se não se reconhecesse francamente a liceidade de uma História apologética.

Na mente de Leão XIII, não só tais estudos bíblicoapologéticos eram cientificamente lícitos, mas da maior importância. Consagrou-lhes uma Encíclica que ficou famosa (Providentissimus Deus, de 18 de novembro de 1893), mas instituiu ainda a Comissão dos Estudos Bíblicos, para “assegurar a manutenção integral da verdade cristã e promover os estudos da Sagrada Escritura”8 e lhe pôs à disposição “uma parte de nossa Biblioteca Vaticana”, na qual prometia instalar, para uso da Comissão, abundante coleção de manuscritos e de volumes de todas as épocas, tratando de questões bíblicas.9

O apelo de Leão XIII deu origem a toda uma série de trabalhos históricos de orientação católica, que figuram com honra na bibliografia de nossos dias.

1 Saepenumero Considerantes II,2,a,b,c,d. Os chamados“centuriadores de Magdeburgo”, teólogos protestantes, escreveram no século XVI uma história da Igreja, de caráter fortemente anticatólico, com argumentos inconsistentes, distorções da verdade e muitos documentos falsos. Sua tese era de que a Igreja Católica havia sido infiel à primitiva Igreja cristã, tinha destruído a brilhante antiguidade grecoromana e jogado o mundo no obscurantismo, fanatismo e miséria da Idade Média. Felizmente, o Renascimento havia recuperado os valores do mundo antigo.
2 Saepenumero Considerantes IV,a,b.
3 Saepenumero Considerantes IV,b.
4 Saepenumero Considerantes IV,d.
5 Carta Apostólica Vigilantiae Studéique Memores, 30/10/1902.
6 Saepenumero Considerantes V.
7 Saepenumero Considerantes IV,i.
8 Vigilantia Studéique Memores, op. cit.
9 Ibid. Leão XIII apela nesta Carta Apostólica aos “católicos
mais favorecidos com bens de fortuna” para enriquecer
ainda mais este depósito. Na biblioteca do Vaticano, que o
próprio Pontífice expandiu pela aquisição da biblioteca
Borghese, bem como no arquivo do Vaticano, hauriram os
documentos para seus trabalhos, historiadores do valor do
Cardeal Hergenröther, do dominicano Deniffle, do
Cardeal Ehrle, do Barão Luís de Pastor e do Padre
Duchesne.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 52 (Julho de 2002)