Adoração da Pessoa de Nosso Senhor

Nosso Senhor Jesus Cristo sempre foi o padrão supremo em função do qual Dr. Plinio concebia a verdade, o bem e a beleza de todas as coisas, como também o relacionamento humano.

A escola filosófica pela qual o conhecer a biografia do filósofo não interessa em nada, limitando-se em considerar as ideias dele, priva-se de alguma coisa que a Providência dá ao homem no conhecimento da verdade, da beleza e do bem.

Pedra angular

O indivíduo que trata de um assunto põe ali, ainda que não queira, notas da sua luz primordial(1) e do atraente que para ele esta possui, por onde o lado bom dele é conhecido no que tem de mais profundo.

Aristóteles, por exemplo, poderia pensar em Deus como “Causa Primeira” e, se ele fosse fiel, fazer disso o que se poderia chamar a sua luz primordial.

Já São Paulo dizia que não pregava a não ser Jesus, e Jesus crucificado(2). Por quê? Porque no Apóstolo todas as considerações de Aristóteles sobre Deus chegavam até Alguém que existiu, e que é Nosso Senhor Jesus Cristo na unidade de sua Pessoa e na dualidade de suas naturezas, em Quem São Paulo via, mais completamente do que Aristóteles, aquilo que o próprio Aristóteles dissera. E o Apóstolo pôde afirmar: “Vivo, mas não eu; é Cristo que vive em mim”(3), em vez de dizer: “É Deus que vive em mim”.

No meu espírito, o caminho pelo qual a contemplação da Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo me levou à consideração da sociedade temporal, foi um modo especial de analisar o “bonum, o verum, o pulchrum”. Mas o elemento fundamental é a contemplação da Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo na dualidade das naturezas humana e divina.

O que há de mais profundo na minha alma é essa visão religiosa da Pessoa de Nosso Senhor. Essa é a pedra de ângulo a partir da qual todo o “verum, bonum, pulchrum” se deslinda.

Em menino, fazendo a análise psicológica de Nosso Senhor

Em presença de Nosso Senhor Jesus Cristo, o que minha alma sentia, tendo a notícia d’Ele que pode ter uma criança com três, quatro anos? Qual era essa primeira cognição, e como era esse primeiro ato de adoração?

Eu O considerava através das imagens que via em mais de um quarto de minha casa, de um livrinho de Religião para criança, do que mamãe contava d’Ele, da História Sagrada, etc.

Dona Lucilia não falava do Credo diretamente, mas o que ela dizia pressupunha o Credo e o ato de Fé, que era o ponto de partida. Mas ela não criava, nem de longe, o problema: “Eu vou provar que a Igreja Católica é verdadeira…” Porque ela considerava que, ao contar a história, já estava provando ser verdadeira. E para a criança é realmente assim.

Eu tinha a sensação evidente de que Ele era o Homem-Deus — porque mamãe, ao tratar disso, deixava claríssimo —, e procurava fazer uma análise psicológica de Nosso Senhor.

Ele era de uma elevação de cogitações e de vias absolutamente excelsa! Os critérios segundo os quais Nosso Senhor considerava todas as coisas eram de uma superioridade que deixava qualquer outra pessoa sem nenhum paralelo possível. Ele ficava desde logo numa altura inacessível ao homem.

Olhando para Ele, eu compreendia o que, no Homem, resplandecia de divino. Mas, de fato, eu entendia que era uma elevação própria a Deus e que a humanidade d’Ele estava numa atitude permanente de contemplação e adoração da divindade das três Pessoas da Santíssima Trindade.

A partir disso, Nosso Senhor tinha um contato com todas as almas, porque, estando naquela altura e sem as limitações de um simples ser humano, Ele conhecia todas as outras almas, sabia o que acontecia com cada uma delas e intervinha dentro de todas. Sua superioridade Lhe dava o direito ex natura rerum(4) a esse contato.

Naturalmente, tudo isso em mim era muito implícito. Não imaginem um menininho de quatro anos fazendo pedantemente essas digressões. Mas, explicitando agora, noto que era isso.

Fuga do bom para o ótimo

O próximo ponto da minha meditação é: de que natureza era essa ação de Nosso Senhor? Como Ele toma contato com essas almas?

Não posso saber como é nos outros, mas posso perceber como é esse contato de almas estudando-o em mim. Eu me sinto, antes de tudo, elevado algum tanto acima de mim mesmo, por ver essa grandeza do ser e do cogitar d’Ele.

De onde se abre em mim uma luz no cogitar e no ver, que me extasia, porque algo em mim é feito para olhar mais do que eu. E quando saio da minha vida de menininho e percebo algo em mim que vê mais do que eu, que é mais do que eu, tenho a impressão de que eu escapo, fujo do bom para o ótimo, ponho-me ali na ponta dos pés e me alegro.

Outro ponto: eu noto que, ao mesmo tempo em que contemplo assim essa vida existente em Nosso Senhor — que é um pensar, um querer, um sentir —, Ele me faz como que tocar com as mãos no pensar, no querer e no sentir d’Ele. E isso me comunica, com a elevação própria a isso, uma retidão e uma santidade do pensar, do querer e do sentir, as quais são como um remédio que eu bebesse, e na hora de sorver essa bebida deliciosa ela me agradasse sobremaneira, mas ao mesmo tempo me corrigisse.

Fico compreendendo que devo ser assim, por uma dupla ação: primeiro porque, vendo como Ele é, eu O adoro. E, em segundo lugar, porque, adorando-O, noto que coisas tortas em mim, que eu nem percebia serem tortas, se endireitam, e com isso Nosso Senhor me cura de coisas que me tornavam doente sem eu saber.

Entrevendo a luta que aparece no horizonte

Daí me vinha uma ideia da qual eu propriamente não fugia, mas não fixava muito a atenção nela. Não quero me acusar de uma imperfeição que não estava em mim, mas desejo mostrar que ali havia uma raiz de imperfeições proveniente do pecado original.

Então eu percebia que naquela hora aquilo era delicioso, mas quando passasse o mais intenso disso, essa ação corretiva ser-me-ia duro manter. E, portanto, em certo momento eu teria que sofrer e lutar muito.

Eu tomava conhecimento dessa realidade, mas, à maneira de uma criança, pensava: “Bem, ainda não chegou a hora, e aqui está tão bom, que deixo isso para depois”. Tinha mais curiosidade de fixar a minha atenção no que Deus estava me mostrando — sem saber ser Ele Quem mostrava — do que naquilo que eu poderia deduzir por mim mesmo, e que era o combate. Por isso, eu apenas entrevia e deixava meio de lado.

E, olhando para os meninos com quem eu vivia, notava que alguma coisa dessas Jesus fazia em suas almas também, mas eles davam muito menos atenção. E eu tinha certa ideia de que era culpa dos outros, uma indecência.

Também aí nota-se o começo da luta que ia aparecendo no horizonte, mas isso não me empolgava como empolgou mais tarde.

Como ainda não via neles o mal, mas apenas um bem menor, eu não pensava no futuro disso. Sentia um vácuo que eu gostaria que fosse muito diferente, mas não um choque que me levasse diretamente para a luta.

Ação direta e ação supletiva

Vinha-me outra ideia que em termos atuais eu exporia assim: “Ecce quam bonum et quam iucundum habitare fratres in unum — Eis como é bom e alegre que os irmãos morem juntos.”(5) Eu formava com aqueles meninos um todo tão alegre e agradável que me levava a concluir: “Como isso é bom! Mas o é, sobretudo, porque há neles um efeito da ação de Nosso Senhor Jesus Cristo!” Eles não eram inimigos de Nosso Senhor, não tinham estabelecido um corte de relações com Ele. Assim, eu me sentia posto na minha situação própria e natural: contemplando Nosso Senhor Jesus Cristo na Igreja Católica — cuja noção começava a aparecer no meu espírito —, em mim, em mamãe — muitíssimo, mas muitíssimo! — e nos que me circundavam também.

De maneira que era um mundo todo católico dentro do qual eu sentia a complementação normal da felicidade, que me dava a contemplação de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Detendo-me por um instante nesse ponto, pode-se ver a noção que nascia aqui implícita: a condição normal do homem para adorar a Nosso Senhor Jesus Cristo, receber sua influência, ser como Ele, enfim, viver, é contar com a harmonia e a ação supletiva dos outros. Tomando em consideração que a parte do bem que Nosso Senhor Jesus Cristo não me fazia diretamente, Ele a exercia por meio dos outros.

Então, Ele com cada um tinha uma ação direta, e depois uma ação supletiva, por meio dos outros. Aqui entrava o pressuposto da sociedade temporal cristã: a Cristandade.

O meu lar, os meus parentes, todas aquelas famílias que moravam no bairro dos Campos Elíseos, aquilo tudo eu considerava como sendo igualmente bom.

Era o mito de uma Cristandade sustentado por uma série de aparências boas que o mundo ainda tinha naquele tempo, e que eu supunha habitadas pela influência de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Um sol que não cessava de brilhar

Eu via, por exemplo, uma dona de casa sair da igreja com quatro, cinco filhinhos que se seguravam pelas mãos; ela tomava as mais criancinhas, na ponta estavam os mais velhinhos, e ia conversando e vigiando. Atrás, com uma bengala debaixo do braço, segurada pelo castão, vinha o pai, com ar grave de quem os defende contra qualquer ataque que pudesse ocorrer. Era um defensor que pairava acima de todos.

Tudo tão direito, tão normal, Jesus Cristo tão presente em tudo isso, que me dava a ideia de que, para ser inteiramente “cristiforme”, o conveniente era que tudo em torno de mim fosse “cristiforme” também.

Depois veio a Primeira Comunhão, com suas graças características, o conhecimento mais exato da Doutrina Católica recebida em cursos regulares de Catecismo, da História Sagrada.

Comecei a observar a Igreja e ver que nela, e em tudo quanto eu conhecia do passado, do presente e do que estava profetizado para o futuro, Nosso Senhor Jesus Cristo habitava e Se fazia sentir de um modo especial por uma ação que eu ainda não sabia chamar-se graça e que era como um sol que não parava de brilhar.

Daí a ideia — complementar do convívio com meus próximos — de uma grande instituição que era a fonte dessa ação de Cristo sobre os homens. E meu ambiente tinha aquelas características devido ao fato de ter aderido a essa fonte, pois era um ambiente católico.

Em última análise, até minha ligação com Nosso Senhor Jesus Cristo se devia a isso: Ele tinha esse nexo com a minha alma porque eu era católico. Enfim, eu possuía a noção clara de encontrar Nosso Senhor Jesus Cristo dentro da concha sagrada da Igreja. Mas não apenas como se alguém dissesse, por exemplo: “Jesus está na casa do centurião Cornélio.” Ali está Ele, mas os arredores da casa não têm nada a ver com sua presença. Não era isso. Eu notava que, na Igreja, a presença de Nosso Senhor ilumina tudo e transfigura as coisas por dentro. Por isso, na Igreja Católica até a soleira da porta era uma coisa santa, pois algo da ação d’Ele estava presente ali. Quantas e quantas vezes eu tive vontade, antes de entrar numa igreja, de me ajoelhar e oscular a soleira da porta, pensando: “A partir daqui começa a casa d’Ele!”

Ato de humildade

Certa vez vi uma pinturazinha com a inscrição “Hæc est porta cœli”, e pensei: “Mas é claro, a porta do Céu é essa. E Plinio, preste atenção! Você é objeto da ação dessa graça, é trabalhado por ela e a ama tanto; está perfeitamente bem. Mas você tem seus doze anos e já sente as garras dos seus defeitos. E deve sentir também que as suas resistências resultam de alguma coisa que existe de fundamentalmente mau em você, e que procura separá-lo disso. E que, portanto, você é ruim. Essa graça o torna bom, mas lhe vem de fora para dentro. E, propriamente, você não é digno de nada disso. Agradeça o fato de, apesar de ser ruim, Nosso Senhor Jesus Cristo ter permitido tudo isso para você. Compete-lhe, pois, um sentimento profundo de sua maldade e de sua indignidade, e querer oscular a soleira da porta compreendendo que você se honra com esse gesto, pois não seria digno nem sequer disso.”

Ao fazer essas considerações, eu sentia sobre mim um efeito curioso: percebia Nosso Senhor mais distante, mas atuando muito mais profundamente em mim. Depois vim a saber tratar-se de um ato de humildade. Eu carregava meu ato de humildade com todas as minhas forças, por me sentir, por causa disso, mais perto d’Ele. O objetivo era sentir essa proximidade.

Eu entendia de um modo confuso que se bocejasse em cima dessa indignidade e pensasse: “É verdade, mas Nosso Senhor me admite. Portanto, vamos passar por cima de tudo isso porque, de repente, Ele se dá conta de que isso é mesmo assim, e me expulsa!” Seria como querer fraudá-Lo. E se eu fizesse isso, começaria a apagar-se a Fé Católica na minha alma.

Então, tomei como princípio o seguinte: Quanto mais eu martelar nessa indignidade e a tiver em vista, mais estarei próximo d’Ele. Então martelo até me arrebentar para me unir tanto quanto eu quisera! Eu quisera unir-me mais! Mas, tanto quanto posso, martelo mesmo!

À vista disso, eu tanto martelei que, possuído a fundo dessa ideia, tomei o hábito, por exemplo, de oscular as imagens apenas nos pés, porque não era digno nem disso; a imagem era benta e os meus lábios não eram dignos disso, por causa dessa radical maldade existente em mim, que me tornava objeto explicável da repulsa divina.

Provações contra a pureza e o choque com a Revolução

Com isso ia me sentindo mais unido a Ele. Nunca com vontade de fugir! O que estava na minha mente é que só Nosso Senhor tinha palavras de vida eterna, e que, portanto, era preciso estar com Ele. Depois, eu não saberia viver a não ser assim.

Começa a época das provações contra a pureza, do choque com a Revolução. Portanto, o medo, a tentação da fuga, os instantes, eu não diria de desânimo, mas como que o momento da falta de energias e de mobilização própria para entrar na luta.

De outro lado, na linha da luta contra os revolucionários, o esforço é tão enorme! E ver-me de repente, não naquela espécie de paraíso de Cristo vivendo em todos, mas, pelo contrário, uma realidade que é como se o demônio vivesse em todos, com exceção de poucas pessoas. Então, a necessidade de lutar. Mas, a preguiça de lutar!

Como eu me privava do agrado, do deleitável, do contato amistoso, jovial e engraçado com os outros, das alegrias despreocupadas da minha infância, sentindo-me quase um moço velho e fanado pelas provações, pelos problemas, pelas reflexões! Entretanto, eu tinha dez, onze anos! Era a minha posição diferente do mundo inteiro! Eu me resolvo a arcar com essa luta?

O lado da consciência do mal, que no fundo era a voz da humildade, me dizia: “Veja, hein, quando você de tal maneira se descarregava sobre si próprio, que razão você tinha… Veja bem quem é você!”

Mas se sou assim — pensava eu — não sou sequer digno de rezar a Nosso Senhor, de levantar meus olhos a Ele, nem de me aproximar d’Ele. E Ele me rejeita com um desprezo tanto mais magnífico quanto mais magnífico é Ele! Isso tanto é assim, que se Ele não me rejeitasse eu não O adoraria! Eu O adoro na rejeição que Ele faz de mim e na punição que Ele me dê, porque aí vejo que Ele era Quem eu pensava. Mas, de outro lado, como arranjo esse caso?

Aparece o ”arco-íris”

Aí apareceu o “arco-íris”: Nossa Senhora! Na Igreja do Coração de Jesus, o “sorriso” da imagem de Nossa Senhora Auxiliadora e a compreensão: Tudo isso daria, aparentemente num caos. Mas não é um caos, porque Ele mesmo, superior a tudo quanto eu podia pensar d’Ele, excogitou esse meio, deu-me a Mãe d’Ele para minha Mãe!

Ali está a solução! Sendo eu ordinário como sou, é a solução para sempre. Porque se eu não me apegar a Ela, tudo está perdido! Mas pelo trato, pelo jeito, pela bondade d’Ela, sinto que, por eu ser tão ordinário, tão fraco, tão ruim, ter essa semente de mal em mim tão marcada como eu vejo, Ela tem uma pena especial. E enquanto meço a profundeza das minhas chagas, Ela sorri para mim e como que me diz: “Meu filho, é verdade, você tem razão. Mas muito mais Eu sou boa do que você é ruim! E passo por cima disso, o afago, lhe quero bem, trago-o para junto de Mim.”

Daí brotar de meus lábios: Salve Regina, Salve Regina, Salve Regina! E daí também o sentido da palavra “salve”: o de me salvar! Eu não a considerava como uma saudação; não estava pensando em protocolos na hora em que eu naufragava. Era S.O.S.! “Salve Regina…”

Esse era o aspecto “vida interior” de algo que transbordaria, no contato com a vida, numa noção da Cristandade, num conceito completo de Revolução e Contra-Revolução.

Qual é o papel do “verum, bonum e pulchrum” — de que eu falava há pouco — nessa visão das coisas, da sociedade temporal e da luta entre a Revolução e a Contra-Revolução, cuja noção foi-se desenvolvendo paralelamente com isso?

Ardor no conhecimento do verum

Há nisso tudo um enlevo constante em relação a Nosso Senhor Jesus Cristo. Não sei se é correta a palavra “enlevo”. Tenho certeza de que a palavra “adoração” é inteiramente suficiente — e talvez só ela seja suficiente — para indicar a disposição de nossa alma em relação a Ele.

Mas, na própria adoração, o que prepondera? A consideração do “verum, do bonum ou do pulchrum”?

É uma coisa evidente que no ato de adoração existe simultaneamente um abrasamento no conhecimento do verum, um amor entusiasmado e comovido ao bonum, e um deslumbramento pelo pulchrum.

Nosso Senhor mesmo, como Ele é veraz! Como é verdadeiramente o Homem-Deus! Como na unidade da Pessoa d’Ele habitam duas naturezas, e como isso é reversível, ordenado, perfeito! E, sobretudo, o que é Deus ali dentro, que coisa fantástica!

De outro lado, que natureza humana perfeitíssima! E como o encontro da natureza humana com a divina é admirável!

O verum aqui está não só em que isso é assim, mas numa outra coisa: como tudo é coerente dentro disso! É lógico, deve ser assim! E, portanto, um entusiasmo da verdade possuída.

Como é esse entusiasmo? Não é um entusiasmo exclusivamente silogístico: “Eu raciocinei e cheguei à conclusão”, porque o ato de Fé em mim precedeu de muito esse raciocínio; mas é uma espécie de evidência meio mística dada pela Fé, que o raciocínio apologético vem calçar depois, mas não vem suprimir; vem servir a essa ação meio mística dada pela Fé.

De tal maneira que eu ouço pessoas falarem na firmeza das minhas convicções. Tenho vontade de sorrir, e dizer: “Você não entende nada. Fale da firmeza de minha Fé!” Porque a partir da firmeza da minha Fé, no que eu dela deduzo, tenho muita certeza; ali eu piso com sapato de ferro, porque não tenho medo de peso nenhum! No que eu não deduzo, não tenho essa certeza.

Por outro lado, também o modo categórico com que distingo uma coisa má de outra boa. A boa deve ser praticada, favorecida, estimulada, louvada. A má deve ser execrada, detestada; deve-se viver no reconhecimento e na desconfiança constante do mal que aquilo representa, numa atitude a mais policialesca que se possa imaginar contra esse mal, pegando-o e triturando-o implacavelmente.

Pulchrum e simbolismo

Sobre o pulchrum, o que dizer?
Como o pulchrum é o término do trajeto, nele se vê o verum e o bonum, e se acaba proferindo a palavra: pulchrum. Mas essa palavra não exclui o verum e o bonum, ela os contém com a luz própria a cada coisa.

Então, o pulchrum é o esplendor da verdade e do bem, com mais algo; não significa que ele não existe. Ele é ele; mas me levava a dizer, numa espécie de ousadia de pensamento, que talvez houvesse entre o verum, o bonum e o pulchrum uma relação análoga — à maneira de um reflexo — à existente entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

O pulchrum tem no meu pensamento grande papel. Inclusive porque ele tem qualquer coisa de sensível, mas este próprio sensível precisa ser entendido.

São Tomás define o pulchrum como: “aquilo que, visto, agrada”. Houve a aplicação de um sentido. Por exemplo, olhei e aquilo me agradou aos olhos. Isso é o pulchrum.

Na palavra “agrada” entra algo que funcionou assim em mim a vida inteira. Depois cheguei a perceber o lado de Doutrina Católica que há nisso, e que ocupa o meu pensamento.

O sensível tem esse papel — ao qual eu sou muitíssimo aberto e tenho até uma necessidade enfática de alma — de discernir nas coisas o por onde elas simbolizam a Deus e a Nosso Senhor Jesus Cristo. De maneira tal que, não tendo esse simbolismo, elas não me interessam.

Um palácio, mesmo uma igreja que não tenha esse simbolismo, para mim diz muito menos do que poderia dizer uma cabana com uma expressão simbólica muito grande.

O simbolismo é uma analogia entre uma coisa e determinada perfeição de Deus, por onde eu, pelos sentidos, como que vejo essa perfeição de Deus. E minha alma é sedentíssima disso.

Algo me agrada, sobretudo, enquanto caminho para perceber naquilo um símbolo de Deus, ou seja, um reflexo criado de Deus que completa o que as graças de ordem mística fazem perceber.

Então, o que as pessoas alcançam pela graça o símbolo faz de algum modo perceber também pelos sentidos, iluminados pela graça. O pulchrum é o delectabile(6) espiritual, simbólico e digno de ser tocado pela graça.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/4/1989)

 

1) Aspiração para contemplar as verdades, virtudes e perfeições divinas de um modo próprio e único, pelo qual uma alma ou um povo dará sua glória particular a Deus. Sobre este assunto, ver Revista Dr. Plinio, n. 54, p. 4.
2) Cf. 1Cor 1, 23; 2, 2.
3) Gl 2, 20.
4) Do latim: pela própria natureza das coisas.
5) Sl 133, 1.
6) Do latim: deleitável.

A primeira gota de uma torrente de graças

Ele era um pequeno funcionário público de Lourdes. E também um cético diante das recentes aparições da Santíssima Virgem que, naqueles idos de 1858, vinham comovendo essa cidade dos Pireneus. Contudo, movido pela curiosidade, decidiu comparecer certo dia à gruta de Massabielle, nos arredores de Lourdes, no momento em que a Mãe de Deus entabulava mais um colóquio com a camponesa Bernadette Soubirous.

A partir de então, a existência do incrédulo personagem mudaria para sempre, conforme ele próprio testemunhou: Após assistir à cena, senti-me como saído de um sonho, e me afastei da gruta. Não conseguia voltar a mim e um mundo de pensamentos agitava-se em minha alma. A Senhora do rochedo ocultava-se bem, mas eu percebera sua presença, e estava convencido de que seu olhar maternal voltara-se para mim. Oh! hora solene de minha vida! Perturbava-me até o delírio pensando que eu, o homem das ironias e das presunções, fosse admitido a ocupar um lugar perto da Rainha do Céu!

Para Dr. Plinio, a história dessa tocante conversão era eloquente motivo para se crescer em confiança na insondável misericórdia de Maria Santíssima. E comentava: “Esse homem teve noção de que realmente existia a pessoa com quem Santa Bernardette conversava. Portanto, aquela visão não podia ser uma abstração, nem era uma fantasia. A camponesa dialogava com alguém, e o seu modo de agir nessa circunstância possuía todas as características objetivas de uma interlocutora. Donde ser inegável a autenticidade da cena. O fato de ter presenciado este diálogo diretamente, o comoveu e o levou à conversão. Ele não viu Nossa Senhora, porém pelas atitudes de Santa Bernadette soube que a Rainha do Céu ali se encontrava.

“Analisemos a situação de alma desse homem. Sentia-se, ao mesmo tempo, humilhado e pasmo, pois não podia crer que ele, cético, havia sido tão bem tratado por Nossa Senhora e transformar-se no objeto de um milagre gratuito alcançado por Ela em seu favor. De nenhum modo merecia ter essa espécie de visão indireta da aparição, e menos ainda receber aquela inestimável graça concedida pelas mãos de Maria. E entretanto, pelo simples reverberar da presença d’Ela sobre a figura de Santa Bernadette, a Virgem tocou sua alma e venceu todos os seus orgulhos, fazendo-o pensar: ‘É espantoso! Eu, até há pouco tão ruim, tão pretensioso, tão miserável, o menos indicado a obter tamanha dádiva, contra todas as expectativas a recebo. Como é misericordiosa a graça que bate em portas tão conspurcadas, e de forma tal que a porta quase não pode recusar-se a abrir!’

“A obra maravilhosa que a graça realizou na alma desse homem foi precursora dos esplendores que a mesma graça operaria em milhares de almas que passariam por Lourdes e ali seriam tocadas pelo milagre. E em tantas outras que, embora achando-se distante da gruta de Massabielle, converter-se-iam ao ouvirem as descrições dos milagres. O dom extraordinário concedido àquele cético foi como a primeira gota de uma verdadeira inundação de graças que viria para o mundo, a partir do dia 11 de fevereiro de 1858, quando Nossa Senhora apareceu pela primeira vez a Santa Bernadette.

“Desse fato devemos colher um importante fruto. Se tomarmos em consideração que, em favor de um incrédulo, Nossa Senhora alcançou graça tão insigne, dádiva muito maior obterá Ela para aqueles que perseveram na Fé. E, portanto, podemos esperar com inteira confiança e devoção que Ela nos consiga de seu Divino Filho graças superlativas, de modo particular na festa de Nossa Senhora de Lourdes. Razão pela qual me parece assaz conveniente que, nessa data mariana, nos ajoelhemos aos pés de uma imagem d’Ela e Lhe supliquemos, com entranhado fervor, as graças de que mais necessitamos, quer para nossa vida espiritual como para remediar nossas dificuldades temporais.”

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio (Fevereiro de 2007)

Lourdes e a mediação universal de Maria

Em 11 de fevereiro comemora-se a festa de Nossa Senhora de Lourdes, recordando a primeira aparição de Maria à camponesa Bernadete Soubirous. Aberta nas montanhas dos Pireneus, a Gruta de Massabielle tornou-se lugar de predileção do sobrenatural, onde uma impressionante sucessão de milagres tem beneficiado, não apenas os corpos, mas sobretudo as almas. Para Dr. Plinio, tais prodígios, alcançados a rogos da Santíssima Virgem, constituem espetacular confirmação da vontade divina de nos conceder todas as graças pela mediação da onipotência suplicante de Maria.

Dentre os muitos aspectos da devoção a Nossa Senhora de Lourdes, um há que me parece insuficientemente acentuado, e sobre o qual gostaria de fazer incidir os presentes comentários.

Rainha e Medianeira

Para se compreender o Reino de Maria, cumpre ter em mente essa verdade fundamental: por vontade de Deus, Nossa Senhora é a Medianeira de todas as graças. Porque, para ser autenticamente Rainha, deve Ela conseguir do Rei (isto é, de seu divino Filho) tudo quanto quer e dessa forma governar o mundo.

Por sua natureza humana, Maria não detém mais poder do que os seus semelhantes. Assim, para reinar sobre o universo inteiro — anjos, santos, homens, todo o mundo material, etc. — Ela precisa possuir a graça de Deus. E como ponto de convergência de todos os favores celestes, Maria Santíssima é Rainha. Vale recordar que a intercessão de Nossa Senhora foi chamada, adequadamente, de onipotência suplicante, pois é por meio da súplica que Ela tudo pode junto ao Todo-Poderoso.

Portanto, a realeza da Virgem se acha em íntima conexão com o fato de Ela ser o canal de todas as graças. As dádivas divinas nos são concedidas pelas mãos de Nossa Senhora, e por seu intermédio são apresentados ao Altíssimo os pedidos feitos pelos homens. É geralmente aceita pelos teólogos a sentença segundo a qual, se todos os anjos e santos do Céu rogarem algo a Deus sem a mediação de Nossa Senhora, dificilmente lograrão êxito; enquanto que Ela, pedindo sozinha, tudo alcança. Por onde se compreende como o foco da predileção divina se concentrou em Nossa Senhora e através d’Ela se esparge sobre o conjunto da criação.

A mediação universal corroborada em Lourdes

As aparições de Lourdes se inserem numa série de outras célebres manifestações de Maria Santíssima a partir do século XIX, as quais culminariam com as revelações de Fátima, no início do século XX. Poder-se-ia dizer que, na noite cada vez mais profunda na qual a civilização contemporânea se vai deixando soçobrar, tais aparições formam um pontilhado de luzes anunciando a vinda do Reino de Maria. E creio ser de grande interesse analisar, em cada uma dessas visões, a presença das idéias da mediação universal e do reinado de Nossa Senhora.

Em Lourdes, tais noções se verificam patentes, considerando que Nosso Senhor Jesus Cristo poderia ter proporcionado essa estupenda fecundidade de milagres em algum santuário a Ele dedicado. Na própria França, onde se encontra a Gruta de Massabielle, ergue-se a magnífica basílica de Paray-le-Monial, votada ao Sagrado Coração, pois ali o Redentor fez suas revelações a Santa Margarida Maria Alacoque. Ora, Jesus poderia dispor que aqueles prodígios de curas e conversões ocorressem nesse lugar ou em outros santuários erigidos em sua honra.

Porém, quis o Salvador que a maior fonte de milagres conhecida na história da Igreja e do mundo brotasse num local consagrado a Nossa Senhora. Ou seja, que aquelas curas espetaculares fossem obtidas sob a égide da Santíssima Virgem, mediante súplicas a Ela impetradas.

Assim agindo, Nosso Senhor parece desejar comprovar a verdade de fé da mediação universal de Maria, dando aos homens claras razões para compreenderem que sua Mãe tudo pode. Pelos rogos da Virgem são debelados os maiores males, as piores doenças, os sofrimentos mais horrorosos. Ela consegue suspender as leis mais inflexíveis da natureza, vence qualquer obstáculo, e logra, por exemplo, que um cego de nascença, sem nervo ótico, adquira visão!

Maior glória, abaixo do esplendor divino

Essa é a onipotência suplicante, o poder da Soberana, medianeira de todas as graças.

Recordo-me, a esse propósito, de uma piedosa canção entoada no meu tempo de moço, a qual dizia:
Salve, ó Mãe! Salve, ó Virgem Santíssima!
Do universo portento primor.
Mais esplêndida glória que a tua,
Só tem Deus do universo Senhor!

Com efeito, a conclusão de quanto acima consideramos, é esta: mais esplêndida glória que a de Maria, só possui Deus, Senhor de todo o universo. Nossa Senhora se acha infinitamente abaixo do Criador, mas quão incomensuravelmente acima de todas as outras criaturas!

Milagres físicos para fazer bem às almas

Pessoas existem que se impressionam com os milagres de Lourdes, e entretanto pedem à Santíssima Virgem apenas favores materiais, esquecendo-se dos espirituais e mais importantes. Não compreendem que os dons temporais, dos quais necessitamos, devem nos induzir a desejar os que aproveitam à nossa salvação eterna. Aliás, é por essa forma que verdadeiramente Deus atrai as almas para Si, pois todos os dons concedidos por Ele têm o objetivo maior de beneficiar o espírito humano.

Assim, não se deve pensar, por exemplo, que Nossa Senhora curará um homem capenga(No sentido físico da palavra)(1), movida apenas pelo sentimento de pena para com a sua deficiência. Claro, tem Ela compaixão do aleijado, se compraz em corrigir seu defeito. Porém, mais do que isto, a Virgem se serve de um milagre físico para fazer bem à alma do enfermo e às dos que presenciam ou têm conhecimento do prodígio.

Tal benefício consiste, sobretudo, em infundir nos corações uma imensa fé na verdade de que Ela é a Medianeira universal de todas as graças.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

1) Com freqüência e de modo bondoso, Dr. Plinio empregava a palavra “capenga” no sentido metafórico, a fim de indicar certas debilidades de alma manifestadas por filhos das gerações que o sucederam. Estes apresentavam deficiências espirituais análogas às de um coxo. E assim como o capenga de corpo precisa de uma muleta para caminhar, o de alma, por ser inseguro, inconstante, volúvel, necessita sempre de especial apoio para progredir na vida espiritual.

A grande lição de Lourdes

Dentre os inúmeros relatos das aparições de Nossa Senhora em Lourdes, muito significativo é o de um funcionário público dessa localidade dos Pirineus. Sem fugir ao costume de seu tempo, era ele um homem cético para com as coisas de Deus e da religião, até o momento em que a Providência determinou tocar sua alma e o levou a presenciar um dos colóquios de Santa Bernadette com a Imaculada Conceição. Seu testemunho, de insuspeitada franqueza, é uma das eloquentes provas da autenticidade dessas aparições. Eis um bonito trecho de sua narrativa: De repente, como se um raio a houvesse tocado, ela (Bernadette) teve um sobressalto de admiração e pareceu nascer para uma segunda vida. (Uma luminosidade especial) a envolvia toda. Espontaneamente, sem cálculo, com um movimento maquinal, os homens que lá estávamos tiramos nossos chapéus e nos inclinamos como as mais humildes mulheres. A hora das objeções passara e, a exemplo de todos os que assistiam a esta cena celeste, olhávamos da moça estática para o rochedo, do rochedo para a moça.

Sorridente ou séria, Bernardette aprovava com a cabeça, ou parecia mesmo interrogar. Quando a Senhora falava, ela estremecia de felicidade. Quando, ao contrário, era ela que fazia ouvir suas súplicas, humilhava-se e se comovia até as lágrimas. Comumente, a vidente terminava suas preces por saudações dirigidas à Senhora invisível. Eu conhecia o mundo talvez até demais. Encontrara já pessoas que eram modelos de graça e distinção, mas jamais vi alguém saudar com a graça e distinção de Bernardette. Ao terminar a visão, porém, voltamos a ter diante de nós somente a figura amável, mas rústica, da filha dos Soubirous.

Após a cena que acabo de descrever, eu me sentia como um homem que acabou de sonhar e me afastei da gruta. Não conseguia voltar a mim, e um mundo de pensamentos me agitavam a alma. A Senhora do rochedo ocultava-se bem, mas eu sentira a sua presença, e estava convencido de que o seu olhar maternal voltara-se para mim. Oh! hora solene de minha vida! Perturbava-me até o delírio pensando como eu, o homem das ironias e das presunções, tivesse sido admitido a ocupar um lugar perto da Rainha do Céu.

O cético acreditou e se converteu

Por suas comovedoras palavras, entende-se que esse homem, todo embebido de orgulho e ceticismo, foi ali objeto de uma graça insigne e se converteu. Tinha ele se dirigido à gruta — segundo confessa — mais disposto a se divertir do que a acreditar nas aparições. Porém, ao reparar nas atitudes de Santa Bernadette durante os diálogos com Nossa Senhora, teve ele, por uma intuição psicológica direta, a noção de que a Interlocutora da menina realmente existia. Ela não podia ser uma abstração, algo tirado do vácuo, uma fantasia. A jovem camponesa estava falando com alguém, e seu modo de proceder tinha todas as características objetivas de quem entabula uma conversa com outra pessoa. De maneira que era inimitável a autenticidade da cena. E, portanto, a Santíssima Virgem existia, e estava ali presente. O cético acreditou e se converteu.

Enobrecida no trato com Nossa Senhora

Não deixa de ser muito interessante um dos indícios que ele aponta da veracidade das aparições, ou seja, a também inimitável distinção de atitudes da vidente, no momento dos colóquios.

Santa Bernadette era uma moça rústica. Quem a vê nas fotografias, nota tratar-se fundamentalmente de uma camponesa.

Pois bem, apesar disso, ao estar com Nossa Senhora, ela Lhe falava e A cumprimentava com uma elegância extraordinária. Tanta que o funcionário público declara não ter conhecido pessoa — e ele privara com muitas — mais distinta que Bernadette. Porém, terminando a visão, ela voltava a ser a filha dos camponeses Soubirous.

Quer dizer, era uma nobreza comunicada a ela pelo contato com Nossa Senhora. Passada a aparição, ela mudava de jeito. Seria mais ou menos como se uma pessoa de condição muito modesta fosse chamada a conversar com a rainha da Inglaterra e, nesse encontro, tivesse atitudes e maneiras mais finas do que no seu cotidiano.

Haveria uma espécie de filtração dos predicados da rainha para a pessoa com quem ela se dignou estabelecer uma interlocução. O mesmo se dava nas aparições de Lourdes.

Primeira gota de uma inundação de graças

Outro fato interessante a salientar é a própria conversão desse homem. Ele diz que saiu da gruta ao mesmo tempo humilhado e pasmo, pois não podia crer que alguém tão cheio de dúvidas e ceticismo como ele houvesse sido tão bem tratado por Nossa Senhora. Na verdade, deu-se um milagre gratuito em favor dele, uma vez que o convertido de nenhum modo merecia ter esta espécie de visão indireta da Virgem Imaculada. E, com o simples reflexo da presença d’Ela sobre a figura de  Santa Bernadette, Maria comoveu a alma desse homem e acabou com todos os seus orgulhos.

Pela expressão curiosa dele, vê-se que seu pensamento é o seguinte: “Eu era muito presunçoso, estava contra- indicado para receber essa graça, mas agora me sinto tocado por ela. Como é misericordiosa a graça que bate em portas tão conspurcadas, de modo que não se possam recusar a abrir!”

Foi, portanto, uma obra maravilhosa feita pela graça na alma desse homem, precursora do que se realizaria com tantos milhares e milhares de almas que passariam por Lourdes e seriam colhidas pelo milagre. E de tantas outras que, mesmo longe da gruta de Massabielle, se converteriam ouvindo falar dos prodígios ali operados por Nossa Senhora. Foi a primeira gota de uma verdadeira inundação de graças que viria para o mundo, iniciando-se em 11 de fevereiro de 1858.

Preciosos ensinamentos

Esses, como todos os acontecimentos de Lourdes, são ricos em ensinamentos para nós. A mais valiosa dessas lições será, talvez, a respeito do sofrimento. Até nossos dias, vemos manifestarem-se em Lourdes algumas atitudes de Nossa Senhora — e da Providência, com quem Ela vive em íntima união — diante da dor humana. Dentro da perfeição dos planos divinos, essas atitudes têm sua razão de ser, apesar de parecerem até contraditórias.

De um lado, chama a atenção a pena que Nossa Senhora tem dos padecimentos físicos dos homens. Numa extraordinária manifestação de sua insondável bondade materna, atende seus rogos e pratica milagres para lhes curar os corpos.

Nossa Senhora tem igualmente compaixão das almas, e para provar que a Fé Católica é verdadeira, pratica milagres a fim de operar conversões.

Mas existe outra realidade em Lourdes, não menos significativa: são os inúmeros doentes que de lá voltam sem o tão almejado restabelecimento. Por que misteriosa razão Nossa Senhora devolve a saúde física a uns e não a devolve a outros? Qual a razão mais profunda disso?

Creio que essa ausência de cura pode ser tomada como um dos mais estupendos milagres de Lourdes, se considerarmos que, para a imensa maioria das almas, o sofrimento e as doenças são necessários para se santificarem.

É por meio das provações físicas e morais que elas atingem a perfeição espiritual a que foram chamadas. E quem não compreende o papel do sofrimento e da dor para operar nas almas o desapego, a regeneração, para fazê-las crescer no amor a Deus, não compreende absolutamente nada. É por essa forma que, via de regra, os homens alcançam a bem-aventurança eterna.

E tão indispensável nos é o sofrimento para chegarmos ao Céu, que São Francisco de Sales não hesitava em qualificá-lo de 8º sacramento.

Ora, Nossa Senhora agiria contra o interesse da salvação das almas, se as livrasse todas das doenças. Claro está que, para determinadas pessoas, por circunstâncias e desígnios especiais, de algum modo convém subtrair-lhes o sofrimento. São exceções. A maior parte dos que vão a Lourdes voltam sem ter obtido a cura.

Estupendos milagres morais

Como Mãe que ajuda os filhos a carregar seus fardos, Nossa Senhora em Lourdes concede ao doente uma tal conformidade com o padecimento, que não se tem notícia de alguém que, ali estando e não sendo curado, se revoltasse. Pelo contrário, as pessoas retornam ao seus lugares de origem imensamente resignadas, satisfeitas de terem podido fazer sua visita à célebre gruta dos milagres, e de contemplar a bondade de Maria para com outros infortunados.

Há mesmo o fato de não poucos doentes, vindos dos mais distantes países da terra, vendo em Lourdes a presença de pessoas mais necessitadas do que eles, dizerem a Nossa Senhora estar dispostos a abrir mão da própria cura, em favor daquelas.

Quer dizer, aceitam o sofrimento e a doença em benefício do outro. É um verdadeiro milagre de amor ao próximo por amor de Deus. Milagre moral, arrancado ao egoísmo humano; milagre mais estupendo que uma cura propriamente dita.

Se bela é essa resignação, mais bonita ainda é a generosidade cristã das freiras do convento carmelita de Lourdes. São contemplativas recolhidas que têm o propósito de  expiar e sofrer todas as doenças, a fim de obter para os corpos e almas dos incontáveis peregrinos as graças e favores que eles vão ali suplicar. Nunca pedem sua própria cura, e aceitam todas as enfermidades que a Providência disponha caírem sobre elas, em benefício daqueles peregrinos. Padecem horrores, levam às vezes uma vida inteira de sofrimentos ou morrem de uma morte prematura, com esse intuito especial de fazer bem a outras almas.

Quando deitamos um olhar no mundo a nosso redor e consideramos as misérias da natureza humana decaída pelo pecado original, compreendemos que semelhantes atos de abnegação se acham tão distantes do nosso egoísmo e causam uma tal repulsa ao nosso amor próprio, que constituem um milagre maior do que todas as espetaculares curas verificadas em Lourdes. Esses atos demonstram que a primordial intenção de Nossa Senhora é produzir esses milagres de caráter moral que conduzem as almas ao Céu.

Pois Nossa Senhora não seria Ela, se aparecesse em Lourdes para fazer bem aos corpos que perecem, e não o fazer às almas imortais. Nem seria verdadeiro esse amor d’Ela aos homens, se não tivesse por principal objetivo levá-los ao amor de Deus.

Porque nada de melhor para nós se pode desejar.

O grande ensinamento de Lourdes

Então compreendemos o grande ensinamento de Lourdes. Não é o apologético, tão imenso, tão importante.

Mas é esse da aceitação da dor, do sofrimento, e até da derrota e do fracasso, se for preciso. Alguém objetar á: “É muito difícil resignar-se a carregar a dor por essa forma”.

Encontramos a resposta na agonia de Nosso Senhor Jesus Cristo, no Horto das Oliveiras. Posto diante de todo o sofrimento que O aguardava, Ele disse ao Pai Eterno: “Se for possível, afaste-se de mim este cálice. Mas seja feita a vossa vontade e não a minha”.

O resultado é que veio um Anjo consolar Nosso Senhor. Essa é a posição que cada um de nós deve ter em face de suas dores particulares: se for possível, que elas sejam afastadas de meu caminho. Porém, seja feita a superior vontade de Deus e não a minha. E a exemplo do que ocorreu com Jesus no Horto, a graça nos consolará também, nas provações que Maria Santíssima nos enviar.

Tenhamos, portanto, coragem, ânimo, compreensão do significado do sofrimento e alegria por sofrermos: estamos preparando nossas almas para o Céu.

 

O rochedo saltará como um cabrito

Estamos aos pés do maior rochedo da História, que é a Revolução gnóstica e igualitária. Assim como em Lourdes Maria Santíssima realizou e realiza inúmeros milagres, Ela fará com que esse rochedo se esboroe.

A respeito de Nossa Senhora de Lourdes, na biografia de Santa Bernadete Soubirous, a vidente de Lourdes, escrita pelo Pe. Trochu(1), encontramos alguns dados que nos  falam a respeito da devoção dessa Santa a Nossa Senhora.

O Rosário era sua devoção preferida A devoção à Santíssima Virgem tinha que ser particularmente terna e particularmente filial. “Maria, seu ideal vivo, ocupava em seu  coração um lugar muito próximo a Nosso Senhor” — declarou sua vizinha de enfermaria, Sóror Marta du Rais. Tinha que ouvi-la quando recitava a Ave-Maria.

Que acento de piedade, especialmente quando pronunciava as palavras “pobres pecadores”. Quando dizia “Minha Mãe celestial”, não podia dizer mais. Alguém se atreveu a  perguntar-lhe se a lembrança da aparição se tinha apagado em sua memória. “Esquecer-me? — exclamou com tom de censura — Oh, não, jamais!” E levando sua mão direita sobre a fronte, dizia: “Está aqui”.

“Teria que nos fazer — sugeriu-lhe uma companheira — uma descrição de como era a Virgem, posto que a senhora sabe como era Ela. Não poderia nem saberia fazê-lo — foi a única resposta que deu. Eu para mim não necessito; levo-A no coração.”

A devoção mariana encheu de certo modo toda a sua vida. Tinha necessidade de meditar sobre a Virgem. Via Maria em tudo e por tudo com seu coração e seu entendimento. Nunca, para uma alma religiosa, a oração de quietude podia ter sido mais desejada. Quando rezava à Santíssima Virgem — atesta Sóror Gonzaga Champy —, parecia ainda que estava vendo. Quando alguém lhe pedia que alcançasse alguma graça, imediatamente respondia que pediria à Santíssima Virgem.

Arrebatada pelo Cântico dos Cânticos — informa um grande servidor de Maria — Sóror Maria Bernadete se comprazia em louvá-La, fazê-La conhecer, amá-La e servi-La.

Esforçava-se por imitar suas virtudes, especialmente sua humildade e sua renúncia. Dedicou-se, para sua devoção, a compor acrósticos. A primeira dessas modestas composições se refere à Santíssima Virgem, e era:

Mortificação
Amor
Regularidade
Inocência
Abandono

No dia da Assunção, na capela, a Madre Henri Fabre, que estava situada um pouco distante de Sóror Maria Bernadete, de modo que lhe era fácil poder observá-la, “às palavras do canto ‘é minha Mãe, eu vejo’, eu a vi — conta — como se ela tivesse um arrebatamento e uma comoção de alegria”. […]

Toda sua vida desfiou o Rosário como tinha feito em Lourdes. “O Rosário era sua devoção preferida”, disse uma Superiora Geral. Mais de uma vez, na enfermaria, a Irmã Gonzaga Champy alternou as Ave-Marias com ela.

“Então — recorda essa religiosa — os olhos escuros, profundos e brilhantes de Bernadete pareciam como se estivessem vendo Nossa Senhora.” Pela noite, quando ia dormir, recomendava a uma companheira: “Toma o Rosário e durma rezando. Farás o mesmo que fazem as crianças pequenas que adormecem dizendo ‘mamãe, mamãe’.”.

Vocação muito parecida com a de Lúcia de Fátima

Esses dados sobre Santa Maria Bernadete atestam bem a ardente devoção que ela teve a Nossa Senhora. Mas há uma coisa curiosa na vida dessa Santa: ficou provado que ela tinha essa grande devoção a Nossa Senhora, mas ela não deixou transparecer senão muito pouca coisa. Quer dizer, algum dado novo, alguma reflexão nova, algum  enriquecimento da Mariologia, algum sistema de devoção novo, algo que pudesse, enfim, representar um impulso para a devoção a Nossa Senhora, ela não deu.

Isso porque Santa Bernadete teve uma vocação muito parecida com a de Lúcia de Fátima. Quer dizer, ela teve a vocação de revelar ao mundo as aparições de Lourdes. Uma vez que ela revelou essas aparições, ela as prestigiou tornando-se freira e sendo canonizada pela Igreja.

Embora a Igreja não mande crer nas aparições de Lourdes, porque são de caráter privado — e em matéria de fatos sobrenaturais nós só somos obrigados a acreditar nos fatos oficiais, não nos privados —, roça pela heresia quem conteste as aparições de Lourdes. Porque seria preciso admitir que uma Santa canonizada pela Igreja tivesse tido essas ilusões.

Ora, isso é uma coisa que não se pode admitir. De maneira que a vida e a santidade de Santa Bernadete de algum modo atestam a autenticidade das aparições de Lourdes.

A santidade de Bernadete atesta a autenticidade das aparições Aliás, também exuberantemente atestadas pelo fato dos milagres que se operaram depois, e que são uma  prova de que em Lourdes realmente é a graça que atua. Santa Bernadete Soubirous, durante uma das visões — o povo não via Nossa Senhora, mas percebia que ela falava com uma pessoa que ninguém via —, a certa altura essa pessoa disse a ela: “Passe a mão na terra, revolva-a, que daí vai nascer uma fonte.” E, num lugar onde ninguém supunha que existisse água, viu-se ela meter diretamente a mão na terra — era uma camponesa — e a água brotar. Daí veio exatamente a fonte de Lourdes e ela disse que  nessa fonte se operariam muitas curas.

Ela fez uma profecia: nessa fonte maravilhosamente aparecida haveria curas, e depois houve as curas. De maneira que cada uma dessas coisas é milagrosa por si. Além disso, a vida de santidade dela atestava o seu equilíbrio mental e, portanto, a autenticidade das visões e dos fatos milagrosos que em Lourdes se deram.

Depois que esses fatos se deram, ela não teve uma missão pública, mas privada. E por causa disso ela se calou. Isso é muito bonito para nós vermos a diferença de vocações dentro da Igreja, e como a Providência suscita cada pessoa para ordenadamente seguir uma determinada vocação.

Um tem uma tarefa, um segundo outra tarefa, um terceiro tem outra. Nossa Senhora distribui essas missões de maneira tal que ninguém se mete na tarefa na qual não foi chamado e cada pessoa se dedica inteiramente à missão para a qual foi escolhida.

Temos, então, Santa Bernadete Soubirous como uma espécie de testemunho vivo do milagre de Lourdes. Em Lourdes Maria Santíssima quis ser conhecida enquanto  sumamente benfazeja. Por isso, nas nossas orações devemos ser ousados, fazer pedidos arrojados — não insensatos; é uma coisa profundamente diferente —, difíceis de alcançar, e precisamos, ao mesmo tempo, pedir com muita insistência.

Por exemplo, pedir uma graça que diga respeito à nossa santificação. Isso nos leva a refletir um pouco em nossa vida espiritual. E, por essa forma, a ter uma visão de nós mesmos e de nossas atividades, de nossos rumos, mais precisa. E leva-nos a fazer uma oração grata a Nossa Senhora.

Mais do que os corpos mortais, Nossa Senhora quer curar as almas imortais Não devemos nos esquecer de que as doenças do corpo, no Evangelho, costumam ser  consideradas, pelos comentaristas e exegetas, como sendo símbolos das doenças da alma. E que assim como alguns sofrem de paralisia do corpo, outros sofrem de paralisia
da alma; sofrem de cegueira do corpo, outros, da alma; e assim surdez, mudez e outras enfermidades. O que é mais difícil: curar o corpo  ou curar a alma? Evidentemente,
para a Rainha do Céu e da Terra não é difícil nem uma coisa nem outra.

Aquilo que Nossa Senhora pedir, Ela obtém. Se Ela cura tanto os corpos, vamos pedir-Lhe para curar as nossas almas também. Se tivermos defeitos da alma que gostaríamos de corrigir, seria o momento adequado para levarmos aos pés d’Ela esses nossos defeitos e rogar- Lhe que nos cure. Esse pedido tem muita razão de ser, porque se a Santíssima Virgem quer tanto curar os corpos perecíveis, mortais, quanto mais Ela quererá curar almas imperecíveis e imortais. Nosso Senhor Jesus Cristo não veio à Terra para salvar corpos, e sim para salvar almas, e por isso nossos pedidos não podem deixar de ser muitos gratos a Ele. Podemos rogar por nós ou a favor de alguém por quem  nos interessamos, com quem façamos apostolado, por uma alma cujas dificuldades nos amedrontam, por um amigo cujas aflições ou tentações pelas quais passa constituem para nós uma fonte de preocupação.

A Festa de Nossa Senhora de Lourdes nos inspira, contudo, outra consideração e nos traz à memória, naturalmente, a gruta bem conhecida de Massabielle na qual se encontra o nicho com a imagem da Imaculada Conceição, onde há os dizeres dirigidos por Nossa Senhora a Santa Bernadete Soubirous: “Eu sou a Imaculada Conceição.”

Embaixo, o Rio Gave que espuma e, pouco adiante, as piscinas nas quais se fazem os banhos dos doentes, e onde ocorrem os milagres. Bem acima, numa posição bonita, encontra-se a Basílica. Confirmando o dogma da Imaculada Conceição Nesse quadro clássico, temos uma nota que diz tudo. A Santíssima Virgem quis aparecer e manifestar-se em Lourdes para dar especial força à Fé dos fiéis quanto ao dogma da Imaculada Conceição. Para isso, a Igreja tinha quase dois mil anos de ensino e, definindo o dogma por sua autoridade infalível, este foi aceito por quase toda a Cristandade. Foi recusado apenas por alguns que saíram ingloriamente, torpemente da Igreja nessa ocasião, a tal seita dos Velhos Católicos.

Nesta situação, entretanto, Nossa Senhora quis que um milagre, a aparição d’Ela a uma pastorinha, Santa Bernadete Soubirous, ainda realçasse isso, para que a crença dos fiéis na Imaculada Conceição fosse bem firme.

Para ainda tornar este milagre mais evidente, Maria Santíssima prolongou-o numa espécie de rosário de milagres através dos séculos. Será que realmente Nossa Senhora apareceu a essa pastorinha? Será que ela não foi sugestionada pelo  clero? Será que não foi paga, não foi ensinada?

Qual a prova do contrário? É o milagre. É uma cura, duas, dez, incontestáveis,  indiscutíveis, perfeitas, que provam ao longo dos tempos, como um sino que toca longamente, e de vez em quando soa de novo e não se contenta com seu próprio eco, mas se prolonga a si próprio na sua atividade, pela noite adentro… Assim também, na noite da impiedade que ia avançando pelo mundo, os sinos dos milagres de Lourdes continuaram a tocar.

As curas operadas em Lourdes

A esta importância do milagre se contrapõe, entretanto, também outra situação. Não é só mais a Imaculada Conceição cuja confirmação é a finalidade essencial dos milagres, mas há também outro aspecto a considerar: os doentes com todas as misérias que podem afligir o pobre corpo humano, e que ali vão para serem curados.

Algumas curas são claramente milagrosas. Outras, de cujo caráter milagroso não há prova científica, mas que são curas autênticas. Apenas a Igreja não declara oficialmente que são milagres porque são doenças, em última análise, curáveis também por outro agente. E a Igreja se dá ao justo e sábio luxo de só reconhecer aquelas curas de doenças realmente incuráveis.

Mas, quantas curas de doenças curáveis! Quantas pessoas que palpitam ali aos pés da imagem da Imaculada Conceição em Lourdes e cantam, rezam, choram e suplicam  porque trazem fardos no corpo, os fardos das doenças; trazem sofrimentos, provações terríveis e pedem a Nossa Senhora que as cure.

A respeito dessas curas, qual é o ensinamento da Igreja? Descartadas outras circunstâncias a considerar, esta pesa fundamentalmente: é preciso que o doente tenha Fé católica apostólica romana viva, acesa. E que ele creia no milagre que vai acontecer. Desmentindo o que estou dizendo, há casos de ateus que se curaram.

Analisando os fatos, verifica-se que eles eram acompanhados muitas vezes por gente que tinha Fé, a velha mãe, a irmã piedosa, o irmão católico ardoroso que rezavam, em atenção a cujos rogos os milagres foram dados aos ateus.

Se alguma vez a cura foi concedida a um homem desacompanhado de pessoas e que não tinha Fé, havia em algum lugar do mundo uma alma reta, uma alma justa que, sem rezar por aquele homem individualmente cuja existência ignorava até, entretanto orou para que a glória de  Nossa Senhora se manifestasse. Esta é a realidade. Quer dizer, o que determina, o último elo para que o milagre toque no miraculado e a luz do Céu penetre, assim, aos olhos dos incrédulos para provar a Imaculada Conceição, é a Fé  daquele que pediu; a Fé que move as montanhas.

Estamos diante do maior rochedo da História: a Revolução Ora, nós estamos aos pés do maior rochedo da História, que é a Revolução, e devemos crer que a nossa força de alma aplicada, cotidianamente, contra esse rochedo o moverá. O sinal de nossa Fé é o ímpeto da força. Para usar a metáfora do aríete, é preciso que no impulso desse aríete cada um coloque toda a sua força.

E, não adianta dizer que qualitativamente a força de um de nós pode valer mais do que a do outro, porque é um argumento errado. Assim como Nosso Senhor quer que uma gota d’água esteja misturada ao vinho para operar- e a transubstanciação na Santa Missa, assim também, por este exemplo augusto, quer Ele nos provar que o esforço do menor tem que estar somado, por inteiro, ao esforço do maior.

O que é a força no caso? É aquela violência que move os Céus. Está dito: “O reino dos Céus é dos violentos” (Mt 11,12). E é essa a violência que nós devemos ter. Violência com que Jacó lutou contra o Anjo e obrigou-o a dar a bênção. Assim nós temos que lutar contra as circunstâncias e obter da Santíssima Virgem que o Anjo d’Ela desça do Céu e nos dê a sua bênção.

Então a Providência exigiria de todos nós que aplicássemos, cada um, toda a força sobre o rochedo dizendo: “Salve Rainha, Mãe de misericórdia…” Um dia, quando menos  esperássemos, o rochedo saltaria como um cabrito. Nossa Senhora terá, nesse momento, premiado dias, meses e anos em que, sem cessar, a alma foi aplicada com toda a intensidade. Dia virá em que o Coração Sapiencial e Imaculado de Maria ordenará ao rochedo: “Salte!” E ele saltará.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 10/2/1965, 11/2/1967 e 12/2/1982)

Nossa Senhora do Bom Sucesso

Na pequenina Quito do século XVI um grande acontecimento se deu: Maria Santíssima apareceu a uma religiosa concepcionista e lhe fez revelações sobre o futuro de seu país. Embora não tendo tomado tais revelações como infalíveis, Dr. Plinio deu a elas uma atenção especial.

No dia 2 de fevereiro, a comunidade das Irmãs Concepcionistas celebra em Quito, Equador, a festa de Nossa Senhora do Bom Sucesso. Qual é a história desta devoção?

Madre Mariana de Jesus Torres e o triunfo de Maria

Madre Mariana de Jesus Torres, religiosa concepcionista, foi ao Equador em 1576, quando ainda era menina, acompanhando sua tia, Madre Mariana de Jesus Taboada, a qual partia com a intenção de lá fundar um convento.

Com elas viajaram várias outras religiosas espanholas, as quais se fixaram em Quito — cidade que naquele tempo era ponta avançada da penetração espanhola na América do Sul. Pelo que se conhece de suas vidas, essas religiosas fundadoras morreram em odor de santidade e eu tenho muita esperança de que — para a maior glória do Equador e das Américas em geral — elas sejam canonizadas.

Na pequenina Quito daqueles tempos, Madre Mariana de Jesus Torres, sendo abadessa do convento, teve extraordinárias visões e revelações privadas de Nossa Senhora.

Embora não tomemos estas revelações como dogma — a Revelação oficial está encerrada com o Novo Testamento — devemos considerá-las especialmente.

Tais revelações prenunciam um tempo onde o Equador se tornaria independente da Espanha e seria sacudido por uma grande revolução de caráter religioso-temporal; no mundo inteiro a Fé se extinguiria em muitas almas, e haveria inúmeras calamidades morais. Mas após esses acontecimentos terríveis seria instaurado um tempo de glória para a Igreja.

História da imagem

Qual é a história da imagem de Nossa Senhora que a partir de então passou a presidir o convento?

Numa das aparições(1), a Santíssima Virgem pediu a Madre Mariana que fizesse uma imagem sua, em tamanho real. Para isto, a vidente desejou medi-la a fim de que se cumprisse esse desejo.

Então, Nossa Senhora segurou uma das pontas do cordão franciscano que trazia em sua cintura, para auxiliar Madre Mariana a tomar suas medidas.

A confecção da imagem foi confiada a um escultor local(2).

Certo dia, ao subir ao coro da igreja do Convento — lugar onde esculpia a imagem — qual não foi a surpresa do escultor: encontrou a imagem pronta! Ela estava magnífica!

Nenhuma mão humana havia terminado a imagem; durante toda a noite a igreja havia permanecido fechada. É uma imagem feita por mão de anjo(3).

O que a imagem nos comunica

O que essa imagem nos inspira no fundo da alma?

A mensagem que ela contém: uma grande promessa, um grande triunfo. Algo posto pela graça se acrescenta aos recursos da escultura e anuncia, no fundo de nossas almas, as alegrias e as certezas da promessa.

O báculo e as chaves, que Nossa Senhora traz consigo, dão a entender que é Ela quem abre e fecha os acontecimentos grandiosos; mas também as misérias e catástrofes dos homens; enfim, as vitórias de Deus dentro da História.

Mais do que as jóias, quem A adorna realmente é seu Divino Filho! Ela O traz triunfalmente, como quem diz: “Estou vencendo, mas venço para que Ele vença. Eu sou Rainha, sim, porém o sou porque Ele é o Rei!”

Nela há também um aspecto sobre o qual chamo a atenção: Ela comunica sua virginalidade extraordinariamente. É impossível olhar para esta imagem sem ter a impressão de que, em torno dela, a pureza se irradia.

Ela está inundada por uma felicidade de alma que é prêmio pela virtude da pureza. A pureza concede isto à alma que a pratica: segurança, discernimento, dignidade, compostura por onde se calca aos pés os infortúnios. Daí provem a louçania da vitória e do triunfo transmitida por essa imagem.

A luta ainda vai ser maior

Deste modo Ela nos prepara para as agruras da luta, falando-nos da alegria e da glória que virão.

Antigamente, até meados do século passado, talvez, não se conheciam os anestésicos, e as operações se faziam a frio. O paciente — muitas vezes acordado — de vez em quando, perguntava ao médico como ia o andamento da cirurgia.

Era compreensível que o cirurgião, amigo do paciente — ou simplesmente movido por sentimentos de compaixão que aquelas dores não podiam deixar de causar —, durante a primeira fase da operação lhe dissesse: “Vai indo bem, eu estou conseguindo abrir tal zona, já estou em tal outra, etc.; daqui a pouco vem a extração”. Este “daqui a pouco vem a extração” animava o paciente! Ou seja, as fases mais delicadas do perigo estão se aproximando e vão terminar.

Depois que a amputação foi realizada, se a dores persistem ou aumentam, o que faz o médico? Ele diz: “Olhe, o pior já foi, daqui por diante as dores vão declinar, nós já estamos chegando ao fim”. Ele começa a apontar para aquilo que é o ideal do doente: o fim da operação.

É o caminho da normalidade: na fase ascendente fala-se que tudo vai bem e incita-se a ter coragem; quando ela atinge um ponto no qual é preciso toda a resistência, compreende-se que se diga “agora vai melhorar”.

Nossa Senhora do Bom Sucesso dá-nos a impressão de que está dizendo no fundo de nossas almas: “Meus filhos, a luta ainda vai ser maior, mas o meu Reino já vai começar a luzir no horizonte!” É a alegre e vitoriosa proclamação do Reino de Maria!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 14/8/1982 e 2/2/1983)

1) No ano de 1610.
2) A própria Virgem Maria escolheu o escultor, dizendo: “Para esta tarefa, deves chamar Francisco del Castillo, o qual é um hábil escultor, e dar-lhe as descrições de minhas medidas”.
3) De fato, Madre Mariana teve uma visão dos anjos concluindo a imagem enquanto o escultor se ausentava para buscar vernizes e tintas para o acabamento.

Santa Escolástica e o apostolado do sofrimento

Santa Escolástica, irmã de São Bento, desenvolveu uma obra entrelaçada com a deste, fundando as beneditinas.

Numa época em que a ação social destas religiosas pareceria tão necessária, elas se empenharam em algo muito mais importante: rezavam e se sacrificavam. E, pelo seu exemplo, deixaram bem claro que a fecundidade do ramo masculino devia-se ao fato de haver um ramo feminino que rezava e se imolava.

Vemos, assim, o papel admirável, insubstituível e incomparável de Santa Escolástica.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/2/1965)

Energia combativa

A história do pontificado do grande Pio IX mereceria ser estudada a fundo pelos católicos. Ela contém ensinamentos para nossa época muito mais oportunos e profundos do que geralmente se pensa.

Quer pela definição do dogma da Imaculada Conceição, em 1854, quer pela convocação do Concílio do Vaticano em 1869, e a definição do dogma da infalibilidade papal no ano seguinte, este grande Papa enfrentou aguerrida e resolutamente o naturalismo e o racionalismo do século.

Pio IX julgou que a época era ainda menos propícia do que outra qualquer para uma atitude de impassibilidade sorridente, cujo efeito necessário seria o encorajamento dos maus e o entibiamento dos bons. Com isto, calcando aos pés qualquer falso sentimentalismo, Pio IX enfrentou decididamente a impiedade.

Sua energia combativa venceu. Depois da definição do dogma da infalibilidade pontifícia pelo Concílio do Vaticano, a onda do racionalismo naturalista tem decrescido incessantemente, e embora ela ainda conserve formas disfarçadas dignas da maior cautela dos católicos, é certo que perdeu aquela agressividade truculenta e blasfema com que se pavoneava nas altas rodas literárias, políticas e sociais da Europa do século XIX.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de “O Legionário” de 18/12/1938)

Beato Pio IX, vigor e triunfo da Santa Igreja

Diante do racionalismo propagado ao longo de seu século, Pio IX, com  grande audácia, promoveu o triunfo da Santa Igreja.

Muitos foram os comentários de caráter litúrgico e piedoso que se fizeram a respeito da data da Imaculada Conceição. Entretanto, uma das reflexões que o assunto suscita, ficou completamente de lado. Cumpre recordá‑la, porque ela conserva, em nossos dias, uma atualidade palpitante.

 

Maus efeitos do racionalismo no século XIX

Não é fácil, para quem vive em nossos dias, ter uma ideia da devastação que o racionalismo e o modernismo fizeram na sociedade europeia e americana, em todo o decurso do século XIX. O espírito humano, profundamente trabalhado pelos materialistas, pelos revolucionários de todos os matizes, sentia dentro de si uma revolta ardente contra o sobrenatural, que o levava a repelir tudo quanto não pudesse cair diretamente sob a ação e o controle dos sentidos.

Por isto mesmo, todas as religiões, principalmente a Católica, na qual o sobrenatural se patenteia de forma visível e autêntica, foram como que postas de quarentena pela maior parte da opinião pública. E todos os espíritos procuravam, tanto quanto possível, libertar‑se da crença em uma ordem de fenômenos que não se enquadrasse rigorosamente dentro das leis da natureza. A bem dizer, talvez nove décimos da opinião europeia estavam eivados de racionalismo e de modernismo.

Evidentemente, essa contaminação não era igualmente extensa nem

igualmente profunda em todos os espíritos. No entanto, mais visível em uns, menos em outros, ela tinha se insinuado de tal maneira que, mesmo entre os católicos leigos os mais eminentes se podia notar uma ou outra infiltração daquelas tremendas formas de heresia. Quatro eram as posições principais tomadas pela opinião pública perante a grande crise religiosa da época:
 
 1 ‑ aqueles que, corroídos a fundo pelo vírus racionalista e modernista, tinham sido atirados aos extremos da irreligiosidade, isto é, ao ateísmo radical seguido de um anticlericalismo militante e não raras vezes sanguinário;

2 ‑ aqueles que, sem ter a coragem de romper com toda e qualquer convicção religiosa, estavam explicitamente colocados fora da Igreja, admitindo tão somente um espiritualismo ou um cristianismo vago, largamente acomodado aos princípios modernistas e racionalistas;

3 ‑ aqueles que, sem ter a coragem de romper com a Igreja, nem com o espírito do século, proclamavam‑se católicos, mas sustentavam seu direito de professar, em um ou outro ponto, doutrinas contrárias às da Igreja;

 4 ‑ aqueles que, sem ter a coragem de sustentar que divergiam da Igreja, e muito menos de se separar dela, procuravam, entretanto, interpretar capciosamente a Doutrina Católica, de forma a lhe alterar em alguns pontos o conteúdo autêntico e tradicional, e acomodá‑lo com os erros da época.

A dizer a verdade, os que estavam inteiramente fora dessa classificação, os que haviam rompido inteiramente com o espírito do século e que se conservavam sem nenhuma jaça de racionalismo ou de modernismo, eram poucos, especialmente nos círculos intelectuais e sociais elevados.

Grande gesto de audácia do Papa O aspecto que a Igreja apresentava era, então, a de um imenso edifício que se esboroa aos pedaços. De seus milhões de filhos, pouquíssimos conservavam seu autêntico espírito.

Na sua quase totalidade, eles conservavam apenas réstias de Fé, como o horizonte do crepúsculo, que conserva réstias de luz, vestígio derradeiro de um dia que está chegando ao seu fim. E a noite completa não haveria de tardar.

 Triunfo da Santa Igreja

À vista disto, como deveria agir a Santa Igreja?

As opiniões estavam divididas e, efetivamente, o assunto era dos mais delicados. Por um lado, uma reação clara e definida haveria de gerar uma imensa oposição, arrastando para a heresia explícita e categórica muitos espíritos que ainda se achavam ligados, mais ou menos, à Igreja Católica. Por outro lado, entretanto, se não se opusesse um dique formal e categórico à onda da heresia, que ia subindo, seria inevitável que, mais cedo ou mais tarde, os desastres assumissem proporções tais, que a Igreja viesse a conhecer os mais tristes e mais angustiosos dias de sua existência.

Pio IX optou por um gesto de energia e resolveu convocar o Concílio do Vaticano, a fim de estudar e de decidir sobre a Infalibilidade Papal. Um grande e largo gesto de audácia da Igreja enfrentava, pois, o espírito do século, em um desafio que parecia louco. Realmente, falar em dogmas naquela época já era uma temeridade. Definir dogmas novos, temeridade maior. E definir como dogmas exatamente a Imaculada Conceição e a Infalibilidade Papal, em uma época tremendamente racionalista, parecia uma verdadeira loucura.

Por isto mesmo, uma imensa celeuma se levantou nos próprios arraiais católicos, quando a deliberação do Pontífice foi conhecida.
 

O triunfo da atitude acertada

Por que isto? Porque discordassem delas? Não. Mas porque achavam que o espírito transviado do século XIX só poderia ser atraído ao redil por um largo sorriso de concessão e de tolerância; que não é com golpes de audácia, mas com uma invariável brandura, que se consegue a conversão das massas; que seria loucura das mais declaradas procurar desafiar o espírito público. Realmente, com esta atitude ousada, todos se irritariam e se confirmariam no erro. Seria necessário contemporizar e conquistar pela persuasão e pela doçura. Só esta tática é que seria viável.

No Concílio do Vaticano reuniu‑se a Santa Igreja através de seus Bispos, iluminados pelo Espírito Santo, e além da questão doutrinária este grande problema de estratégia foi discutido. A bem dizer, era talvez a primeira ocasião em que este problema estratégico se apresentava ao exame do Episcopado com tanto vigor, depois do Concílio Tridentino.

Os fatos pareciam dar inteira razão aos Bispos de opinião diversa da do Papa. Uma celeuma imensa se levantava pela Europa.

As apostasias se multiplicavam. As discussões no Concílio eram longas e apaixonadas. Em última análise, ao lado da questão doutrinária, se discutia o seguinte problema:

1 ‑ um gesto de vigor, tendente a preservar do erro as massas, conseguirá realmente imunizar os elementos não contagiados?

2 ‑ esse gesto não terá como consequência exacerbar os espíritos que vacilam, e levá‑los à heresia?

3 ‑ sobretudo, não produzirá ele o efeito de enraizar no erro indivíduos que poderiam talvez, pela persuasão, ser conduzidos à Verdade?

À primeira questão, o Concílio respondeu, “sim”. As outras duas, “não”.

Foi este o significado da promulgação solene daquele grande dogma.

Aparentemente, o Concílio errara.

Continuava a irritação da incredulidade. Rios e rios de tinta se gastaram para provar que o Concílio era retrógrado e obscurantista. A revolta contra a Igreja

era franca e declarada… Entretanto, os resultados desejados pelo Concílio não se fizeram esperar muito.

Em primeiro lugar, todos os católicos militantes deram sua adesão incondicional. No seio do povo, as verdades definidas pela Igreja foram aceitas graças ao vigor com que Igreja as promulgara. Até nos círculos intelectuais, o vigor com que agira o Papa lhe atraiu o respeito geral, e todo o mundo começou a respeitar e se interessar por uma Igreja dotada de tal vitalidade. O racionalismo e o modernismo foram decaindo gradualmente. (…)

Estratégia dos Pontífices de todos os tempos

Evidentemente, ninguém pode negar o alcance deste acontecimento histórico. Erram os que condenam as manifestações vigorosas da Fé, e que julgam imprudente e contraproducente qualquer gesto de energia e de vigor combativo dos filhos da Luz contra os filhos das Trevas.

Aí está o triunfo formidável e definitivo de Pio IX a prová‑lo. (…) [Enganar-se-ia] quem pensasse que, agindo assim, Pio IX empregou uma estratégia de cunho exclusivamente pessoal. O que o grande Pontífice fez, não foi senão a aplicação, ao seu século, dos tradicionais processos de apostolado da Santa Igreja. A estratégia de Pio IX foi a de todos os Pontífices que se viram em situação análoga à sua, e que venceram as grandes crises que assediaram a Santa Igreja no passado. E não seria difícil mostrar que foi idêntica a linha de conduta observada pelos Pontífices que, depois de Pio IX, se têm sucedido no trono de São Pedro. É a admirável continuidade pontifícia, que atesta de modo flagrante a assistência indefectível do Espírito Santo aos Papas, através dos séculos. Todos os capítulos da História da Igreja, em todos os séculos, [confirmam] esta admirável continuidade e proporcionam aos fiéis ensinamentos de inestimável valor.

 
(Extraído d’O Legionário de 11 e 18/12/1938 in RDP 02-2011, pgs. 16 a 19)

Lourdes, milagre da misericórdia de Maria

A fim de nos associarmos ao júbilo de todo o orbe católico pelos 150 anos das aparições de Lourdes, nada melhor do que recordarmos aqui palavras de Dr. Plinio, repassadas de devoção e entusiasmo diante das incontáveis maravilhas que a maternal clemência de Maria Santíssima tem prodigalizado aos homens no célebre santuário.

Quando menos esperava, a pequena camponesa Bernadette Soubirous foi objeto de uma graça indizível: a Providência a escolhera para ser a vidente à qual Maria Santíssima apareceria, numa gruta de Lourdes. A partir do dia 11 de fevereiro de 1858, as visões se sucederam, e foram o prenúncio da série de milagres que não estancaram até hoje, deixando a impiedade confundida e emudecida. Por outro lado, serviram de ocasião para uma imensa expansão da devoção a Nossa Senhora pelo mundo inteiro. As curas prodigiosas de Lourdes se repetiam e se transformaram num cântico de glória à Imaculada Conceição, dogma promulgado há pouco mais de três anos pelo Papa Pio IX.

Nossa Senhora se impõe ao desprezo dos ímpios

Lourdes é, na verdade, uma das mais extraordinárias manifestações da luta de Nossa Senhora contra o demônio, pois essa aparição se deu no auge das perseguições e depreciações movidas pelo anticlericlaismo do século XIX para enfraquecer a Igreja. Muitos, acovardados pelo respeito humano, fingiam não ter mais fé. Poucos professavam claramente a religião católica, e os que não o faziam, pediam provas dela.

Nossa Senhora então aparece e têm início os milagres, operados com a solicitude e magnanimidade maternais da Virgem Santíssima. Das pedras da gruta de Massabielle passou a jorrar um curso de água que ainda não existia. Naturalmente, os doentes, que pensam em tudo para aliviar as suas dores, puseram-se a se banhar nessas águas e — oh! maravilha! — começam a se curar em número surpreendente.

Não querendo dar a mão à palmatória, os ímpios logo erguem a voz, afirmam não se tratarem de doenças autênticas e, portanto, não o eram também as curas. Não podia haver milagre, porque a veracidade deste os esmagaria.

A fim de eliminar quaisquer dúvidas e fazer triunfar a insondável bondade de Nossa Senhora, a Igreja instituiu um centro médico especial, com todos os recursos mais modernos que a ciência possuía, para analisar e comprovar as enfermidades antes de os doentes se banharem. Munidos do atestado, eles entravam nas águas e pouco depois saíam — várias vezes, nem sempre — cantando as glórias de Nossa Senhora, porque tinham obtido a cura. Os médicos faziam novo exame e, conforme o caso, declaravam não haver explicação científica para o restabelecimento do doente.
No decorrer dos meses e dos anos as curas foram se multiplicando, e a piedade católica constituiu todo um dossier sobre essa maravilhosa manifestação da compaixão de Deus para com os homens.

Três atitudes de Maria face à dor humana

Esses milagres, assim como todos os acontecimentos de Lourdes, são ricos em ensinamentos para nós. A mais valiosa dessas lições será, talvez, a respeito do sofrimento.

Vemos em Lourdes três atitudes da Providência e, portanto, de Nossa Senhora diante da dor humana. Dentro da perfeição dos planos divinos, tais procedimentos têm sua razão de ser, apesar de parecerem contraditórios.

De um lado, chama atenção a pena que Nossa Senhora tem dos padecimentos dos homens, e como, numa extraordinária manifestação de sua insondável bondade materna, atende aos rogos deles e pratica milagres para curar seus corpos.

Por outro lado, Nossa Senhora tem igualmente compaixão das almas, e para provar que a Fé Católica é verdadeira, pratica milagres a fim de operar conversões.

Mas existe uma terceira realidade em Lourdes, não menos significativa que as anteriores: são os inúmeros doentes que para lá se dirigem e voltam sem o tão almejado restabelecimento. Por que misteriosa razão Nossa Senhora devolve a saúde física a uns e não a devolve a outros? Qual a razão mais profunda disso?

Creio que essa ausência de cura pode ser tomada como um dos mais estupendos milagres de Lourdes, se considerarmos que, para a imensa maioria das almas, o sofrimento e as doenças são necessários para se santificarem. É por meio dessas provações físicas e morais que elas atingem a perfeição espiritual a que foram chamadas. E quem não compreende o papel do sofrimento e da dor para operar nas almas o desapego, a regeneração, para fazê-las crescer no amor a Deus, quiçá não entenda que, via de regra, por essa forma os homens alcançam a bem-aventurança eterna. E tão indispensável nos é o sofrimento para chegarmos ao Céu, que São Francisco de Sales não hesitava em qualificá-lo de “oitavo sacramento”.

Ora, Nossa Senhora agiria então contra o interesse da salvação das almas, se as livrasse todas das doenças. Claro está, a determinadas pessoas, por circunstâncias e desígnios especiais, de algum modo convém subtrair-lhes o sofrimento. São exceções. A maior parte dos que vão a Lourdes voltam sem ter obtido a cura. E nisto podemos ver como a Santíssima Virgem, tão misericordiosa, entretanto respeita a vontade divina no que se refere aos sofrimentos humanos.

Milagres da caridade cristã

Porém, como a Mãe que ajuda os filhos a carregarem seus fardos, Nossa Senhora em Lourdes concede ao doente uma tal conformidade com o padecimento, que não se tem notícia de alguém que, ali estando e não sendo curado, se revoltasse. Pelo contrário, as pessoas retornam ao seus lugares imensamente resignadas, satisfeitas de terem podido fazer sua visita à célebre gruta dos milagres, e contemplar a bondade de Maria para com outros infortunados que não elas.

Há mesmo o fato de não poucos doentes, oriundos dos mais distantes países da Terra, vendo em Lourdes a presença de pessoas mais necessitadas de cura do que eles, dizerem a Nossa Senhora estar dispostos a abrir mão do próprio restabelecimento, desde que Ela o conceda àqueles. Quer dizer, aceitam o sofrimento e a doença em benefício do outro. Esse é um verdadeiro milagre de amor ao próximo por amor a Deus. Milagre moral arrancado à fraqueza humana; milagre mais estupendo que uma cura propriamente dita.

Se bela é essa resignação, mais bonita ainda é a generosidade cristã das freiras de um convento de clausura perto de Lourdes. São contemplativas recolhidas que têm o propósito de expiar e sofrer todas as doenças, a fim de obter para os corpos e almas dos incontáveis peregrinos as graças e favores que estes vão ali suplicar. De maneira que nunca pedem a sua própria cura e aceitam todas as enfermidades que a Providência disponha caírem sobre elas, em benefício daqueles peregrinos. Se Deus acolhe seus oferecimentos, levam às vezes uma vida inteira de provações ou morrem de uma morte prematura, com o intuito especial de fazer bem às outras almas.

Diante desse heroísmo, pergunta-se: há algo na Terra mais digno de admiração?

Não conheço. Riquezas opulentas, extraordinários dotes e qualidades naturais, grandezas de qualquer espécie no conceito humano, que valem perto do holocausto de uma dessas freiras ignoradas pelo mundo? Punhadinhos de barro, e nada mais.

Quando deitamos um olhar ao nosso redor, quando consideramos as misérias da natureza humana decaída pelo pecado original, compreendemos que semelhantes atos de abnegação se acham tão distantes do nosso egoísmo e causam uma tal repulsa ao nosso amor-próprio, que constituem de fato um milagre maior do que todas as espetaculares curas verificadas naquele santuário mariano.

O maior ensinamento de Lourdes

E então compreendemos o grande ensinamento de Lourdes. Não é o apologético, tão imenso, tão importante. Mas é esse da aceitação da dor, do sofrimento, e até da derrota e do fracasso se for preciso.

Alguém objetará: “É muito difícil resignar-se a carregar a dor por essa forma”.

A resposta encontramos na agonia de Nosso Senhor Jesus Cristo, no Horto das Oliveiras. Posto diante de todo o sofrimento que O aguardava, Ele disse ao Padre Eterno: “Se for possível, afaste‑se de mim este cálice. Mas seja feita a vossa vontade e não a minha”. O resultado é que veio um anjo consolar Nosso Senhor.

Essa é a posição que cada um de nós deve ter em face de suas dores particulares: se for possível, sejam afastadas de nosso caminho. Porém, faça-se a superior vontade de Deus e não a nossa. E a exemplo do que se deu com Jesus no Horto, a graça também nos consolará nas provações que Maria Santíssima permita se abatam sobre nós.

Tenhamos, portanto, coragem, ânimo, compreensão do significado do sofrimento e alegria por sofrermos: estamos preparando nossas almas para o Céu.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 6/2/1965 e 10/7/1972)