São Guilherme: A beleza dos extremos harmônicos

Comentando a vida de São Guilherme, Dr. Plinio aponta o sublime modo de proceder da Igreja, encaminhando a sociedade e as almas por um determinado sentido, enquanto a algumas almas eleitas indica o rumo oposto, obtendo assim o equilíbrio e a harmonia social.

 

Gostaria de comentar uma ficha biográfica tirada do livro “La Vie des Saints”, de autoria de Daras.

São Guilherme nasceu no ano de 1085, numa cidade do Piemonte. Seus pais eram nobres e ricos.

Muito jovem ainda, decidido a viver para Deus, fez uma peregrinação a Roma, retirando-se depois a um monte abrupto e elevado, chamado Virgiliano, para lá viver como solitário.

Guilherme reuniu discípulos e ergueu no local um mosteiro e uma igreja a Nossa Senhora. O santuário deu um novo nome à montanha: o Monte da Virgem.

Um dia, os monges indispuseram-se contra seu superior por causa de sua liberalidade para com os pobres.

Guilherme não deixou de orar por eles. Fundou outra casa e visitou o reino de Nápoles, onde aconselhou sabiamente o soberano. Perto de morrer, voltou à sua primeira fundação, na qual encontrou grande disciplina e paz, devido, supõe-se, às suas infatigáveis preces.

Morreu no dia 25 de junho de 1142, em Guilhemeto. A Congregação chamada do Monte da Virgem não existe mais. Porém, o mosteiro não desapareceu. Pertence à reforma de Nossa Senhora do Monte Cassino. Os religiosos usam o hábito branco de São Guilherme para lembrar a sua união com esse grande santo.

A grande atividade da Idade Média

Esta ficha é muito bonita. Sobretudo quando vista em seu contexto, nela se notam admiráveis harmonias. Recordemos os tempos da Idade Média, onde esse santo constituiu seu mosteiro e onde levou a vida que passo a comentar.

A Idade Média, contrariamente ao que muitos imaginam, tinha uma vida de atividade intensa. Tal atividade era sobretudo agrícola, pois, apesar de o Império Romano ter conseguido aproveitar agricolamente boa parte de seu próprio território, restando somente algumas partes incultas devido à insuficiência de população, quando o Império foi invadido pelos bárbaros quase toda a agricultura sofreu grande ruína, a ponto de só restar o suficiente para manter miseravelmente a população local. Por outro lado, havia a parte selvagem e bárbara da Europa para ser cultivada.

Por isso, a atividade agrícola na Idade Média precisou ser muito intensa, e o foi de tal maneira, que de uma ponta a outra da Europa havia plantações, as quais se estendiam até mesmo pela Rússia, Suécia, Noruega, Dinamarca, Norte das Ilhas Britânicas, e outras regiões de cuja existência os romanos nem sequer tinham noção.

Naturalmente, a agricultura trouxe consigo o comércio. A abundância das plantações traz consigo a exportação e a permuta de seus frutos com outros artigos. Assim, iniciou-se também uma indústria caseira, a qual se transformou mais tarde numa indústria verdadeira, dotada de estabelecimentos especiais, desligados da atmosfera doméstica.

Abriam-se, então, estradas, iniciava-se uma organização à maneira de polícia, como os cavaleiros andantes e outras forças locais, as quais se encarregavam de manter a segurança das vias, impedindo roubos e assassinatos. Os medievais viajavam muito. Para só analisar as peregrinações que então se faziam, consideremos o seguinte:

De toda a Europa, peregrinos acorriam a Santiago de Compostela a ponto de, em certas épocas do ano, alguns trechos tornavam-se verdadeiras ruas, devido à intensidade do tráfego.

De outro lado, havia na Idade Média a atividade intelectual, da qual muito já se conhece. Mas havia também a atividade guerreira, sumamente glorificada por alguns historiadores, do ponto de vista das Cruzadas, mas tão denegrida e exagerada por outros no que diz respeito a guerras domésticas entre famílias, casas e feudos.

Isso tudo forma a verdadeira imagem da Idade Média: uma época borbulhante de vida.

A Igreja, centro e ponto de equilíbrio da Idade Média

Na raiz dessa vida estava a Igreja, enquanto fonte de toda harmonia e perfeição. Seu modo de proceder consistia em impulsionar a sociedade em determinada direção, o que fazia com tanta serenidade, sabedoria e naturalidade, que poderia até mesmo causar a impressão de irrefletida. Contudo, era ainda capaz de, ao mesmo tempo, incentivar alguns a seguirem o rumo extremamente oposto dos demais, conservando assim a harmonia do corpo social.

Um claro exemplo disso encontra-se no fato da Igreja ter estimulado extraordinariamente o desenvolvimento intelectual na Idade Média, ao mesmo tempo que impulsionava vigorosamente o trabalho manual, o extremo harmônico daquele.

Assim, toda a movimentação do corpo social na Idade Média era largamente estimulada pela Igreja; mas também, Ela estava constantemente suscitando a formação de grandes famílias de almas, as quais procuravam retirar-se a lugares ermos, a fim de viverem no completo isolamento.

A Igreja inspirava algumas almas a se afastarem inteiramente do convívio humano, vivendo a sós. Desta forma, perpetuava-se na sociedade o hermetismo absoluto, surgido na antiguidade e mantido, de certa forma, até os dias atuais.

Era grande o contraste entre o borbulhar de vitalidade que havia na sociedade medieval, e a vida tranquila, serena e meditativa de um número impressionante de eremitas, os quais abandonando tudo, iam viver em lugares distantes, na exclusiva consideração das coisas de Deus enquanto Motor imóvel, da eternidade e de outros assuntos cuja cogitação é geralmente evitada pela superficialidade de espírito de muitos homens.

Desta forma, como fruto da verdadeira Igreja, constituiu-se o ponto de equilíbrio da sociedade medieval, bem como de cada alma individualmente.

Pelo contrário, a atitude de uma igreja falsa seria a de estimular exclusivamente o hermetismo, ou a atividade, causando assim a desestabilização.

Do auge da atividade ao máximo recolhimento

São Guilherme é um característico exemplo deste modo de proceder da Igreja, enquanto propulsora dos contrários harmônicos. Ele, por sua condição de nobre, era naturalmente destinado a uma vida de guerra, de corte, de governo e de movimento. No entanto, com o consentimento de seus pais, ele abandonou tudo e se retirou para um lugar ermo e solitário a fim de glorificar Nossa Senhora. Para ter garantia de não ser importunado por ninguém, dirigiu-se a uma alta e fria montanha, onde pretendia levar vida de penitência. Porém, é admirável verificar como as almas que se isolam por amor a Deus, acabam tendo muito mais poder de atração.

Assim, como tantas vezes aconteceu ao longo da História da Igreja, em torno dos eremitas se constituem comunidades, a ponto de, muitas vezes, aqueles que tinham deixado tudo para viver isolados acabam por se transformar em cenobitas, levando vida comunitária.

Tal foi o que se deu com São Guilherme, cujo exemplo atraiu muitos outros.

Certamente, muitas pessoas passavam aos pés daquela montanha: cavaleiros, estudantes que caminhavam conversando, rindo e cantando, peregrinos entoando canções sacras. Pode-se supor que no alto do monte houvesse um cruzeiro junto ao qual se encontrava a choupanazinha de São Guilherme.

Os que por lá passavam, inevitavelmente, deviam procurar saber quem vivia no cume daquela montanha, sendo-lhes respondido tratar-se de Guilherme, um nobre, que deixou tudo para viver em oração.

Com isso, cada vez mais pessoas desejavam poder um dia subir aquela escarpada montanha a fim de conhecer o nobre Guilherme.

Além disso, deviam circular notícias de que alguns, estando em dificuldades, foram ter com Guilherme, e este rezando por eles obteve-lhes imediata solução.

Assim crescia o número de pessoas que subiam ao monte para rezar. Em baixo havia o bulício próprio às estradas medievais, enquanto em cima se gozava da quietude e da serenidade da companhia de Guilherme.

Ao longe, talvez alguns permanecessem contemplando São Guilherme rezar ou preparar lenha para fazer sua refeição, após a qual começa a varrer sua pobre habitação. Tudo isso feito de modo tão direito, sábio, calmo, piedoso e composto, que devia dar às pessoas uma indizível paz, ânimo e arrojo interior.

Aprendendo pela contemplação

Conta-se a respeito do Bem-aventurado Miguel Rua, segundo Superior Geral dos salesianos, sucedendo a São João Bosco, que sendo ainda seminarista, este frequentemente era destacado para servir de secretário a São João Bosco. Perguntaram-lhe, então, certa vez, se não lhe incomodava o fato de não poder estudar durante esses dias. Ele respondeu: “Em três dias que passo servindo a D. Bosco eu aprendo mais Teologia do que estudando em livros o ano inteiro”.

Do mesmo modo, quantos podiam contemplar por alguns momentos a São Guilherme, deviam em sua presença aprender mais a respeito da Igreja do que através de muitos estudos e pregações.

Então começaram a surgir alguns que decidiam permanecer na companhia do santo. Estes talvez dissessem aos que os tinham acompanhado: “Ficarei aqui. Diga àqueles com quem tenho relações que eu fiquei ao lado de Guilherme, mas que no Céu nos encontraremos. Aqui estarei rezando por eles.”

Desta forma, aos poucos foi se constituindo um cenóbio, depois uma Ordem Religiosa, e começavam então as maravilhas de Guilherme.

A força de um santo

Porém, não tardou em acontecer-lhe algo de muito trágico e doloroso. Sendo pai de uma família religiosa, dela foi expulso por seus próprios filhos espirituais, os quais certamente andavam mal e não davam contentamento a ele. Porque, sobretudo o que é muito mais sério, eles não davam a glória devida a Nossa Senhora. São Guilherme, aos olhos de seus discípulos, devia atrapalhá-los na vida torta que tinham adotado. Apesar de terem vindo morar no alto da montanha a fim de gozar da companhia de São Guilherme, chegaram ao desvario de expulsá-lo.

Então, o santo desce sozinho a estrada, apoiado num bordão. Enquanto a porta se bate à sua saída e um monge revoltado grita: “Afinal, estamos sós e independentes desse homem demasiado severo!” São Guilherme, tranquilo e rezando, vai descendo por caminhos desconhecidos, até chegar a uma estrada que o conduziria a Nápoles.

Mas, quem pode expulsar um santo quando este quer ficar? Qual a força que nessa vida é comparável à de um santo?

São Guilherme não quer a perdição daqueles monges; por isso, ao andar pelas estradas, ele vai rezando por eles. Ele pede a Nossa Senhora, sob cuja égide o mosteiro estava construído, a expulsão dos demônios que ali entraram, promovendo assim a volta de seus discípulos ao bom caminho.

Rejeitado pelos discípulos e acolhido pelo Rei

Tranquila e serenamente, por alguma razão ignota, o santo vai a Nápoles. Lá ele encontra um cenário muito diverso. Antes de tudo pela vista da célebre baía de Nápoles, tendo ao fundo o Vesúvio fumegando; depois, por ser uma cidade populosa, com um porto movimentado, donde se vislumbra o palácio do Rei de Nápoles, um dos potentados da Península Itálica, essa cidade era um centro de cultura e de civilização, certamente uma corte em franco progresso e expansão da arte e do bom gosto.

Não tardou para o Rei ser informado da presença deste santo. Mais uma vez sua vida passaria por uma transformação: de abade tornou-se peregrino, agora passaria a ser conselheiro do Rei.

Porém, com a mesma serenidade, tranquilidade e sabedoria, ele continua rezando, mas também aconselhando o Rei, o qual nutria grande apreço por aquele que a loucura de uns monges desvairados tinha sido a causa de sua presença junto a ele. Muitos tiveram que galgar uma alta montanha para encontrar Guilherme, enquanto o Rei o encontrou ao lado de seu trono.

Em meio ao esplendor do cenário da corte de Nápoles, com suas belas tapeçarias, feéricos vitrais e magníficas construções em granito, pode-se imaginar o Rei despachando, com os olhos postos em Guilherme, atento a seus conselhos. Quando, em certo momento, surge-lhe uma dúvida, apressa-se em perguntar a opinião de Guilherme. Assim, aquele santo humilde, apagado e posto de lado, reina por sua influência sobre o soberano.

Contudo, as saudades vibram no coração de Guilherme e o fazem tomar a resolução de ir visitar seus monges. Perdoando-os como o Bom Pastor que ama suas ovelhas, a ponto de ir à procura das que se desviaram, e mais ainda se revoltaram contra ele, expulsando-o do meio delas, ele, como uma espécie de anjo da guarda, paira sobre o convento, para que ele não desapareça.

Alegria do superior pelo progresso dos subalternos

Assim, após algum tempo, ele volta para visitar os monges ingratos. Suas preces venceram a dureza daqueles corações, encontrando-os, cheios de fervor. O contentamento que Santa Mônica terá sentido ao ver seu filho convertido deve ter sido muito menor do que a deste abade e fundador ao ver convertida toda a sua Ordem Religiosa. Algum tempo depois, ele morreu naquele monte onde tinha constituído seu convento.

Dir-se-ia estar terminada a história. No entanto ela continua, pois a Ordem fundada por São Guilherme, por diversas razões, não consegue manter-se sozinha, acabando por extinguir-se, enquanto o convento foi dado aos beneditinos, cuja sede principal, o Monte Cassino, ficava a pouca distância de lá.

O suave perfume de uma flor conservada pela Tradição

Os padres beneditinos deram uma prova da boa recordação que conservaram de São Guilherme. Pois os beneditinos que foram morar no monte onde este santo fundou seu mosteiro, continuaram usando o hábito da Ordem Religiosa fundada por São Guilherme, manifestando assim um lindo espírito de tradição. Deviam ter a ideia de que lá não se podia usar outro hábito a não ser o de São Guilherme, para dar a entender que os que lá vivem estão como hospedes, pois o dono da casa é São Guilherme; por isso, eles só residem lá para manter a ordem do local, à espera do dia em que filhos do dono, suscitados pela graça, venham para restaurar a Ordem e reocupar a casa paterna.

Como seria bonito que, em meio aos desvarios do mundo moderno, um europeu suscitado por Nossa Senhora, tomasse a resolução de restaurar a Ordem Religiosa de São Guilherme, fazendo reviver dentro da Igreja essa flor conservada pela piedade beneditina dos grandes tempos.

Morrer sob o amparo de Maria

Os dados biográficos não narram a morte de São Guilherme. Alguns poderão imaginá-la como tendo sido repentina, a qual para um santo tem sua beleza, pois ele de repente passa das agruras desta Terra para a visão direta de Deus.

Porém, outros podem figurar uma morte lenta e longa, na qual o santo passa para o Céu, mais ou menos como um grande rio entra no oceano, vagarosamente, até exalar o último suspiro.

Pode-se também conceber um tipo de morte, o qual sempre me impressionou, e que vi representada num vitral do Mosteiro de São Bento, em São Paulo. Nele estava São Bento, em pé, acabando de dar a seus discípulos uma última lição, a qual alguns ouviam entusiasmados, outros recolhidos. Na legenda embaixo, lia-se: “Eflavit spiritum — Ele rendeu seu espírito”. Após as últimas palavras de edificação ele foi para Deus!

Enfim, a morte de São Guilherme pode ser imaginada de múltiplas formas, porém, certo é que, tendo ele fundado um convento dedicado a Nossa Senhora, Ela o protegeu especialmente na hora de sua morte.

Por isso, nós não devemos nos importar como morreremos, mas somente devemos desejar neste momento estarmos postos nas mãos de Maria Santíssima.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/6/1976)

 

O socorro maternal que por nós intercede

O simbolismo mais tocante da imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro está contido no gesto com que o Menino Jesus se apóia em Nossa Senhora, a qual segura as mãos d’Ele, significando que Ela governa os movimentos de Seu Divino Filho. Este era um antigo símbolo de homenagem e de obediência, o qual consistia em que o inferior colocasse suas mãos entre as do superior. Isto significava o domínio, o poder, deste sobre aquele, porque um homem que segura as mãos de outro evidentemente segura-o por inteiro.

Representando o Divino Infante desse modo o artista foi muito feliz e conseguiu indicar o que de fato acontece: a Santíssima Virgem pode tudo sobre o Menino Jesus e, nesse sentido, sua oração O “governa”!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 18 de novembro de 1968)

Nossa Senhora do Perpétuo Socorro

Tendo diante de si um quadro de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, invocação mariana que lhe tocava o mais fundo da alma, Dr. Plinio ressalta a importância de se recorrer a Maria Santíssima sob este título tão consolador: o socorro que nos vem sempre, a todo momento, maternal e infatigável.

 

Ao contrário de nossos costumeiros comentários sobre o Santo do mês, desta feita não os basearemos em biografia, mas numa gravura que retrata a imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, cuja festa se celebra no dia 27 de junho.

Linda invocação de uma imagem bizantina

Preliminarmente, convém esclarecer um ponto que poderia ser levantado pela minha caríssima geração nova.

Este quadro é de inspiração bizantina, e não se deve ver nele o gênero de beleza que apresentam as imagens ocidentais, como, por exemplo, Nossa Senhora Auxiliadora, Nossa Senhora do Carmo, Nossa Senhora de Fátima, etc. Analisando-as, percebe-se que seus rostos são entalhados com requinte e esmero, como a face de uma boneca. Embora não seja esse o tipo de graciosidade refletida na fisionomia de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, pintada há vários séculos, entretanto ela nos revela uma intensa expressão.

Difundida na Igreja pelos padres redentoristas, trata-se de uma linda invocação, pois indica a misericórdia invariável de Maria Santíssima. O perpétuo socorro é um auxílio, um ato de clemência, de piedade, ininterrupto, que nunca se detém nem se suspende. “Nunca” significa em nenhum minuto, em nenhum lugar, em nenhum caso. Por pior que seja a situação de quem recorra a Nossa Senhora, sendo a Mãe de misericórdia, Ela sempre o atende.

Sobre o fundo áureo da glória

Esse quadro possui um fundo dourado, bastante usado durante o antigo império romano do Ocidente e do Oriente, e parte da Idade Média, nas pinturas de personagens eminentes, os quais não eram representados pelos artistas em salas, quartos ou paisagens, mas sobre o ouro, a fim de exprimir a ideia de que estavam desligados de qualquer outra coisa que não fosse a glória. Assim, essa imagem representaria o esplendor da Rainha do Céu, com sua fronte circundada por uma auréola ricamente lavorada, como o é também a que emoldura a face do Divino Filho ao braço da Mãe.

 Nossa Senhora está revestida de um manto azul que Lhe envolve igualmente a cabeça. Constitui uma espécie de xale, no qual refulge um adorno semelhante a uma estrela. Sob esse manto, a Santíssima Virgem traja uma túnica vermelha frisada com galões de ouro e enfeixada, à altura do pescoço, por uma pedra preciosa.

Todos esses aspectos têm seu simbolismo, por isso devemos notá-los antes de apontar o valor e o alcance de cada um deles.

O Menino Jesus se acha sentado sobre a mão esquerda de Nossa Senhora, inteiramente encostado n’Ela, como uma criança muito familiarizada com sua mãe e tendo prazer de estar junto a seu regaço. Entretanto, se distrai com alguma coisa para a qual está olhando. Dir-se-ia haver, da parte do artista, uma certa imperícia, pois o Divino Infante é um tanto grande para ser carregado dessa forma por Maria Santíssima, dando a impressão de desequilíbrio nas proporções dos personagens. O próprio tipo do corpo d’Ele, sem falar do tamanho, transmite mais a ideia de um adolescente do que um menino. Seja como for — e apesar de algum crítico por demais exigente apontar outros aparentes defeitos, que não são senão expressões do estilo próprio da época e dessa cultura — tal imagem é considerada uma grande e interessante obra de arte.

Vestindo uma túnica verde, o Menino-Deus traz na cintura um tecido róseo e, sobre o ombro direito, uma capa dourada que lhe envolve o resto do corpo. Sendo esta muito ampla, forma numerosas pregas, as quais me parecem bem estudadas, dando a impressão, juntamente com a túnica e a faixa, de naturalidade.

Em cada lado da imagem há um anjo ostentando instrumentos da Paixão. Ambos aparecem de asas e auréola. O da direita, com vestes vermelhas, porta a Cruz que, curiosamente, possui três braços de tamanhos distintos. O da esquerda, de túnica verde, segura uma lança e a esponja na qual foi embebido o fel oferecido a Nosso Senhor no alto do Calvário.

Extraordinário afeto materno

A imagem de Maria é sobremaneira expressiva, devido à atitude profundamente materna que Ela demonstra. É a Mãe que carrega seu Filho com naturalidade e afeto extraordinários, transparecendo a intimidade magnífica da Santíssima Virgem com o Menino Jesus. A expressão de seu olhar é recolhida, de quem reza. Ela segura o Filho com desvelo e, ao mesmo tempo, com imenso respeito e veneração. Está certa de que tem nos braços o próprio Deus encarnado e a sua atitude é de adoração.

A face de Nossa Senhora talvez pudesse ser um pouco mais bem desenhada. Embora a boca seja delicada, o pescoço parece rígido demais, e o nariz se estende num comprimento excessivo. Mas esses pormenores secundários não diminuem o sopro da arte autêntica, patenteado na expressão recolhida e carinhosa da fisionomia, bem como na nobreza do porte.

Tocantes simbolismos

Analisemos agora o simbolismo. Nossa Senhora está revestida de uma túnica vermelha e um manto azul. Nos primeiros séculos do Cristianismo, a cor azul distinguia as virgens e a vermelha, as mães. De maneira que essa conjugação cromática nos apresenta Maria como a Virgem-Mãe. Trata-se de uma bela combinação, um simbolismo acertado e discreto que define Nossa Senhora.

No meu entender, o simbolismo mais tocante está contido no gesto com que a Mãe segura as mãos do Menino Jesus, envolvendo-as suavemente, indicando como Ela governa seu Divino Filho. Tal atitude representava, nos tempos antigos, a homenagem e a obediência do inferior para com seu superior, e do poder deste sobre aquele, pois uma pessoa que segura as mãos de outra evidentemente a domina por inteiro. Então, para mostrar como a virgem pode tudo junto a Deus, através da oração, com muita naturalidade o artista representou o Menino Jesus prestando este ato de submissão à sua Mãe Santíssima. A posição d’Ele é tão natural e freqüente entre as crianças que, sem conhecer esse simbolismo, não se diria que o pintor teve a intenção de exprimi-lo.

É próprio de quadros como esse que o significado dos símbolos quase não aflore, e assim, quem o contemple, pode ter o gosto de adivinhar o sentido de cada um deles. Trata-se de uma ocupação piedosa e nobre, que retém a atenção e é incomparavelmente superior às distrações do tipo palavras-cruzadas, por exemplo…

Nossa Senhora segura o Menino Jesus o qual olha para dois anjos portando instrumentos de sua Paixão. Quer dizer, ao mesmo tempo em que se lembra n’Ela a Virgem e a Mãe, recorda-se n’Ele o Redentor do gênero humano, esperado pelos Patriarcas e Profetas.

O socorro por um fio

Pormenor pitoresco, no pé esquerdo do Divino Infante vê-se a sandália bem presa, porém a do pé direito está desatada, quase caindo, como que obrigando-O a um movimento necessário para retê-la. Penso que esta última significa a situação da alma pecadora, sustentada pelo Menino-Deus para não cair no abismo da perdição. Indica, portanto, o perpétuo socorro: é Nossa Senhora que intercede pelo faltoso, junto ao Filho que Ela segura nos braços e pode salvar o homem acabrunhado de culpas.

Tenho conhecido em minha vida tantas almas suspensas, como esta sandália, e depois se erguerem e ficarem firmes como a outra, que não seria desprovida de beleza se tal fosse a explicação desse pormenor.

Aliás, no verso de um “santinho” dessa imagem que me foi presenteado certa vez, vinha esta linda interpretação: “A sandália desatada, quiçá símbolo de um pecador preso ainda a Jesus por um fio, o último — a devoção a Nossa Senhora”.

Nos ângulos superiores do quadro há algumas letras gregas que significam “Mãe de Deus”; à direita do Menino Jesus, outras que querem dizer “Jesus Cristo”. As que aparecem acima do anjo à esquerda significam “São Miguel Arcanjo”, e as que estão sobre o anjo à direita, “São Gabriel”.

Por fim, a estrela que refulge no manto de Nossa Senhora indica, uma vez mais, seu perpétuo e maternal socorro, sua misericórdia infatigável a nos guiar em meio às vagas tormentosas desta vida, rumo ao Céu.

 

Fruto da santidade da Igreja

Na história da Inglaterra, vemos os grandes processos de atonia, de tibieza, de indiferentismo que preparam depois toda a massa católica para as maiores defecções que deram no protestantismo.

Mas, ao lado disso, nos deparamos com uma coisa bonita: a permanência da nota da santidade da Igreja. Porque, apesar de todas essas tristezas, é na Igreja que se vão encontrar os mártires, os homens de um caráter admirável, que preferem tudo a ceder diante do adversário, e que expõem tudo quanto têm, e até a própria vida, para se manterem fiéis à verdadeira tradição e à continuidade eclesiástica.

Quer dizer, mesmo quando a putrefação invade os meios católicos, a santidade da Igreja produz frutos excepcionais e tão maravilhosos como fora da Igreja não se encontram.

Assim, ao mesmo tempo em que a Igreja é traída, renegada, vemo-la deitar uns lampejos memoráveis que provam a divindade dela. Nisto está uma espécie de afirmação contínua da assistência do Divino Espírito Santo na Igreja.

Esta me parece ser a reflexão mais oportuna que podemos fazer sobre o martírio de São João Fisher.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/6/1965)

São Luís Gonzaga

Mais do que pela alta nobreza de sangue que o distinguia, São Luís Gonzaga reluziu na história por sua santidade estelar, especialmente vincada na prática exímia e heroica da virtude da castidade. Resguardando sua alma com um requinte de pudor e de fidelidade aos Mandamentos divinos, rejeitou até o fim da vida qualquer forma de mal, sempre ancorado na verdade, na lógica e na justiça.

Varão talhado para grandes lutas, de físico vigoroso e espírito delicadíssimo, pode-se dizer que a inocência de São Luís começa onde a de muitos outros terminaram. Por isso a Santa Igreja o exaltou como o arquétipo da pureza e como uma de suas mais rutilantes glórias.

São João Batista, percursor do Cordeiro de Deus

No mês de junho a Igreja comemora a festa de São João Batista, o Precursor de Nosso Senhor Jesus Cristo. Apresentamos a nossos leitores um eloquente comentário tecido  por Dr. Plinio, pelo qual conheceremos mais profundamente a vida e a personalidade daquele santo varão cuja voz clamou no deserto, preparando os caminhos do Senhor.

 

A vida e missão profética de São João Batista, marcadas pela vigorosa personalidade do Precursor, teve um início que nos enche de admiração e enlevo, por nele estar envolvida a própria Mãe de Deus.

Como se sabe, na mesma ocasião em que o Verbo Eterno se encarnava no seu seio puríssimo, Nossa Senhora recebeu do Anjo a revelação de que sua prima Isabel também esperava uma criança. Ciente dessa feliz circunstância, Maria decidiu atravessar as estradas e montanhas da Judeia para se encontrar com sua parente e compartilhar com ela as alegrias daquela futura e tão ansiada maternidade.

O encontro entre as duas é uma das mais lindas páginas da História Sagrada, magistralmente imaginado e retratado pelos maiores artistas da iconografia católica.

Além disso, foi nesse momento que Nossa Senhora entoou o único hino que se tem notícia haver brotado de seus lábios virginais — o “Magnificat” jubilosa do Batista, conforme o exprimiu Santa Isabel: “Donde me vem esta honra de vir a mim a mãe de meu Senhor? Pois assim que a voz de tua saudação chegou aos meus ouvidos, a criança estremeceu de alegria no meu seio” (Lc 1, 43-44).

Nossa Senhora falou, e um frêmito de contentamento percorreu o frágil corpo do menino no claustro materno. Por quê?

Segundo conceituados autores — não se trata, portanto, de opinião imposta pela Igreja —, São João Batista, sendo o último dos profetas do Antigo Testamento, podia aquilatar o que representava a Mãe de Deus e o significado da Encarnação que n’Ela se operara, tão intimamente relacionada com sua missão. Afinal, ele iria anunciar o advento iminente do Salvador do mundo. Assim, ao ouvir a voz da Virgem Bendita, ao sentir a presença de Deus, o menino estremeceu de alegria. E, também de acordo com os teólogos, nesse momento, ainda no seio materno, ele foi santificado por Maria.

Podemos conjecturar que Nossa Senhora comunicou, de um modo misterioso, algo do espírito d’Ela a São João Batista. E tudo quanto este fez em sua vida, era uma decorrência dessa graça inicial recebida pela intercessão de Maria, constantemente intensificada até atingir uma plenitude no momento de seu martírio. Então, o São João Batista asceta e austero, o pregador do Cordeiro Deus, o herói que enfrenta Herodes e morre como testemunha da Fé, sublime de grandeza e de serenidade, nos revela reflexos da própria alma de Nossa Senhora que lhe foram participados no encontro das duas primas.

Desse fato maravilhoso decorre uma importante aplicação para nossa vida espiritual. Pois nele discernimos o poder insondável de Nossa Senhora como Medianeira de todas as graças e onipotência suplicante em nosso favor. O eco da voz d’Ela santificou um homem de um momento para outro, infundiu-lhe um grau eminente de perfeição moral.

Ora, isso é o que devemos esperar que a Santíssima Virgem obtenha para cada um de nós. Peçamos a Ela, com inteira confiança, que fale no íntimo de nossa alma, e que esse timbre imaculado nos santifique de um instante para outro, concedendo-nos uma virtude que anos de lutas e de trabalhos não nos proporcionaram. Por isso, todo aquele que tenha algum desânimo, tristeza ou perplexidade na vida espiritual, pode fazer sua a prece que a liturgia tomou das palavras do centurião a Jesus, e dirigir-se a Maria Santíssima: “Senhora, eu não sou digno de ouvir a vossa voz, mas dizei uma só palavra e a minha alma será transformada, se Vós assim o quiserdes”.

Portanto, devemos desejar que a voz de Nossa Senhora nos toque a alma e a faça estremecer de júbilo, como o fez com a alma de São João Batista.

Semelhança física com Jesus

A par desse extraordinário acontecimento ocorrido nos primórdios de sua existência, é sobremaneira belo considerarmos o papel de São João na vida do Filho de Deus. Basta imaginarmos quantas vezes Nosso Senhor não terá louvado e glorificado São João Batista no interior de sua alma! Quanto vezes, pregando para as multidões, observando a alma deste, daquele ou daquele outro, preparada pela “voz que clamava no deserto”, terá pensado: “Aqui passou o meu dileto, meu precursor, o homem nascido do mesmo sangue que eu, descendente de David, abrindo os caminhos dos corações para Mim. E naquele lampejo de virtude, naquele olhar de simpatia, naquele ato de adoração, naquela maior facilidade para tal conversão, naquela pureza expressa em tal outra alma, vejo o fruto da pregação do meu dileto!”

Quantas e quantas vezes assim se encontraram as almas do Precursor e de Nosso Senhor Jesus Cristo!

Agora, qual era o aspecto físico e o semblante moral desse homem?

As descrições no-lo apresenta um tanto parecido com Nosso Senhor. Jesus era de estatura elevada, de uma compleição harmoniosa e forte, com uma plenitude de varonilidade unida a uma delicadeza e a uma nota de sobrenatural, constituindo um todo do qual podemos ter ideia contemplando o Santo Sudário de Turim.

Assim também seria São João Batista, porém com uma característica diferente. O Precursor representa a penitência, o jejum, a flagelação, a solidão no deserto, a mortificação. Por causa disso, seu corpo tinha a pele bronzeada por mil sóis, pelos calores ardentes do Oriente Médio. Além disso, apesar de forte, sem ser esquelético nem de natureza doentia, era entretanto muito magro, de tal maneira os jejuns o haviam consumido.

Retidão e severidade

Quanto ao feitio moral, é inegável que São João Batista, embora repassado de bondade e compaixão, era a própria representação da severidade. Ele peregrinava por todas as partes clamando: “Fazei penitência, porque o Senhor está próximo!”, e sua única preocupação era a de cumprir a vocação para a qual fora suscitado: levar os corações a se purificarem, para receber dignamente o Messias.

Ora, fazer penitência não é coisa simples. Só se convence alguém a se mortificar, quando o convencemos de que pecou. E nisso estava o cerne da missão de São João Batista. Quer dizer, ele se entregara ao jejum e aos sacrifícios, para pagar pelas faltas do povo. Para que Deus, em atenção à penitência que ele próprio praticara, concedesse eficácia às suas palavras e perdoasse aqueles aos quais pregaria.

Porém, para aquela gente em grande parte tomada pela ganância, voltada para as coisas terrenas, adoradora do conforto e da vida agradável (na medida que as condições daquele tempo o permitiam), aparece um homem que era o contrário de tudo isso. Desprendido, desapegado, um facho ardente de amor de Deus, vivendo apenas para realizar sua tarefa. Àqueles que esperavam um Messias temporal, um rei poderoso, este era anunciado, não por um guerreiro nem por um potentado, mas por um homem penitente.

O Batista produziu um choque nas pessoas. E o contraste do homem sensual, ganancioso, com aquele varão reto, simples, eloquente, que o tempo inteiro bradava: “Fazei penitência!”, deixava as consciências profundamente abaladas. Ele produzia uma grande vergonha. As pessoas compreendiam, no contato com São João, que não deviam ser ruins. E o Precursor completava esse efeito, dizendo-lhes: “Endireitai os caminhos do Senhor. Aí vem o Messias. O dia de Deus está próximo”, etc.

Ele era, portanto, a própria expressão da limpeza de alma, porque o puro detesta o sujo, o reto detesta o sinuoso, o corajoso aborrece o covarde. Nisso ele era a severidade, essa virtude pela qual se rejeita o que deve ser rejeitado. Diante das suas admoestações, os outros sentiam e reconheciam seus próprios defeitos. Ele passava e todos o respeitavam, todos os obedeciam. E assim ia preparando os caminhos de Deus.

Até o desenlace de sua intensa trajetória neste mundo, interrompida de modo criminoso pela poltronice e luxúria de um rei infame, incapaz de resistir às artimanhas da mulher que desposara ilegitimamente. A pedido dela, São João Batista morreu decapitado, vertendo seu sangue em união com o do Cordeiro de Deus, que logo seria também imolado no Calvário.

Graça a pedir a São João Batista

Uma pergunta que acredito muito interessante é esta: se São João Batista passasse por uma cidade de hoje, que efeito ele produziria? Se, de repente, em nosso bairro, em nossa rua, em nossa própria casa, surgisse esse homem com a sua fisionomia austera e bondosa, dizendo-nos: “Fazei penitência!”, que sentimentos despertaria em nós?

Imaginemos que, ao vê-lo, sentíssemos com maior agudeza todos os nossos defeitos e o mal que há neles; penetrássemos nossa consciência no mais fundo, permitindo que se realizasse conosco o que David exprime no Salmo: “Peccatum meum contra me est semper”. Ou seja, os meus pecados, minhas faltas como que se destacaram de mim e se puseram à minha frente como um outro homem, onde permanecem continuamente me censurando. Ali estou eu com todos os meus defeitos.

Achar-nos-íamos preparados para receber esta presença celeste, cheia de severidade e de bondade? Amaríamos aquele que nos apontasse os nossos defeitos por inteiro? Seríamos ávidos dessa revelação e dispostos a aproveitá-la? Nós o agradeceríamos? O que nos aconteceria?

A melhor reação que poderíamos manifestar não é outra senão de reconhecido enlevo, de humildade e sincera contrição perante as justas censuras que ele nos dirigiria. Nossa atitude deveria ser a de quem se sente feliz e aliviado por lhe terem sido reveladas as faltas que o impedem de trilhar as vias da perfeição. E exclamar: “Que maravilha de homem! Veja como ele detesta os meus pecados! Como ele é puro, íntegro, sem nada dessa mazela horrorosa que há em mim! Como ele aponta com clareza o que tenho de ruim, e me deixa contente porque alguém me admoesta como mereço!”

Em seguida, ajoelharíamos e oscularíamos os pés dele, rogando-lhe: “Ó enviado de Deus, dizei-me tudo. Necessito dessa repreensão que me tire de meu letargo espiritual e me dê vontade, finalmente, de ser bom. Fazei descer sobre mim as torrentes regeneradoras e purificadoras de vossa severidade. Falai, que eu vos escuto!”

E assim, como outrora preparou ele os caminhos do Senhor em Israel, São João Batista também aplainaria em nossas almas as veredas que a conduzem ao Reino de Deus.

Peçamos, pois, ao santo Precursor que, pela intercessão de Maria Virgem, alcance-nos da misericórdia divina essa insigne graça de reconhecermos e vencermos nossos defeitos, para nos tornarmos dignos da bem-aventurança eterna.

São João Fisher Vigilância e serenidade diante da morte

Inabalável na Fé e na defesa da Verdade, São João Fisher, Arcebispo de Rochester, chegou ao seu último momento na prisão com placidez e esperança na bondade divina. Porém, antes de receber o golpe do verdugo, não confiou nas próprias forças e rogou as orações dos que presenciavam sua morte, para não fraquejar e ceder no derradeiro instante. Dr. Plinio nos apresenta e propõe esse admirável modelo de humildade e vigilância.

 

No  dia 22 de junho a Igreja celebra a memória de São João Fisher, juntamente com a de São Tomás Morus, ambos martirizados na Inglaterra por se recusarem a aderir à revolta de Henrique VIII contra o Papado.

“Deixai-me dormir mais uma hora…”

São João Fisher tinha sido capelão da mãe de Henrique VII e chanceler da universidade de Cambridge, antes de ser nomeado Bispo de Rochester. Opôs‑se ao divórcio de Henrique VIII e Catarina de Aragão, bem como à constituição da igreja anglicana. Tendo negado a prestar o juramento exigido pelo rei aos bispos ingleses, foi detido e encarcerado na Torre de Londres. Durante sua reclusão, em maio de 1535, foi feito Cardeal pelo Sumo Pontífice Paulo III.

São João Fischer foi condenado a morrer por torturas, mas a pena lhe foi comutada para decapitação, devido ao muito debilitado estado de saúde em que se encontrava. Assim, nas primeiras horas do dia  22 de junho, o oficial da Torre encontrou‑se com o prisioneiro na cela, recordou-lhe que era idoso e não poderia suportar o regime do cárcere por longo tempo. Em seguida, declarou-lhe ser vontade do rei que a execução tivesse lugar naquela mesma manhã.

— Está bem — respondeu o santo —, se é essa a mensagem que me trazeis, não constituiu para mim novidade. Espero‑a todos os dias. Que horas são?

— Cerca de cinco.

— Para que horas foi marcada a minha partida deste mundo?

— Às dez.

— Então, agradeço‑vos que me deixeis dormir uma hora ou duas mais, pois não dormi muito essa noite, não por medo, mas por causa de minhas doenças e grande fraqueza.

Extremo cuidado com a saúde, a caminho do cadafalso

Ao voltar às nove horas, o oficial encontrou Fischer de pé e vestido. O santo Bispo tomou o novo Testamento e com grande consolação leu essas palavras de São João: Ora, a vida eterna é essa: Que te conheçam a ti como um só Deus verdadeiro e a Jesus Cristo, a quem enviaste. Eu te glorifiquei sobre a Terra, acabei a obra que me deste para fazer; e agora, Pai, glorifica‑me junto de ti mesmo com aquela glória que tínheis em si antes que houvesse o mundo. Depois, pediu que lhe dessem seu manto forrado. Ao que lhe interrogou o oficial:

— Mas, meu senhor, por que haveis de ter um tal cuidado com vossa saúde, se vosso tempo está contado, e pouco mais tendes que uma hora de vida?

— Peço meu manto para me conservar aquecido até o momento da execução. Pois ainda que não me falte coragem quanto a morrer santamente, não quero, entretanto, comprometer minha saúde nem um minuto sequer.

Caminhou rumo ao cadafalso endireitando seu corpo tão magro e descarnado que parecia que a morte tinha tomado a forma de um homem. Sobre o patíbulo, com voz inteligível e clara pediu aos que assistiam a execução que rezassem por ele:

— Até agora nunca tive medo da morte; contudo, sou carne. E São Pedro, receando‑a, negou o Senhor três vezes. Ajudai‑me, pois, a que no instante preciso em que eu receba o golpe mortal, não ceda por fraqueza em nenhum ponto da Religião Católica.

Já no lugar do suplício lhe ofereceram o perdão por várias vezes, se quisesse dizer o que dele esperavam. Mas foi inabalável. Após o suplício, seu corpo ficou exposto, desnudo, durante todo o dia. Sua cabeça, espetada numa lança, foi posta na ponte de Londres. Quinze dias depois, como ainda parecesse viva e o povo começasse a acreditar num milagre, foi lançada ao Tâmisa.

Castigo que todo homem teme

Vemos aqui as reações de alma de um grande prelado às vésperas de seu martírio, o qual não oculta seu receios diante da morte.

Creio que, sem uma assistência da graça, ninguém pode dizer que não teme a morte, pois esta, de si, significa um castigo de Deus infligido aos homens por causa do pecado original. Ela é, portanto, de natureza a incutir medo. Não se pode saber que espécie de sofrimento a separação definitiva entre a alma e o corpo traz para quem morre, porém nos é dado conjeturar que se trata de uma dor profunda, mais ou menos inimaginável. Pois se a menor torção do menor osso do corpo humano pode ser penosa, que dizer dessa dilaceração pela qual a alma vai diminuindo sua influência sobre a carne até abandoná-la completamente?

Portanto, é normal que uma pessoa, ao considerar de frente essa realidade, tenha medo no supremo momento de enfrentá-la.

Se fosse só isso, ainda seria pouco. Na verdade, qualquer pessoa judiciosa que tenha presenciado a situação de um agonizante, sentiu medo da morte por uma razão mais profunda.

Lembro-me, por exemplo, de observar meu pai durante a agonia dele, e de fazer a seguinte reflexão: “Está colocado, a bem dizer, entre a eternidade e a Terra, e já perdeu completamente a consciência de tudo. Os fatos exteriores não lhe tocam. Porém, no mais recôndito de sua mente, não estará pensando em algo? Que formas de medo, de tentação, de provação, que consolações, alegrias, que auxílios uma alma pode sentir nesse momento?”

Mais uma vez, é compreensível que tal circunstância, repassada de incertezas, seja de molde a causar temores no homem.

Admirável tranqüilidade na hora da morte

Agora voltemos ao exemplo de São João Fisher, e consideremos até que ponto admirável esse santo levou a virtude da vigilância e do examinar-se a si próprio. Pois, afinal, ele recebe a notícia da morte com toda a serenidade e, em seguida, pede que lhe concedam mais duas horas de sono. É uma extraordinária despreocupação diante de sua partida iminente deste mundo: “Não dormi bem à noite, estou com sono, deixem-me repousar um pouco mais”.

E adormece na paz de sua alma, pois a sabe pronta para comparecer diante de Deus, e nos braços d’Ele repousa até o momento de se deitar para o descanso eterno. É, sem dúvida, uma impressionante manifestação de limpeza de consciência, como também a de um auxílio sobrenatural por onde ele teve essa tranqüilidade na última hora de sua vida.

Dali a pouco ele acorda, levanta‑se, prepara-se e se apresenta calmo ao oficial que vem buscá-lo.

Medo de ter medo

Dirigiu-se ao local do suplício e, ao pé do cadafalso sentiu que a fraqueza humana poderia falar mais alto. Ele teve medo de vir a ter medo, de perder algo daquele magnífico estado de alma em que se achava para enfrentar a morte. Então pediu que os presentes rezassem por ele.

Quanta razão tinha o santo nessa desconfiança de si mesmo! Pois ali, no patíbulo, sofreu uma longa insistência por parte de seus algozes que o queriam perverter e fazê-lo renegar a fé católica. Esse assédio no último momento não era gratuito: sabiam que se aquele homem aceitasse as propostas heréticas, seria um triunfo para a causa anglicana, e nada mais sedutor do que ter de escolher entre o dizer “sim” e a morte. Se ele aceitasse, sairia daquele cadafalso cercado de honras e aplausos. Naquela noite dormiria em algum palácio, no meio do conforto, e com alguns anos de vida regalada pela frente.

Porém, São João Fisher teve medo do próprio medo, receava uma tentação do demônio naquela hora, reconheceu que poderia cair, e por isso, praticando a virtude da vigilância recomendada pelo Divino Mestre, pediu a oração dos outros em seu favor. Sobretudo, deve ter implorado a intercessão de Maria Santíssima junto ao trono de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Permaneceu inabalável na sua fé, foi decapitado e assim recebeu a coroa do martírio.

Confiando em Nossa Senhora teremos forças para enfrentar a morte

Eis para nós, católicos, um modelo de como enfrentarmos o momento de nossa própria morte. Tenhamos esse espírito de vigilância e humildade manifestado por São João Fisher. Nunca imaginemos que, por sermos devotos de Maria Santíssima e praticarmos boas obras de apostolado, não seremos tentados nem fraquejaremos na última hora.

Devemos, sim, pedir a graça de sermos vigilantes sobre nós mesmos, a graça de resistir sempre à tentação quando esta se apresente, compreendendo que o espírito pode estar pronto, mas a carne é fraca. De modo especial peçamos a Nossa Senhora que nos assista com sua misericórdia no momento de deixarmos este mundo rumo à eternidade. Como nos recomenda a Santa Igreja, a graça de termos uma boa morte deve ser pedida com toda a insistência, pois não sabemos o que pode nos suceder no derradeiro instante de nossa vida.

Essas considerações não visam criar pânico nem um terror malsão. Pelo contrário, quando o homem confia em Nossa Senhora — e, por meio d’Ela, em Nosso Senhor —, ao mesmo tempo compreende como a morte é terrível, mas para ela caminha com serenidade. Porém, insisto, cumpre entender a necessidade de implorarmos amiúde essa confiança em Deus e esse auxílio sobrenatural do Céu, único remédio para evitarmos o terror malsão diante da morte.

Sejam esses os preciosos ensinamentos a colhermos do exemplo de São João Fisher, Bispo, Cardeal e mártir da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 21/6/1967)

 

São Luís Gonzaga, um gran de batalhador

Pela via da inocência, São Luís atingiu um elevado grau de santidade. Em meio aos prazeres da corte, ele permaneceu resoluto em seu desejo de fazer-se religioso, pois nada de terreno o atraía.

 

A “Vida de São Luís Gonzaga”, de autoria do Padre Virgílio Cepari, o qual conviveu durante largo tempo com o santo, traz trechos bastante interessantes. Passemos a comentá-los.

A Marquesa Castiglioni, Dona Marta Tana de la Róvere, sentia um desejo muito vivo de ter algum filho que servisse a Deus como religioso. Perseverando neste desejo, pedia com frequência a Nosso Senhor que lhe concedesse essa mercê.

Não é algo novo que um filho tão santo e desejado com tanto zelo tenha sido fruto não menos das orações que do ventre da mãe. Ana, mãe de Samuel, sendo estéril, pediu a Deus um filho que servisse no templo, e logo o obteve. São Nicolau Tolentino foi fruto das orações de sua mãe estéril; São Francisco de Paula nasceu de pais estéreis, que o obtiveram depois de um voto; e outros mil exemplos disto.

As grandes obras nascem das orações

É preciso notar de passagem, embora o que vou dizer não se refira à biografia de São Luís, o comentário que esse padre está fazendo. Se os filhos eleitos, com frequência, nascem das orações dos pais, também é verdade que as obras e frutos preferidos dos homens que se consagram a Nossa Senhora, e que não vão ter filhos, nascem de suas orações. Assim como uma mãe que quer ter um filho reza a Deus para obtê-lo, também uma pessoa que abrace o estado de celibato pode rogar a Nossa Senhora: “Eu vos peço que a fecundidade da minha vida seja tal obra”.

Às vezes, Deus faz com que uma longa esterilidade tenha depois como consequência um nascimento tardio, esplêndido, que longos anos de espera fizeram germinar. Isso se dá com o apóstolo, que pode passar longo tempo estéril nas suas ocupações, mas em determinado momento o “filho” nasce.

Devemos rezar intensamente a Nossa Senhora para que Ela dê a nossas vidas essa forma de fecundidade, que vale mais do que ter “n” filhos.

Belo exemplo de disciplina conjugal

Quando chegou o tempo do parto, foram tais as dores sofridas pela Marquesa que ela esteve a ponto de morrer, sem poder dar à luz a criatura. A boa senhora mandou chamar o Marquês, e pediu licença para fazer voto à Rainha dos Céus; de muito bom grado, o Marquês assentiu, e ela fez voto de ir pessoalmente, se escapasse com vida, visitar a santa Casa de Loreto, levando consigo o menino, se ele também sobrevivesse.

Que bonito exemplo de disciplina conjugal! Ela manda chamar o Marquês e lhe pede licença para fazer a promessa.

Batizar tão cedo quanto possível

Feito o voto, cessou o perigo e em pouco tempo nasceu o filho. Porfiavam ainda os médicos que não era possível que o menino ficasse vivo, e o Marquês instava a que se procurasse salvar a alma do filho; a experimentada parteira, logo que viu o menino o suficiente para poder receber a água do Batismo, antes que nascesse totalmente batizou-o.

Uma criança em vias de nascer, estando apenas com a cabeça de fora do claustro materno, pode ser batizada. Dir-se-ia que esse fato não tem importância nenhuma porque a criança ainda não tem uso da razão; portanto não pode pecar nem rezar, e não é capaz de atos de virtude ou viciosos. Assim, não há razão para esse açodamento.

Sem culpa da criança, mas por artes do demônio, este pode adquirir maior influência sobre ela durante o tempo em que ainda não é habitada pela graça de Deus. Portanto, há vantagem em batizá-la quanto antes, para evitar isso.

Faço essa afirmação com base num cerimonial da Liturgia católica: em certas Missas solenes, o padre começa por incensar o altar. O povo acha que é um ato de reverência do sacerdote para com o altar. De fato, tem esse sentido e também outro mais profundo: é o de exorcizar o altar, expulsando o demônio que ali possa estar. Se o demônio pode ficar junto a um altar consagrado, em que todos os dias se rezam várias Missas, não poderá estar exercendo uma ação sobre uma pobre criança inocente, que repercutirá durante sua vida inteira?

O açodamento do Marquês era para evitar que a criança morresse antes do Batismo e fosse para o Limbo. A alegria do pai se deve ao fato de que, desde muito cedo, a criança fora habitada pela graça.

Para maturar, São Luís foi mandado para o exército e não para o jardim da infância

O Marquês quisera que seu filho fosse soldado como o pai; com este fim, tendo ele quatro anos, mandou fazer uns arcabuzes e outras armas tão pequenas que o menino pudesse carregá-las.

Quando se preparava a armada contra Tunes, o Marquês levou consigo Luís ao local onde deveriam se reunir, para que tomasse gosto pelas coisas de guerra.

Fazer um menino de quatro anos frequentar o ambiente militar pode parecer um excesso, mas, ao contrário, é uma coisa esplêndida.

Hoje em dia, as crianças são colocadas no jardim de infância, e acabam numa espécie de infância a vida inteira. Quando se quer que a criança mature, não se deve pô-la em jardim de infância, mas em jardim de adultos. Maturar é o próprio da criança. Em vez de colocá-la em estágio superior, onde ela procure acelerar sua busca de um estado mais alto, atualmente se faz o contrário: uma educação para comprimir. E quando termina o jardim de infância, o menino é educado junto com as meninas: a coeducação. Há o risco de ele se tornar um elemento híbrido, nem adulto nem infantil e de espírito nem másculo nem feminino. São Luís, portanto, foi mandado não para o jardim de infância, mas para o exército.

Nos dias em que havia desfile militar, o Marques fazia seu filho ir à frente das tropas, com as pequenas armas que mandara fabricar.

Podemos imaginar que encanto: um menino que tinha uma alma de lírio, marchando ufano à testa de uma tropa maravilhada pela vista do filho do Marquês de Castiglione!

Uma vez, estando o Marquês fazendo sesta, e dormindo também outros soldados, Luís tomou pólvora dos frascos dos soldados e ele, sozinho, carregou um canhão pequeno que estava no castelo, e atirou. O Marquês acordou com o estrépito e, temendo alguma revolta dos soldados, quis saber o que tinha acontecido.

Que Marquês de truz! Não era um homem amolecido, e logo teve uma desconfiança: os soldados estão revoltados…

São Luís Gonzaga foi educado na gravidade que se deve atribuir a todas as coisas

Tinha aprendido, pelo trato em conversação com os soldados, a empregar algumas palavras livres e descompostas que eles de ordinário empregam. Um dia seu preceptor o repreendeu por causa disso. Desde aquela hora nunca mais saiu palavra descomposta de sua boca e, se escutava a outros dizê-las, baixava os olhos de vergonha, ou virava o rosto.

Sabemos que nem sempre a linguagem dos ambientes militares é a mais pura e elevada possível. E o menino aprendeu umas tantas palavras peculiares ao palavreado militar, que não faziam parte da linguagem da casa de família.

Naquela época um príncipe viajava muito. Imaginemos o menino numa carruagem, com seu preceptor e um séquito de gentis-homens que o acompanhavam a cavalo. Só depois de ter deixado a cidade, já em pleno campo, o preceptor falou com ele. Notemos a gravidade que o preceptor atribuía ao assunto.

Os espíritos “marca jardim de infância” achariam exagerada a gravidade empregada pelo preceptor. Dir-se-ia que ele foi imprudente, pois a criança, não sabendo o significado dos termos, não fizera mal nenhum. Pelo contrário, ele revelou uma visão profunda das coisas: a palavra é tal que, mesmo quando a pessoa não sabe o que quer dizer, ela faz algum mal.

O que vem a ser escrúpulo?

Essas palavras, ditas naquela idade, são o maior pecado da vida de Luís. Doeu-se delas a vida toda, como se tivesse feito um pecado gravíssimo.

Veremos agora a humildade de São Luís; a humildade é a verdade e esta o leva a considerar esse ato como o pecado mais grave de sua vida. E aí transparece uma inocência, uma santidade, que é uma coisa de cegar.

O que houve da parte de São Luís: um escrúpulo tonto? O escrúpulo é uma deformação da alma. Na linguagem corrente se diz “tenho escrúpulo de tal coisa”, no sentido de afirmar que minha consciência, retamente orientada, me levante dúvidas sobre a liceidade de algo. O escrúpulo, no sentido próprio da palavra, não é uma dúvida varonil sobre a liceidade de alguma coisa; é um treme-treme imbecil a respeito de algo, sobre o qual não há razão para se ter dúvidas.

No caso de São Luís, não é nem podia ser escrúpulo, porque se vê que ele foi um menino admirável desde o começo, e não pode ter tido essa moleza especial que é o escrúpulo. Então, como se justifica que ele se acusasse disso?

Uma hipótese é esta: acusava-se de ter notado que essas eram palavras vulgares, sem lhes conhecer o sentido sórdido ou imoral. Mas ele as pronunciou de algum modo aderindo ao estado de espírito trivial da soldadesca. Embora não tivesse cometido um pecado contra a castidade, teria praticado uma falta que, de longe, raspava no Primeiro Mandamento.

Importância da idade da razão

Chegado aos sete anos, decidiu dedicar-se inteiramente ao serviço de Deus; de maneira que ele chamava a este tempo o de sua conversão.

Isso prova que a criança pode ter a alma já deformada muito mais cedo. E que essa mania de dizer que ela é um “anjinho”, porque não atingiu ainda a idade da razão e não pecou, é uma lorota. Pecado propriamente dito a criança não comete, enquanto não tiver a idade da razão. Mas daí a dizer que não possa ter adquirido maus hábitos, é muito diferente.

O Padre Mucio Vitelleschi, Geral da Companhia, depõe com juramento na informação canônica que conversou um dia com Luís sobre a opinião de Santo Tomás, segundo o qual, quando o menino chega ao uso da razão, tem obrigação, sob pena de pecado mortal, de dedicar-se logo ao serviço de Deus, e encaminhar todas suas ações ao último fim; com grande sinceridade, disse este santo moço que neste ponto não tinha escrúpulo nenhum, por estar certo de que, no instante em que nele amanheceu a luz da razão, Deus o preveniu com sua graça, e com ela se tinha ele oferecido e dedicado de todo o coração.

São Tomás diz que a criança, quando chega à idade da razão, deve racionalmente, e motivada pela Fé e pela graça, resolver levar a sua vida no serviço de Deus. A primeira razão para viver é dar glória a Deus; depois podem vir outras razões.

Seria uma coisa desejável que no dia em que a criança completasse sete anos, fosse uma data especial, pois é o pórtico pelo qual ela entra na arena. Em vez de se fazer uma festa para dar a entender à criança que é um passo a mais no gozar a vida, deve-se proceder de outro modo, dizendo-lhe: “Agora você vai começar a lutar. E lutar pelo seu Senhor e Deus; pela sua Senhora, a Mãe de Deus; pela sua Mãe, a Santa Igreja Católica. Prepare-se! E faça desde já o enunciado de seu propósito: viver para servir a Deus.”

Confirmação em estado de graça

Com razão, o Cardeal Belarmino(2), falando das assinaladas virtudes de Luís, chegou a dizer que provavelmente se pode crer que a Divina Providência em todos os tempos tem na sua Igreja alguns santos confirmados em graça, enquanto estão vivos. Nestes termos se expressou o Santo Cardeal: “Eu, para mim, acho que um destes confirmados em graça é nosso irmão Luís Gonzaga, porque sei quanto se passa na sua alma”.

Uma pessoa ser confirmada em graça é um dom extraordinário. Não quer dizer que ela seja somente santa, mas que Deus deu àquela santidade tal vigor que a pessoa não pecará mais. Mais precisamente, não perderá o estado de graça; não cometerá pecado mortal. É a excelsitude das excelsitudes.

Virgindade exímia

Estando um dia em oração, fez voto a Deus Nosso Senhor de perpétua virgindade.

Fala-se hoje muito pouco de virgens, e é uma coisa razoável, porque se fala pouco a respeito do que existe pouco. E quando se trata de virgens, pensa-se sempre no sexo feminino. Não se tem ideia da beleza da virgindade no sexo masculino.

Vemos aqui ser de virgindade o voto feito por São Luís.

Afirmam seus confessores, e em particular o Ilmo. Cardeal São Roberto Belarmino, que São Luís em toda a sua vida não sentiu jamais nem o mínimo estímulo ou movimento carnal no corpo, nem um pensamento ou representação lasciva na mente, contrária ao propósito e voto que fizera.

Esse fato fala muito em favor da confirmação em graça.

Ele, de sua parte, cooperou para a proteção desta rica joia com o cuidado contínuo que tinha na guarda dos sentidos, especialmente dos olhos, tendo-os sempre controlados para que não olhassem nem a mil léguas onde pudesse haver algo inconveniente.

Encontro com São Carlos Borromeu e primeira Comunhão

Em 1580, esteve São Carlos Borromeo, Arcebispo de Milão, visitando a diocese de Brescia, e chegou a Castiglione. Depois do sermão, visitou-o Luís, então com doze anos e quatro meses.

Vejamos como eram as coisas: São Roberto Belarmino, São Carlos Borromeo, São Luís Gonzaga encontram-se… Um santo conversando com outro tem muita coisa para dizer.

Consolava-se o Cardeal de ver a tenra planta tão forte no meio dos espinhos da corte, sem indústria de hortelão, mas só com as influências do Céu.

“Indústria de hortelão” não é uma linguagem muito contemporânea. Indústria quer dizer aqui jeito, habilidade, arte. Hortelão é o jardineiro. Sem arte de jardineiro, ele era como uma planta muito viçosa.

O menino alegrava-se de ver o Cardeal, e como sempre ouvira falar dele como de um santo, tomava suas palavras e avisos como vindos do próprio Deus. Foi então que fez sua primeira Comunhão.

Decidido a abandonar o mundo…

Um dia, meditando sobre a felicidade dos religiosos, começou a pensar:

“Que grande bem o da religião! Estes padres estão livres dos laços do mundo, afastados de ocasiões de pecar. Por que estranhar que estejam alegres e sem medo, nem sequer da própria morte, do Juízo e do Inferno, se trazem sempre a consciência limpa? E eu, por que não adoto para mim um estado tão feliz?”

Segundo ele narrou, depois de ter-se encomendado a Deus com grande afinco, julgando que Deus o chamava para esse estado, resolveu-se a deixar o mundo e entrar em alguma Ordem religiosa.

Podemos imaginar a maturidade desse menino! Naturalmente, não estava voltado a dizer coisas engraçadas o tempo inteiro, nem a brincadeiras. Desde pequeno lhe foi ensinado a ser sério.

São Luís pede para isso licença a seu pai

Depois de rogar muito a Deus, procurou escolher em qual Ordem deveria ingressar.

Na festa da Assunção de Nossa Senhora, no ano de 1583, tendo ele quinze anos e meio de idade, comungou e depois se retirou para fazer a ação de graças, pedindo a Nosso Senhor, por intercessão de sua Mãe, que lhe descobrisse sua vontade. E então escutou uma voz clara que lhe disse para entrar na Companhia de Jesus.

Luís foi, então, falar com a senhora Marquesa; e ela ficou tão contente que deu muitas graças a Deus, e quis ser a primeira de cuja boca ouvisse o Marquês a noticia. E foi isto bem necessário para aplacar a cólera e primeiros ímpetos dele. Depois, em diversas ocasiões, fez a Marquesa este ofício, e como o Marquês não sabia que ela desejava ter um filho religioso, atribuiu a diversas intenções, entre outras que ela tinha afeição pelo segundo filho, e desejava que este herdasse os Estados.

Vemos que era bem esperta essa Marquesa. Esperta ao serviço do bem: não revelou ao marido que ela queria que seu filho mais velho ficasse jesuíta. Disfarçou, e com isso o Marquês começou a ter outras ideias, como a de que desejava favorecer o segundo filho para o governo dos Estados que pertenciam a esse Marquês; assim, ela desviava a atenção do marido sobre seu filho mais velho e sua vocação religiosa, a fim de ele poder entrar num convento. Ela era corajosa e reivindicou para si a honra de ser a primeira a dar a notícia, ou seja, a escorar no peito a primeira raiva do Marquês.

Mais tarde foi Luís pessoalmente, com a maior humildade e reverência que pôde, e disse ao Marquês que ele estava resolvido, e que haveria de ser religioso.

Notem o contraste: “Foi Luís pessoalmente com a maior humildade e reverência que pôde”, e “disse que estava resolvido”. Quer dizer, respeitoso ao extremo, mas resolvido, e não adiantava vir com histórias: ia ser mesmo. Era maior de idade e dispunha de si.  O resto são amabilidades e reverências necessárias e louváveis. Ele vai atender à vocação de Deus, porque é preciso obedecer a Deus antes que aos homens.

A reação do Marquês

Ficou o Marquês como de fogo ouvindo isto, e com ásperas palavras expulsou-o de sua presença, ameaçando que o faria despir e açoitar.

Não conheço um fato atual de recusa de um pai para seu filho, no caso deste querer entrar para um movimento religioso, e que tenha chegado à ameaça de açoite em carne viva. Isso teve São Luís Gonzaga que enfrentar.

Respondeu Luís: “Fosse do agrado de Deus, meu Senhor, que eu merecesse padecer algo por seu amor”. Ficou o Marquês com incrível ira, e depois de alguns dias em que não pôde descansar nem repousar, mandou chamar o confessor e fez-lhe grandes queixas de ter colocado tais coisas na cabeça do filho, sobre o qual ele depositava as esperanças de sua casa.

Ele via que seu filho era muito inteligente, capaz e virtuoso. E um defeito de muitas famílias antigas era este: quando tinham um filho menos inteligente destinavam-no à vida sacerdotal; a filha feiarrona, que não conseguia encontrar casamento, ia ser freira; escolhiam os filhos mais capazes para continuar a família. Era uma forma de dar a Deus o menos bom, e ficar para si com o melhor. Assim não se trata a Deus, a Nossa Senhora!

O homem forte é aquele que segue todos os meios lícitos para cumprir a vontade Deus

Tendo certo dia ido visitar, com seu irmão Rodolfo, o colégio da Companhia, Luís disse no final aos que o acompanhavam que poderiam voltar à casa, que ele não mais queria regressar, mas ficar lá.

Foi jeitoso. Não disse em casa “até logo” para o pai; pretextou uma visita ao colégio dos jesuítas, e depois disse: “Vocês vão-se embora, eu vou ficar aqui!”, dando a entender: “Meu pai, se quiser, venha cá”. Assim fazem os homens fortes.

Há um modo errado de conceber o homem forte: aquele que é tonitruante como um trovão em meio a relâmpagos. Às vezes ele é assim; outras, não: é jeitoso e macio, mas chega onde deve chegar. O homem que obedece à vontade de Deus, e segue todos os meios lícitos para cumpri-la, esse é um homem forte.

Ao saber do ocorrido, o Marquês enviou vários mensageiros para fazê-lo retornar. Estes só obtiveram êxito quando argumentaram que era um menoscabo da autoridade paterna fazer isso sem licença.

Tentativas do pai em dissuadir São Luís a respeito de sua vocação religiosa

Instou, pois, o Marquês para que, ao menos, o jovem adiasse a entrada até a volta à Itália. Luís, pensando que o Marquês cumpriria a promessa, respondeu que com gosto daria esse prazer a seu pai. E assim ficaram todos de acordo.

Chegando à Itália, o Marquês escusou-se, dizendo ser forçoso que Luís fizesse antes, com seu irmão Rodolfo, as visitas de cortesia às cortes da Itália.

Concluídas as visitas, obteve o Marquês do Duque de Mântua que enviasse um Bispo muito eloquente dizer a Luís que ficasse homem de igreja, e assim poderia servir melhor a glória de Deus; para isso não faltavam exemplos de homens santos, como o Cardeal Carlos Borromeo.

Ou seja, ficar padre secular e não membro de uma Ordem religiosa.

Insistiu o Bispo várias vezes e com diversos argumentos. Luís agradecia a preocupação do Duque, mas escolhera a Companhia, e não pretendia outro gênero de vida.

Veio também uma pessoa da família argumentar que, se queria deixar o mundo, não entrasse na Companhia que ficava perto dele, mas nos Cartuxos ou outra Ordem distante.

Vê-se aí a decadência religiosa da época: o Marquês encontra uma série de eclesiásticos que vão fazer a obra do demônio junto ao filho. Uma pessoa o aconselha a entrar numa Ordem severíssima, como os cartuxos que são contemplativos no rigor do termo. Por que o Marquês poderia preferir que ele ficasse cartuxo a jesuíta? Porque os jesuítas estavam na ponta da Contra-Revolução. E se seu filho se tornasse jesuíta teria inimigos, mas se entrasse para uma cartuxa ou outra Ordem semelhante, ficaria trancado lá. Ao menos esse espantalho sairia de diante de seus olhos.

Afinal, depois de muito relutar, o Marquês confessou estar convencido de que aquela era uma grande vocação de Deus, e logo começou a contar a grande santidade com que Luís vivera desde menino, e disse que ele não queria mais impedir o filho de ficar religioso.

A bonita morte do Marquês

Quando morreu o Marquês, seu pai, dois meses e meio depois de começado o noviciado, Luís não sofreu maior impressão, como se não fosse com ele. Nesta ocasião foi-lhe dito que escrevesse a sua mãe para consolá-la, e ele começou a carta dizendo que dava graças a Deus, pois doravante poderia dizer mais livremente: “Pai nosso que estais nos céus”.

Manifestou-se de modo especial a Providência de Deus nesta morte, pois o Marquês sempre fora dado a pretensões de honrarias e grandezas mundanas. E com motivo da entrada de Luís em Religião fez tal mudança de vida que deixou totalmente o jogo; todas as noites mandava que trouxessem diante de sua cama um Crucifixo que Luís deixara e rezava os sete salmos penitenciais e as ladainhas.

Notem qual é o problema da profundidade do pecado. O mundo hoje está cheio de jogadores, em toda parte. Os presentes neste auditório não acham dificílimo que um deles morra nessas condições? É quase impensável. Para a atitude do Marquês, é claro que contribuía, e em muito, o mérito de São Luís Gonzaga. Também é verdade que esse homem tinha restos de boas resoluções, tradições, e não estava tão gangrenado pela Revolução como estão os de hoje. Assim, foi capaz de um arrependimento sério, profundo, até edificante, depois de ter feito uma oposição a mais tremenda possível à vocação do filho; e morreu na graça de Deus.

São Luís morre em jovem idade

Antes de completar seus estudos de Teologia, faleceu aos 23 anos de uma doença contagiosa.

A 26 de setembro de 1605, Paulo V publicou o seu Breve de beatificação.

Diversos foram os pedidos de beatificação. O próprio Imperador Rodolfo escreveu desde Praga ao Sumo Pontífice, e além de fazer a lembrança “da pura, piedosa, santa e mortificada vida de Luís”, acrescentava esta razão: “era Príncipe do Sacro Romano Império, e parente seu, e tinha dado a todos tão preclaro exemplo de desprezar o mundo”.

Considerem como os tempos mudaram: o mais alto personagem temporal da Cristandade, naquele tempo, o Imperador do Sacro Império, se interessava pela beatificação de uma pessoa. Escrevia diretamente ao Papa, intervindo como filho primogênito, em certo sentido da palavra, da Igreja para a beatificação do Servo de Deus. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de: 9/2/1966, 3/4/1990 e 18/4/1990)

 

1) Cepari. Pe Virgilio. Vida de San Luís Gonzaga, Patrono de la juventude. Einsiedeln, Benziger & Co.: Nova York, 1891.

2) São Roberto Belarmino. Cardeal, membro da Companhia de Jesus e contemporâneo de São Luís Gonzaga.

São João Batista – Modelo de Alma

Modelo de alma admirativa, São João Batista anunciou a vinda do Messias e, por isso, foi seguido pelas multidões.

Contudo, ao avistar Nosso Senhor, ele proclamou: “Eis aquele que é superior a mim, eis o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo, e do qual não sou digno de desatar suas sandálias”.

E logo depois, essa afirmação de extrema beleza: “Convém que Ele cresça; a mim me compete minguar”. Como se dissesse: “Terminou minha missão, que era de preparar os caminhos do Filho de Deus. Eu não sou nada; Ele é tudo. Importa que eu diminua, e Ele exista”.

Esplêndida expressão de quem admira e se enleva com o que lhe é superior!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 10/6/1967)

Uma das facetas do Imaculado Coração de Maria

Um dos meios bonitos de conhecermos o espírito e o Imaculado Coração de Maria consiste em estudar a vida de São João Batista. Por ter sido ele santificado no seio de Santa Isabel pela palavra de Nossa Senhora, vê-se que Ela comunicou-lhe ali, misteriosamente, o espírito d’Ela. E tudo quanto o Precursor realizou em sua vida era uma decorrência dessa graça inicial recebida e constantemente intensificada, pelos rogos d’Ela.

Podemos, então, ver São João Batista enquanto asceta austero, pregador do Cordeiro de Deus que viria, e como herói que enfrenta Herodes e morre como mártir, sublime de grandeza e de serenidade. É uma das facetas do espírito de Nossa Senhora.

(Extraído de conferência de 11/7/1967)