O Espírito Consolador

Para a vinda do Reino de Maria não basta apenas o extermínio dos maus por meio de um castigo divino, mas se faz necessária uma efusão de graças do Espírito Santo que leve à conversão grande parte da humanidade. Até mesmo os contrarrevolucionários devem passar por uma transformação à maneira da taturana que se torna linda borboleta.

 

A respeito do Divino Espírito Santo e da Festa de Pentecostes, gostaria de dizer alguma coisa no tocante a um dado de que temos falado: o Grand Retour(1).

Necessidade de graças excepcionais de conversão para a constituição do Reino de Maria

Se considerarmos que os castigos previstos por Nossa Senhora em Fátima vão determinar o extermínio de grande número de pessoas, em especial das que não são boas, e que depois, escapando os bons, com estes nasce uma humanidade nova, parece-me que do ponto de vista demográfico ficamos na estaca zero. Porque, quantos são os autênticos contrarrevolucionários nos dias de hoje? E como garantir a perpetuação do gênero humano a partir de um punhado de bons que reste? É evidente que não basta apenas o extermínio, mas esses castigos têm que ser acompanhados de uma grande conversão.

Sabemos ter sido o dilúvio, além de um castigo, uma ocasião de conversão para muita gente que, diante da iminência da morte, converteu-se e salvou-se. Podemos, pois, imaginar que as tragédias que castigarão a humanidade, caso ela não se emende, também constituam uma oportunidade para muitos se converterem.

Mas como considerar essa graça para tanta gente, inclusive para contrarrevolucionários tão deficientes e cheios de lacunas, quando levamos em conta que se trata de constituir a época mais brilhante da História da Igreja, que é o Reino de Maria? Como resolver esse problema?

Só podemos imaginar isso da seguinte maneira: em determinado momento, de um modo inesperado, Nossa Senhora produz sobre um grande número de pessoas uma ação sobrenatural de graças conseguidas por Ela que atuem sobre as almas para que se convertam, modifiquem-se completamente e se transformem em contrarrevolucionárias.

A algo disso posso dizer que, timidamente, assisti nos dias de minha vida. Porque quando comparo o que é hoje a minha Obra com as possibilidades existentes para a constituição de um movimento católico como este, quando começamos, e o que era o Brasil antes mesmo de começar o movimento católico, noto transformações enormes que não poderiam se dar sem graças muito especiais, evidentemente distribuídas pelo Espírito Santo às almas e obtidas por sua Santíssima Esposa.

Quando nos lembramos da “geladeira” religiosa que era o Brasil no tempo, por exemplo, de Washington Luiz e comparamos com este miserável Brasil do Jango e o indeciso Brasil do Castelo Branco, vemos que, apesar de mil esboroamentos, mil recuos, houve um trabalho evidente da graça que, no seu gênero, é absolutamente maravilhoso, excepcional, que não está no método comum da Providência operar.

Em qualquer estágio da vida espiritual, pedir uma transformação completa

Evidentemente, precisaremos de operações excepcionalíssimas da graça. São essas que devemos pedir: graças muito especiais do Espírito Santo. E é muito conveniente que façamos este pedido ao Divino Espírito Santo, por ocasião da Festa de Pentecostes.

Suponhamos alguém que, em sua vida espiritual, vai se conduzindo de um modo perfeitamente satisfatório; outro, de um modo medíocre; outro ainda, insatisfatoriamente. Como esse pedido de graças se põe para cada um?

Para o primeiro, deve-se pedir a Nossa Senhora que lhe dê uma graça por onde o fervor dele seja tal que corresponda a uma verdadeira conversão, pela qual adquira um modo inteiramente novo de ver a vocação, uma renovação de todas as energias interiores, de maneira que a apetência de santidade, de sacrifício, o amor a tudo quanto é grande e sublime, e que verdadeiramente nos fala de Deus cresça enormemente, e ele seja, em relação ao que era antes, como a borboleta é para a crisálida. Tenho a impressão de que a imagem zoológica da transformação operada pela graça no homem é uma taturana que se arrasta pelo chão – ente vil, feio, metido dentro da poeira – e que, de repente, vai se transformando e dá numa borboleta linda. Eis a transformação espiritual do homem.

Mais ainda devem pedir isso os medíocres, que sentem não estarem progredindo, e cuja vida de piedade se transforma em lero-lero, as Ave-Marias se automatizam, os pensamentos de piedade perdem o suco, conserva-se por tudo isso uma espécie de estima convencional, mas o fundo da alma não corre para lá.

Entretanto, eu gostaria de falar especialmente para aqueles que tenham a infelicidade de não estarem indo espiritualmente bem. Há situações da vida espiritual que são tão difíceis que a pessoa quase perde a coragem: “Não consigo, não aguento. É muito direito, é muito bonito, mas está provado que perdi o fôlego, e daqui não vou para a frente…”

Ora, a Festa de Pentecostes é uma admirável lembrança de que esse modo de raciocinar é falso. Por maiores que sejam as dificuldades, o Divino Espírito Santo pode, de um momento para outro, pela intercessão de Nossa Senhora, atender nossos pedidos e fulminar uma alma com uma graça, como São Paulo a caminho de Damasco. Uma intervenção assim, qualquer um pode e deve pedir.

Nessas condições, portanto, eu sugeriria que todos nós nos aproximássemos da Festa de Pentecostes com muita confiança, inteiramente persuadidos de que, se pedirmos, a Santíssima Virgem nos atenderá, obtendo para nós uma graça especial do Espírito Santo. Não posso afirmar que tal dom vá cair sobre nós no dia de Pentecostes, quando os sinos estiverem anunciando o meio-dia. As coisas na vida espiritual não se dão assim tão cinematograficamente. Mas deve-se pedir para receber no momento adequado e oportuno.

A verdadeira ação do Espírito Consolador

A respeito da ação do Divino Espírito Santo em Pentecostes cabe ainda uma consideração. Devido à histórica torção do espírito religioso ao longo dos séculos, quando se fala da terceira Pessoa da Santíssima Trindade enquanto Espírito Consolador, insinua-se um pouco a ideia de uma viúva cheia de crepes, tendo perto de si três crianças, cada uma lambendo um biscoitinho, sentada ao pé de um salgueiro junto a um túmulo no cemitério da Consolação, e pensando: “Mas como o meu Pafúncio era bom! Tão amável, tão direitinho… Uma vez ele me traiu, é verdade, mas não vale a pena pensar nisso agora.” E depois de um tempo de chorinho bom e suave, ela se retira do cemitério consolada.

Em uma de suas obras, o Proust(2) tem o personagem de uma tia viúva que morava num quarto todo lindinho do qual ela nunca saía. A cama dessa senhora ficava junto a uma janela que dava para a rua, para ela poder ver todos os acontecimentos que ali se passavam. A parede do quarto era listada de azulzinho claro e branco, imitando tecido, onde estava pendurado um retrato do falecido esposo. Entre as distrações da viúva durante o dia, estava a de olhar para o quadro e comentar com a criada: “Como era bom esse meu pobre marido…”

Essa é a ideia comum que se tem de “consolação”. Portanto, o Espírito Consolador seria também aquele que nos faria ter uma unção gostosa às horas da Ave-Maria; uma coisa melada da qual a pessoa sai, neste sentido melífluo da palavra, consolada.

Porém, o Espírito Consolador não é este, mas sim o correspondente à etimologia latina da palavra “consolatio”, isto é, aquele que dá força. Ele é propriamente o Espírito de força, de ânimo diante da dor, do sofrimento e da luta. É o Espírito Santo que nos dá força para batalharmos pela virtude, para conseguirmos a santificação, combatermos pela Causa de Deus. É, pois, o Espírito animador, que dá ânimo para a pessoa lutar. E não, ao contrário, aquele que põe um gostosinho agradável da consolação nesse outro sentido da palavra.

Sem dúvida, está também entre os efeitos do Espírito Santo certa forma de resignação doce, suave em meio ao grande sofrimento. Mas este é um efeito entre muitos outros produzidos pelo Espírito Santo, e que não tem nada a ver com o sentimentalismo melancólico, à Chopin(3), e outras coisas do gênero. É algo da resignação cristã, por exemplo, em Nossa Senhora, depois de Nosso Senhor ter subido ao Céu, passando Ela ainda muito tempo na Terra, para o bem da Igreja nascente, e com saudades d’Ele. Portanto, não tem nada de comum com a fraqueza sentimental da qual falávamos há pouco.

Não conheço nada melhor do que os “gisants” da Idade Média para nos dar a ideia sensível desse espírito de ânimo, de energia, fruto do Espírito Santo, que nos leva a enfrentar a vida em todas as suas circunstâncias. Aqueles guerreiros deitados, em atitude de prece, armados para a vida e enfrentando placidamente a morte, tendo transposto com serenidade os umbrais da eternidade, com Fé em Deus e na Igreja Católica, prontos para comparecer perante o julgamento divino, confiantes em sua justiça e em sua misericórdia, representam bem, a meu ver, essa forma de firmeza que o Espírito Santo dá. Uma firmeza cheia de serenidade, que não é hirta, calvinista. Essa atitude de alma é uma das manifestações dessa ação do Espírito Santo.

Ânimo firme e paciência: graças a serem obtidas do Espírito Santo

Parece-me que se deveria tomar isso em consideração ao se tratar do problema da dor, a posição do católico diante do sofrimento, a admiração, a aceitação e a compreensão da dor como uma espécie de valor supereminente que ordena e esclarece toda a vida neste vale de lágrimas. Tudo isso só pode ser bem compreendido a partir desse ânimo sobrenatural que o Espírito Santo dá aos fiéis para toda espécie de luta e sacrifício, inclusive para a aquisição, conservação e progresso da virtude.

Assim como a palavra “consolação”, também a noção de paciência está deturpada em nossos dias, sendo considerada como uma coisa mole, boba, sem sentido. Mas o que é a paciência? Este termo vem do vocábulo “passio”, que significa sofrer. Logo, paciência é a capacidade de sofrer, uma de cujas manifestações está em suportar as injúrias, quando é o caso de suportá-las.

Mas essa não é uma atitude tola. A paciência é um elemento indispensável e integrante da coragem. É por ter capacidade de sofrer que o homem é corajoso. Mas que sentido teria, numa reportagem, dizer: “A artilharia avançou com admirável paciência sobre o adversário”? Ninguém entenderia. Entretanto, tem um sentido: com uma admirável disposição de sofrer, de dar e receber pauladas. É, portanto, um elemento integrante da coragem.

Vamos pedir a Nossa Senhora que nos obtenha do Espírito Santo as graças para termos essa consolação, esse ânimo firme diante da dor, do sofrimento, de maneira tal que caminhemos com resolução, sobretudo na vida de santificação e na luta contra o adversário.        v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/6/1966)

Revista Dr Plinio 255 (Junho de 2019)

 

1) Do francês: Grande retorno. No início da década de 1940, houve na França extraordinário incremento do espírito religioso, quando das peregrinações de quatro imagens de Nossa Senhora de Boulogne. Tal movimento espiritual foi denominado de “grand retour”, para indicar o imenso retorno daquele país a seu antigo e autêntico fervor, então esmaecido. Ao tomar conhecimento desses fatos, Dr. Plinio começou a empregar a expressão “grand retour” no sentido não só de “grande retorno”, mas de uma torrente avassaladora de graças que, através da Virgem Santíssima, Deus concederá ao mundo para a implantação do Reino de Maria.

2) Valentin Louis Georges Eugène Marcel Proust (*1871 – †1922). Escritor francês.

3) Frédéric François Chopin (*1810 – †1849). Compositor e pianista polonês-francês da era romântica.

A recusa ao chamado divino e a necessidade da reparação

Se Luís XIV tivesse sido fiel à Mensagem do Sagrado Coração de Jesus, a França inteira se converteria. Mas o rei não a levou a sério. Nosso Senhor esperava que as diversas classes sociais fossem deixando filtrar, de umas para as outras, a Mensagem, e todos os corações batessem em uníssono com a de um rei fiel ao Coração de Jesus. O supremo esforço desse apelo divino foi despertar um movimento de reparação: a Contra-Revolução

 

A atitude do Sagrado Coração de Jesus com Luís XIV foi de misericórdia, mas ao mesmo tempo de inteiro respeito – o Coração de Jesus podia chamar-Se “Coração infinitamente respeitoso de Jesus” – em relação à organização político-social vigente.

Era bem claro que Ele queria considerar o rei de maneira tal, que não fez nenhuma alusão direta à má vida, nem aos pecados pessoais do monarca, mas chamou de “filho dileto do meu Coração” um pecador que O tinha insultado publicamente de diversas maneiras. Basta mencionar a destruição do Calvário edificado por São Luís Maria Grignion de Montfort, mas há muitas outras coisas a mencionar para se compreender bem quanto Luís XIV errou, ao lado de algumas coisas magnificamente acertadas que ele fez como, por exemplo, a revogação do Edito de Nantes.

Consequências da infidelidade na correspondência ao chamado divino

Acaba sendo, portanto, que o Sagrado Coração de Jesus tratou Luís XIV com muito afeto, porque quis fazer dele a primeira concha de repercussão de seu apoio, pois o recado d’Ele a Santa Margarida Maria Alacoque, que se dirige ao mundo inteiro, deveria ser comunicado antes de tudo ao rei. E, pela repercussão que encontrasse nele, ter uma dilatação por todo o bem-amado Reino da França, filha primogênita da Igreja.

Na sua comunicação, fica bem claro que Nosso Senhor esperava que as diversas classes sociais fossem deixando filtrar, de umas para as outras, a Mensagem, e que, afinal de contas, esta se espraiasse pelo reino inteiro, com a aceitação da missão das classes mais altas de baterem os corações em uníssono com a de um rei fiel ao Coração de Jesus.

Isto me parece muito importante inclusive do ponto de vista contrarrevolucionário, pois se Luís XIV tivesse feito assim e a França inteira se convertido ao som da voz do monarca amado pelo Sagrado Coração, creio que a Revolução Francesa teria ficado impensável. Notem bem: não é dizer que ela se tornaria impossível, mas ficaria impensável. Porque com o prestígio que tinha a realeza naquele tempo, mas também o prestígio individual colossal que Luís XIV, o Rei Sol, possuía na Europa inteira, tudo isso junto faria com que o modo de se embeber essa devoção na nobreza e depois no povo seria de um efeito extraordinário.

Por conseguinte, se a torneira da Revolução não tivesse sido aberta sobre a França, não teria podido alcançar o mundo inteiro como alcançou. O prestígio da França concorreu enormemente para que a Revolução se tornasse universal. Então, fica um homem colocado na posição por onde depende dele tudo, dar-se ou voltar atrás. No que diz respeito à atitude reparadora de nossa espiritualidade, do Sagrado Coração de Jesus como devoção inspiradora de pensamentos e atitudes contrarrevolucionárias, isto vem muito a propósito.

Estado de espírito difundido pelo mal

Por que o Sagrado Coração de Jesus estava de tal maneira pisado? Ademais, em um período a respeito do qual São Luís Grignion chegou a afirmar que a impiedade estava inundando a Terra inteira. Como se explica que analisemos a situação do mundo no “Ancien Régime” quase com uma nostalgia daquilo que nós não conhecemos, e esta mesma situação até anteriormente ao fim do “Ancien Régime” – portanto, quando ela estava menos grave do que se tornou nas vésperas a Revolução Francesa – foi, entretanto, qualificada por São Luís Maria Grignion e tantos outros santos, e a “fortiori” pelo Sagrado Coração de Jesus, de uma situação gravíssima?

Houve a difusão de um estado de espírito pelo qual, quando alguém denuncia o avanço do demônio, uma ou outra voz, em surdina, diz palavras de adiamento, de dúvida, de “laissez faire, laissez passer”(1). Entrevê-se que Luís XIV e as pessoas de seu tempo que receberam a Mensagem do Sagrado Coração de Jesus participavam de um estado de espírito que lhes sugeria ideias mais ou menos assim: “Temos o Rei Sol e todo o princípio monárquico que brilha com o seu resplendor máximo; neste momento falar da possibilidade de uma Revolução que vai chegar à decapitação dos reis, a um virtual destronamento das dinastias, é um absurdo. Nosso Senhor disse isso à Sóror Margarida Maria, mas na superior sabedoria d’Ele, da qual eu sou partícipe – porque a vaidade não pode deixar de entrar nessas ocasiões –, percebo pelo meu “feeling” e pela sensação normal das coisas que isso vai demorar.”

Donde a ideia de que essa Mensagem não poderia ser tomada tão a sério, e deveria ser sensatamente relativizada. Assim, todos os apelos feitos por meio de São Luís Grignion e outras pessoas deveriam parecer radicalismos e fanatismos.

Mensagens totalmente viáveis de serem cridas

Isso constituiu um pecado enorme, pois esta Mensagem foi dada em condições de, logicamente, ser crida por todo o mundo. Deus não pediu a ninguém uma adesão irracional, mas sim um “rationabile obsequium”; havia todas as razões para acreditar na autenticidade desta Mensagem como, por exemplo, na de Fátima também.

Estive lendo, há algum tempo, um relato sobre coisas de Fátima e encontrei o seguinte: o médico de Jacinta era um dos melhores de Lisboa. E no dia do enterro da vidente havia uma reunião de um centro médico católico de muita importância na vida cultural de Lisboa. O Cardeal Arcebispo Patriarca de Lisboa presidia a reunião, quando chegou atrasado esse grande médico cuja ausência todos estavam notando. Ele pediu desculpas ao cardeal pelo atraso e disse que fora a Fátima acompanhar o sepultamento de Jacinta. Apesar da respeitabilidade desse médico, a sala estourou em gargalhadas por causa da credulidade dele. Inclusive o cardeal ria a bandeiras despregadas.

Quer dizer, a Mensagem de Fátima, dada por meio de três pastorzinhos, tinha todas as condições para ser crida. Pois bem, a atitude do público lisboeta diante do enterro de Jacinta é quase uma negação galhofeira.

Vê-se que essa posição foi tomada por certas correntes em face da devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Provavelmente houve risadas assim em círculos precursores do “voltaireanismo”, do iluminismo, etc.

Um espírito tépido, ideal para abafar qualquer fervor

Outras correntes foram mais moderadas. Quiçá tenha havido uma corrente comodista que não se ocupou muito com a coisa, pensando: “Essa mensagem talvez seja verdadeira. Mas que importância tem isso em comparação com saber se Madame de Montespan e os filhos dela vão ser reconhecidos por Luís XIV ou não; ou se o rei vai fazer suas caçadas em Fontainebleau este ano? Isto sim é o importante: a vida da corte e dos círculos sociais que se seguem em hierarquia. O resto, se o Sagrado Coração de Jesus disse… Talvez tenha dito mesmo, mas não vale a pena estudar isso. Basta que eu tenha alguma devoção tradicional, boa, segura e que, sobretudo, não seja principalmente católico, mas sim um cortesão ou uma cortesã, está acabado”.

Uma grossa parte de gente, que constituía o peso geral da opinião pública, tomava diante do fato essa atitude. Depois, algumas almas piedosas que tiveram conhecimento da Mensagem seguiram a coisa com atenção, e prolongaram uns filõezinhos que vararam de alto a baixo toda essa imensa crosta de classes sociais até chegar ao povinho. Então, há salpicos de devoção ao Sagrado Coração de Jesus em várias correntes da opinião pública.

Essa marcha geral conjunta da opinião francesa diante desse fato mostra o espírito da Revolução Iluminista – ele próprio filho da Revolução anterior, portanto, da Renascença, do Humanismo, do Protestantismo –, que foi com o tempo radicalizando-se. A bem dizer, o iluminismo já estava nascendo e ensopando de indiferença, de dúvida, essa devoção, não querendo aceitá-la porque ela pediria fervor, e essa grande massa não queria fervor, porque o fervor contrarrevolucionário é uma atitude diametralmente oposta à Revolução. Aliás, o próprio fervor revolucionário essa crosta grossa aprecia, mas não muito. É preciso viver tepidamente.

“Oxalá fosses frio ou quente. Mas porque és morno, nem frio nem quente, estou para vomitar-te de minha boca”, diz Nosso Senhor (Ap 3, 15-16). O pessoal vomitado pelos lábios divinos de Nosso Senhor é essa enorme crosta. Portanto, o grande esforço não era estar em dissonância com o rei, com esse ou com aquele, mas dissonar dessa enorme massa.

A alma da Contra-Revolução é o espírito reparador

Vemos, assim, a importância de uma concepção da História para compreender bem a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, e para adotar diante dela a atitude devida em face dos tempos atuais. Não é capaz de tomar bem uma posição de compreensão da devoção ao Sagrado Coração de Jesus quem não leve em consideração a noção de que essa foi uma imensa providência tomada por Deus para sacudir a Revolução e acabar com a tepidez. Terminada esta, o resto desapareceria.

Essa tepidez era produto de uma evolução histórica. Se um homem do tempo do Rei Sol não quisesse compreender tudo quanto ele perdeu na trajetória da Idade Média para Luís XIV, e que foi uma Revolução que lhe roubou tudo isso, não tinha solução.

A Mensagem do Sagrado Coração dá a entender que diante da situação de derrocada, a qual, em profundidade, acentuava-se já naquele tempo, o específico era a promoção dessa devoção enquanto reparadora. Esses fatos despertam a cólera divina. Mas Deus não quer punir o mundo. Então Ele indica o caminho especial para evitar que essa punição se dê. Não é um caminho entre outros, é o caminho específico.

Logo, o supremo esforço do seu amor é despertar um movimento de reparação que seja a Contra-Revolução, porque se tudo isso é a Revolução; por excelência e mais do que tudo, a Contra-Revolução é o que Ele está indicando. A própria alma da Contra-Revolução é o espírito reparador.

O que isso significa? Deus está ofendido pela Cristandade em geral. Ele considera a Cristandade como um bloco pecador. Tão gravemente pecador que o último esforço do amor d’Ele é aquele, como quem diz: “Prestai atenção, mas se esse esforço que Eu estou deitando não for seguido como deve, virá algo que é a liquidação da ordem em que estais”. Indica também, com a visão histórica retrospectiva inerente a essa devoção, que já foram feitos nessa direção muitos esforços não correspondidos pelos homens. E que então Deus apresenta um esforço que é ao mesmo tempo último e supremo, tão expressivo de amor, tão capaz de tocar as almas, que não se pode cogitar mais do que isso.

Assim, Ele convida a que, ao menos algumas almas de valor, se entreguem completamente a esse esforço reparador e sofram tanto que aplaquem a Deus, deixando-se crucificar como Nosso Senhor Se deixou.

Dona Lucília, sobre quem o Sagrado Coração de Jesus deitou diversas cruzes

Deste modo, as palavras do Sagrado Coração de Jesus se transformam numa mensagem para almas de elite que, sendo em número suficiente e, sobretudo, com um amor intenso, suportam todo o peso desses pecados. Se o resgate pago não estiver na proporção dos pecados cometidos, a avalanche se desencadeia.

Tenho a impressão de que se passou com esse lance de Nosso Senhor o mesmo que se deu com lances anteriores, ou seja, o número de almas que corresponderam foi real, com muito mérito e de um modo muito precioso, mas não foi suficiente. Muitos procuraram corresponder, mas de um modo mole. Várias organizações buscavam atender ao apelo do Sagrado Coração de Jesus, mas com falta de profundidade, de conceitos, etc.

Por esta forma conseguiam que, já dentro do mar solto, alguns barquinhos continuassem a navegar, mas vítimas das ondas que os arrastariam para onde quisessem. Embora continuassem a ter sucessores nessa reparação, provavelmente em número e amor cada vez menores, até chegar a um ponto no qual o número fosse tão pequeno que a avalanche ficaria solta.

Ora, dentro do horror desse mar tempestuoso, minha Obra seria um barquinho, preciosa resultante desses atos de reparação. Não se pode negar que no nascimento e na formação de minha Obra o Sagrado Coração de Jesus teve um papel muito grande, antes de tudo porque houve uma senhora sobre quem Nosso Senhor deitou cruzes desde meninota, e que sofreu desde pequena com uma resignação extraordinária e com os olhos voltados para o Sagrado Coração de Jesus. Esta senhora teve um filho que, por sua vez, fundou esta Obra.

Tendo nascido de Dona Lucília, posso dizer que nasci desse movimento descrito acima. Não propriamente nesse movimento, pois essa devoção já estava tão rarefeita na massa geral dos fiéis, que grande parte do que estou dizendo foi recomposto por mim pelo fato de eu ser contrarrevolucionário, e ter uma visão da História a qual me levou à conclusão de que a reparação é o único jeito.

Abominação num lugar sagrado

Quando tomei conhecimento das revelações de Paray-le-Monial eu teria uns dezessete anos mais ou menos. Para mim aquilo foi claríssimo. Portanto, tudo quanto estou dizendo agora é fruto de muita reflexão, ao longo de anos. Eu não disse antes porque a devoção ao Sagrado Coração de Jesus estava tão aguada, que se eu quisesse levá-la a todos esses extremos, receberia a objeção da imensa crosta dos tépidos que diriam: “Essas são considerações que se fossem verdadeiras estariam nos lábios de todos os bons padres que conhecemos…”

Como eles tratam essa devoção? Não é à maneira de lábaro, pois este supõe um exército em ordem de batalha. Quando chegou o momento de movimentos piedosos serem quase liquidados sob o pretexto de constituírem piedade privada e não litúrgica, essa devoção já não apresentava mais este caráter bélico. Antes de o demônio fazer o que se permite agora, essa devoção foi enxugada da face da Terra.

Deparei-me com um dos indícios mais marcantes desse destroçamento quando estive na França, na década de 1950, e fui visitar Paray-le-Monial. Saindo da igreja, minha vista bateu normalmente em uma livrariazinha católica que ficava em frente. Pensei em comprar para minha mãe uma lembrança que mostrasse com quanto afeto lembrei-me dela nesse lugar tão ligado a ela. Então, dirigi-me a uma vitrine onde vi cartõezinhos preparados com o bom gosto francês em todos os sentidos, de boa qualidade. Aproximei-me para ver o que havia nos cartõezinhos, certo de trazerem fragmentos da Mensagem do Sagrado Coração de Jesus. Pensei: “Eu posso comprar para mamãe essa coleção de cartõezinhos; ela vai gostar.”

Quando eu me inclino para ler, vejo se tratarem de trechos de Voltaire, Rousseau, d’Alembert, sem dizer uma palavra sobre o Sagrado Coração. Expostos numa livraria oficialmente católica, em frente à porta por onde saíam os que tinham ido venerar o lugar onde Nosso Senhor aparecera a Santa Margarida Maria Alacoque! Era a abominação no lugar sagrado, evidentemente.

Diante do sofrimento devemos ter o espírito reparador

Tomando tudo isso em consideração, vemos que se tivéssemos compreendido a necessidade da reparação e oferecido nossos sofrimentos com essa intenção reparadora o tempo inteiro, é fora de dúvida que teríamos obtido melhores resultados na luta contra a Revolução.

Pelo favor de Nosso Senhor Jesus Cristo e pela mediação onipotente de Nossa Senhora, conseguimos constituir a Contra-Revolução. Mas não somos ainda a Contra-Revolução marcada a fogo pela sua característica essencial: a reparação. Isto é o que falta!

Porque entre nós há os que fazem parte da legião dos acomodados, dos tépidos. E essa tepidez nos afasta do desejo da reparação, da cruz e de qualquer forma de sofrimento.

Ora, é preciso termos esse espírito reparador diante do sofrimento. Como se pode pretender vencer uma luta contra um tal inimigo sem aplacar primeiro a Deus? Como se Deus fosse um parceiro de segunda classe, cujo apoio na luta nós desejamos, é bom, vale a pena ter, nada mais. Mas o importante e decisivo fossem as regras de atuação na opinião pública. O que é isso em comparação com o que as circunstâncias exigem?

Antes de tudo, desarmemos a cólera de Deus por meio das orações de Nossa Senhora, tomando-A como a grande reparadora, associando à devoção ao Sagrado Coração de Jesus a devoção ao Imaculado e Sapiencial Coração de Maria.

Que essas palavras nos deem, pelo menos, um acento de especial desejo de que, por meio do Imaculado Coração de Maria, obtenhamos o perdão pela nossa afronta ao Sagrado Coração de Jesus.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/1/1995)

Revista Dr Plinio 255 (Junho de 2019)

 

1) Do francês: deixai fazer, deixai passar.

 

Adoração da personalidade de Nosso Senhor

Quando prestamos culto ao Coração de Jesus, adoramos a personalidade divina e insondavelmente perfeita de Nosso Senhor Jesus Cristo, a qual abarca todas as personalidades e todas as qualidades dos Anjos e homens, desde o começo da Criação até o fim dos tempos.

 

A solenidade do Sagrado Coração de Jesus é tão grande que não podemos deixar de fazer um comentário. Devemos considerar a relação dessa solenidade com as de Cristo Rei, do Imaculado Coração de Maria e da Realeza de Nossa Senhora.

Mentalidade de Nosso Senhor

A do Sagrado Coração de Jesus tem por objeto imediato cultuar o Coração físico de Nosso Senhor Jesus Cristo. Porém, cultuá-Lo em Si e enquanto símbolo da Alma Santíssima do Salvador, e que vem a ser aquilo que se poderia chamar a mentalidade ou, se quiserem, a psicologia de Nosso Senhor, com aquela composição de feitio de inteligência e de vontade que as noções de mentalidade e de psicologia retêm em si.

Quer dizer, é uma solenidade na qual nós celebramos, por assim dizer, a personalidade divina e insondavelmente perfeita, única de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas, ao mesmo tempo, abarcando todas as personalidades, quer dizer, contendo em grau supereminente, enquanto Homem e Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, todas as qualidades de todos os Anjos e de todos os homens, desde o começo da Criação até o fim dos tempos. Isso é propriamente o que nós adoramos, quando prestamos culto ao Coração de carne de Jesus, Nosso Senhor.

Por uma simbologia de outra natureza, as pessoas acabaram se habituando a considerar no coração apenas o símbolo do amor, mas tomando a palavra “amor” com uma corrupção do século XIX, na acepção sentimental da palavra, significando apenas ternura, enquanto sentimento de alma.

É claro que Nosso Senhor Jesus Cristo tinha uma ternura supereminente enquanto Homem, e infinita enquanto Deus. Mas não é só a sua ternura – e poder-se-ia dizer que não é principalmente a sua ternura – que nós adoramos na solenidade do Sagrado Coração de Jesus, embora essa ternura seja digna de toda adoração possível. A personalidade de Nosso Senhor Jesus Cristo não se esgota em ternura; tem muitos outros adornos, predicados além da ternura.

Não é principalmente a ternura. Embora esta – com equilíbrio, com critério, conforme era em Nosso Senhor Jesus Cristo – seja uma grande perfeição de alma, entretanto ela não é a maior das perfeições que uma alma possui. Em Deus todas as perfeições são infinitas, mas na hierarquia de valores num homem a ternura não é, evidentemente, o principal valor.

Desejo de reconquistar por misericórdia uma humanidade revoltada

Entretanto, não deixa de ser verdade que a devoção ao Sagrado Coração de Jesus contém uma nota legitimamente acentuada no que diz respeito à misericórdia d’Ele, isto é, a bondade, a capacidade de perdoar, de passar por cima dos pecados, de amar, de dar sempre novas graças. E pode-se dizer que há qualquer coisa de legítimo no fato de que a piedade no século XIX, romântica por alguns lados, focalizou principalmente a ternura do Sagrado Coração de Jesus. O mal foi que, às vezes, tenha focalizado só a ternura.

Em fins do século XVIII e ao longo do XIX, vemos começar a se dar a grande expansão da devoção ao Sagrado Coração de Jesus, a qual foi quase clandestina antes da Revolução Francesa. São João Eudes a pregou, Santa Margarida Maria Alacoque também, mas era uma devoção de tal maneira considerada audaciosa, e quadrando pouco com o ambiente da época, que um filho de Luís XV, tendo querido erigir um altar na capela de Versailles, não teve coragem de erigir lá, e mandou colocar uma imagem do Sagrado Coração de Jesus do lado de trás do altar, onde, aliás, ela ainda existe. Vejam o misto de ortodoxia e clandestinidade que havia nesta devoção.

Portanto, o grande desenvolvimento desta devoção ocorreu no século XIX. E nós podemos dizer que, apesar de todo o caminho tortuoso, foi também no século XIX que começou a reconquista do mundo da parte de Nosso Senhor. E nesse século houve enorme progresso da Igreja Católica, grande surto de dogmas marianos, a expansão da devoção ao Papa, a definição do dogma da infalibilidade papal, a devoção ao Santíssimo Sacramento, o movimento ultramontano, “pari passu” com o desenvolvimento da devoção ao Sagrado Coração de Jesus.

Qual é a relação entre tudo isso?

O Sagrado Coração de Jesus, sendo visto de um ângulo de misericórdia, de bondade e de perdão, não castiga os homens na medida em que merecem, mas procura lhes fazer um bem ao qual eles não têm direito. Vem daí, então, o desejo de reconquistar por misericórdia uma humanidade revoltada e de prodigalizar graças, uma em cima da outra, para, apesar de serem mal acolhidas, operar essa reconquista dos homens.

Depois dos castigos preditos em Fátima, virá o Reino de Maria

Após o reinado de São Pio X, o curso da História da Igreja muda. Nós temos ainda uma expansão grande de piedade com o florescimento da devoção a Santa Teresinha do Menino Jesus, que se deu no reinado de Pio XI, quando as primeiras neves do progressismo e do modernismo começavam a cair sobre o mundo, depois da grande repreensão de São Pio X.

Mas essa foi uma flor que desabrochou na boca do inverno. De lá para cá, nós não notamos na Igreja nenhum grande movimento de piedade, nenhum desses surtos enormes que levam milhões e milhões de almas a se entusiasmarem, a se afervorarem, como foi no movimento ultramontano do século XIX.

Vimos no Brasil, de um modo efêmero, o esplendor das Congregações Marianas, que se deu ainda no tempo de Pio XI, em que nosso país, por atraso, vivia ainda o pontificado de São Pio X. Tivemos, mais ou menos, uma década de desenvolvimento do movimento mariano, de 1928 a 1938. Depois disso, sucumbiu também.

Embora a devoção ao Sagrado Coração tivesse perdido muito, a devoção ao Imaculado Coração de Maria ter-se difundido bem menos, essas carências de expansão na Igreja não são sempre frutos de infidelidades; são muitas vezes tesouros que a Igreja como que guarda para dias piores.

Então se compreende que, rejeitado o Sagrado Coração de Jesus, venha o Reino do Imaculado Coração de Maria. É a Mãe do Perdão que veio onde Ele foi recusado, para perdoar ainda mais, ir aonde só a mãe pode chegar e o pai não vai.

Não estou afirmando que Nossa Senhora é mais misericordiosa do que seu Divino Filho; quero dizer que Ela é a fina ponta da misericórdia d’Ele. Nosso Senhor manda sua Mãe aonde Ele, como que, não poderia ir. Ele encontra este “artifício” de mandar a sua Santíssima Mãe até lá.

Então, Maria Santíssima recomeça a reconquista do mundo. Fátima, um movimento muito mais difuso do que o do Sagrado Coração de Jesus, é alguma coisa na qual se preconizou o Imaculado Coração de Maria. E nós vemos uma espécie de luta da Providência desafiando os homens, dizendo: “Vocês são tão ruins, mas serei de uma tal bondade que vou vencer toda a ruindade de vocês. Eu acabarei triunfando”.

Isso indica uma vontade deliberada de reinar, de acabar vencendo que, aliás, é muito expressa na mensagem de Fátima: “Por fim o Meu Imaculado Coração triunfará”.

Então, nossa atenção se concentra nessa imagem final: o Sagrado Coração de Jesus, fonte infinita de graças que escoa através do Imaculado Coração de Maria, canal de todas as graças, e inunda a humanidade para reconquistá-la. Uma reconquista na qual é preciso estar perdoando sempre, concedendo sempre mais graças, mas em que, num determinado momento, cairão também os castigos preditos em Fátima, após os quais virá o Reino de Maria.  

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/6/1970)

 

Grande lição de combatividade

Tendo fraquejado a coragem de proclamar os dogmas, houve uma diminuição da Fé em incontáveis pessoas que se dizem católicas. A Solenidade de “Corpus Christi” nos ensina a ser cada vez mais combativos por amor a Nossa Senhora e por adoração à Sagrada Eucaristia.

 

Deverei falar alguma coisa a respeito de “Corpus Christi”. Os aspectos da instituição do Santíssimo Sacramento e da presença da Eucaristia na Igreja já têm de tal maneira sido estudados por nós, que se fica um pouco embaraçado em dizer algo de novo. Mas uma vez que não estamos propriamente na festa da instituição do Santíssimo Sacramento, que é na Quinta-feira Santa, mas na solenidade de “Corpus Christi”, eu gostaria de dizer algo sobre a razão pela qual ela foi instituída.

Um dos maiores escândalos na Igreja, no século XVI

Todos sabem que os protestantes, hereges, negaram e negam a presença real de Nosso Senhor Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento. E esse foi um dos maiores escândalos sentidos ou realizados na Igreja, no século XVI, no qual houve tantos escândalos.

Os medievais tinham uma profunda Fé no Santíssimo Sacramento, na presença real e, portanto, uma devoção enorme à Santa Missa, à adoração do Santíssimo Sacramento. E a negação brutal da presença real, feita pelos protestantes, foi um dos pontos de fratura entre eles e os católicos, tendo sido recebida por estes como um dos piores ultrajes que jamais se tenham cometido contra Nosso Senhor.

Qual foi então a política – porque se pode aqui falar em política, no sentido elevado do termo –, quer dizer, a tática pastoral usada pela Igreja em face desse fato?

A Igreja tinha dois caminhos. Um seria o de dizer: “Nossos irmãos separados protestantes estão negando a presença real. Se formos afirmar de modo protuberante essa presença, nós sustentamos a separação. Como eles não querem saber de nenhum modo desse dogma, na medida em que nós o afirmamos, eles se afastam. Vale a pena, então, repensarmos o dogma da presença real. E tomando em consideração que os tempos mudaram – porque o ano de 1500 estava afinal de contas bem longe do ano I da era Cristã –, era muito natural que nós agora exprimíssemos a presença real num vocabulário diferente, que agradasse aos protestantes”.

“Não seria uma negação da presença real, pois é um dogma definido por Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas em vez de afirmar de forma tão acentuada que Ele está realmente presente, debaixo das aparências eucarísticas, com seu Corpo, Sangue, Alma e Divindade, nós poderíamos dizer que há a presença de Cristo no pão aqui consagrado. O que essa presença significa? Deus está presente por toda parte, e os bons amigos protestantes podem entender que Ele se encontra ali como está, por exemplo, numa flor ou num pão qualquer. Nós compreendemos que não é isso, mas sim que Ele está realmente presente com Corpo, Sangue, Alma e Divindade. Porém, não vamos declarar isso para não criar uma cisão. Vamos usar um termo confuso, equívoco e assim eles ficam unidos conosco. Depois, vamos começar o diálogo, no qual dizemos para eles: ‘Que tal seria se nós reestudássemos os fundamentos do dogma da presença real, para verificarmos em conjunto até que ponto ele tem ou não seu fundamento da Sagrada Escritura?’”

O protestante diria: “A sua dúvida é irmã da minha. E tenho vontade de re-pesquisar o assunto, como você tem também”. Eu não lhe iria afirmar que duvido, porque destruiria a Fé. Então eu lhe falaria: “Se você tem dúvidas, era bom estudar”. Ele fica com uma certa  impressão de que eu tenho dúvidas, mas eu não disse que tenho dúvidas.

Se satanás fizesse uso da palavra…

Então, começa uma conversa a respeito do Santíssimo Sacramento em que digo: “Seria mais interessante, em vez de eu tomar uma posição endurecida e você também, nós estudarmos qual é o modo pelo qual poderíamos chegar a um acordo. De maneira tal que, da tese ‘Jesus Cristo não está presente realmente na Eucaristia’, nós conseguíssemos deduzir uma terceira posição que não seria inteiramente uma coisa nem outra. Você cede um pouco e eu também. E nós afirmaremos juntos que Jesus Cristo está presente de fato na Eucaristia. Porém, se ele está presente apenas enquanto Deus, ou enquanto Homem-Deus, é um pormenor a respeito do qual cada um de nós reserva sua liberdade de posição. Então, teremos chegado finalmente a uma síntese”.

Por essa forma poder-se-ia evitar uma ruptura entre protestantes e católicos, e o mundo cristão seria hoje unanimemente católico. Essa unidade teria dado à Religião Católica um vigor, uma magnitude muito diferente da tristeza dessa bipartição que está aí.

“Vocês católicos – argumentaria um protestante – quando veem, do alto e de dentro de sua unidade, as seitas protestantes pulverizadas, riem dessa pulverização, imaginam bem de que desgraça, de que infortúnio estão escarnecendo? Vocês têm uma ideia de quanto isso representou para o rebaixamento moral desse mundo protestante assim dividido? Quanto significou de lutas, de divisões, de dores, de sofrimentos? A primeira cisão partiu de vocês, quando rejeitaram a nossa novidade. Depois, as outras cisões vieram em cadeia, por causa exatamente da rejeição que vocês praticaram. Vocês são os autores dos males dos quais se queixam.”

Se satanás tivesse que fazer uso da palavra, diria – com mais inteligência e mais charme – mais ou menos a mesma coisa.

O ensino deve ter clareza

Ora, os Santos, os teólogos, os papas daquele tempo seguiram uma política inteiramente diversa. Eles pensaram o seguinte: a Igreja Católica foi instituída por Jesus Cristo para ensinar a verdade. E ela não tem o direito de dar um ensinamento confuso porque não é um ensinamento digno desse nome. É indigno o ensinamento confuso, mesmo de um professor que, involuntariamente, por incompetência, deixe a confusão reinar sobre o conteúdo do que ele está ensinando. Porque a clareza é a primeira das qualidades do professor, ou seja, o ensino exige como pressuposto a clareza. Um homem pode ser sábio e não ser claro. Mas não pode ser professor e não ser claro. Seria mais ou menos como um fabricante de binóculos que os faz com um cristal excelente, com uma montagem muito boa, mas os cristais que ele usa são um pouco embaçados: é uma porcaria. Porque o binóculo foi feito para se ver à distância com clareza. Se não dá para ver com clareza, é uma porcaria, o resto não interessa.

Portanto, a primeira exigência do ensino é de ser claro. Se aquele que ensina não o faz com clareza intencionalmente, ele é pior do que um incompetente: é um desonesto. Porque é uma desonestidade, uma fraude, apresentar-se alguém a um outro com a segunda intenção de não lhe transmitir a verdade inteira, quando este supõe que a verdade inteira lhe será dada.

Em termos mais definidos: há uma questão a respeito de saber se os portugueses já conheciam ou não o caminho do Brasil, quando aqui chegou Pedro Álvares Cabral, e se o descobrimento do Brasil foi, portanto, realmente um descobrimento ou uma expedição mandada pelo Rei de Portugal para oficialmente descobrir o Brasil. Os portugueses julgaram que era o momento de revelar ao mundo a posse desta terra que eles já conheciam, mas não queriam que fosse habitada ainda, porque não sentiam ainda a nação portuguesa bastante pujante para iniciar o povoamento deste mundo que estava diante deles.

Há uma discussão sobre esse assunto na História do Brasil. Um professor tem o direito de sustentar uma dessas duas teses, que se apoiam em argumentos prováveis; tem o direito de dizer que não aceita nenhuma delas como demonstradas ainda, porque não as acha suficientemente elucidadas. O que ele não tem é o direito de, numa aula de História tratando da questão, tirar o corpo da solução e não dar a posição dele. Se, por uma razão política qualquer, ele evita tomar posição, não é honesto porque tem a obrigação de dizer a verdade a respeito das coisas.

Pode-se até compreender – não chego a dizer que se possa escusar – que um ou outro faça silêncio a respeito de um determinado ponto de História. Contudo, segundo pensaram aqueles grandes teólogos e doutores, se a Igreja fizesse o silêncio a respeito da Eucaristia, ela estaria fraudando os fiéis que receberiam dela um ensinamento confuso sobre uma verdade indispensável à salvação. E ela, assim, faltaria com a sua missão.

Necessidade de levar os princípios até suas últimas consequências

Ademais, se a Igreja silenciasse a respeito da Eucaristia faria com que os fiéis comungassem mal, porque eles, não tendo o ensinamento claro sobre o que estão recebendo, não podiam recebê-lo bem. Como fazer um ato de adoração ao Santíssimo Sacramento se não se tem certeza que ali está Nosso Senhor Jesus Cristo? Não é possível. Quer dizer, para manter uma unidade pútrida, a Igreja sacrificaria a vida espiritual de seus fiéis.

Por fim, viria um princípio que, embora não seja o mais forte, é o menos realçado, e por isso desejo salientá-lo: A força de toda instituição consiste em levar às últimas consequências seus próprios princípios. A partir do momento no qual ela julga que, para sobreviver, deve adoçar os seus princípios, reconhece que já morreu.

Tomem, por exemplo, o estado militar. As forças armadas constituem uma instituição do país. O próprio delas, na sua pujança, é deduzir da condição militar o estilo de vida militar levado tão longe quanto possível. A partir do momento em que, por exemplo, um ministro da guerra dissesse que o Brasil é um país ao qual repugna tanto o estado militar que, ou o militar toma ares de civil, ou não haverá mais militares, as forças armadas morreram no Brasil. Porque se a coerência do estado militar é inaceitável pelo país, afugenta as vocações; então é preciso reconhecer que o estado militar morreu.

Vocações clericais: um padre deve ser, pensar, vestir-se e viver como padre. Se alguém diz que em determinado país é preciso trajar os padres de macacão para atrair vocações, então esse país não quer ter mais padres, ficou pagão. 

Aplico o mesmo princípio à instituição da família. Alguém dirá: “Dr. Plinio, se não for aprovado o divórcio, muita gente começa a não se casar mais e a viver no amor livre.” A resposta é: “Então diga que morreu a instituição da família. Não vale a pena fazer uma familiazinha moribunda, caricatura abastardada daquilo que deve ser”.

Vamos, então, tomar a questão de frente e dizer logo: tal país morreu. Porque uma nação onde não há compreensão para o estado militar, para o estado eclesiástico e nem apreço pela família é uma nação morta.

Política de enfrentar, lutar, afirmar, proclamar 

Os padres do Concílio de Trento entenderam ser preciso fazer o contrário. E em oposição ao protestantismo, acentuar o culto ao Santíssimo Sacramento. Então, o Concílio fortaleceu o decreto da instituição da festa de “Corpus Christi”, prescrevendo ao clero a realização de uma procissão na qual o Santíssimo Sacramento saísse à rua, para se ver que as multidões O adoram de joelhos postos em terra, reconhecendo que debaixo das aparências eucarísticas está Nosso Senhor Jesus Cristo. Desde então, impulsionou-se o culto ao Santíssimo Sacramento de todos os modos, chegando a essa plenitude que era a adoração perpétua do Santíssimo Sacramento, instituída por São Pedro Julião Eymard.

Era a política de enfrentar, não conceder, lutar, afirmar, proclamar. A política da honestidade, da lealdade, da integridade, da coerência, de onde veio para a Igreja uma torrente de graças, exatamente as graças da Contra-Reforma, que representaram uma das maiores chuvas de bênçãos que a Igreja tem recebido.

Acentuar o culto ao Santíssimo Sacramento, a Nossa Senhora e a devoção ao Papa foi a resposta da Igreja ao protestantismo. Uma longa resposta de trezentos anos. No século XIX ainda, a proclamação da infalibilidade papal, do dogma da Imaculada Conceição; no século XX, o dogma da Assunção. Enfim, tivemos uma série de afirmações e instituições desdobrando e afirmando aquilo que o protestantismo negava. De maneira que quanto mais eles persistam no seu erro, tanto mais nós íamos proclamando alto a nossa verdade. Quanto mais eles se esfarelavam, tanto mais a nossa unidade se afirmava. Quanto mais eles morriam, tanto mais a nossa vitalidade se multiplicava.

Até que outros ventos sopraram… Vejamos a verdade de frente: há incontáveis católicos que não têm mais a coerência de sua Fé. Não possuem mais a pugnacidade, aquela integridade que caracteriza uma instituição quando está viva. A Igreja nunca diminui de vitalidade porque é imortal, sobrenatural, divina, mas a correspondência de seus filhos a ela pode diminuir e, portanto, a densidade de Fé minguar também no espírito de muitos deles.

Como, em nossos dias, a coragem de proclamar os dogmas diminuiu, há, portanto, uma diminuição da Fé em incontáveis daqueles que se dizem católicos!

A solenidade de “Corpus Christi” é a festa do Santíssimo Sacramento, mas também uma grande lição de combatividade. Aprendamos essa lição e procuremos ser cada vez mais combativos por amor a Nossa Senhora e por adoração à Eucaristia.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/5/1970)

Santo Eliseu, os meninos e os ursos

Um episódio da vida de Santo Eliseu nos traz importantes ensinamentos a respeito do perfil moral de um verdadeiro católico.

 

Em 14 de junho se comemora a festa de Santo Eliseu, profeta e pai da Ordem do Carmo, sucessor de Santo Elias.

Luta contra a “heresia branca”

Não posso ouvir falar desse Santo sem me lembrar do livrinho onde aprendi História Sagrada, no qual havia uma ilustração a respeito do episódio e da atitude de Santo Eliseu em face de uns tantos meninos. O Santo Profeta já havia recebido o manto de Elias e, certa vez, estava andando e uns meninos começaram a caçoar dele porque era calvo. Tendo o Santo pronunciado uma maldição contra os meninos, vieram uns ursos e os devoraram (cf. 2Rs 2, 23-24). Lembro-me de que, à primeira leitura, fiquei chocado com a ferocidade de Santo Eliseu. Porém, essa impressão passou e esqueci a questão.

Mais tarde, entrei para o colégio e conheci meus colegas. Quando comecei a ver aquela meninada, refleti que Santo Eliseu tinha razão de fazer o que fez… Mas depois pensava: “Seriam aqueles meninos tão canalhas quanto estes? Enfim, pelo menos pode-se conceber que eram. Para estes aqui, ursos!”

Contudo, depois eu cogitava que se alguém mandasse vir os ursos para comerem os meninos, encontraria a oposição daquilo que, mais tarde, chamaria de “heresia branca”(1). Então o Profeta Eliseu começou a ser um advogado no meu debate interno. Em minha primeira grande briga da vida, que foi contra a “heresia branca”, Santo Eliseu era meu defensor. Pelo menos ele amava as coisas direitas como eu amo. E é assim mesmo: atacou uma coisa boa, urso em cima! Se não for isso, não compreendo a Religião Católica. Ora, eu a entendo, graças a Deus. Logo, na concepção da “heresia branca” há qualquer coisa de errado.

De acordo com a “heresia branca”, o “Santo” deve ser uma pessoa sem segundas intenções, sem astúcia. As recomendações de Nosso Senhor de que se deve unir a simplicidade da pomba à astúcia da serpente, para a “heresia branca” não valem nada. Ela pensa apenas na pomba, realizando com isso aquilo de que fala o Profeta Oseias: “…como pomba imbecil e sem inteligência” (cf. Os 7, 11). Ora, os adeptos da “heresia branca” são precisamente pombas imbecis e sem inteligência.

É, portanto, muito formativo sabermos que um grande Santo, como São Vicente de Paula – merecidamente tido como o Santo da caridade –, fundou uma sociedade que atuava na corte de Luís XIV, e que reunia várias figuras importantes do clero e da nobreza, as quais, sem o conhecimento do restante da corte, combinavam atividades para desenvolver na própria corte e na sociedade francesa a influência da verdadeira Religião.

Vigilância em relação aos efeitos do pecado original

Essa minha reminiscência infantil a respeito do Profeta Eliseu nos recorda também o ensinamento, o qual sempre convém lembrar, de que criança também pode ser ruim. Há um mito da criança boazinha, inocente por definição, e uma condescendência humanitária estúpida com relação às crianças.

É preciso abrir os olhos e ver bem: o pecado original vem a partir de pequeno e infecta a criança desde muito cedo, e ela é capaz de ações muito censuráveis. No caso da calvície de Santo Eliseu, é evidente que aqueles meninos tomaram esse pretexto para caçoar de outra coisa, a fim de agredir e debicar dele enquanto homem de Deus. Por causa disso é que foram punidos dessa maneira.

A punição dos inimigos da Igreja é inevitável

Daí tiro uma dedução inesperada, mas verdadeira: se era legítimo que os ursos viessem comer as crianças porque estavam caçoando de um homem de Deus, pergunto se não é legítimo que venham os castigos previstos por Nossa Senhora em Fátima e em muitas outras revelações privadas. Tais castigos não são, exatamente, a vinda dos ursos? Os ursos não estão vindo das estepes para acabar justamente com aqueles que tomam em relação à Religião uma posição errada, transformando-se em inimigos internos ou externos da Igreja?

Então, à força de pensar, chega-se à conclusão de que a punição é inteiramente inevitável. Vem do fundo do Antigo Testamento um episódio a mais para nos convencer disso.

Importância da fidelidade a um espírito transmitido

Há em Santo Eliseu também outro aspecto muito alto que é sua sucessão com relação ao Santo Profeta Elias. Todos se lembram de que Elias, no momento de abandonar a Terra, passou a Eliseu um manto e, com este, também seu espírito. Assumido então pelo espírito de Elias, Eliseu ficou em condições de dirigir a nascente Ordem do Carmo.

Essa transmissão do espírito mostra bem qual é a importância da graça que se chama um “espírito”. Ao falarmos em espírito jesuítico, espírito carmelitano, espírito beneditino, tomadas essas palavras em seu bom e verdadeiro sentido, elas não indicam apenas noções doutrinárias, mas são graças que se comunicam depois, de pessoa a pessoa, para formar as grandes famílias de almas existentes na Igreja Católica. Portanto, graças susceptíveis de uma transmissão de uma pessoa para outra, e é essa transmissão que constitui propriamente a família de almas.

Então, devemos pedir a Nossa Senhora que nos ponha debaixo do mesmo manto e faça com que, sob esse manto, todos nós recebamos o mesmo espírito, e o nosso Movimento seja sempre uno, com a fidelidade ao espírito que tem. A respeito dessa fidelidade e dessa unidade é preciso que não tenhamos a menor dúvida. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/6/1964)

 

1) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.

 

O Pão dos fortes

A Sagrada Eucaristia é chamada Pão dos fortes. Na procissão de “Corpus Christi”, devemos querer glorificá-Lo e pedir que esse Pão comunique a sua força a todos, para obstarem a ação do demônio. Como seria bonito que, de trecho em trecho, a procissão parasse em um altar onde fosse dada uma bênção exorcística com o Santíssimo Sacramento!

 

A Solenidade de “Corpus Christi” é uma festa litúrgica instituída pela Igreja para comemorar, homenagear a presença real de Nosso Senhor Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento. Daí o nome “Corpus Christi”.

Reparação pelas blasfêmias proferidas por protestantes

Essa festa foi instituída pelo Papa Urbano IV, no século XIII, e teve um grande desenvolvimento no período da expansão protestante, como réplica à contestação feita por eles à afirmação de que Nosso Senhor está realmente presente na Sagrada Eucaristia, e com o intuito de estimular os católicos a oferecer uma reparação a Nosso Senhor por causa da blasfêmia que aquela heresia propugnava a esse respeito.

Com o curso dos tempos, e se tornando menos ativa a polêmica entre católicos e protestantes, essa nota polêmica da festa também diminuiu de carga e ela passou a ter como tônica a importância da devoção eucarística na vida espiritual dos fiéis. Cada vez mais a atenção dos católicos, no período que corresponde à História moderna e depois à História contemporânea, foi se concentrando nessa maravilha do amor de Nosso Senhor para com os homens, que é a sua presença real no Santíssimo Sacramento. No século XIX, a Igreja instituiu a Congregação do Santíssimo Sacramento, os sacramentinos, fundada por São Pedro Julião Eymard, especialmente para honrar continuamente o Santíssimo Sacramento na sua adoração perpétua.

São Pio X – já no século XX, portanto – instituiu a Comunhão para as crianças e deu forte impulso à Comunhão frequente, até mesmo quotidiana, para as pessoas que pudessem receber a Sagrada Eucaristia. Os congressos eucarísticos se espalharam por toda a Terra e, com essa irradiação da devoção eucarística, a festa de “Corpus Christi” tomou realce. É a própria glorificação de Nosso Senhor sacramentado.

Esta festa se celebra por meio de uma procissão nas ruas.

Compreendo que se possa dizer ao homem, premido por problemas pessoais, psicológicos e de toda ordem, vendo o mundo atormentado naufragando nas crises contemporâneas, que o mais importante é a adoração ao Santíssimo Sacramento. Entendo até que esse homem tire disso um proveito e invoque a Sagrada Eucaristia para não naufragar. A atenção dele está fortemente chamada para a sua condição de náufrago. E que, portanto, é preciso estabelecer uma relação entre sua situação e essa devoção. Do contrário, todas as conversas sobre a festa correm o risco de deixar o homem sem recursos, sem uma atração devida para um mistério tão augusto.

Tudo quanto dissemos a respeito dessa festa é perfeitamente verdadeiro. Entretanto, é como se, por exemplo, me mostrassem uma fotografia de uma árvore com tronco pujante, forte, mas na qual os galhos não aparecem. Aquilo é uma árvore verdadeira, forte; porém sem os galhos, só o tronco não dá ideia da árvore.

Bênção exorcística com o Santíssimo Sacramento

O que ficou dito é o tronco – realmente saboroso, venerável, perfumado – do assunto, mas esse tronco impõe uma irradiação para toda uma galharia.

Em primeiro lugar, a polêmica entre protestantes e católicos, tendo-se tornado menos acre, era o caso de perguntar se nisso não entrou moleza, tibieza da parte dos católicos, e se não se deveria tomar uma atitude que tornasse mais acerba essa polêmica. A festa de “Corpus Christi” até seria uma ocasião muito boa para isso. São só os protestantes? Naquele tempo, eles estavam no centro do panorama, porém, com o passar dos anos, toda espécie de heresias, de abominações se multiplicaram pela Terra como fruto do protestantismo. Este gerou seus filhos e com eles encheu a Terra. Assim, essa procissão não deveria ter um caráter contrário a todos esses filhos do protestantismo? Portanto, não deveria ser ainda mais polêmica?

Santa Genoveva, com o Santíssimo Sacramento, fez recuar os bárbaros que avançavam sobre Paris. Os bárbaros de nossos dias avançam e nós não podemos conceber essa festa como glorificação daquilo que é nossa arma para fazermos recuar os bandidos?

Eu sou entusiasta dessa festa e de tudo quanto foi dito a seu respeito, mas me sinto triste por ela ter sido privada desses complementos indispensáveis.

Para combater é preciso ter força. A Sagrada Eucaristia é chamada Pão dos fortes. Esse Pão dos fortes nós vamos levar pelas ruas para glorificá-Lo, fazendo um pedido para que Ele comunique a sua força a todos quantos se encontram na rua e para obstarem a ação do demônio.

Que coisa linda acrescentar uma intenção exorcística na bênção do Santíssimo Sacramento, dada no final da procissão! Como seria bonito que, de distâncias em distâncias, a procissão parasse em um altar onde fosse dada uma bênção exorcística com o Santíssimo Sacramento!

Por outro lado, é verdade que durante todo esse tempo a devoção ao Santíssimo Sacramento se desenvolveu muito. Mas não foi só ela. Cresceu muito também a devoção a Nossa Senhora. Não se deveria invocar muito mais a Santíssima Virgem ao longo das procissões, com cânticos louvando-A enquanto modelo da adoradora do Santíssimo Sacramento? Ela foi o tabernáculo vivo que abrigou Nosso Senhor até seu nascimento e que, depois da primeira Comunhão d’Ela, conteve-O até o momento de Ela morrer. Tudo isso precisa ser lembrado e é por meio d’Ela que devemos dirigir nossas preces ao Santíssimo Sacramento.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/6/1982)

Imaculado Coração de Maria: lições de santidade Imaculado Coração de Maria: lições de santidade

Refletindo a respeito de uma piedosa invocação da Ladainha do Imaculado Coração de Maria, Dr. Plinio não se prende aos esquemas devotos tradicionais, mas tira conclusões inesperadas a respeito do materialismo que pode nos escravizar…

 

Como em geral acontece com as ladainhas compostas ao longo dos tempos pela piedade católica, as jaculatórias da Ladainha do Imaculado Coração de Maria sugerem, cada uma, desdobramentos e considerações que muito enriquecem nossa vida espiritual e nossa devoção à Santíssima Virgem.

Procuremos analisar, por exemplo, a invocação “Cor Mariae, in quo Jesus sibi bene complacuit”, que em português poderíamos traduzir assim: Coração de Maria, no qual o Coração de Jesus bem se compraz.

Plenitude de satisfação

Devemos começar por observar que este “bem” salienta a ideia do inteiro e perfeito comprazimento de que nos fala a jaculatória. Ou seja, o Coração de Maria possui uma tal excelência que, tanto quanto é possível à natureza criada, nada lhe falta, e por isso nele Nosso Senhor encontra uma satisfação completa, que não conhece névoa, que não tem limites nem máculas. Excetuando o fato de que o contentamento infinito de Jesus é e só pode ser com o próprio Deus, em tudo o mais Ele acha total alegria no coração e na pessoa de sua Mãe Santíssima.

Quer dizer, Nosso Senhor fita a Santíssima Virgem, olha-A, e ao vê-La, ao contemplá-La, ao analisá-La, experimenta o maior dos prazeres, um deleite indizível, que sobrepuja todas as outras delícias que Lhe proporciona a consideração de suas demais criaturas.

Não poderia ser diferente, em se tratando d’Aquela que foi escolhida, desde toda a eternidade, para engendrar em suas entranhas virginais o Filho e Deus; d’Aquela, portanto, em que tudo haveria de ser absolutamente puro e perfeitamente magnífico. Em todos os momentos de sua vida terrena, Ela não deixou de crescer em santidade, de um modo inimaginável. Cada graça que Deus lhe concedeu para se adiantar na virtude era correspondida com tal excelência que todo o progresso feito por Ela é insondável para a mente humana.

Assim, em todos os instantes da existência de Nossa Senhora neste mundo, Jesus teve com Ela um contentamento completo.

Mesmo nas ocasiões mais difíceis como, por exemplo, quando Ela se viu chamada a consentir na morte de seu Divino Filho, e através de uma anuência inteira, heroica, da qual não sobrasse nenhum resíduo, mesmo em situações como essa o procedimento de Maria foi perfeito, no sentido mais exato da palavra. Porque Ela era, enquanto mera criatura, absolutamente exímia. E, como reza a Ladainha, Nosso Senhor encontrou n’Ela a sua complacência.

Uma lição da sabedoria divina

Do fato desse comprazimento podemos tirar uma bela lição que Deus dá aos homens.

Com efeito, criou Ele magnificências materiais extraordinárias. Quantos mistérios haverá por todas as galáxias do universo? E quando nos detemos na análise dos micro organismos, dos seres pequenos, quantas novidades imensas se descobrem ao nosso maravilhamento! Todo esse fabuloso conjunto, incluindo os homens e os Anjos, constitui para Deus o objeto de uma eterna contemplação.

Ora, tendo Ele tanto a apreciar, todavia coloca acima de tudo, como fonte do supremo gáudio que pode tirar de suas criaturas, a consideração de Nossa Senhora. Ela que, enquanto ser criado, não é o mais alto pois na ordem da natureza o homem vem abaixo do espírito angélico -, porém, do ponto de vista graça, virtude e santidade, não só está acima de todos os Anjos, como é deles Rainha. É essa incomparável santidade, portanto, que Deus se compraz em considerar, e em auferir dela uma especial e completa felicidade.

Qual a lição que daí devemos colher?

É um ensinamento que combate o nosso fundamental materialismo. Infelizmente, a grande maioria dos homens está imbuída da ideia de que o verdadeiro prazer nesta vida consiste na posse de bens materiais, de qualquer natureza que seja: dinheiro, saúde e uma série de outras coisas que estão fora das vias da verdadeira felicidade do homem nesta terra.

Com efeito, sem engano podemos dizer que, nesta vida, encontra a felicidade autêntica quem é capaz de seguir o exemplo de Deus e fazer a sua alegria da consideração das outras almas e da virtude que nelas exista. O homem que passa pelo mundo procurando a virtude e a santidade para admirá-las, amá-las e servi-las, onde ele as encontra, aí se detém e põe seu prazer e seu júbilo. De maneira tal que ele tenha mais satisfação em estar numa choupana ou num leprosário conversando com um verdadeiro santo, do que no local mais magnífico em meio a pecadores.

Por quê? Porque o santo representa um particular reflexo, uma transparente manifestação de Deus. A alma de um santo possui uma perfeição que nenhuma beleza criada tem, e, por causa disso, aquele que sabe procurar os verdadeiros valores da vida, vai atrás da santidade, da perfeição moral dos seus semelhantes.

E quando a encontra, ele dá graças a Deus, eleva sua alma a Nossa Senhora e agradece também a Ela, porque é pelo seu maternal auxílio e intercessão que aquela santidade existe numa alma, e foi por meio d’Ela que ele, homem humilde e admirativo, teve a alegria e a honra de encontrar essa alma virtuosa. Ele teve a glória de experimentar um antegozo do céu, que é o conhecer, nesta vida, um verdadeiro santo.

Sigamos o exemplo de Nosso Senhor

Tratemos, então, de imitar a Deus, que se compraz na alma perfeitíssima de Maria.

Devemos procurar, em nossa existência terrena, as almas honestas, conhecê-las, amá-las e saber discernir nelas o esplendor do bem. Devemos nos alegrar com essa bondade, até mesmo comparando-a e contrastando-a com o que há de mal em torno dela. Devemos ter genuíno comprazimento ao ver que Nosso Senhor recompensa a virtude dessas almas que Lhe são tão diletas, assim como importa que compreendamos e aceitemos a reprovação que Ele, em sua infinita justiça, reserva à maldade impenitente. É o Deus três vezes santo, absolutamente puro e superior, que condena o que é errado, porque não é conforme a Ele.

Quantos ensinamentos a se tirar de apenas uma das mencionadas invocações! Essa é a beleza inexcedível de tudo o que é de Deus, é a insondável formosura de Nossa Senhora, é o maravilhoso tesouro dos princípios da doutrina católica!

Embora muito houvesse ainda por se aprender com as preciosas verdades contidas nessa jaculatória, creio não poder deixar de ressaltar o seguinte e importante aspecto: o enlevo de Jesus em relação à sua Mãe Santíssima, infinitamente inferior a Ele e por Ele amada com amor inexprimível, mostra-nos bem como devemos procurar ver a santidade até naqueles que são inferiores a nós. Amar essa perfeição, enlevar-se com ela, é, mais uma vez, imitar o exemplo de Deus olhando para Nossa Senhora.

E no fim dessas breves considerações, só nos resta elevarmos uma prece filial e confiante ao objeto da inteira complacência de Jesus:

“Ó Coração Imaculado de Maria, fazei o meu coração sem mancha, cheio de fé, de força, de heroísmo e santidade, como o vosso!”

Maravilhas da presença eucarística

Em 1164, enquanto o Papa Urbano VIII residia em Orvieto, produziu-se não longe dali, na cidade de Bolsena, retumbante milagre: um sacerdote tentado por dúvidas sobre a presença real de Nosso Senhor na Eucaristia celebrava Missa, quando, no momento da Consagração, brotou sangue da Hóstia, molhando os corporais e a pedra do altar. O Santo Padre fez trazer os corporais a Orvieto, e decidiu estender à Igreja universal a Festa de “Corpus Christi”, em honra do Corpo de Nosso Senhor na Eucaristia . Foi por essa ocasião que São Tomás de Aquino compôs o belo ofício da Festa com o hino “Pange Lingua” e a seqüência “Lauda Sion”.

No dia 15 deste mês recordamos, uma vez mais, essa verdade de Fé da presença real de Jesus Cristo sob as aparências do pão e do vinho. Presença que perdura nas espécies eucarísticas, ao alcance  de todos os fiéis nos sacrários do mundo inteiro, e à qual era Dr. Plinio particularmente sensível. Certa feita, a um pequeno círculo de discípulos seus, comentava:

“Imaginemo-nos surpreendidos pela notícia de que Nosso Senhor Jesus Cristo vem aparecendo, todos os dias, no alto de uma colina nos arredores de São Paulo. Se assim é, interrompemos de imediato nossos afazeres e nos dirigimos a esse local bendito, pois não há outra atitude a tomar. Onde está Ele, lá estaremos nós.

“Ora, quantas e quantas vezes Nosso Senhor se acha imensamente mais perto! A dois passos, na capela de nossa sede, realmente presente nas espécies eucarísticas conservadas no sacrário! Tão perto, e não raro tão pouco visitado. Ao vermos uma capela com o Santíssimo, quase vazia, a pergunta que nos contrista o coração é esta: não poderia ter mais pessoas junto d’Ele, a todo momento? Pois não existe lugar onde esteja Jesus Eucarístico, do qual se possa dizer tão frequentado quanto seria razoável.

“Na verdade, importa haver almas imbuídas de tal sofreguidão eucarística que, sendo-lhes possível entrar um instante na capela, adorar o Santíssimo e sair, não o deixassem de fazer; ou que, ao passarem perto da capela, não deixassem de abrir a porta e fazer uma genuflexão do lado de fora; ou que, ao menos, quando fossem se deitar no fim do dia, pensassem: Nosso Senhor está dormindo nesta casa. Que alegria! Almas que sofressem, não de uma escrupulosa obsessão eucarística, mas de uma fome eucarística, um ardente desejo de estar aos pés do tabernáculo, adorando Jesus Sacramentado e com Ele convivendo, um minuto que seja.

Todos somos convidados a ter essa fome eucarística. Já nos terá acontecido: entramos na capela meio estabanados, damos dois  passos e, de súbito, nos colhe a profunda sensação. . . Alguém está aqui! Um silêncio especial nos envolve, circunda, penetra em nossa alma .  Olhamos e não vemos senão as paredes, o sacrário e os motivos eucarísticos neste esculpidos ou pintados. Dir-se-ia não haver mais nada. Porém…

“Estejamos certos: o que nesses momentos sentimos não é fantasia, imaginação ou associação de imagens em virtude de outras emoções de natureza semelhante, experimentadas em outras ocasiões. Não. Trata-se de um agir da graça. Algo que, acima de todas as capacidades de intelecção se faz sentir à nossa alma, de maneira tal que compreendemos ter Nosso Senhor nos dito uma série de coisas superiores a toda palavra! É a sua voz divina a ressoar em nossos corações. Deveríamos, pois, saber nos aproximar de Nosso Senhor Sacramentado, contentes, e em silêncio: Falai, Senhor, porque vosso servo Vos escuta.

“Tudo isso é imensamente sutil, insondavelmente belo, e constitui uma realidade que é um tesouro, uma estrada na vida de piedade aberta para nós na Primeira Comunhão. A todos, no dia em  que inauguramos nosso convívio com Jesus Eucarístico, ofereceu-nos Ele essa palavra, essa ação. Por isso mesmo, ao me deitar à noite, sempre que olho para a lembrança de minha Primeira Comunhão sobre o criado-mudo, lembro-me daquelas graças então recebidas . E novamente me encanto. . .”

Plinio Corrêa de Oliveira

Visita a Santa Isabel

Episódio sumamente rico em importantes aplicações para nossa vida espiritual, a Visitação de Nossa Senhora nos mostra como Santa Isabel, prima da futura Mãe de Deus, teve um conhecimento imediato de que o Messias se achava ali presente, encarnado no seio puríssimo de Maria. Ela o soube, não só por uma inspiração da graça, mas também por uma espécie de sentimento, de percepção do divino, excelentes, que a fizeram discernir a presença de Jesus.

Essa percepção, esse sentimento, cada católico deveria ter — em grau proporcionado — para amar todas as coisas que sejam segundo Deus, e para rejeitar aquelas que Lhe são contrárias.

A epopeia de Santa Joana d’Arc

Há lendas tão parecidas com a realidade a ponto de suscitar a pergunta: “Será, de fato, simples lenda?” Em sentido contrário, certas narrações históricas revestem-se de tantos aspectos surpreendentes que provocam uma desconfiança: “Mas isto é mesmo real?” Um dos mais expressivos exemplos do segundo caso é a vida de Santa Joana d’Arc: uma das maiores epopeias da História.

 

Se tomarmos em consideração tudo quanto os santos fizeram ao longo da História da Igreja, veremos quão superiores foram em relação a todos os homens que, habitualmente, são tomados por heróis.

Nesse sentido, comentaremos a vida de Santa Joana d’Arc, a famosa virgem de Domrémy, na Lorena.

Suscitada num momento providencial…

No início do século XV ainda não havia eclodido a Revolução protestante, e toda a Europa era católica. Porém, no século seguinte, a Inglaterra se tornaria protestante.

Naquele tempo, a França estava ocupada, em grande parte, pelos ingleses. Portanto, encontrava-se em jogo um ponto muito importante da História da Igreja: se os franceses não conseguissem expulsar os ingleses de seu território, no século seguinte a França corria o risco de ficar protestante; a filha primogênita da Igreja, a nação que deu tantos grandes personagens para a Esposa de Cristo, a França, teria sucumbido na decadência religiosa do protestantismo.

Prevendo isso, a Providência suscitou no vilarejo de Domrémy, ducado da Lorena, uma jovem pastorazinha, muito piedosa e santa, a qual era estimulada por vozes celestes para se apresentar ao Rei da França, a fim de reconquistar o território que os ingleses haviam tomado, e reintegrar à filha primogênita da Igreja os limites que historicamente lhe eram próprios.

Rei disfarçado de simples nobre

Para provar a autenticidade da missão providencial de Santa Joana, as pessoas da corte fizeram o seguinte:

Quando a jovem pastora se encontrou com o Rei pela primeira vez, ela entrou numa sala onde estava o monarca acompanhado de vários fidalgos.

Propositadamente, alguns fidalgos estavam muito bem vestidos, com roupas bastante caras; e o Rei, para disfarçar, usava trajes de um fidalgo mais pobre, secundário, para ver se ela, olhando os mais ricamente vestidos, achasse que um deles fosse o soberano. Se ela de fato tivesse uma missão divina, não se enganaria e reconheceria o Rei.

Ela entrou na sala e, instintivamente, foi em direção do fidalgo pobremente vestido, que, entretanto, era o próprio Rei. Ela adivinhou porque uma luz do Céu explicou-lhe quem era o monarca.

Uma frágil virgem com espada na mão!

A partir desse momento, Santa Joana d’Arc convenceu o Rei, que a nomeou chefe dos seus exércitos, colocando-a à testa dos seus melhores guerreiros. Ela, uma frágil virgem usando armadura, precedeu as tropas nos combates, e os franceses, que até então apanhavam dos ingleses, começaram a surrá-los. E os ingleses foram recuando diante das tropas a cuja frente estava a donzela de Domrémy. Santa Joana d’Arc lutava enfrentando homens enormes, com couraças formidáveis, naquele tipo de guerra em que a força pessoal do guerreiro era decisiva.

Imaginemos num combate de cavalaria um homenzarrão com uma lança, investindo com toda a força contra ela, querendo dar-lhe uma estocada no peito. E ela, frágil, derruba o homem.

Coroação do Rei

Naquele tempo, a França estava tão por baixo que o Rei não tinha tido coragem de ser coroado, porque achava, com certeza, meio ridículo promover uma coroação quando a maior parte do seu território estava em mãos dos ingleses. Mas, foram tais as vitórias de Santa Joana d’Arc que, antes mesmo de os ingleses estarem inteiramente expulsos da França, chegou o momento de ela ir com o monarca para Reims. Nessa cidade há uma catedral prodigiosa, com rendas de pedras e vitrais, onde os Reis da França, por um sacramental da Igreja, eram ungidos com o óleo contido numa ampola trazida por uma pomba na noite do batismo de Clóvis, primeiro Rei dos francos.

Santa Joana d’Arc, com os guerreiros do monarca, teve, então, a alegria de assistir à coroação do Rei da França, numa glória indizível. Ocupou ela um lugar de honra, numa das primeiras fileiras, e estava com o seu estandarte. Junto a ela havia as eternas sombras que vão atrás de cada pessoa: os invejosos. E um invejoso disse-lhe:

— O que faz aqui o vosso estandarte? É o estandarte de combate, e esta é uma festa…

Ela respondeu:

— Uma vez que ele esteve comigo na luta, bom é que esteja também na glória!

Devido a uma traição, Santa Joana é presa e entregue aos ingleses

Quando ainda restava uma parte da França para ser recomposta, a traição, imunda como uma serpente, se enroscou nela. O Rei tinha como aliado o Duque da Borgonha, cujo feudo era muitíssimo rico. Esse senhor feudal era um homem sem caráter, mas entrava com muito dinheiro para a guerra.

Em certo momento, as tropas começaram a combater e esse Duque foi dirigindo as coisas de tal maneira que Santa Joana d’Arc ficou cercada exclusivamente pelos guerreiros dele. Então, o Duque deu ordem de a prenderem e seus vassalos a venderam aos ingleses.

Processo da Inquisição

Como naquele tempo ainda não tinham caído em heresia, os ingleses entraram em entendimento com o Arcebispo de uma diocese francesa onde eles ainda dominavam, e acusaram-na de pacto com o demônio. Diziam que por essa razão ela havia conseguido tantas vitórias.

Realizaram, então, um processo cheio de mentiras, com o intuito de queimá-la viva.

Embora fosse analfabeta, durante o processo ela se defendeu como um advogado brilhante se defenderia. Mas, no fim das contas, Santa Joana d’Arc foi condenada à morte pelo tribunal da Inquisição por ter seguido vozes vindas do Inferno.

Tal era a Fé existente naquela época, que o problema todo não era de saber se ela tinha ouvido vozes — esta seria a questão que se levantaria hoje —, mas sim se as vozes vinham do Céu ou do Inferno.

Inútil tentativa de fugir

De tal maneira a santa queria ainda viver para realizar seu plano de salvar a França, que ela chegou, com risco de vida, a se jogar de uma torre, onde estava presa, para fugir e montar num cavalo a fim de continuar a luta contra os ingleses, julgando que com isso ela fazia a vontade de Deus. Ela se espatifou no chão! Deus não fez o milagre de ajudá‑la, nem as vozes a socorreram. Os ingleses a reconduziram à prisão.

Na hora suprema, uma prova atroz

Chega, afinal, a hora de sua morte. O carrasco entra no local onde ela estava presa, põe-lhe uma túnica infamante, toda embebida em matéria combustível para que o fogo ateasse logo nela, amarra-a numa carreta, aonde ela vai de pé, com as mãos atadas por trás, como malfeitora e para não poder fugir; através de ruas cheias de povo, Santa Joana d’Arc é conduzida ao lugar onde deveria ser queimada viva.

E, contra sua expectativa, a carretinha chegou à praça, tendo ela que descer e caminhar em direção à fogueira que ali estava. Deus, que estivera tão presente em todos os combates da santa e ajudou-a a defender-se no processo, nesta hora se fazia ausente.

Foi lida diante dela uma acusação cheia de falsidades, de misérias e de infâmias que ela não tinha cometido. É trágico o momento: ela é posta na fogueira, diante do tribunal que está ali assistindo.

Ela, a santa que tinha cumprido a missão dada por Deus de salvar o povo francês, por ordem de um Arcebispo, Cauchon, presidente de um tribunal, ia ser queimada com o infamante epíteto de bruxa.

Pode-se entrever a perplexidade no espírito dela:

“Como? Aquelas vozes não eram verdadeiras? Elas teriam mentido? A ajuda que Vós me destes, ó meu Deus, teria sido uma ilusão? É a Inquisição que me condena? Um tribunal eclesiástico, dirigido por um Arcebispo, composto por teólogos e homens de lei… Será que eu não me enganei, ó meu Deus?”

Há um mistério, mas as vozes não mentiram…

O fogo ainda não foi aceso, a santa está amarrada a uma pilha de lenha toda induzida em azeite para que o fogo arda depressa. Ela espera o momento último, no qual não haveria mais dúvida nenhuma de que compareceria perante o tribunal de Deus.

Foi ateado o fogo, o qual com certeza já atacava as carnes dela; as chamas vinham de baixo para cima e, portanto, a parte vital ainda não estava atingida. Quando Santa Joana d’Arc começou a sentir os estertores da morte, ela não deu um gemido de dor, pedindo misericórdia. Ao contrário, primeiro clamou por São Miguel e depois, como Nosso Senhor Jesus Cristo na Cruz, bradou com “voce magna”, com grande voz, que, com certeza, se ouviu pela praça inteira: “As vozes não mentiram! As vozes não mentiram!” Era mais uma manifestação de convicção da santidade de sua causa.

O fogo tomou conta do seu corpo e ela morreu com todas as dores de quem é queimado vivo. Mas até o último momento, ela bradava: “As vozes não mentiram! As vozes não mentiram!” Ou seja: “Há um mistério, mas eu morro contente porque faço a vontade de Deus!” O mistério se explicou.

Santa Joana d’Arc estava morta, mas as vozes não tinham mentido. E, lutadora até o fim, ela morreu batalhando, não simplesmente deixando-se matar, mas dando um brado que era um desafio, um protesto e o prolongamento da resistência francesa. Como quem dissesse aos franceses: “Continuai a lutar, porque as vozes, em cujo nome eu vos conduzi à vitória, vinham do Céu. O Céu vos dará, portanto, a vitória total”.

Esse testemunho, dado na hora da morte, é um supremo lance de heroísmo que vale mais do que a entrada triunfal em Reims, ao lado do Rei que ia ser coroado, a entrada gloriosa e heroica em Orléans, ou tudo o mais quanto ela realizou.

Um coração que vigia e proclama

Conta Monsenhor Delassus que as chamas devoraram o corpo de Santa Joana d’Arc, mas pouparam o seu coração. “Ter coração” não é ser sentimental, e sim ter fibra, têmpera, alma, amor das coisas elevadas e da missão sobrenatural que se possui. E se há alguém que teve coração foi Santa Joana d’Arc. Então houve o bonito fato: o corpo foi todo queimado, mas não o coração. Isso significava ainda um modo de dizer: “Eu morro, mas meu coração vigia e proclama: As vozes vieram do Céu”.

Vitória post mortem

A ofensiva que Santa Joana d’Arc tinha conduzido contra os invasores ingleses era tão tremenda, que eles não ousaram resistir ao pequeno exército francês que restara. Os franceses foram expulsando os invasores, a Inglaterra estava liquidada. Era o ímpeto dela que tinha derrubado o poderio inglês na França. Ela morreu antes de ver a muralha cair, mas “as vozes não mentiram!”

Em 1909, portanto 478 anos após a sua morte, os sinos da Basílica de São Pedro badalavam, anunciando uma magnífica cerimônia: São Pio X, afinal, ia beatificar Santa Joana d’Arc, e com ela proclamar que “as vozes não mentiram!”

Santa Joana d’Arc ficou o próprio símbolo da glória da França, um símbolo magnífico da glória da Igreja!

Coruscação do ideal

Fazer a vontade de Deus dando-Lhe glória de qualquer modo, decapitado ou queimado, pouco importa ao homem de ideal que expira; para ele o importante é que Deus esteja sendo glorificado.

Ideal! Que coruscação, que beleza de palavra!

Qual é o prêmio do idealista?

Os véus da morte descem sobre isto. Nosso Senhor fez promessas incríveis, carregadas de mistérios paradoxalmente luminosos. Por exemplo: “O irmão que salva seu irmão, salva sua própria alma e brilhará no Céu como um sol por toda eternidade”. Isso por salvar um! Quem, como Santa Joana d’Arc, evita que a França inteira caia na heresia, como brilhará no Céu? Como será esse sol em toda a eternidade?

Não se tem ideia de qual é a glória dos santos. Podemos imaginar com que afeto Deus se volta para uma Santa Joana d’Arc, a qual está com as marcas do sofrimento que a fogueira causou à sua alma e se apresenta, por assim dizer, pegando fogo diante d’Ele… E Ele lhe diz: “Vem minha eleita, minha escolhida, minha dileta! Goza, agora, de minha presença cheia de amor durante toda a eternidade!”

Nossa Senhora lhe sorri, a afaga, os anjos cantam, todas as almas do Paraíso se rejubilam porque aquela alma santa, portanto a alma com o mais alto dos ideais, o único ideal pleno e verdadeiro, chegou até o Céu. 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 29/5/1972, 20/10/1984 e 2/11/1991)