Festa da Cátedra de São Pedro

Dir-se-ia que a sombra do báculo de Pedro cresceu, que entre suas extremidades — que vão de mar a mar, de monte a monte, dos ­Alpes ao Himalaia — fica o mundo inteiro. É impossível não pensar nas lágrimas, no ­suor e no sangue, nas mortificações, nas preces, na paciência e no heroísmo por meio do qual a Igreja, ajudada por Deus, chegou a tamanha glória. Quando se pensa nos primórdios do Catolicismo, comparado por seu Divino Fundador com o pequenino grão de mostarda, e se vê hoje que a copa da árvore é maior que os mais extensos desertos e as mais vastas nações, são todas as fibras católicas que vibram e se dilatam nos nossos corações. Do esplendor desta magnífica realidade se desprende uma voz, porque os fatos falam. E esta voz, eco de outra Voz, nos diz com firmeza mais do que nunca: non praevalebunt!
(Do “Legionário” de 17/2/1946)

“Maior felicidade de minha vida”

Eu tive a maior felicidade de minha vida em algo que me encheu de entusiasmo, desde pequeno: a Santa Igreja Católica Apostólica Romana!

Mais do que qualquer pessoa, qualquer panorama ou qualquer flor, incomparavelmente mais do que qualquer delícia ou iguaria, ela me falava à alma!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/5/1984).

BEATOS JACINTA E FRANCISCO, modelos de aceitação do sofrimento

Vinte de fevereiro, dia da morte de Jacinta Marto, foi a data escolhida pelo Papa João Paulo II para que a Igreja celebrasse a festa da jovem pastora de Fátima e do seu irmão, Francisco, aos quais  Nossa Senhora apareceu em 1917. Ao recordar essa piedosíssima morte, Dr. Plinio teceu valiosos comentários sobre o papel do sofrimento na existência humana.

Como se sabe, dos três videntes, dois morreram pouco depois das aparições, conforme a promessa da Santíssima Virgem: Francisco e Jacinta. Ambos deviam ir para o Céu. Antes disso, porém,  haveriam de cumprir nesta Terra duas missões diferentes. A de Jacinta era rezar e sofrer pela conversão dos pecadores, enquanto a de Francisco consistia numa reparação ante a tristeza de Nosso  Senhor e de Nossa Senhora pelos pecados do mundo, que tinham motivado a mensagem de Fátima.

A importância do sofrimento humano nas grandes obras de Deus

A missão de Jacinta nos revela a necessidade de vítimas expiatórias que contribuíssem com a sua dor e o sacrifício de sua vida — as duas crianças morreram em circunstâncias extraordinariamente difíceis e dolorosas — para que as palavras de Nossa Senhora encontrassem terreno fértil nos corações dos homens, dando todos os frutos por Ela desejados.

Compreende-se, pois, como esse apostolado do sofrimento é verdadeiramente insubstituível, e como abre os caminhos para a Igreja. Todas as grandes obras de Deus, máxime as que tratam da  salvação das almas, em geral se fazem com a participação de outras almas que lutaram, sofreram e rezaram para que essas obras de fato se realizassem. Sempre é preciso a participação do sofrimento humano.

Sem ele, nada de grande se faz.

Certa vez, um talentoso pintor expôs um de seus quadros que retratava Nosso Senhor como Bom Pastor batendo à porta de uma choupana. A pintura, tocante e piedosa, atraía muitas atenções. Em  eterminado momento, um visitante julgou notar um defeito no quadro, e disse ao artista: “O senhor cometeu um erro de execução, pois a porta dessa cabana não tem fechadura”. Sorrindo, o  pintor lhe respondeu: “É verdade. Isto, porém, não foi um erro.

Esta porta simboliza a porta do coração humano, onde Nosso Senhor vem bater. Ela não possui fechadura no lado de fora, mas somente no de dentro, para significar que há certos tipos de  abertura de alma onde ninguém consegue intervir: ou a alma toma a iniciativa de se abrir, ou permanecerá fechada”.

Ora, o modo de se obter que as almas fechadas se abram é exatamente por meio da oração, dos sacrifícios e das dores que a Providência dispõe em nossas vidas. É por meio do carregar  amorosamente a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, compreendendo que assim se cumpre a superior vontade divina. Essas são as almas decisivas na História, e que levam a cabo as grandes obras
de Deus.

Claro está que não se trata de um sofrer meramente passivo, mas também de um sofrer ativo. O que significa muitas vezes tomar a iniciativa da luta, rompendo com aqueles que prejudicam nossa  alma.

Significa arrostar a opinião dos outros, aceitando ser posto em situações difíceis e contrafeitas. Significa, enfim, todo o sofrimento da batalha mais intrépida, mais ousada e mais repleta de  determinação. Tudo isso é sofrer, e até sofrer por excelência. O contrário do mito do happy end Não nos esqueçamos, porém, de que, se todas as formas de sacrifícios são agradáveis a Nossa  Senhora, o que mais deseja Ela receber dos homens é virtude. Acima dos sofrimentos, Lhe compraz oferecermos a Ela a retidão e a pureza de nossa alma. Se quisermos de fato pesar nas deliberações da Providência, devemos apresentar a Ela almas contritas e humilhadas, almas que se tornem pequenas diante de Deus, renunciando a toda forma de orgulho, vanglória e vaidade, para se mostrarem diante d’Ele como realmente são. Reconhecendo a sua própria impotência, pelas vias naturais, para corrigir os seus defeitos; e, portanto, implorando o auxílio de Maria, para  que Ela por nós interceda e nos alcance a tão esperada conversão.

E isto exatamente nos é dito pelo sacrifício de Jacinta. Devemos, portanto, pedir a ela que nos obtenha de Nossa Senhora esse senso de sofrimento, indispensável para que qualquer católico seja  verdadeiramente um fiel generoso e dedicado.

Essa aceitação da cruz é contrária ao mito do homem moderno, que se reflete na mentalidade do happy end, segundo a qual tudo é alegria, tudo é luz, e o padecimento é uma espécie de bicho de  sete cabeças irrompendo estouvadamente na vida das pessoas.

A verdade é outra: uma existência sem cruzes, pouco vale. São Luís Grignion de Montfort chega mesmo a afirmar que, vendo-se alguém poupado pelos sofrimentos, deve — após judiciosa  orientação de seu diretor espiritual — pedi-los a Deus, fazer romarias e rezar com empenho nessa intenção, pois sua salvação eterna pode estar correndo um risco não pequeno.

Mais do que nunca, a necessidade de sacrifícios

Análogas considerações poderiam ser feitas a propósito da missão de Francisco, isto é, a de reparar os Sacratíssimos Corações de Jesus e de Maria pelos pecados e ofensas contra Eles cometidos na  face da Terra.

Ora, de 1917 até nossos dias, a maré montante dos pecados não fez senão crescer de modo incomensurável: pecados individuais, pecados públicos, pecados das nações, pecados das instituições,  etc. Tal constatação nos obriga a concluir que, se a ofensa cresceu, a reparação também se faz mais necessária e mais intensa no que ela tem de mais excelente, ou seja, alimentar em nossas almas a indignação pelos ultrajes que são feitos ao Coração Imaculado de Maria; acrisolar nosso desejo de sermos instrumentos de Nossa Senhora para a implantação de seu Reino sobre a Terra.

Devemos pedir ao Francisco que nos obtenha esse espírito, esse ardoroso anelo de assim reparar o Coração Imaculado de Maria e, por meio d’Ele, o Coração Sagrado de Jesus.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 71 (Fevereiro de 2004)

Intercessores para obter o Reino de Maria em nós

Devemos considerar o valor simbólico da obra de Nossa Senhora que transformou suavemente essas crianças pelo simples fato de lhes aparecer reiteradas vezes em Fátima. As três mudaram extraordinariamente em consequência das revelações. Com uma delas, inclusive, a Santíssima Virgem disse estar aborrecida. Era Francisco, que não A viu por causa disso. Portanto, ele pode ser considerado um convertido.

Temos aqui algo de parecido com o Segredo de Maria, ou seja, uma dessas ações profundas da graça na alma, que se desenvolvem sem a pessoa dar-se conta. Ela cresce em amor de Deus, em vontade de se dedicar, em oposição ao pecado, mas tudo isso se dá maravilhosamente dentro da alma.

Se a obra de Nossa Senhora em Fátima foi assim, especialmente com essas duas crianças chamadas para o Céu, Jacinta e Francisco, podemos nos perguntar se isso não tem um valor simbólico e se não indica qual será a ação d’Ela sobre toda a humanidade, quando Ela cumprir as promessas que fez na Cova da Iria.

Seria, portanto, um começo do Reino de Maria, enquanto sendo o triunfo do Imaculado Coração sobre duas almas pregoeiras da grande revelação de Nossa Senhora, e que, por seus sacrifícios e preces na Terra e por suas orações no Céu, ajudaram e ainda ajudam enormemente as almas a aceitarem a mensagem de Fátima.

Assim sendo, Francisco e Jacinta são os intercessores naturais para se pedir e se obter de Maria Santíssima que comece o seu Reino em nós, desde logo, por essa transformação misteriosa que é o Segredo de Maria.

Peçamos que eles velem especialmente sobre aqueles que têm a missão de pregar e viver a mensagem de Fátima.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/10/1971)

Revista Dr Plinio 251 (Fevereiro de 2019)

Apostolado e sacrifício, ações inseparáveis

Por que razão Nossa Senhora quis a morte precoce de Jacinta e Francisco, videntes de  Fátima?

Em geral, quando se trata da salvação dos homens, é necessário haver vítimas que se associem à intervenção de Deus com o sacrifício de suas vidas.

Isto é especialmente frisante no que diz respeito às aparições de Fátima: trata-se de uma intervenção direta da Santíssima Virgem — atestada por milagres estupendos como, por exemplo, a rotação do Sol — com a transmissão de uma das mais importantes mensagens de Nossa Senhora aos homens ao longo de toda a História.

Pois bem, nesta ocasião Maria Santíssima quis a imolação de duas almas, as quais se ofereceram na intenção do pleno cumprimento dos planos da Providência.

Este oferecimento nos atesta como o sofrimento é insubstituível e como ele abre, verdadeiramente, os caminhos para a Igreja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/2/1965)

O Pintor do Sobrenatural

Ao longo de sua História, a Igreja tem engendrado inúmeros talentos artísticos, com estilos e realizações tão diversos quanto belos e enriquecedores para a piedade cristã. Nessa constelação de talentos, porém, uma estrela sobressai pelo seu brilho mais intenso e atraente: o bem-aventurado Fra Angélico, com toda a justiça considerado o pintor católico por excelência.

Segundo se conta, Nossa Senhora lhe aparecia no momento de retratá-La, donde o caráter celeste das pinturas nas quais Ela está presente. São  obras de um frescor sacral incomparável; nelas os personagens de certo modo transcendem as fraquezas da nossa natureza decaída e — não por  defeito do artista, mas pela elevação  de seu estro — se nos afiguram quase sem a marca do pecado original.

Rei da arte pictórica, ele é também o mestre do feérico, conferindo esplendor inexcedível aos mínimos detalhes de seus quadros, a ponto de nos deixar desnorteados de encanto e admiração. De acordo com os estudiosos de seus métodos, ele mesmo fabricava suas magníficas tintas, muitas vezes triturando pedras semi-preciosas, cujo pó, misturado a outros elementos, forneciam-lhe as melhores cores de sua extraordinária palheta. Se ele sabia utilizar, assim, uma safira, um topázio dourado ou um rubi, com efeitos tão prodigiosos, que matizes não seria capaz de criar se pudesse fazê-lo com matérias-primas do Paraíso?!

E como seria no Paraíso um quadro de Fra Angélico? É algo de simplesmente inimaginável. Embora já vivesse na Renascença, pelo seu espírito foi um artista caracteristicamente medieval. Seus afrescos e retábulos são um reflexo fiel das almas que fizeram da Idade Média a época áurea da Cristandade. Retratam homens para os quais esta vida terrena é antecâmara da celestial. Ele  reproduz em suas pinturas pessoas imbuídas de uma luz, claridade e leveza inexistentes no cotidiano real, expressão de uma ordem superior e transcendente.

Numa palavra, o sobrenatural está representado em todas as suas obras. Inspirado sem dúvida pela graça divina, ele logrou pintar seus santos, “Madonnas” e Cristos irradiantes de um certo brilho que parece desprender-se da própria carnatura dos personagens. Essa luminosidade está presente, de modo muito particular, nas virgens perpetuadas em maravilhosas composições por seu magistral pincel.

A virtude da pureza, quando bem guardada, proporciona as condições excelentes para o triunfo do espírito sobre a matéria. A castidade perfeita nimba quem a pratica de uma glória especial: a da criatura humana vitoriosa em seu elemento mais nobre, prevalecendo sobre o menos nobre.

Na pessoa pura se estabelece uma ordem pela qual as apetências desregradas da carne estão dominadas; ela é toda espírito, toda alma, toda transparente de luz.

Assim Fra Angélico pinta suas virgens reluzentes, como dotadas de um fulgor vindo de dentro para fora e que ilumina todo o seu ser. Porque o espírito é claro, enquanto a matéria é opaca. A intenção do artista é exatamente representar essa irradiação do espírito. É o pintor das virgens.

E dos anjos. Os célebres anjos de Fra Angélico têm uma expressão tão límpida, tão honesta, que estão prontos para qualquer espécie de vassalagem. Tão fortes e conscientes de si, que estão  prontos para toda espécie de suserania. Tão pacíficos, que são anjos da paz. Tão guerreiros, que são anjos do combate contra o mal. Todos os contrastes extremos e harmônicos se encontram neles, numa síntese magnífica, fruto de uma forma de temperança extraordinária e perfeita.

Tomem-se, por exemplo, os anjos representados com instrumentos musicais. Todos refletem um movimento de alma para o alto, pronta a voar. Como anjos, não sujeitos à ação da gravidade, enlevados, fazendo ecoar suas melodias e anunciando a quem os contempla uma mensagem simples, clara, singela, cujo significado entretanto vai muito além da sensação deliciosa passada pelo quadro. No fundo, remetem nossos pensamentos para Deus. Diante da trombeta de um deles, vem-nos a pergunta subconsciente: “Que música será esta?”, e nossa atenção se volta para o alto, para o olhar divino fitado pelo anjo, para o qual a sua música parece se dirigir.

São assim os anjos, são assim os santos e as virgens de Fra Angélico: neles se nota sempre algo de diáfano, representação do sobrenatural, como acima dizíamos. Mas, insistimos, esse diáfano não transpareceria do mesmo modo se os personagens representados não fossem muito temperantes, possuidores de um senso das harmonias prévio a tudo. A virgem é meiga e delicada, mas traz  consigo uma roda de martírio, símbolo de sua fortaleza heroica. O santo é plácido e feliz, mas está aos pés do Crucificado, meditando na crudelíssima Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. O anjo está fazendo algo de grandioso, mas mantém-se sereno e inteiramente entregue à proclamação dele.

Ora, só alguém com igual temperança, com o mesmo senso das harmonias, dos imponderáveis e do sobrenatural poderia retratar seres assim. Daí podermos vislumbrar como era a maravilhosa alma de Fra Angélico.

Catedra de São Pedro – Rocha inabalável

A festa da Cátedra de São Pedro celebra o Papa como mestre infalível, e o Papado como a rocha inabalável do alto da qual o Soberano Pontífice se dirige ao mundo inteiro, revestido da infalibilidade que Deus lhe outorgou.

Uma bela forma de nos unirmos a essa importante celebração seria oscularmos em espírito os pés da imagem de São Pedro que se encontra no Vaticano, nos quais a delicadeza do beijo alquebrou a força do bronze.

E assim, em espírito, oscular o Papado, esse princípio de sabedoria ou de infalibilidade da autoridade que governa a Igreja Católica.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/2/1964)

Beato Angélico

O Beato Angélico, cuja festa é celebrada no dia 18 de fevereiro, soube transmitir às suas obras certas fulgurações que, na verdade, são manifestações da virtude da sabedoria, pela qual o homem apetece a coerência e a profunda harmonia interior das coisas, mais do que os bens menores do existir humano.

Essa harmonia exprime algo de inefável, total, que é a melhor representação de Deus. E quem a ama, ama o simbolizado por ela, portanto, o próprio Deus, predispondo assim sua alma para o Céu.

Plinio Corrêa de Oliveira

São Teodoro: um mártir increpador

Descendente de uma família nobre e rica, o jovem Teodoro cheio de garbo desafia o magistrado, proclama a caducidade dos ídolos, a vacuidade do Imperador, a nulidade do Império. Foi torturado barbaramente e queimado vivo. Assim como o sangue de Abel, vertido por Caim, clamava a Deus por vingança, o sangue dos mártires implorava a Deus a punição e, ao mesmo tempo, a conversão do Império Romano.

 

Proponho que assistamos juntos a um episódio histórico. Não é um filme de televisão, mas a descrição de um fato digno de ser lembrado na História da Igreja, contado circunstanciadamente não por mim; vou apenas ler a narração tirada da obra do Padre Rohrbacher(1).

O Império Romano decaía devido à corrupção moral

Trata-se do martírio de São Teodoro. Ele foi denunciado como católico e, convocado por um magistrado qualquer, recusou-se a abjurar a Fé. Foi levado, então, a um lugar de suplício onde ele poderia, a qualquer momento, fazer cessar os seus tormentos desde que se dispusesse a renunciar a Fé. Aguentou esses tormentos crudelíssimos até a morte. É um mártir.

Uma nota particularmente interessante nesse martírio é que o juiz e ele travam uma verdadeira batalha psicológica, na qual o magistrado procura de todos os modos amolecê-lo para evitar martirizá-lo. São Teodoro resiste, desafiando o juiz cada vez mais. O fato foi notório, conhecido e presenciado por muita gente.

Nós devemos nos perguntar qual é o efeito disso sobre a opinião pública correspondente ao Império Romano que abrangeu toda a bacia do Mediterrâneo. Os romanos se estendiam não só pelo litoral, mas eram senhores das nações ribeirinhas do Mediterrâneo. Aprofundando-se, portanto, longamente pelo território da África, Ásia, Europa, e constituindo, portanto, uma unidade impressionante.

Esse Império, pela imensa extensão e pela dificuldade de comunicação naquele tempo, fragmentou-se em dois: o do Oriente e o do Ocidente. Mas entendia-se que formava um só todo moral e até mesmo político, e que os imperadores, sem serem irmãos pelo sangue, o eram pela missão e deveriam governar em mútua colaboração, cada qual a sua parte do Império. Uma unidade, portanto, enorme, majestosa.

O Império Romano foi monumental e riquíssimo, mas também corruptíssimo. À medida que se desenrolava sua história, seu poder e sua riqueza foram crescendo, porém foi se dissolvendo moralmente e terminou na corrupção moral mais espantosa, acumulando dois aspectos diferentes.

De um lado, os romanos propriamente ditos, não só os habitantes de Roma, mas da Itália, que constituíam o núcleo do Império. Estes sentiam-se muito seguros e estáveis em função do poder e da riqueza que possuíam, e pelo fato de que os inimigos estavam longe, em fronteiras que dificilmente seriam transpostas por eles; e se as transpusessem seriam contidos com facilidade pelas legiões romanas.

Além da prosperidade e da segurança por verem o perigo bem longe, contribuía para a dissolução dos costumes o fato de que a religião dos romanos não dava o mínimo fundamento para uma atitude moralizada. Resultado: o Império foi se corrompendo até chegar a toda espécie de imoralidade e deterioração.

A Religião Católica se desenvolvia

Ao lado dessa depravação generalizada havia a Religião Católica que, do fundo das catacumbas, nascia e se desenvolvia, apresentando-lhes o oposto.

Vemos, então, o jovem Teodoro, nascido na Grécia, de uma família nobre e rica, julgado por um juiz daquela região, o qual estava, portanto, sob a influência dessa família. Esse jovem cheio de garbo desafia o magistrado e proclama a caducidade dos ídolos, a vacuidade do Imperador, a nulidade do Império, com uma força que vai crescendo à medida que o juiz oferece mais.

Dá-se, então, um debate entre o juiz – que visa despertar no jovem o desejo pela vida cômoda e agradável, sem o conseguir – e São Teodoro, que procura comunicar a Fé Católica proclamando as virtudes cristãs e o nome de Jesus Cristo, levando as verdades da Fé tão alto quanto se pode levar um estandarte; e o juiz recusando também.

A recusa de ambas as partes resulta em choque, que culmina com a morte do jovem Teodoro. Dir-se-ia que o fato está encerrado. Ora, a história começa aí. No Céu há um mártir rezando, enquanto na Terra os frutos de seu sangue se difundem.

Tertuliano disse aquela famosa frase: “O sangue dos mártires é semente de cristãos”. Assim como o sangue de Abel, vertido por Caim, clamava a Deus por vingança, o sangue dos mártires implorava a Deus pela punição e, ao mesmo tempo, pela conversão do Império Romano. E o sangue de São Teodoro passou a clamar.

Houve uma opinião pública que em parte presenciou, em parte tomou conhecimento desse martírio. Que atitude terão tomado aquelas pessoas diante dos diálogos impressionantes que vamos ler? Imaginem aqueles romanos que faziam festa quase todas as noites, comendo e bebendo durante horas, chegando ao extremo horror de provocar-se náusea, pela ação de escravos que vinham com penas de pato coçar o paladar, para lançar fora o que haviam ingerido e, esvaziando assim o estômago, poderem continuar a beber e a comer.

Podemos nos perguntar qual o efeito produzido nessa opinião pública pelo diálogo entre São Teodoro e seus algozes.

São Teodoro proclama a sua Fé e investe contra o inimigo de Cristo

Passemos à leitura e comentário da referida ficha.

A perseguição se deu pouco depois de que os Imperadores Galério e Maximino publicaram seus editos, que mandavam continuar as perseguições aos católicos, ordenadas por Diocleciano.

Diocleciano ordenou uma das piores e mais longas perseguições.

O jovem soldado, muito longe de dissimular a sua Fé, a trazia como que escrita sobre a fronte.

Imaginemos, então, um legionário romano com aquela armadura e elmo característicos, e que trazia sobre a fronte como que escrita a Fé em Nosso Senhor Jesus Cristo, sendo visto por um folgazão que se embriagou na véspera e se embriagará naquela noite, e que para encher tempo vai assistir ao martírio e olha para aquilo aviltado e com o olhar embaçado pelo álcool.

Teodoro foi apresentado ao Tribuno da Legião e ao Governador da província, que lhe perguntaram por que ele não adorava os deuses, segundo as ordens dos imperadores.

Ele respondeu: “Sou soldado de Jesus Cristo, meu Rei. Eu não conheço outros deuses; meu Deus é Jesus Cristo Filho único de Deus”.

Isso é uma proclamação. Agora vem a increpação. Ele não se limita a proclamar a sua Fé, mas investe contra o outro, dizendo:

“Os deuses que quereis que eu adore não são deuses, mas demônios! Quem quer que lhes atribua honras divinas está no erro: eis qual é a minha Religião, aquela por cuja Fé estou disposto a sofrer. Se minhas palavras vos chocam, golpeai, rasgai, queimai, cortai a língua; é justo que os meus membros sofram pelo Criador.”

Esta apóstrofe tem todas as características de desafio e é metódica. Ele proclama a sua Fé, depois diz que a fé dos outros não vale nada, e desafia: “Agora, querendo, me martirizem. Eu estou disposto!” Eis o desafio total lançado por um legionário romano!

Podemos imaginar a repercussão de uma atitude como essa em pessoas incapazes de compreender como é que alguém, podendo dizer que adora aos ídolos – não precisava adorar de verdade, bastaria dizer que adora –, se expõe a tormentos dos quais elas têm horror e se prive de divertimentos, quando essa privação já lhes parece um tormento.

O Imperador é um fragilíssimo príncipe, no Céu há um Rei eterno e imutável

Os juízes, embaraçados com uma resposta tão ousada, deliberavam sobre o que eles deveriam fazer, quando um oficial, querendo caçoar do Santo que tinha dito ser fiel ao Filho de Deus, se pôs a lhe dizer:

– Então, Teodoro, teu Deus tem um filho? Ele é sujeito às paixões como os homens?

Respondeu Teodoro:

– Não, meu Deus não está sujeito a paixões. Todavia, Ele tem um Filho, mas um Filho nascido da maneira digna de Deus e bem superior a vossas ideias baixas e carnais, pois esse Filho é a palavra de verdade, pela qual Ele fez todas as coisas.

O tribuno lhe perguntou:

– Podemos nós conhecer esse Filho de Deus?

Ele respondeu:

– Eu quereria bem que Deus vos tivesse dado graças para isso.

Mas, disse o oficial:

– Se nós o tivéssemos conhecido, não poderíamos abandonar nosso Imperador para dar nossa vida ao seu Deus.

Disse Teodoro:

– Se vós O conhecêsseis, teríeis em pouco tempo saído de vossas trevas e, em lugar de pôr uma confiança frágil no vosso fragilíssimo príncipe na Terra, vos ateríeis a Deus, que é o Deus vivo, o Rei e Senhor eterno e vós combateríeis comigo em favor d’Ele.

Essa increpação de que o Imperador é um fragílimo príncipe da Terra e que há um Rei no Céu, eterno e imutável, é uma coisa de deixar aquela gente boquiaberta. Porque era gente que tinha uma vaga ideia de uma post-vida, mas tão vaga, contraditória e cheia de lendas, que praticamente não funcionava. Eles não tinham senão uma ideia ainda mais vaga, de vez em quando lampejos, de um julgamento segundo leis que ninguém sabia como eram.

Agora, vem um que afirma, mas trazendo na fronte uma espécie de prova da verdade da Fé que ele proclamava; pode-se imaginar o impacto no juiz, no tribuno e na opinião pública.

Exortava os católicos que eram conduzidos ao martírio

“Deixemo-lo por alguns dias, disse o tribuno, ele mudará e virá por si mesmo, e acabará fazendo aquilo que lhe é mais vantajoso.”

É a regra dos pagãos, que os caracteriza a cem por cento. Vantagem, vantagem, vantagem, não tem mais nada.

Deram-lhe, então, um prazo dentro do qual ele deveria sacrificar aos deuses, senão seria martirizado.

O Santo não se perdeu em vãs deliberações, mas se empregou em rezar e louvar a Deus incessantemente.

O louvar é um estilo de oração, mas é quase mais bonito do que as outras formas de rezar, no caso. Um homem que marcha para o martírio horrível e que louva a Deus, por Quem ele vai ser martirizado, que louvor bonito! Tem-se a impressão de que um Anjo não cantaria melhor.

Os gladiadores não eram mártires, mas escravos ou pessoas livres de baixa condição que lutavam uns com os outros para o público ver. Eles, antes de começar o combate, alinhavam-se diante da tribuna do imperador e diziam a frase: “Ave Cæsar, morituri te salutant” – “Ave, César, aqueles que vão morrer te saúdam.” Depois começava o combate.

São Teodoro dizia isto a Deus: “Ave, ó Deus, aquele que vai morrer Te saúda. Mas esse que vai morrer sabe que em Ti ele vai viver.” É belo!

Entretanto, os perseguidores procuraram cristãos entre os habitantes para serem conduzidos também à prisão. Teodoro os seguia, exortando a serem firmes e fiéis a Jesus Cristo.

Quer dizer, o tempo que lhe foi dado para hesitar, ele o empregava rezando ou acompanhando outros ao martírio. Era, naturalmente, gente menos importante que ele, a quem os perseguidores não tinham medo de matar. Ele acompanhava os outros ao martírio, exortando-os: “Sustentem, protestem contra o juiz, sejam firmes até o fim, confessem o nome de Jesus Cristo!”

Podemos imaginar a raiva dos que lhe tinham dado prazo, ao verem como ele o empregava. O transporte para o lugar do martírio era feito por uma espécie de piquete de soldados que levavam os condenados à vista de toda a cidade. Os pagãos vaiavam os que iam morrer. Do lado de fora do piquete, estava Teodoro, o soldado: “Aguentem, dura pouco, a eternidade vem, Deus merece, Jesus Cristo é nosso Deus!”

Em todas as ocasiões ele marcava dessa maneira o seu zelo para o serviço de Deus.

Incendeia um famoso templo pagão

Agora vem um modo de manifestar o zelo que deixa o Padre Rohrbacher hesitante, mas ele menciona pondo ao lado de São Teodoro uma grande autoridade. Diz o autor:

Havia um templo no meio da cidade, nas margens do rio chamado Ires. Esse templo era dedicado à deusa Cibeli, que as fábulas chamavam “a mãe dos deuses”. Teodoro, encontrando a ocasião favorável, pôs fogo durante a noite no templo, que foi reduzido a cinzas, com os ídolos que nele existiam.

Pela discussão que vem depois, vê-se que, entre outras intenções, estava a de mostrar que os ídolos não valem nada, qualquer um ateava fogo neles. Era, portanto, uma prova de que ele tinha razão, mas também um escárnio aos idólatras.

O que São Gregório de Nissa relata como uma generosidade louvável, se bem que o Concílio particular de Euvira pareça censurar ações desse gênero. Teodoro, apesar disso, não ocultou sua ação; ele se gabava até publicamente, nas rodas, que era ele quem tinha posto fogo. Pelo que foi denunciado e compareceu perante o tribunal do governador com tal segurança que mais parecia juiz do que acusado.

É extraordinário! Com a Fé resplandecendo na fronte, sendo o juiz de seu juiz, sabendo que ele caminhava para a morte terrível.

Ele reconheceu o fato que lhe era imputado. O juiz lhe perguntou por que ele tinha queimado a deusa do lugar, em vez de adorá-la. O Santo respondeu que ele tinha acendido uma lenha para pôr à prova a deusa e ver se era combustível ou não. E que o fogo a tinha atacado e queimado, porque toda a força dela tinha consistido apenas em matéria e isso se queima.

Ora, ele estava dando um argumento para não adorar: “Como é uma deusa, se eu a queimei? O que vale isso?” O juiz fez o que tantas vezes fazem os ímpios, isto é, quando os bons dão um argumento, não contra-argumentam porque não têm o que dizer. Então ficam indignados.

O juiz se encolerizou e mandou chicoteá-lo e o ameaçou de outros suplícios muito mais rigorosos, se ele não obedecesse às ordens dos imperadores.

Como ele era de uma família influente, o juiz mandou chicoteá-lo, mas não o condenou à morte. Queria ver se ele apostatava, para não ter encrenca com a família, ou ao menos uma encrenca tão pequena quanto possível.

O Santo respondeu que os suplícios mais terríveis não o fariam obedecer aos homens contra o que Deus mandava, e que a esperança que ele tinha nos bens do Céu lhe tirava todo o temor dos males que o ameaçavam nesta Terra.

Um dos lados de seu corpo foi rasgado com unhas de ferro

O governador, vendo-o insensível a essas ameaças, trata de suborná-lo por promessas magníficas que lhe faziam esperar honras, dignidades e até a qualidade de pontífice de um desses deuses.

Teodoro escarneceu dessas promessas para voltar às suas ameaças, cujo efeito era muito próximo; ele assegurou ao juiz, fazendo um sinal da Cruz sobre todo seu corpo, que ainda que o juiz o fizesse derreter no fogo, o cortasse em pedaços, ele não cessaria de confessar Jesus Cristo até o último alento.

O juiz, renunciando então a todos os meios de doçura, fez colocar o Santo sobre um cavalete. E ordenou lhe rasgassem um dos lados com unhas de ferro, o que foi executado com tanta crueldade que os seus ossos ficaram todos postos a descoberto.

Podemos imaginar a dor lancinante que uma coisa dessas causa!

Ele nada disse ao juiz, mas cantava: “Eu bendirei Deus em todo o tempo, sempre o seu louvor estará na minha boca”.

Ele cantava esse versículo de um salmo. “Em todo tempo” quer dizer no tempo bom, mas também no tempo ruim. “Por mais que sofra, eu O louvarei!” Se isso não é grandeza de alma, não sei o que é grandeza de alma!

Luzes pairavam sobre o Santo

O juiz, espantado por uma tão rara força no sofrimento, disse-lhe:

– Tu não tens vergonha, miserável como és, de pôr tua confiança neste homem que chamas Cristo, que houve quem fizesse morrer como um infeliz? Tu não tens vergonha de te dispor inconsideradamente aos tormentos e aos suplícios?

Respondeu Teodoro:

– Essa vergonha é para mim e para todos os que invocam o nome de Jesus Cristo uma razão de alegria e de glória.

Ele então foi exposto à tortura e depois mandado para a prisão onde Deus manifestou as maravilhas de seu poder a propósito de Teodoro. Porque, segundo conta São Gregório de Nissa, escutou-se durante a noite a voz de uma multidão de pessoas e viu-se algo como uma multidão de lâmpadas. O carcereiro, surpreso com esse duplo prodígio entrou no cárcere e não viu outra coisa senão o Santo que descansava placidamente no meio dos prisioneiros.

É uma coisa admirável! Um homem que sofreu essas torturas conseguir dormir! É inconcebível! Na véspera de outras torturas, tranquilamente.

As vozes e luzes pairavam sobre ele e se tornaram notórias ao carcereiro.

O juiz mandou, na manhã seguinte, que ele fosse levado de novo para o submeter a outras torturas. E considerando-o invencível em todos os pontos, pronunciou a sentença de morte e o condenou a ser queimado vivo, o que foi feito imediatamente.

Fortaleza sobre-humana dos mártires

Termina, assim, a história de São Teodoro. Se não fosse o fato de haver uma caudal de episódios semelhantes, ele poderia ser chamado “São Teodoro, o grande”. Mas a questão é que o conceito de grande tem dois sentidos: um é perante Deus, e nessa acepção todos os Santos são grandes; outro é diante dos homens. Neste sentido, por mais profundo que seja o conceito de grandeza, chamam-se “grandes” os que são maiores do que os do mesmo gênero. Ora, os mártires gloriosos são tão numerosos que se hesita em dizer que ele é maior do que muitos outros. Entretanto, pudemos ver como ele é grande!

Consideremos agora a repercussão desses fatos na opinião pública. Nós não temos os documentos diretos, tanto mais quanto as fontes pagãs não tratam do Cristianismo a não ser muito pouco e de passagem. Como então podemos saber qual é a reação da opinião pública? Pela marcha progressiva das conversões. Torturas, conversões; torturas, conversões… Compreende-se que, diante de um mundo dividido, atos como esses despertavam, no fundo das almas, restos de razão natural naufragados dentro da podridão romana. Junto com esses restos vinha a graça de Deus que dava às almas um discernimento, uma apetência de bens sobrenaturais que, de si, a natureza humana não tem, despertando por sua luz, por sua força, mesmo nas almas mais pútridas, ímpetos generosos.

Na luta de séculos entre os mártires e seus perseguidores vemos duas coisas espantosas. De um lado a fortaleza sobre-humana dos cristãos ao suportar tamanhos tormentos. De outro, a crueldade dos algozes.

Causa surpresa ver que instrumentos não cirúrgicos, e sim de tortura, manipulados não por mãos de cirurgiões votados ao êxito da cura e a que doa o menos possível, mas empenhados em maltratar, os quais pegam o ferro quente e põem a fundo, regozijando-se quando o paciente geme, e que cortam, recortam e estraçalham… Que pessoas dotadas da nossa natureza tenham aguentado coisas dessas é um milagre patente! O ser humano não tem forças para isso por sua natureza. Terá vigor para ir a um combate, sempre com a esperança de sair ileso, mas caminhar para a tortura dessa maneira o homem não tem força.

Ora, os mártires aguentam desafiando e morrem na serenidade de suas almas. Como se pode compreender isso sem o milagre? Há, pois, um milagre evidente convidando essa gente a se converter.

Força de Deus que penetra, embebe e toma conta de tudo

Outra coisa que também excede a estatura humana é a maldade dos homens que ordenam essas execuções e as praticam. Dir-se-ia que a criatura humana desce abaixo de si mesma quando faz isso. Encontram-se menos raramente homens que realizam isso, mas que multidões inteiras o pratiquem é inimaginável! Ainda mais multidões do maior, mais civilizado, mais culto e mais rico império que havia na Terra. Essas multidões se entregarem ao prazer de ver o tormento dos outros, essa manifestação de sadismo coletivo que dá a impressão de psicose sem o ser, isso é uma coisa também inacreditável, dentro da qual se vê a ação do demônio combatendo contra a ação de Deus. Esse é um choque maior do que os homens empenhados, de lado a lado, que dá toda beleza ao episódio. A pulcritude do episódio vem de um modo relevante, a meu ver, disto: o choque no qual Deus vence e escarnece do demônio.

Com efeito, ao longo de uma tortura dessas, na opinião pública muitos ficam piores. Entregam-se dessa maneira ao demônio! Alguns ficam melhores. Esses alguns já sabem que, melhorando, vão se expor a uma tortura daquelas, e que o caminho deles é o que estão vendo. Não é como uma conversão de hoje, em que o indivíduo é batizado, o padre felicita, ele vai para sua casa tranquilo; se sua família é católica ainda faz uma festinha para ele. Não é isso, não! Naquela época, o convertido sabia: “Isso vai me levar àqueles padecimentos. Minha conversão está me pondo na fila dos que vão morrer. Está bem, eu entro na fila!” É qualquer coisa de admirável!

Poder-se-ia objetar que o efeito disso na opinião pública é nulo. Uma opinião pública de gozadores e bandidos só pode ser insensível a isso, e jamais os católicos deixarão de ser uma minoria.

Sem dúvida, a aparência era essa. Os católicos viviam por debaixo da terra. Quando Constantino deu liberdade à Igreja e fez um edito mandando fechar os templos pagãos, não houve protestos e tudo acabou, porque, a bem dizer, não havia mais pagãos em Roma.

A ilusão era de que os pagãos tinham a popularidade e todo o poder. De fato, existe uma dinâmica do mal à maneira de um gás venenoso que se dilata e conquista facilmente. Contudo, há uma força de Deus que muitas vezes é subterrânea, não se percebe, mas que penetra, embebe, toma conta de tudo sem que se tenha ideia. Em determinado momento, quando se vai ver, Ele venceu.

Sejamos como São Teodoro e vamos para a frente com coragem!

Isso se dá com os que, em nossos dias, lutam pela Contra-Revolução. Constituem uma minoria açoitada por todas as severidades da guerra psicológica revolucionária; acossada com múltiplas formas de tortura do desdém, da ignorância, da perseguição dos seus mais próximos, e dentro da própria Igreja, de tal maneira que um católico contrarrevolucionário poderia dizer: “Alienus factus sum in domus matris meæ” – Tornei-me um estranho na casa de minha mãe (cf. Sl 69, 9). De tal maneira o contrarrevolucionário é insultado, isolado, ejetado de todos os lados. Dir-se-ia: “Minoria sem futuro, condenada eternamente a ser insignificante e para quem não trabalha a vitória”.

Sejamos nós como “Teodoros” e vamos para a frente com coragem! Quiçá não percebamos, como São Teodoro não notou as conversões que ele mesmo ia determinando; mas uma coisa é verdadeira: o sofrimento dos que padecem por Nossa Senhora é semente de novos cristãos. Eis a lição que São Teodoro nos dá. Rezemos a ele.            v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/8/1981)

Revista Dr Plinio 251 (Fevereiro de 2019)

 

1) Cf. ROHRBACHER, René-François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. v. XIX, p. 261-266.

 

“Gustate et videte…”

Como a maioria dos monumentos medievais, o Mont-Saint-Michel nos arrebata para uma espécie de clave única, apanágio das maravilhas da Idade Média. E o reflexo daquela inocência católica que pervadia as almas e a sociedade dessa época dominada pela Fé.

Candura batismal, luminosa, ponto de partida para a realização de belezas que aspiravam o Céu.

Não duvido que algo de sobrenatural pode pairar sobre uma paisagem abençoada, envolver e penetrar os que nela vivem, assim como a unção de uma imagem da Santíssima Virgem pode impregnar a linda flor que depositamos aos seus pés.

Imagine-se o Mont-Saint-Michel imerso num lindo pôr-de-sol. O entardecer transforma o ar numa espécie de matéria fofa, sutil, delicada, leve, dentro da qual tudo vai se evanescendo. Um imenso repouso se estende sobre os largos horizontes, enquanto nossa mente é embalada por este pensamento: “Felizes os homens que habitam entre essas paredes e aos quais é dado admirar continuamente esse maravilhoso panorama”.

A eles de nos convidarem: “Gustate et videte quam suavis est Dominum” — vinde ver aqui quão bom é o convívio do Senhor… (Sl 33, 8-9)

Sim, uma natureza quase inteiramente absorvida pelo sobrenatural. E pairando acima de tudo, dominador, o Arcanjo — não a imagem na ponta da agulha, mas o próprio São Miguel —, que  transmite a impressão fantástica de grandeza celeste, diante da qual todo o resto nos parece pequeno. Muito pequeno.

Há nele qualquer coisa de ordenativo do espírito, sem nada de cartesiano. Sobretudo, a meu ver, no claustro interno. Poder-se-ia ponderar se este não será ainda mais medieval que a própria silhueta completa do Mont-Saint-Michel, coroada pela abadia. Pois ali, entre as ogivas e as colunatas góticas, encontra-se a manifestação em pedra da razão, da lógica, do bom senso e da sabedoria extraordinárias que reluziram no auge da Cristandade.

Ou seja, nas almas trabalhadas pela graça, as quais, por ação desta, tornaram-se capazes do equilíbrio e da logicidade total expressos na Filosofia de Santo Tomás de Aquino. Assim como capazes da atitude de espírito contemplativa, admirativa, enlevada, tranquila, pronta a rugir como o leão ou a cantar como um anjo, conforme o exijam as circunstâncias que encontre diante de si.

inda posição, meio ilha, meio terra firme. De maneira que, em certas horas, é totalmente ilha, entregue às cóleras e aos furores do mar. Noutro momento, o tempo serena, o oceano reflui, e vê-se  uma mulher com criancinhas atravessar a pé enxuto aquelas areias, galgar as pedras e as escadarias para, lá no alto, render seu preito reconhecido pela graça que o Arcanjo lhe alcançou.

Dali a pouco, quando as sombras do entardecer se projetam sobre ele, o Mont-Saint-Michel se conserva altaneiro no meio de uma paisagem onde só há crepúsculo e águas que o cercam…