Luís Maria Grignion de Montfort: Profeta e missionário

São Luís Maria Grignion de Montfort foi verdadeiro profeta e missionário.

No momento em que muitos espíritos ilustres se sentiam inteiramente tranquilos quanto à situação da Igreja — embalados num otimismo displicente, tíbio e sistemático —, ele sondou com olhar de águia as profundezas do presente e predisse uma crise religiosa futura, em termos que fazem pensar nas desgraças que a Igreja sofreu durante a Revolução Francesa.

Como missionário, causticou implacavelmente o espírito neopagão, fazendo quanto podia para afastar o povo fiel do mundanismo e de tudo quanto possuía o mau espírito nascido da Renascença.

Se São Luís Grignion tivesse estendido sua ação missionária a toda a França, provavelmente teria sido outra a História daquele país e do mundo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/6/1993)

Páscoa

Disse São Paulo que, se Cristo não tivesse ressuscitado, vã seria nossa Fé. É no fato sobrenatural da Ressurreição que se funda todo o edifício de nossas crenças. (…)

Cristo, Senhor Nosso, não foi ressuscitado: ressuscitou. Lázaro, foi ressuscitado. Ele estava morto. Outrem que não ele, isto é, Nosso Senhor, o chamou da morte à vida. Quanto ao Divino Redentor, ninguém O ressuscitou.

Ele mesmo a Si próprio se ressuscitou. Não precisou que ninguém O chamasse à vida. Retomou-a quando quis.

Tudo quanto se refere a Nosso Senhor tem sua aplicação analógica à Santa Igreja Católica. Vemos freqüentemente, na História da Igreja, que quando ela parecia irremediavelmente perdida,  e  todos os sintomas de uma próxima catástrofe pareciam minar seu organismo, sobrevieram sempre fatos que a têm sustido viva contra toda a expectativa de seus adversários. Fato curioso, às vezes, não são os amigos da Santa Igreja que vêm em seu socorro: são seus próprios inimigos. Numa época delicadíssima para o Catolicismo, como foi a de Napoleão, não ocorreu o episódio mil e mil vezes curioso de se ter reunido um Conclave para eleição de Pio VII, sob a proteção das tropas russas, todas elas cismáticas e obedecendo a um soberano cismático? Na Rússia, a prática da Religião Católica era tolhida de mil maneiras.

As tropas desse país asseguravam, entretanto, na Itália, a livre eleição de um Soberano Pontífice, precisamente no momento em que a vacância da Sé de Pedro teria acarretado para a Santa Igreja prejuízos de que, humanamente falando, ela talvez não se pudesse ter soerguido jamais.

Estes são meios maravilhosos de que a Providência lança mão para demonstrar que Ela tem o supremo governo de todas as coisas. Entretanto, não pensemos que a Igreja deveu sua salvação a Constantino, a Carlos Magno, a D. João d’Áustria, ou às tropas russas. Ainda mesmo quando ela parece inteiramente abandonada, e ainda mesmo quando o concurso dos meios de vitória mais indispensáveis na ordem natural parece faltar-lhe, estejamos certos de que a Santa Igreja não morrerá.

Como Nosso Senhor, ela se soerguerá com suas próprias forças, que são divinas. E quanto mais inexplicável for, humanamente falando, a aparente ressurreição da Igreja — aparente, acentuamos, porque a morte da Igreja nunca será real, ao contrário da de Nosso Senhor —, tanto mais gloriosa será a vitória. Nestes dias turvos e tristonhos de 1943, confiemos pois. Mas confiemos, não nesta ou naquela potência, não neste ou naquele homem, não nesta ou naquela corrente ideológica, para operar a reintegração de todas as coisas no Reino de Cristo, mas na Providência Divina que obrigará novamente os mares a se abrirem de par em par, moverá montanhas e fará estremecer a terra inteira.

Se tal for necessário para o cumprimento da divina promessa: “as portas do inferno não prevalecerão contra ela”.

Esta certeza tranquila no poder da Igreja, tranquila de uma tranqüilidade toda feita de espírito sobrenatural, e não de qualquer indiferença ou indolência, podemos aprendê-la aos pés de Nossa Senhora. Só Ela conservou íntegra a Fé, quando todas as circunstâncias pareciam ter demonstrado o fracasso total de seu Divino Filho. Descido da Cruz o Corpo de Cristo, vertida pela mão dos algozes, não só a última gota de Sangue, mas ainda de água, verificada a morte, não só pelo testemunho dos legionários romanos, como pelo dos próprios fiéis que procederam ao sepultamento, aposta ao túmulo a pedra imensa que lhe devia servir de intransponível fecho, tudo parecia perdido. Mas Maria Santíssima creu e confiou.

Sua Fé se conservou tão segura, tão serena, tão normal nestes dias de suprema desolação, como em qualquer outra ocasião de sua vida. Ela sabia que Ele haveria de ressuscitar. Nenhuma dúvida, nem ainda a mais leve, maculou seu espírito. É aos pés d’Ela, portanto, que haveremos de implorar e obter essa constância na Fé e no espírito de Fé, que deve ser a suprema ambição de nossa vida espiritual. Medianeira de todas as graças, exemplar de todas as virtudes, Nossa Senhora não nos recusará qualquer dom que neste sentido lhe peçamos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído do “Legionário”, nº 559, de 25/4/1943)

São Pio V

Empregai-vos em eleger para mim um sucessor zeloso, que não procure senão a glória do Salvador e que não tenha outro interesse aqui embaixo senão a honra da Santa Sé Apostólica e o bem da cristandade, disse o Papa São Pio V, antes de morrer, aos cardeais que escolheriam um novo Pontífice.

Palavras supremas de um chefe genuíno, que dirige, que protege, que nutre um amor à verdade até a audácia. No mais elevado degrau da Igreja Católica era ele uma alma sublime, um autêntico pastor disposto a dar a vida pelas suas ovelhas.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 4/5/1967)

Sublime intimidade entre o Menino e a Mãe

Aplicando o senso católico e o discernimento dos espíritos ao comentar o afresco de Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzano, Dr. Plinio sonda as encantadoras profundidades do convívio entre o Menino Jesus e sua Mãe santíssima.

 

Nossa Senhora do Bom Conselho se apresenta a nós com uma invocação que, à primeira vista, talvez não pareça ter muita relação com o quadro. Este representa uma Rainha de um pequeno país balcânico, o que se nota na figura, nos ornamentos e, mais ainda, no tipo marcadamente oriental, com os olhos um pouco em amêndoa, e voltados para baixo.

Ela está com o Menino nos braços e numa atitude de muita intimidade, em que se tem impressão de que Ela esqueceu que é Rainha e Ele esqueceu que é Rei! Não que hajam pedido demissão ou abdicado da realeza. Mas, no momento, aquilo que está no fundo do espírito, na primeira plana da atenção e do modo de sentir, é o fato de que Ela é Mãe e Ele é Filho!

Profundeza de sentimento e de pensamento

Mais ainda — e é uma das coisas que mais me atrai no quadro —, há uma profundidade na intimidade de relacionamento, pela qual se sente até o fundo da alma d’Ela: Ela é Mãe, e Mãe daquele Filho, quer bem àquele Filho; e até o fundo da alma d’Ele: Ele é Filho, e Filho daquela Mãe! Há entre Eles uma união de alma, que explica a tranquilidade e quase a imobilidade daquele afeto.

Ou seja, é um afeto que chegou tão ao fundo, que Eles não têm nada para dizer entre Si. Estão quietos e apenas querendo-Se bem, mais nada, como quem nota que, de parte a parte, o conhecimento e o afeto mútuos chegaram até o fim. E que, portanto, não há mais o que considerar. É só fruir uma bem-aventurada delícia daquele mútuo entendimento e mútuo estar juntos!

Nesse ponto, o artista foi muito delicado porque, pintando o Menino com todas as feições de criança daquela idade, e nada de comum com o hominho precoce, vê-se n’Ele uma profundeza de sentimento e de pensamento, que o homem feito não tem. E que corresponde inteiramente à Doutrina Católica sobre o Homem-Deus.

A unidade das naturezas divina e humana na mesma Pessoa traz, como consequência, que aquele Menino, daquela idade, concebido sem pecado original, e que, portanto, não passou por nenhuma das debilidades e das — eu digo no sentido etimológico latino — imbecilidades, das fraquezas da infância, tenha a profundidade do sentir. Ele está tão consciente do que é uma mãe, do que é aquela Mãe, quais as profundezas de alma que Ela oferece a Ele; e Ele entra tão a fundo nessas profundezas que se põe na mão d’Ela como uma criança!

Quadro que tem um voo sobrenatural extraordinário

Com um sublime paradoxo: Ele é criança para tudo, exceto para entender e querer as coisas sublimes, extraordinárias. De maneira que não me espanta que Ele quisesse precisar d’Ela para os serviços mais modestos. Porque é assim que se compagina a condição de criança no Menino-Deus. E o quadro exprime isto admiravelmente. É uma obra de arte mediana, mas tem um voo sobrenatural extraordinário!

O afresco nos dá bem a noção da relação entre Eles. O modo como Nossa Senhora O carrega é o de uma pessoa que leva um tesouro de um valor infinito; mas é uma pessoa muito generosa. Se supusermos um indivíduo levando um tesouro, nós o imaginamos agarrado ao tesouro, e voltado a impedir que alguém o roube; e sua atitude é de quem diz para qualquer um: “Isto é meu, não é seu! Não chegue perto e não amole, porque é meu!”

Nossa Senhora não. Ela O segura com muito cuidado, muita delicadeza, de maneira tal que nada se passa n’Ele, ou em torno d’Ele, que Ela não note imediatamente; uma vigilância materna dulcíssima! Mas Ela não deixa ver a menor preocupação de que Lhe tirem o tesouro. Ela sabe que é desses tesouros que quando se compartem não se dividem. E uma vez dado, ele fica inteiramente com quem deu, e inteiramente a quem foi concedido. De maneira que, sem propriamente mostrar o Menino, a própria posição do rosto d’Ela foi calculada com cuidado para que não ocultasse nada da face do Menino. E que o Menino ficasse em primeiro plano e Ela no segundo.

E, pelo respeito e pela seriedade tranquila, distendida e afetuosa com que Ela O carrega, vê-se que Ela tem uma noção inteira de que está levando o Filho de Deus. E que O adora com o mais profundo respeito.

Mas, de outro lado, Ela tem a sensação de estar de tal modo penetrada pelo afeto d’Aquele a quem Ela respeita, que Se sente desembaraçada para, sem nenhuma vacilação, nenhum acanhamento, dar ordens ao seu próprio Deus. De maneira que Ela delibere quando é hora de deitá-Lo ou tirá-Lo do Presépio; se é hora de dormir ou não. E Ela, sabendo que é nada, ou como que nada, para o Deus d’Ela diz: “Meu Deus, chegou a hora de dormir!” E Ele, cuja natureza humana está hipostaticamente ligada à natureza divina, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, fecha os olhos e dorme, porque sua Mãe mandou.

Desdobramentos da Encarnação

Todas essas possibilidades estão contidas no “et Verbum caro factum est, et habitavit in nobis”. Quando São João diz no prólogo de seu Evangelho: “O Verbo de Deus se fez carne, e habitou entre nós”(1), todo esse celeste turbilhão de relações vertiginosas, admiráveis e dulcíssimas será contido na Encarnação, são desdobramentos da Encarnação.

Não conhecemos detalhes do convívio entre Eles, mas é possível, por exemplo, que Ele, com um pouco mais de idade, na hora de brincar — e era Deus querendo brincar! — não tenha dito a Ela o que queria, como não diz uma criança que não sabe ainda falar. E que Ela, por amor, precisou adivinhar que Ele queria uma bola. E que tenha arranjado uma bola para Ele.

Podemos imaginar Nossa Senhora e São José confabulando sobre o tamanho, o diâmetro da bola, de que matéria seria, como fazer a bola oca, para não ficar muito pesada para a mãozinha d’Ele, etc. Mas ambos já imaginando em cima desta bola uma cruz, como se haveria de ver depois nas mãos de incontáveis reis da Terra!

Ou, então, Maria Santíssima prestando atenção para saber de que comida Ele gostava mais. Ou fazendo oração para pedir a Ele que Lhe desse o conhecimento de qual era a refeição que Ele queria comer naquele dia. E Ele talvez fazendo dificuldade para falar; de repente, dizendo a Ela uma palavra qualquer, própria de criança, mas na qual Ela percebia misteriosamente que queria dizer: “Não sabeis, minha Mãe, que Eu vim à Terra para sofrer?”

Ninguém pode calcular o que foram as relações dessa infância, os mistérios, as sublimidades… Deus brincando! A Escritura diz que, antes de todos os séculos, Deus, que é a Sabedoria, brincava na superfície de Terra(2). Mas daí a uma bolinha feita na oficina de Nazaré… Que diferença!

A Mãe que criei e da qual nasci

E Nossa Senhora falando com Ele… Assim como Ele se transfigurou para três Apóstolos no alto do Monte Tabor, quantas vezes Ele Se transfigurou para Ela? E em que atitudes? Dormindo, talvez… E no dormir, que poder, que majestade, que inocência, que delicadeza! Às vezes, de fugidio, de repente, é Deus que Ela vê!

Quem pode calcular isto?

Nós sabemos, pelo Gênesis, que Deus, no sétimo dia, repousou e considerou todas as coisas que tinha feito. Mas nenhuma delas era bonita como Nossa Senhora. E Jesus, como Criador, confabulando com sua natureza humana, por assim dizer, pensando: “Como é linda esta Mãe que Eu fiz e da qual nasci! Como a alma d’Ela é incomparável!

Ali no quarto — estando entreaberta a porta — vejo que Ela está rezando. É noite, e uma candeia dá uma luz indecisa. Vejo o perfil d’Ela e noto que Ela reza para Mim. Mas não entro no quarto. E percebo que Ela está orando para o Padre Eterno, para o Divino Espírito Santo. Eu — como Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, diria Ele — conheço a oração d’Ela. Entretanto, é hora de chamá-La para tal coisa.” E grita: “Mamãe!”

Poder-se-iam multiplicar as situações, desenvolver isto ao infinito. Ele A vê, em certo momento, chorar. E Ele sabe, porque a Santíssima Trindade — Ele, portanto — está dando esclarecimentos a Ela sobre a Paixão, e depois sobre a morte d’Ele. E Ele nota a docilidade d’Ela, como Ela aceita, como Ela quer. Mas Ele vê desde já aquela espada que transpassa a alma d’Ela. E Ele Se deleita em considerar que, pelo amor que Ela tem aos homens, Ela quer que Ele morra. E no dia seguinte, quando Ela se levanta, Ele percebe um sulco de dor que dá uma majestade, uma gravidade, uma interioridade à fisionomia d’Ela, que é verdadeiramente indescritível.

Imaginemos Nossa Senhora tendo conhecimento profético dos milagres, dos ensinamentos, das parábolas d’Ele, vendo a figura d’Ele, num alto de um monte, que passa… A Paixão, a Cruz, a morte e a glória da Ressurreição. Quem poderia imaginar tudo isso adequadamente? Ninguém!

Quadro de Nossa Senhora do Bom Conselho, no Colégio São Luís

No Colégio São Luís havia um quadro da Mãe do Bom Conselho colocado no retábulo do único altar da modesta capela, que era uma sala transformada em capela. Inúmeras vezes entrei lá. Por exemplo, para celebrar o mês de maio em honra de Nossa Senhora, diariamente todos os alunos entravam na capela cantando. Eu olhava para a imagem, naturalmente, e minha atenção era solicitada por duas coisas muito desiguais: uma era a Mãe de Deus e outra o Menino Jesus, mas tomados em tese, como a Doutrina Católica os considera, e como a mente de uma criança pode alcançar.

E pensava: “É a Mãe de Deus, Maria Santíssima, que me deu aquela graça no Coração de Jesus(3) e está aqui sob outra invocação, outra roupagem. Mas é Ela! E vou rezar para Ela, porque já vi como é misericordiosa comigo. Sem a misericórdia d’Ela eu não me arranjo. Mas com a misericórdia d’Ela eu alcanço tudo. Portanto, é mais uma oportunidade de me unir bem a Ela, e rezar a Ela para alcançar esta união”.

Eu sabia que o título, a invocação d’Ela era “Mater Boni Consilii”, portanto, Mãe do Bom Conselho. E tentei, algumas vezes, rezar para esta invocação, que eu notava ser excelente, mas não me dizia grande coisa. A piedade é assim: às vezes uma invocação excelente não nos fala muito à alma.

De maneira que isto ficou assim, até eu ler um livro sobre Nossa Senhora de Genazzano, pouco antes de sofrer aquela crise de diabetes(4), e depois suceder tudo quanto sucedeu. Seria mais ou menos como um facho de luz que nasce pequenino, de uma lâmpada pequena, mas forte, e que depois se torna imenso. Assim seria essa primeira visualização minha de Nossa Senhora de Genazzano.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/4/1985)

1) Jo 1, 14.
2) Cf. Pr 8, 31.
3) Ver Revista Dr. Plinio, n. 1, p. 4-7.
4) Ver Revista Dr. Plinio, n. 21, p. 20-21.

Obra de cortesia e de arte

Dr. Plinio descreve o quadro de Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzano, mostrando, entre outros elevados e profundos aspectos, a cortesia de Maria Santíssima.

A fotografia mostra Nossa Senhora como Rainha. As coroas de Maria Santíssima e do Menino Jesus são de pedras preciosas, não propriamente do quadro, mas joias que foram nele presas posteriormente, em razão dos grandes milagres e graças de que o afresco de Genazzano tem sido ocasião.

Nossa Senhora está olhando para quem reza

Vemos os colares de pérola que estão suspensos no quadro, alguns adornos que dão uma ideia oriental, com uma espécie de meia-lua; são coisas muito legítimas, muito boas, mas nós podemos abstrair delas para compreendermos bem o afresco em si mesmo como pintura.

No quadro, percebemos que há uma coerência admirável na figura mais expressiva, que é Nossa Senhora, porque o Menino Jesus é menos expressivo.

O que há de interessante na figura de Maria Santíssima?

A fisionomia d’Ela está completamente distendida. Não se nota um músculo que esteja contraído, que indique qualquer impressão, exceto a sensação de contentamento de estar com o Menino. Ela está toda voltada para a ideia de que segura o Menino Jesus nos braços e só está pensando n’Ele; não tem outra preocupação. O mundo inteiro não existe para Ela, há apenas o Menino Jesus.

O curioso é que Ela não está olhando propriamente para Ele, mas para quem reza. Percebe-se que o fato de a face de Nossa Senhora tocar na fronte e na face do Menino Jesus faz com que Ela tenha uma espécie de degustação da presença d’Ele, de alegria daquele contato do corpo que é, sobretudo, um contato de alma muito íntimo, que A deixa cheia de satisfação.

Esse contato, entretanto, é habitual e não de surpreender. Não é um êxtase, nem nada deste gênero, mas uma impressão, uma sensação como toda mãe tem com seu filho; quando ela está com seu filho, há momentos em que o amor materno se abre mais, floresce mais e o seu carinho se expande. Nossa Senhora é apresentada desta maneira aqui.

Bondade, ternura, proteção

A bondade, a ternura, a proteção d’Ela para com o Filho se fazem notar muito na posição do pescoço e da cabeça. O Menino está suspenso n’Ela e A agarra pelo pescoço — a ponta da mão direita d’Ele aparece por detrás —, e explica que Ela esteja com o pescoço ligeiramente inclinado pelo peso d’Ele. A intimidade d’Ele com Ela é extraordinária! O Menino agarra como algo que Ele está habituadíssimo a segurar, e Nossa Senhora se deixa agarrar como quem já foi segurada mil vezes. E até acha agradável sentir-Se curvada diante de um peso tão suave, tão doce, tão deleitável para Ela.

O Menino não está propriamente com medo, mas meio agarrado a Ela como quem, também Ele, não quer saber nada do mundo de fora. Ele está todo para Ela, como Ela está toda para Ele. Ele só tem alegria de estar ligado à Mãe d’Ele, mais nada, e na alegria de se sentir protegido e unido a Ela.

Nenhum dos dois pensa, nem cogita nem nota nada. Olhem para essa Criança: não está pensando em bola, em doce ou qualquer outra coisa. Está pensando apenas: “Mamãe”; e a Mãe está pensando somente: “Meu Filho”.

Nota-se, entretanto, uma coisa curiosa: na expressão d’Ele, apesar de ser menino, existe — é uma delicadeza do quadro — uma sensação de “doninho”. O Menino Jesus segura Nossa Senhora, está contente, protegido, mas Ele é um pouco “doninho” d’Ela, enquanto n’Ela existe uma veneração, respeito. Parece que Ela está procurando escutar o que se dá dentro d’Ele, se sai uma palavra desse Sacrário que Ela tem nos braços… E quando se presta atenção, vê-se o seguinte: Ela está rezando para Ele. Essa posição da cabeça, essa atitude, é de quem ausculta, no fundo está numa espécie de prece, não pedindo algo, mas fazendo uma contemplação da Pessoa d’Ele, querendo tomar contato com a Pessoa d’Ele. É uma meditação, uma contemplação muito alta.

Está subentendida a doutrina da mediação

Ele está nesta intimidade com Ela, mas, enquanto os olhos d’Ela vão para baixo, os olhos d’Ele vão para cima, dirigem-se a Deus. É a ideia da mediação. Ela olha para Ele e Ele olha para Deus. Nós olhamos para Nossa Senhora, Ela olha para Jesus e Ele olha para Deus.

É bonito que tanta doutrina tenha sido posta tão delicadamente neste quadro, que nem se sabe o que dizer.

Notem outra coisa: o olhar d’Ela é, curiosamente, bivalente. Não é verdade que Ela está olhando para Ele? E também olhando para quem fita o quadro?

Sente-se meio olhado por Ela quando se olha para o quadro, e é bem o papel d’Ela. Ela é nossa medianeira, recebe nossa oração, transmite para Ele e Ele é Deus e transmite a nossa oração às outras Pessoas da Santíssima Trindade.

De maneira que se tem a Doutrina Católica suavissimamente expressa, sem essa precisão dogmática que é própria à Teologia, mas com esse subentendido que é próprio à arte. Porque é agradável adivinhar isto no quadro, sem que se veja à primeira vista.

Os que se encontram neste auditório, não acham mais interessante descobrirem quando uma pessoa lhes mostra, do que estar escrito em baixo: “Mediação universal”? 

Que dizer, a coisa que se insinua é dada a entender de leve, não está afirmada de modo cortante, mas a pessoa vai assim descobrindo como atrás de um aroma delicado. Na arte, isso tem seu encanto. Para a arte, às vezes certo mistério aumenta o atrativo. Aqui temos, então, este mistério.

Sentir-se filho mais até do que adotivo

Há outro aspecto interessante: essa intimidade. Toda intimidade é fechada, exclui. O pintor soube — aliás, a meu ver, esse quadro foi pintado por Anjo — criar uma coisa curiosa, que é uma intimidade aberta. Tem-se a impressão de que se alguém for chegando perto, entra no circuito dessa intimidade; que é amado por Nossa Senhora, pelo Menino Jesus, é entendido pelos dois e que Eles socorrem a pessoa que se aproxima. Qualquer um que se achega a esse quadro pode sentir-se íntimo, sentir o aconchego da presença do quadro. Seja uma alma reta, seja um pecador, seja até um inimigo; se se aproxima sente esse aconchego.

Outra coisa curiosa: Nossa Senhora aqui está sorrindo? Olhando para os lábios, não. Não sei se notam que há um ligeiro sorriso indefinido espalhado por todo o rosto; e é um certo comprazimento para com o Filho. Mas de outro lado também é um comprazimento para com o devoto, com o fiel que chega aí perto, filho d’Ela como Este outro.

Está insinuado no quadro que quem olha para o quadro é irmão do Menino Jesus, é também filho d’Ela. Esse quadro poderia se chamar “Adoção”. Porque a pessoa se sente filho adotivo, ou mais até do que adotivo, simplesmente aproximando-se do quadro. Isso me parece ser o que o quadro tem de mais interessante.

Pergunto o seguinte: o quadro é de uma Rainha? Faço abstração da coroa. Não há nada que indique uma pessoa de alta categoria social, nem de categoria social modesta, nem média. Está à margem das categorias sociais. Apesar disto, há qualquer coisa n’Ela de Rainha, porque é sumamente venerável, sumamente respeitável. Se fôssemos abrir a boca para dizer uma palavra, teríamos vontade de nos ajoelhar.

Por quê? Tão ordenada, tudo tão direito dentro d’Ela, que qualquer palavra que partisse d’Ela seria uma palavra de sabedoria, de santidade. Quase que se imagina o timbre desta voz, seria um ensinamento. Imediatamente teríamos desejo de nos colocar genuflexos. Todas essas riquezas foram postas neste quadro.

Nossa Senhora está cortês com o Menino Jesus, nesse afresco? Eu diria que sumamente cortês. Notem com que respeito Ela está com Ele. É um enorme respeito, uma veneração. Mas, de outro lado, muito íntima. E Ele com Ela também, com que respeito! Como Ele está direitinho, nada está errado, nada como não deve ser. Jesus tem a sensação da sacralidade dos braços em que Ele está. Quer dizer, um menino dessa idade, rezando numa igreja, não podia ter uma atitude mais cheia de respeito do que está aí.

Temos aí uma verdadeira obra de cortesia e de arte.

No que está a cortesia nesse quadro? Os três elementos da cortesia estão presentes ali: o respeito mútuo, o amor mútuo e, como reflexo de ambos, um modo de tratar que deixa transluzir o bem-estar de permanecer ligado a algo de mais alto, e ao mesmo tempo um sorriso por estar ligado a algo que se quer muito. E essa é uma das definições de cortesia. Aí estaria a cortesia no quadro de Nossa Senhora de Genazzano.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/6/1974)

Intercâmbio de mentalidade entre Mãe e Filho

A cidade de Genazzano está construída numa montanha, no alto da qual se ergue a Basílica de Nossa Senhora do Bom Conselho, onde se encontra o belíssimo afresco, trazido no século XV pelos Anjos desde Scútari, na Albânia.

 

Temos aqui uma vista da cidadezinha de Genazzano. Bem no centro e no alto encontra-se o campanário e o corpo da igreja e, depois, vemos a cidade que se pendura nas encostas dessa pequena montanha. Eis uma das razões do pitoresco dessa cidade.

O extremo pitoresco do urbanismo “genazzaniano”

Genazzano foi, outrora, uma cidade fortificada e era uma espécie de feudo dos Príncipes Colonna. No período das guerras feudais, ela teve que enfrentar várias dificuldades, diversos cercos, e por causa disso a população procurava concentrar-se dentro da cidade, encostando-se as casas, umas nas outras, tanto quanto possível. O melhor meio para uma fortificação defender-se com facilidade era localizar-se no alto de uma montanha; ora, os altos das montanhas são naturalmente estreitos, pequenos. Daí a necessidade de fazer as ruas o mais possível estreitas e com um traçado sinuoso, pelo qual se adaptem ao modo com que cada casa consegue pendurar-se no morro. Aí está o extremo pitoresco do urbanismo “genazzaniano” — se assim podemos chamar —, que vamos examinar.

Veem-se restos de muralhas, pois com o desaparecimento das guerras feudais e do perigo de invasões normandas, árabes, etc., as muralhas foram caindo, mas a cidade continuou assim, agarradinha às encostas e deitando uns prolongamentos para o sopé da montanha.

Foi no alto desse local que uma ardorosa devota da Mãe do Bom Conselho, Petruccia Nora, quis construir uma igreja de acordo com revelações e visões recebidas, e que deveria ser num lugar onde havia uma capela, em estado de deterioração, em louvor de São Brás, bispo e protetor contra os males da garganta.

Aí pousou, em certo momento, em meio a coros angélicos cantando e nuvens luminosas, a imagem de Nossa Senhora do Bom Conselho que tinha atravessado o Mar Adriático, acolitada pelos dois albaneses que a seguiram desde Scútari, na Albânia, caminhando milagrosamente sobre as águas.

É-nos grato tomar em consideração que no lugar onde está, na igreja, o altar de Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzano, a imagem baixou, e imaginarmos a cena: esse burgozinho efervescendo de alegria com as graças todas que se derramavam do Céu, de um modo sensível através das músicas, das nuvens, etc., e o triunfo de Petruccia, posteriormente sepultada na igreja, na qual há uma lápide comemorando-a.

Elegância que tem poesia

À primeira vista, quem olhasse essas construções poderia fazer uma objeção: “Isso é um espaço mal aproveitado, a cidade não deveria ter sido construída aí, as casas ficam se encostando, por assim dizer “acotovelando-se” umas nas outras; a população fica mal servida de espaços; as ruas têm que ser sinuosas e, portanto, feias; não há um plano de conjunto. Pelo contrário, se se fizer uma cidade dividida como um tabuleiro de xadrez, em quadradinhos, com espaço horizontal bem amplo, grandes avenidas e um trânsito abundante passando por aí, fica muito mais bonito!”

Ora, isso daria nessa banalidade que todos conhecemos. Pensemos, por exemplo, em uma grande avenida de São Paulo e façamos a comparação: Genazzano é pitoresca, dá vontade de ir visitar. Pelo contrário, diante da grande avenida sentimos vontade de bocejar.

Vemos nesta outra fotografia, tirada de dentro de um restaurante, um panorama muito bonito, montanhoso, variado e, felizmente, pouco cultivado pelo homem. É curioso, mas às vezes a cultura do homem embeleza e às vezes torna sem graça uma determinada paisagem. Aqui se tem a impressão de que as coisas continuam como eram quando saíram das mãos de Deus.

Em outra foto aparece uma parte da muralha, uma fontezinha com chafariz, que está ao lado de uma espécie de reservatório. Nota-se na muralha certa preocupação de elegância. Vejam as ameias, cuja finalidade é permitir que o defensor da cidade se proteja dos projéteis lançados pelo adversário, escondendo-se atrás disso que poderíamos chamar vagamente uns “Vs”; e na hora de ele mesmo atirar, aparece depressa e joga qualquer coisa, depois volta para trás.

Entretanto, esses “Vs” são mais altos do que costumam habitualmente ser em fortificações dessa natureza, para tomar assim uma forma de elegância que tem certa poesia.

Observem as paredes. São fortificações belíssimas. A vegetação se introduziu em todas as frinchas que separam uma pedra da outra. Onde um pouco de terra pousou, uma semente se deitou, uma planta nasceu e assim aquela que poderíamos chamar quase de torre é felpuda de vegetação.

Do lado de cá, há uma porta que outrora fora aberta, mas provavelmente por razões de defesa resolveram fechar. Junto a ela está tudo ajardinado e arranjadinho, a fonte está bem conservadinha sobre uma bonita coluna que sustenta a bacia, e tem-se aí um golpe de vista muito interessante.

Ruas estreitas em zigue-zague, terraços floridos

É especialmente interessante o fato de terem conservado a muralha e, com o desaparecimento das guerras, ter-se formado um pouco de cidade de um lado e do outro dela; e, para maior comodidade, foram retirados os batentes da porta, que não é mais necessário fechar, pois os inimigos desapareceram. Contudo, a muralha permanece. Vejam como é interessante esta “piazzetta” localizada logo depois da muralha, em cujo andar térreo vê-se uma janela com cortininhas e um toldo. Trata-se, provavelmente, de um restaurante muito barato, de comida nada “raffinée”, mas saborosa, onde o povo engorda tanto quanto pode, comendo e bebendo, conversando, exclamando e, pela vocação um pouco oratória do povo italiano, declamando também.

Neste outro aspecto da cidade, vemos um claro exemplo do que falávamos há pouco sobre as ruas apertadas, estreitas. Aqui foi concedido ao fator “rua” o menor espaço possível, para poder caber dentro das muralhas o maior número possível de habitantes.

Vejam como a rua se torna, assim, sinuosa, desenvolvendo-se numa espécie de zigue-zague. E, para aproveitar mais o espaço, por cima da própria rua constroem pontes onde deve haver quartos com gente habitando.

Como habitação, não é muito diferente de uma favela de pedra. Entretanto, não se tem a impressão de miséria e para lá vão turistas para ver o pitoresco dessas mansões humildes. Notem como as ruas são limpas, os lugares arejados e como as pessoas moram um pouco ou muito apertadas ali dentro, mas alegres e com o espírito gaiato, satisfeito, cantam, evidentemente.

Isso aqui está fotografado à luz do dia, porém é ainda mais bonito sob o luar. Exatamente, nós visitamos isso ao luar, e fica um verdadeiro encanto! Não é só quando a Lua nasce “por detrás da verde mata”, que ela é muito bonita. Ela é bela em todas as circunstâncias: “pulchra ut luna, electa ut sol”(1), diz a Escritura num trecho aplicado pela Igreja a Nossa Senhora. Sob o luar essa paisagem urbana adquire certo ar de mistério, e um transeunte que anda sozinho por essas ruas, à noite, com uma capa, o rosto meio embuçado e com um passo apressado, não se sabe se é um mensageiro que está trazendo uma mensagem secreta, um aventureiro a fugir de uma polícia, ou simplesmente um habitante do lugar, um pouco teatral… É a poesia de Genazzano.

Na Itália, como em outros países da Europa, existe a preocupação frequente de florir os terraços. Vemos nessa residência como tudo está enfeitadinho, indicando o prazer e a alegria de viver, o gosto de ter uma vida razoável e alegremente ornada, dentro de certa pobreza. É o contrário da revolução social marxista, com os punhos fechados, ameaçando revolta e morte.

Aqui vemos uma porta e, no alto, um brasão com uma coroa.

Nos edifícios antigos era comum porem-se coroas, escudos, ainda que não pertencessem às famílias nobres, mas, por exemplo, à municipalidade. Elas ostentavam uma coroa, não feita de ouro e prata, mas de pedra, representando, em ponto pequeno, a muralha, símbolo da autonomia da cidade. Tanto quanto a minha vista me permite discernir, não há sobre esta porta uma coroa nobiliárquica, mas municipal. Entretanto, vejam como ela ficou agradável de ver em cima dessa entrada. É a pequena e modesta pompa de um vilarejo consciente de sua dignidade.

O teto, a mesa de Comunhão e o quadro da Mãe do Bom Conselho

Vemos aqui o interior da igreja. O afresco de Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzano está à esquerda. Nota-se do lado esquerdo alguns arcos grandes que, à primeira vista, parecem vedados por um grande cortinado; mas não é cortina, e sim um gradeado muito bonito, sólido e bem desenhado, que defende por todos os lados a imagem de eventuais atentados durante a noite. Assim, a sagrada imagem fica ao resguardo de qualquer ladrão que queira vendê-la, de qualquer devoto indiscreto que deseje fazer com ela uma extravagância, inspirado por alguma piedade mal entendida, ou de qualquer blasfêmia de algum profanador.

A igreja tem um tom de seriedade que lembra a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em São Paulo. Na parte do fundo, vê-se a capela-mor, o presbitério e dois altares — o altar onde estão as velas, e aquele onde se encontra o Crucifixo é o altar antigo.

O teto não cai perpendicularmente, mas à maneira de uma semi abóboda, cujo desenho é mais ou menos entrevisto pelo arco que há no alto, na entrada do presbitério, e que se repete depois. Aqueles losangos e os desenhos dentro deles não são pintados, e sim feitos em alto-relevo muito fino, muito bonito e distinto, sem aqueles transbordamentos demagógicos e um tanto cafajestes que o Renascimento tem, mesmo quando procura ser aristocrático. Aqui não: esse adorno é muito discreto e distinto, como convém às coisas sacrais.

A mesa de Comunhão é de um mármore de muito boa qualidade, concebida segundo uma inspiração muito justa e verdadeira, do ponto de vista teológico. Dado que o Santíssimo Sacramento é Nosso Senhor realmente presente sob as espécies eucarísticas, o padre dar a Comunhão e o fiel recebê-la constituem um ato tão alto, de uma elevação infinita — porque Nosso Senhor Jesus Cristo, Homem-Deus, é Aquele que é dado e recebido — que seria próprio aos Anjos segurarem o pano da mesa de Comunhão.

Por isso, é muito bonita a ideia de representar a mesa de Comunhão como um pano improvisado, sustentado poeticamente por anjos, não esticado, mas com umas ondulações bonitas esculpidas no mármore.

Desagrada, entretanto, o fato de serem representados uns anjos travessos, sem seriedade, nada daquilo que se pode imaginar de um Príncipe na presença de Deus por toda a eternidade. Isso desdoura e entra em contraste com toda a respeitabilidade autêntica, muito maternal e afável da igreja.

Ao fundo da nave esquerda, na capela guarnecida de grades fortes e distintas, de que falamos há pouco, e cujas paredes estão revestidas de mármores particularmente bonitos, encontra-se o nicho com o quadro de Nossa Senhora do Bom Conselho.

A imagem é altamente expressiva e deixando transparecer esse convívio maternal, silencioso, de longas e longas horas entre Ela e o Menino Jesus, e uma espécie de consenso mudo entre ambos a respeito de toda espécie de coisas, de temas, indicando a união intimíssima de almas da mais alta das meras criaturas, que é Maria Santíssima, com Aquele que, enquanto Homem é criatura, e na sua natureza divina é o Criador. Isso tudo vivido na simplicidade das relações, Mãe e Filho. É o tipo de relação mais simples, mais espontânea, mais natural e mais íntima que o espírito humano pode conceber.

Há nessas duas figuras uma espécie de silêncio vivo pelo qual não dão a impressão, nem um pouco, de meras pinturas. Não se pode retratar melhor o intercâmbio de afeto, de mentalidade e quase de vitalidade entre Mãe e Filho do que essa imagem representa.

Imagem do Beato Stefano Bellesini

Em uma capela contígua à igreja encontra-se um altar com os restos mortais do Bem-aventurado Stefano Bellesini, sacerdote agostiniano que viveu em meados do século XIX(2). É o grande devoto de Nossa Senhora de Genazzano.

Tanto quanto a minha experiência faz notar, essa devoção tem como que eclipses. Quer dizer, há momentos em que ela é muito sensível, e a esperança de ser atendido pela intercessão de Nossa Senhora do Bom Conselho é fácil, alegre e luminosa. Em outras ocasiões fica difícil, essa esperança não é sensível e torna-se necessária uma grande força de alma para se perseverar na confiança.

Para praticar esta virtude com este grau enérgico de confiar, quando todas as impressões de caráter sobrenatural se apagam em nós para nos provar, a intercessão do Beato Stefano Bellesini que, com certeza, foi exímio nisso, nos é muito favorável. Eu rezo a ele mais de uma vez por dia, e recomendo muito que rezem também.

A atitude dele nessa imagem de cera que reveste suas relíquias é muito calma, tranquila, de quem já está elevado às tranquilidades eternas do Céu.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/11/1988)

1) Do latim: bela como a Lua, incomparável como o Sol (Ct 6, 10).
2) * 1774 – † 1840.

Oração à Mãe do Bom Conselho

Ó Mãe do Bom Conselho, eu Vo-lo suplico: falai no mais íntimo da alma deste vosso filho e escravo.

Tornai, assim, sempre presente a meu espírito a convicção de que são objetivas — e não meros frutos da imaginação — as graças que, segundo firmíssima tradição, concedeis a vossos devotos pelas “mudanças” de vossa fisionomia.

Convencei-me de que podeis instilar, desta forma, nas almas, convicções de confiança e paz que valham por verdadeiras promessas vossas.

Tendo em vista os auxílios providenciais que em várias ocasiões inesperadamente me concedestes, peço-Vos que acresçais ainda mais minha confiança, de sorte que ela se torne inabalável em todas as ocasiões.

Pela virtude dessa confiança, dai-me a certeza de que, através de graças avassaladoras, tornar-me-eis um perfeito cavaleiro vosso; exorcizai e enviai para longe de mim qualquer influência diabólica; e uni-me cada vez mais a Vós, para Vos servir na Terra e Vos louvar no Céu. Assim seja.

Plinio Corrêa de Oliveira

O perigo começa com a vitória! – II

Após analisar a primeira fase medieval, Dr. Plinio nos mostra como, a partir de um relaxamento, operou-se a corrupção da sociedade.

 

Dessa primeira fase em que a Idade Média se revela ainda ponderada, equilibrada, passamos para uma época em que os prazeres se vão acentuando. São ainda honestos, legítimos e até equilibrados. Há, porém, uma sede de prazer que se vai tornado progressivamente acentuada. Numa terceira etapa notamos todo o corpo social da Idade Média já deteriorado.

Tratava-se de um relaxamento e não uma deliberação explícita em fazer o mal

É uma espécie de febricitação, de agitação, de delírio, que já define bem o século XV, fazendo com que muitas pessoas do tempo pensassem que o mundo iria acabar.

Nota-se, então, a passagem sucessiva de um apogeu para um estado de decadência. O ponto de partida foi seguramente a falta de cuidado, a falta de prevenção. Uma atitude despreocupada da Cristandade Medieval foi a causa da decadência.

Despreocupação esta que se caracterizava pela excessiva confiança em si mesmo, julgando haver na própria sociedade medieval raízes e lastros de virtudes suficientes para se eliminar qualquer preocupação.

Não se pode, entretanto, afirmar que havia má intenção nesta atitude. Tratava-se apenas de um relaxamento e não de uma deliberação em praticar o mal. Nessa fase de afrouxamento do modo de viver, a Idade Média até nos impressiona pelo que tem de temperante, de digna, de nobre, mesmo nos seus prazeres.

Note-se que isto não é uma afirmação, não é uma tese que venha acompanhada de documento, mas uma hipótese baseada em alguns conhecimentos. Mas, quando formulamos esta hipótese os fatos se alinham de tal maneira que tudo se torna claro. Assim sendo, os acontecimentos ficam arquitetonicamente explicados.

Está na substância da santificação o desejo da cruz

É necessário considerar que isto não se refere a desvios existentes, mais ou menos excepcionais, embora até profundos. Encontramos na Idade Média fenômenos marginais, como as heresias, mas que não são a Idade Média; casos de satanismo, mas que não são a Idade Média; um imperador que é até arabizante e muçulmanizante, mas isto também não é a Idade Média. É a doença inteira do corpo social que estou procurando descrever, e não apenas certas chagas.

Isto interessa muito aos contrarrevolucionários, sobretudo tendo-se em vista o Reinado do Imaculado Coração de Maria conforme sua promessa em Fátima: “Por fim o meu Imaculado Coração triunfará”.

Estes princípios são tão verdadeiros que se aplicam até aos fenômenos de vida espiritual dos contrarrevolucionários de hoje. Em virtude de quase todos os ambientes atualmente estarem, uns mais outros menos, impregnados do espírito revolucionário, quando uma alma ao converter-se torna-se contrarrevolucionária, entra em uma fase de lutas e enormes provações.

Há depois, uma segunda fase, de estabilização, em que tudo se torna menos árduo e mais fácil. Esta é a fase perigosa. Não se devem temer tanto as lutas de conversão como as batalhas de segunda fase, porque é aí que vem a tentação de se viver sem preocupações dentro da virtude, o que significa abandonar a virtude e viver fora dela. Está na substância da santificação o desejo de cruz.

As várias etapas da decadência medieval

A primeira das várias etapas da decadência se caracteriza pelo agradável-bom que se acentua demais, mas ainda honesto, nobre e equilibrado. É exemplo disto o traje feminino habitual na Idade Média. Era lindíssimo, com os belíssimos chapéus de cone com véus pendentes, ou em forma de gomos, com uma coroa. É algo de muito nobre e bonito, e também muito calmo e repousante. Toda a arte medieval produz uma sensação muito agradável.

O agradável encontra sua melhor expressão no Gótico “Flamboyant”. Mas o “Flamboyant” vai invadindo todos os campos, e em vez de ser apenas um agradável-bonito para a sala de visitas, passa a ser a nota dominante em quase todos os ambientes.

Tudo piora sensivelmente a partir do momento em que o agradável se torna ilícito e, portanto, imoral. O mesmo se dá na literatura de Cavalaria e em inúmeros outros setores da vida medieval.

Para se analisar como a crise se generalizou no corpo da sociedade medieval, é necessário ver as profundidades dessa crise. Por profundidade entendemos as várias camadas dessa sociedade; a mais baixa, a do povo, constituía a última profundidade. A mais elevada seriam as cortes.

A corrupção da sociedade a partir das elites

Antes de prosseguirmos, seria conveniente lembrar um princípio.

Ao analisarmos alguém de personalidade encontramos — sobretudo caso se trate de um liberal — várias personalidades conjuntas que entram numa espécie de diálogo. Há num mesmo homem o monarquista e o republicano, o católico e o protestante. É o princípio das várias personalidades opostas, estabelecendo um diálogo interno, e que se dá na vida espiritual de um homem.

Na Idade Média o princípio do diálogo interior entre várias personalidades dava-se conforme as classes sociais. Esse processo de deterioração começou com os mais ricos e poderosos.

O fenômeno é mais evidente nas cortes reais, e mesmo em certas cortes principescas tão altas quanto as cortes de reis. Começa-se então uma vida de extravagância. A metástase, à maneira de câncer, foi se dando, de “proche en proche”(1), para as demais classes sociais.

A corte corrompe a média nobreza, que por sua vez corrompe a pequena. A alta burguesia, sempre a primeira a corromper-se com os reis, deteriora a média burguesia e a pequena. Este processo é lento, mas terrivelmente eficaz.

Houve tempo, na Idade Média, em que se nota muito claramente este fenômeno de corrupção nos altíssimos letrados, nos altos aristocratas, nos altíssimos argentários, e mesmo no mais alto clero.

Há, no entanto, correntes de opinião e umas tantas classes sociais que constituem centros naturais de resistência. É o que se passou com o movimento humanista e renascentista, que tanto floresceu entre os altos intelectuais, mas que encontrou focos de resistência nas universidades, a tal ponto que estas durante muito tempo ficaram à margem do movimento novo, apegadas às fórmulas antigas.

Entre as camadas inferiores do povo a corrupção é muito mais lenta, havendo muita resistência. Mas esta resistência sofre um processo de degradação que se delineia mais ou menos da seguinte maneira: inicialmente há uma indignação e resistência profunda à deterioração; a seguir, uma contemporização, apesar da não adesão e até da resistência; por fim, tolerância indiferente seguida de admiração, inveja e adesão ao processo que já estava vitorioso há muito tempo nas camadas superiores da sociedade.

A decadência deveu-se à tolerância dos bons

Quando estudamos o problema da decadência da sociedade medieval, ocorre-nos uma indagação no sentido de saber por onde ela se vergou à Revolução.

Muitos afirmam que a decadência coube aos reis e ao clero, que deram o passo inicial. Há outra teoria, mais simpática, que é a de que tudo foi possível a partir do momento em que a resistência deixou de ser caracterizada por uma intolerância agressiva, indignada e militante. Só a reação enérgica é capaz de deter o progresso do mal. O mais lamentável não é que os maus sejam audaciosos, mas que os bons não lhes oferecem a intolerância e resistência que eles demonstram para com o bem.

Se alguém denuncia publicamente o mal praticado pelos revolucionários, algo se lhes atrapalha, ainda que eles não queiram. E é esta espécie de atrapalhação interna, que produz o estertor dos revolucionários. Poucos têm coragem para argumentar contra quem lhes denuncia. E vence quem argumenta com mais intolerância, no sentido mais profundo da palavra. Pode-se, em certo sentido, dizer, sob este aspecto, que tudo depende inteiramente da intolerância.

O mal começa a vencer quando os bons deixam de ter essa intolerância ousada e triunfante.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de maio de 1959)

 

1) Pouco a pouco.

 

Quando o Céu e a Terra estavam próximos…

O jovem cônego Pedro González estava penetrado pelo pior dos mundanismos: o das coisas sagradas. Tocado pela graça divina, rompeu com o mundo e entrou para a Ordem dos dominicanos. Tornou-se célebre pregador e influenciou, com seus conselhos, o Rei São Fernando.

 

No dia 14 de abril comemora-se a festa de São Pedro González, dominicano, do qual tiramos umas notas do livro Vida dos Santos, do Padre Rohrbacher(1).

Gritos de admiração se transformaram em vaias e zombarias

Eis a síntese histórica:

Pedro González nasceu no ano de 1190 na cidade de Astorga, na Espanha, da qual seu tio era bispo. Após brilhantes estudos, foi nomeado, ainda jovem, cônego da catedral.

O tio lhe obteve de Roma a dignidade de deão do capítulo. Pedro devia tomar posse do cargo na festa do Natal. Jovem vaidoso, quis que tudo lhe ocorresse com pompa, e que toda a cidade assistisse ao ato.

Montado em um cavalo magnificamente ajaezado, atravessava as ruas da cidade. Chegando a um lugar repleto de pessoas, ferroou o animal para fazê-lo trotar com mais graça e assim aumentar a admiração do povo. Mas o cavalo deu um passo em falso e atirou o cavaleiro numa poça cheia de lama. Os gritos de admiração se transformaram imediatamente em vaias e zombarias.

Pode-se imaginar a confusão que sentiu González. Esta, porém, lhe foi salutar. No mesmo lugar exclamou bem alto: “Como! Este mesmo mundo que eu procurava agradar ri-se de mim? Pois bem, zombarei dele por meu turno. De hoje em diante dar-lhe-ei as costas para começar uma vida melhor.”

E, de fato, abandonou o mundo e entrou para a Ordem de São Domingos. Foi um ótimo religioso e mais tarde não menos excelente pregador.

Sua fama chegou até o Rei São Fernando, que lhe pediu um conselho a respeito da guerra contra os sarracenos. Mais tarde foi evangelizador dos pobres e particularmente dos marinheiros, tendo sido agraciado com o dom dos milagres. Pregou sem cessar, até seus últimos dias.

Predisse sua morte, falecendo em Tuy, assistido pelo bispo da cidade que muito o estimava. Os marujos de Espanha e Portugal o invocavam em todas as tempestades sob o nome de Santo Elmo.

Uma tradição muito razoável, pitoresca e psicológica

A vida dele é realmente pitoresca a começar por essa manifestação de mundanismo canonical. Era sobrinho do bispo que conseguira que ele fosse nomeado deão do capítulo, quer dizer, a principal figura do cabido.

Fazia parte dos costumes do tempo que quando uma pessoa assumia uma dignidade nova passeava pela cidade, revestida das insígnias de sua dignidade. Por exemplo, quando alguém era nomeado professor de universidade passeava pela cidade, com foguetório, alunos, etc., vestindo a beca e os trajes de mestre, montado a cavalo. Naturalmente era preciso saber montar a cavalo, porque a coisa não deixa de comportar alguns riscos.

Assim, quando o estudante se formava e voltava para a cidade de origem, tomava o traje da profissão que exerceria e passeava pelo meio da cidade. E o povo todo ficava vendo o novo profissional graduado, novo doutor, que iria adornar os meios sociais e intelectuais da cidadezinha à qual pertencia.

Algo disso conservou-se durante algum tempo no interior do Brasil. Até 1920, mais ou menos, se não me engano, quando um rapaz do interior se formava em São Paulo, ele ia para sua cidade e era acolhido, com banda de música, pelas autoridades municipais, e todos os que estavam na estação para recebê-lo acompanhavam-no até a casa, onde havia uma coisa horrendamente chamada “boca livre”, quer dizer a família oferecia, ao menos quando podia, uma refeição para todo mundo que quisesse comer quanto quisesse. E assim ficava entronizado o novo doutor.

Essa tradição que, aliás, é muito razoável, pitoresca e psicológica, aplicava-se até aos reis. A rainha, quando se casava com o rei e ia pela primeira vez à sua capital, tinha a “joyeuse entrée”, a alegre entrada, em que havia recebimentos e pompas.

Por exemplo, Luís XVI e Maria Antonieta, depois de casados, fizeram uma “joyeuse entrée” em Paris, porque era a primeira vez que ela ia àquela cidade oficialmente. Então, grande recebimento, grande reboliço. Isso é muito conforme à ordem natural das coisas.

No momento do sumo mundanismo, a hora da graça

Então, o novo cônego estava para entrar a cavalo na cidade, e este acontecimento deveria ser envolto em grande pompa e circunstância. Imaginem um homem guapo, montado num belo cavalo, com aqueles trajes bonitos de cônego, deão do cabido. Provavelmente havia clérigos acompanhando e confrarias fazendo coro.

Era uma época em que não existia anticlericalismo. Hoje não há mais propriamente anticlericalismo, mas é meio secundário aos olhos da opinião pública ter um cargo eclesiástico. É melhor um cargo eclesiástico do que não ter nenhum cargo, nem civil. Mas é muito melhor ter um cargo civil do que um eclesiástico, mais ou menos em igualdade de condições. Mas naquele tempo, não. Os cargos eclesiásticos eram de uma alta atração mundana.

Entra, pois, nosso cônego elegante a esporear o cavalo para trotar com mais graça. É que não havia ainda a “heresia branca”2. Esta não gostaria de um cônego que trotasse depressa. No conceito “heresia branca”, isso seria contra a caridade, não ter bom coração. Um homem que anda depressa a cavalo não tem pena nem das viúvas, nem dos pobres, nem do cavalo. Segundo esta ideia deturpada da piedade, o cônego, mesmo quando moço, deveria montar um bicho bem manso, largar as rédeas e seguir lentamente pelas ruas. Então todos diriam: “Como ele é bom!”

Mas vê-se que não havia ainda “heresia branca” e ficava bonito um cônego mostrar que montava bem a cavalo. Então a hora da graça o esperava nesse momento de sumo mundanismo, e o pior dos mundanismos que é o mundanismo das coisas sagradas. Ele monta a cavalo, esporeia o animal que começa a trotar, e espera os aplausos que principiam a se delinear. De repente, ele cai num monte de lama.

Modo da graça operar em um espanhol

Certa vez, Napoleão andava a cavalo pelo “Bois de Boulogne” ou “Champs Élysées” e o povo começou a aplaudi-lo. Então, o embaixador da Dinamarca que estava ao lado dele lhe disse:

— Majestade, que trono sólido!

Ao que ele respondeu:

— Senhor Embaixador, é um engano. Os povos se vingam dos aplausos que nos dão.

De fato, quem aplaude está pronto para vaiar. Esta é a miséria humana. Resultado: estavam aplaudindo, escarrapachou-se, irrompe a vaia. Neste momento vem a graça de Deus e converte o homem. Toca-o mostrando o vazio de todas essas vaidades, e dando-lhe um sentido de desafio àquele povo: “Como é, esse pessoal que me aplaudia, agora está vaiando? Romperei e não terei mais nada que ver com eles.”

Esse é um modo da graça operar em um espanhol. Porque a coisa se converte imediatamente em desafio tendente à tourada. Atitude sumamente bonita, que me agrada muito. Se rompeu, faça o desafio e pule em cima; e vá logo ao fim, seja radical! É bom que as coisas se passem dessa maneira, e assim fez o nosso Santo. Ele foi tocado pela graça e entrou para uma Ordem religiosa. Tornou-se dominicano e se celebrizou como pregador. Aliás, é bonito vê-lo influenciar, com seus conselhos a respeito da Cruzada, o Rei São Fernando.

Evocando um fato com saudade

Vejam que cena bonita: um chefe de Estado santo que manda chamar um pregador santo para confabularem a respeito da luta contra os infiéis. Como tudo isso está longe! Onde se encontra hoje o pregador santo? E o rei santo? Tudo isso se dissipou. E que nostalgia devemos ter desses valores que dizem tanto às nossas almas!

Imaginemos esse encontro: um rei sentado numa cadeira de espaldar alto, com braços, sobre um pequeno estrado na sala; o santo pregador entra e lhe faz uma profunda reverência desde a entrada, e o monarca lhe diz com amenidade:

— Frei Pedro, entre, esteja à vontade.

Então começam a falar e, de repente, a conversa sobe de ponto e dali a pouco estão tratando a respeito de Religião, de temas elevados, e isso dentro do palácio real.

Qual é o palácio onde hoje uma cena como essa se dá? Como isso nos faz sentir a desgraça do nosso distanciamento em relação a tantas coisas magníficas que, por essa forma, podemos entrever dentro da luz do passado. E como é útil, portanto, uma ficha biográfica que nos dê a possibilidade de nos recordarmos de toda essa felicidade.

Dante diz que nenhuma tristeza é maior do que no dia da miséria lembrar-se da ventura que se foi. Nós sofremos em parte isso. Estamos no dia da miséria e nos lembramos desses dias que se foram. Mas pelo menos ficamos sabendo que houve isso e que as coisas voltarão a ser assim. E nesse vale profundo, tão longe do que foi e – ao menos na ordem real das coisas, não cronologicamente – tão distante do que vem, nós evocamos isso com saudade.

Um modo de morrer na doçura e na paz de Deus

Depois, esse Santo exerce vários ofícios: evangelizador dos pobres e, sobretudo, dos marinheiros. Estes constituíam, então, uma ralé sem Fé nem lei, eram aventureiros. Ele se mete nesse ambiente e, sem nenhuma necessidade de ser padre operário nem de fazer concessões malucas, move essas almas porque é um Santo.

Até o fim de seus dias ele pregou, e previu a sua própria morte. É uma das graças especiais que Deus dá a alguns de seus servos: preverem a chegada da própria morte. É um modo de morrer na doçura e na paz de Deus. Isso não lhes causa pânico, porque lhes dá a esperança precisamente de chegarem ao Céu. Antigamente, isso se fazia com tal naturalidade que se conta que o Padre Anchieta, no vilarejo de São Paulo, soube com antecedência o dia de sua morte e avisou várias famílias, despedindo-se e explicando com toda a candura: “Eu vou morrer no dia tanto, tive uma comunicação a esse respeito, e queria agradecer-lhes tanta gentileza”.

É o modo mesureiro e cortesão, no sentido nobre da palavra, de se fazer visita de despedida no século XVI: “Vou morrer, preciso me despedir dos amigos”.

Podemos imaginar o assombro! Entretanto, não causava tanto espanto assim porque muitas vezes pessoas que nem eram tidas como santas viam-se favorecidas com essa graça, e anunciavam a própria morte. E quem as ouvia achava meio provável que acontecesse. Essas comunicações entre o Céu e a Terra não eram excepcionais.

Conaturalidade magnífica com o sobrenatural

Que susto se um padre hoje tocasse a campainha de nossa Sede e dissesse:

— Dr. Plinio, eu vim me despedir do senhor porque vou morrer.

Eu me sentiria, no primeiro momento, tão desconcertado que me julgaria obrigado a dizer:

— Não! O senhor ainda vai ter uma longa vida…

É o “happy end” idiota das coisas modernas.

Naquele tempo, não:

— Ah, o senhor vai morrer? Não diga… O senhor teve uma visão? Olhe, muito obrigado por ter vindo se despedir. Quando chegar no Céu lembre-se de nós. Diga de minha parte a Nossa Senhora tal coisa, fale com meu Anjo da Guarda tal outra, por obséquio não se esqueça.

— Ah, pois não, não tem dúvida, não esquecerei. Até logo.

— Até logo.

Quer dizer, é exatamente a conaturalidade magnífica com o sobrenatural. A harmonia com o celeste, o hábito do convívio com o sobrenatural que cria coisas magníficas como essas.

Por exemplo, no convento, o Santo caminhando de um lado para outro, de repente diz para o Prior:

— Padre Prior, eu julgava necessário que Vossa Reverência provesse alguém que me substituísse no apostolado dos marinheiros.

— Mas por que isso?

— Porque recebi um aviso de que vou morrer.

— Ah, então, está bem.

Já deixa o substituto indicado. O Santo morre na hora marcada, a comunidade está presente e assiste à morte. Ele adormece no Senhor, enterram-no em paz. Uma alegria geral, uma unção no pequeno local onde a morte se dá; o próprio bispo era muito amigo dele e assistiu a sua morte. Assim, ele morre sob as bênçãos e as vistas de seu pastor e com essa naturalidade vai para o Céu.

Como o Céu e a Terra ficam próximos! Que abismos se suprimem dentro desse florilégio da civilização católica! E quanta coisa bonita desapareceu também, as quais vamos rever no Reino de Maria!

Creio que no Reino de Maria não vai ser raro pessoas saberem com antecipação a data de sua própria morte. Quem sabe? Resta-me augurar que essa graça seja dada a todos nós.               v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/4/1967)

Revista Dr Plinio 253 (Abril de 2019)

 

1) Cf. ROHRBACHER, René-François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. Volume VI, p. 360-362.

2) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na arte e na cultura em geral. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.

São Pio V, herói em meio às angústias!

A célebre batalha de Lepanto, na qual a Armada Católica logrou afastar o poderio otomano que se acercava do Ocidente Cristão, foi assinalada por insigne heroísmo. Entretanto, houve quem, apesar de não empunhar armas físicas, obteve de Deus o bom êxito dos guerreiros da Fé.

 

Tantos foram os comentários feitos a respeito da batalha de Lepanto, em vários anos sucessivos, que quase não há algo para acrescentar. Mas vou destacar um herói da batalha de Lepanto, a propósito do qual poucos historiadores falam. Esse herói foi o Papa São Pio V.

No século XVI, os cristãos da Europa estavam divididos

Em que sentido ele foi um herói, e por que é importante para nós reconhecermos o heroísmo dele?

São Pio V via o poder otomano crescer cada vez mais e o perigo de que eles se lançassem sobre a Itália, por exemplo, ou qualquer outra parte da Europa, e operassem uma invasão com efeitos talvez mais ruinosos do que a dos árabes na Espanha, no começo da Idade Média.

Isto porque no tempo de São Pio V, século XVI, os cristãos da Europa estavam divididos entre católicos e protestantes. Já havia, portanto, instalada entre os cristãos, essa lamentável divisão a qual enfraquece tanto as forças católicas e que nós desejamos remediar pela conversão de todos.

No século XVI, o protestantismo tinha um vigor incomparavelmente maior do que hoje;  estava ainda na sua fase de expansão, de luta. E era muito de se temer que os protestantes aproveitassem a agressão feita pelos maometanos a um país católico, para eles mesmos invadirem outros países católicos. Tanto mais que já havia disso uma experiência.

À Casa d’Áustria, que governava a Áustria e a Hungria, pertencia habitualmente, por eleição, o título de Imperador do Sacro Império Romano Alemão. Várias vezes ela se viu em dificuldades seríssimas por causa de combinações, ou ao menos de convergências claras, entre protestantes, do interior do Sacro Império, e otomanos, de fora dele, visando forçar a capitulação da Casa d’Áustria e liquidar de imediato o Catolicismo, pelo menos nos povos de língua alemã.

Assim, para a Santa Sé, a ameaça otomana era muito mais forte do que foi a ameaça árabe, a qual, entretanto, fora tão terrível. Porque no tempo de São Pio V os cristãos estavam divididos.

Indecisão de Felipe II

Nessa situação, São Pio V precisava apelar, naturalmente, para quem era o apoio temporal da Igreja em seu tempo: Felipe II, Rei da Espanha. Com efeito, o Papa só podia encontrar apoio, dentre as grandes potências católicas, em Felipe II e depois em Veneza, uma grande cidade marítima, a qual constituía uma república aristocrática, com largo desenvolvimento em todo o Mediterrâneo e com muitos bons navegadores e boas frotas. Se bem que o poder de Veneza fosse ponderável, o grande poder decisivo era de Felipe II.

Os historiadores reconhecem — mesmo aqueles que admiram Felipe II, e têm muitas razões para isso; eu sou um admirador dele —, entretanto, em Felipe II um homem extraordinariamente indeciso. Quando precisava resolver alguma questão, tinha vaivéns: concordava, depois discordava, mandava embaixadores, pedia prazo, deixava passar o prazo… Não era fácil vencer a indecisão de Felipe II.

São Pio V via o perigo crescer e todo o assunto ser resolvido numa sala do Palácio Real de Madri, ou do Escorial, por Felipe II sozinho, ou com seus auxiliares. Se, em última análise, Felipe II se retraísse, de repente a horda maometana desataria sobre a Itália, e depois atingiria toda a Cristandade; seria o fim da Civilização Cristã no Ocidente. Não seria o fim da Igreja porque Ela é imortal; mas ao que a Igreja poderia ficar reduzida ninguém sabe.

Pástor(1) narra as tratativas de São Pio V com Felipe II, e diz que constituíram para o Papa um verdadeiro martírio, tanto teve ele que pedir ao Rei de Espanha. Felipe II fazia exigências; São Pio V solicitava apoio para uns e para outros, a fim de atender as exigências financeiras e outras de Felipe II. Afinal conseguia, porém Felipe II queria mais. Depois Felipe II pedia que o Papa mandasse seus navios, mas o Pontífice não os possuía. São Pio V acabou arranjando os navios, e Felipe II já não queria enviar a esquadra dele. Entretanto, apenas os navios da Santa Sé não adiantariam…

É certo que, se não fosse a pressão de São Pio V, não haveria a batalha de Lepanto, porque a Espanha não teria mandado sua esquadra, a qual era o grande contingente decisivo entre as forças navais aliadas. Dessa forma, os historiadores de São Pio V reconhecem que para ele foi, ao pé da letra, um martírio lutar em tais condições; ele foi um verdadeiro herói em aguentar a angústia de tal situação, e ao mesmo tempo combater até o último momento, para conseguir afinal de contas que as tropas saíssem e a batalha se travasse.

Nossa Senhora aparece a São Pio V

Assim compreendemos melhor a razão pela qual houve a famosa aparição a São Pio V, quando ele estava reunido com cardeais, em Roma, tratando de algum assunto. Enquanto a reunião se desenvolvia, em certo momento ele se levantou e rezou um terço pela vitória dos católicos sobre os maometanos, porque ele tinha a noção de que, cedo ou tarde, deveria realizar-se uma grande batalha, a qual seria decisiva para a Cristandade.

Enquanto ele rezava, ou terminada a oração do terço, Nossa Senhora Auxiliadora apareceu-lhe e comunicou-lhe a vitória cristã na batalha de Lepanto. São Pio V, então, foi ao local da sala onde estavam reunidos os cardeais e informou-lhes: “Nós podemos nos tranquilizar. A batalha foi ganha. Eu tive uma revelação neste sentido.”

Naquele tempo não havia rádio, telégrafo ou televisão; e uma notícia dessas levaria um tempo enorme para, desde Lepanto, chegar até Roma. Entretanto, ele a recebeu no próprio dia da vitória. Ou seja, foi uma revelação sobrenatural feita por Nossa Senhora a São Pio V.

Por que a ele? Porque era o chefe da Cristandade, não tem dúvida. Mas também porque São Pio V tinha lutado a propósito dessa guerra e desenvolvido um esforço igual ou maior do que os batalhadores de Lepanto. Foi um verdadeiro herói, como Dom João d’Áustria e os outros grandes guerreiros que venceram em Lepanto.

Muitas vezes as dores morais atormentam mais que as físicas  

Alguém dirá: “Isso, Dr. Plinio, eu não compreendo, porque ele não arriscou a vida, mas ficou comodamente em Roma à espera de que viesse uma notícia. Se ele não arriscou a vida e não combateu, não pode ser herói”.

Este é o ponto, o prisma falso que devemos tirar de nossa cabeça.

Por certo, quem luta com as armas na mão é um herói. Mas a Doutrina Católica jamais admitiu a tese de que esta é a única forma de heroísmo.

O heroísmo não é apenas o ato pelo qual o homem enfrenta o risco de perder a vida ou a integridade física. Mas é a atitude pela qual o homem enfrenta qualquer grande dor ou grande infortúnio. Isso caracteriza o herói.

Há dores morais e dores físicas. E muitas vezes as dores morais atormentam incomparavelmente mais, sendo mais difícil enfrentá-las do que as dores físicas.

Um exemplo da heroicidade que há em enfrentar dores morais é a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, a qual se divide claramente em duas partes: a Agonia e a Paixão propriamente, onde Ele foi preso, torturado e depois crucificado.

Na primeira parte, a Agonia, o Redentor desenvolveu um verdadeiro e perfeito heroísmo, no mais alto sentido da palavra. Porque todos os sofrimentos morais ocasionados pelos pecados, pela ingratidão da Humanidade, pela maldade de que Jesus seria vítima, atingiram tal ponto que Ele pediu a Deus que, se fosse possível, afastasse o cálice. Ele chegou a suar sangue, dentro da perspectiva do que ia acontecer.

Sofrimento moral de Nosso Senhor no Horto das Oliveiras

A aceitação antecipada do sofrimento, a dor moral que Nosso Senhor teve no Horto das Oliveiras foi um autêntico heroísmo, embora ali não tenha combatido fisicamente contra ninguém. Mas Ele deliberou aceitar o tormento e a morte, apesar da inutilidade de seus sofrimentos para quem não correspondesse à graça e acabasse se perdendo.

Essa deliberação foi heroica. A dor de alma que tal deliberação Lhe causou foi uma dor autêntica, embora Ele fisicamente não estivesse combatendo.

Alguém dirá: “Mas Jesus ofereceu o risco da vida d’Ele; e esse risco é um elemento integrante do heroísmo.”

É verdade; entretanto Nossa Senhora não o ofereceu. N’Ela ninguém tocou. Seu sofrimento foi, de ponta a ponta, moral, sem nenhuma dor física. Ora, Maria Santíssima é chamada, invocada, aclamada pela Igreja como “Regina Martyrum” — Rainha de todos os mártires. Apesar de não ter sofrido fisicamente, ninguém, em toda a História do mundo, padeceu como Nossa Senhora pela Paixão e Morte de seu Filho.

Vemos assim que ter a força de alma para aguentar as decepções, calúnias, frustrações, enfim, tudo quanto o homem pode sofrer na vida, é um verdadeiro heroísmo. É uma tolice imaginar ser herói apenas quem combate de armas na mão.

Quanto a São Pio V, alguém poderia perguntar: “Dr. Plinio, na comodidade da sala do Palácio Pontifício, qual era o heroísmo dele?”

Foi um heroísmo de alma, que consistiu em enfrentar este sofrimento: ter lutado com Felipe II em condições tão difíceis, em vez de entregar os pontos e procurar não ver o perigo iminente. O que ele fez caracteriza o verdadeiro herói.

Confiança heroica

Devemos entender que, na nossa vida de todos os dias, temos ocasiões de praticar verdadeiramente o heroísmo. Inclusive aguentando os quotidianos  “rios chineses”, que nos fazem estar ziguezagueando continuamente em torno de algo que nunca chega ao fim. Isso é heroísmo.

Como foi heroico o profeta Simeão, esperando sempre, até a extrema velhice, para, afinal de contas, ver o Salvador que lhe tinha sido prometido! E Abraão que ofereceu Isaac, o filho da promessa, o qual ele teve na velhice!

Há uma confiança heroica pela qual nunca se desiste de esperar. Essa confiança dói, e a alma fica às vezes como que sangrando, mas a pessoa continua a confiar, dizendo: “A promessa interior, inefável, feita por Nossa Senhora não falhará! Eu confio na palavra d’Ela, cumprirei a minha missão. Vou para a frente. Que Maria Santíssima me ajude!”

 Qual é a palavra de Nossa Senhora? É uma voz da graça, uma apetência que sentimos, a qual nos leva a praticar a virtude e o amor de Deus. É com base nisso que devemos estruturar a nossa confiança.

Uma alma assim tem uma confiança heroica: por isso a oração dessa alma move as montanhas.

Em que consiste o verdadeiro heroísmo

Nossa Senhora só revelou a São Pio V o que tinha acontecido, depois de ele ter rezado um terço. Quer dizer, Ela quis mostrar o quanto Lhe é grato pedirmos tudo quanto precisamos por meio do rosário; por isso, resolveu esperar aquela ocasião para dar-lhe esse enorme galardão.

A Fé heroica move as montanhas.  Fé que crê apesar de todas as aparências em sentido contrário. Não desanima, não volta atrás. Continua a lutar apesar de ter apenas um palito, porque possui o que vale mais do que tudo: um terço na mão.

A nossa principal arma é a oração. E a oração é vitoriosa quando inspirada pela Fé que move as montanhas, segundo a expressão empregada por Nosso Senhor no Evangelho.

Imaginemos um exército católico, que se encontra bloqueado diante de uma montanha cujo túnel foi destruído. Um santo começa a cavar a montanha e milagrosamente a levanta com as mãos. O exército passa e o varão de Deus deixa baixar a montanha, abre o túnel e sai do outro lado. Consideraríamos esse santo um colosso. Um homem que carregou com as duas mãos uma montanha! Oh! Fantástico! Seria admirável. Porém, muito mais bonito é carregar uma montanha com a oração, do que com as duas mãos. Isso fez São Pio V por meio de sua prece.

Percebemos assim como é o verdadeiro heroísmo.

Nós devemos ter apetência de derramar o nosso sangue pela Igreja?

Pode ser que a graça nos dê essa apetência. Será uma coisa esplêndida!

O desejo de verter o sangue pela Igreja é uma vontade de doação total. É magnífico. Não tenho palavras suficientes para encorajá-los. Os mártires tinham esse desejo, e muitos morriam na alegria do sacrifício que faziam. Porém não posso aceitar que se entenda ser essa a única forma de heroísmo; que outras formas de lutar pela Igreja não são verdadeiro e autêntico heroísmo.

Então o que é o heroísmo? É a aceitação enérgica, firme, com espírito de Fé, de qualquer sofrimento extraordinário, seja físico ou moral, que põe em risco a nossa vida ou outros bens.

Heroísmo de um sacerdote que guardou o segredo de confissão

Houve um caso que se contava no Brasil antigo. Um assassino acabava de matar alguém numa igreja, e pediu ao padre que o atendesse em confissão. O sacerdote, vendo que ele estava contrito, deu lhe absolvição e logo depois foi ver no templo — cidadezinha do interior, de manhãzinha, a igreja ainda vazia — quem estava morto. Encontrou um homem apunhalado. O padre começou a tirar o punhal, que estava cravado no corpo da vítima. Entram pessoas na igreja que começam a gritar, dizendo que o sacerdote havia matado aquele homem.

O padre foi processado, condenado, preso, e passou muitos anos na cadeia, tido como um sacrílego, um degradado, um infame. O assassino tinha fugido e o sacerdote aceitou essa pavorosa humilhação, mas não declarou quem era o criminoso.

Uns dez ou quinze anos depois, certo dia o padre vê chegar à cadeia, onde ele cumpria a pena, pessoas tocando música, dando brados de viva ao nome dele.

O que sucedera? O assassino havia morrido e, pouco antes de falecer, tinha confessado que ele era o autor do crime e que o padre era inocente. Então o sacerdote foi absolvido e depois reintegrado no exercício do ministério sacerdotal.

Embora não tenha levado pancadas, esse padre sofreu intensamente. Acho que vários dos que estão aqui presentes prefeririam morrer a passar por isso. Ele foi um autêntico herói.

Heroísmo é a disposição de aguentar qualquer grande sofrimento, por amor a Nossa Senhora. E foi o que São Pio V suportou. Portanto, foi herói.

Compreendamos, então, o valor do heroísmo, ainda quando incruento. Admirando a quem Deus pede o sangue corpóreo na luta pela Igreja e pela Civilização Cristã, devemos entender que a muitos outros Ele pede o sangue da alma.

Quando temos uma grande dor, devemos dizer: “Quero sofrer isto, porque não há outro meio para chegar à finalidade que tenho em vista. Mas eu olho de frente tudo quanto estou sofrendo e meço grão por grão, milímetro por milímetro, todo o sofrimento que preciso aceitar. Está bem, eu aceito. Nossa Senhora me ajude e me dê força. Isto eu quero, porque o resultado vale mais do que eu sou”. Esse é o sofrimento heroico. 

(1) Ludwig von Pastor (1854-1928), historiador alemão, célebre por sua História dos Papas

(Extraído de conferência de 7/10/1975)  (RDP 164, novembro 2011)