Uma verdadeira procura do Absoluto

No colóquio de Óstia, entre Santa Mônica e Santo Agostinho, vemos a beleza de dois Santos conversarem sobre como seria a vida eterna dos bem-aventurados, e a alegria daquela mãe santa em ver o filho, outrora perdido, incendiado de desejos de contemplar o Céu.

É uma verdadeira procura do Absoluto. Depois de terem considerado todas as coisas materiais, começaram a contemplar as espirituais e a alma, como elemento para se ter ideia da beleza da perfeição de Deus. Por fim, chegaram à conclusão de que, no ápice de tudo, figura a Sabedoria eterna e incriada.

Esses dois Santos mantêm uma conversa que é uma oração, a qual vai subindo de ponto em ponto até chegar, num êxtase, ao seu ápice. Tudo isso com tanta simplicidade, junto à janela de um quarto dos fundos de uma hospedaria de Óstia, dando para um jardim. Uma verdadeira maravilha!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 31/8/1965)

Santo Agostinho

Quando lemos as “As Confissões” de Santo Agostinho, facilmente aquilatamos a profundidade de sua alma e a retidão de seu espírito de convertido. Podemos “ouvir” nas linhas o latejar de seu coração arrependido pelos pecados de sua vida passada, e nos é dado admirar, semeado por aquelas páginas imortais, o talento maravilhoso de um homem chamado por Deus a enriquecer a Igreja com altíssimos ensinamentos e explicitações.

O belo e vigoroso alçar de uma águia aos ares, atraída pelos fulgores do sol, nada é em comparação com o voo luminosíssimo do pensamento de Santo Agostinho. Ele se eleva no firmamento da doutrina católica com um ímpeto que se diria quase inimaginável numa alma humana.

Pois esse foi o grande Bispo de Hipona, uma das maiores intelectualidades que houve na História, um gigante da Fé, da sabedoria e da santidade, para todos os séculos até o fim do mundo..

Plinio Corrêa de Oliveira

Santo Agostinho, farol de sabedoria e de amor a Deus

De pecador a modelo de perfeição espiritual, Santo Agostinho abraçou a Fé católica com fervor e zelo invulgares, defendendo-a e a enriquecendo com a extraordinária inteligência que lhe foi concedida por Deus. Algumas facetas dessa grande figura da Igreja reluzem aos nossos olhos, comentadas por Dr. Plinio.

Considerado um dos mais luminosos teólogos da Igreja em todos os tempos, Santo Agostinho legou à História não apenas seus tratados espirituais, como também a narrativa da própria conversão, a descrição de suas lutas interiores e de seu triunfo sobre o pecado. “Confissões”, a célebre obra do Bispo de Hipona, tem produzido inúmeros frutos de emenda de vida, de retomada do caminho da virtude, por parte dos que se deixaram tocar pelo exemplo desse herói da Fé.

Antes de comentarmos uma eloquente passagem dessa autobiografia, convém tomarmos conhecimento de alguns breves contornos do perfil de Santo Agostinho.

Retórico e filósofo ilustre

“Pai por excelência de todos os Padres da Igreja, Doutor da graça, monge, pastor, teólogo, autor de uma obra monumental e escritor de gênio, Agostinho permanece o símbolo vivo do convertido, não cessando de influenciar o espírito e o imaginário da Europa.

“Esse romano da África, de origem berbere, nascido no ano de 354, em Tagasta, na atual Argélia, alcançou grande renome por seu extraordinário domínio das artes liberais, e foi considerado por seus contemporâneos como o mais ilustre dos retóricos e o mais autorizado dos filósofos. Adepto de Cícero, o jovem Agostinho vai para Cartago, e depois para Roma e Milão, que era então a capital do Império. As suas peregrinações espirituais o levaram a aderir ao maniqueísmo, mas é o encontro com o cristianismo que vai revolucionar a sua existência. Aos trinta e dois anos, por insistência de sua mãe, Santa Mônica, e de Santo Ambrósio, e após uma revelação sobrenatural nos jardins da sua casa, Agostinho pede que seja batizado.

“Diz uma tradição que, terminada a cerimônia do Batismo, Santo Ambrósio exclamou: ‘Te Deum laudamus!’, e que Santo Agostinho acrescentou: ‘Te Dominum confittemur!’; e assim, alternando suas frases um e outro, entre os dois improvisaram naquela ocasião os conceitos e palavras que compõem o cântico litúrgico do ‘Te Deum’.

Incansável adversário da heresia

“Depois de um breve retiro em Cassiciaco, Agostinho volta à sua terra natal, torna-se monge e consagra três anos à oração e ao estudo.

“Em 391, O Bispo Valério de Hipona (atual Annaba) chama-o para junto de si. Agostinho suceder-lhe-á em 395 nessa importante sede episcopal. Começa então para esse pregador e catequista infatigável uma era de grandes controvérsias — contra os donatistas, em primeiro lugar, que negam aos ‘lapsi’ (apóstatas) o perdão da Igreja; em seguida contra os pelagianos, que atribuem exclusivamente ao homem o mérito da salvação.

“O Bispo de Hipona descobre em si uma vocação de lutador contra as heresias, capaz não só de inscrever a sua reflexão nas problemáticas do seu tempo, como também de edificar uma autêntica Teologia perene. No fim da sua vida, já em plena invasão dos Vândalos, enfrentou um último desvio à Fé: o dos homeanos, que negam o dogma cristológico.

A tristeza, companheira no fim da vida

“Por volta do ano 430, os bárbaros devastam totalmente o norte da África. Ao atingirem Hipona, os invasores a cercaram e lhe impuseram um rigoroso assédio. Este acontecimento agravou a já amarga e triste ancianidade de Santo Agostinho, que sofreu mais do que todos, e se alimentou de dia e de noite com a torrente de lágrimas que brotavam de seus olhos ao ver como uns caíam mortos e outros fugiam, e ao considerar que as igrejas ficavam viúvas de seus sacerdotes, e as populações arrasadas se transformavam em desertos.

“Como os horrores continuassem, reuniu seus monges e lhes disse: ‘Pedi ao Senhor que nos tire desta angustiosa situação, ou nos dê forças para suportá-la, ou me leve desta vida e me livre de presenciar tantas calamidades’.

“O Senhor o ouviu e lhe concedeu a terceira dessas petições. Meses após o início do cerco da cidade, Santo Agostinho caiu enfermo. Compreendendo que o dia de sua morte se aproximava, mandou que escrevessem os Sete Salmos Penitenciais em grandes cartazes e os pregassem a uma das paredes de sua cela, de maneira a poder lê-los e rezá-los a partir do leito em que se achava prostrado. Assim foi feito, e o Santo, sempre com imensa emoção de alma, recitava constantemente ditas orações.

“Pouco antes de sua morte, Santo Agostinho teve essas interessantes palavras: ‘Ninguém, por muito virtuosamente que tenha vivido, deve sair deste mundo sem fazer previamente confissão de seus pecados e sem receber a Eucaristia’.

“Até o último momento de sua vida conservou perfeito estado de suas faculdades, seus membros e sua vista, de maneira que, com completa lucidez mental, no instante supremo, rodeado de seus monges que o assistiam com suas preces, aos 77 anos de idade e 40 de episcopado entregou seu espírito a Deus.

Apaixonado investigador da verdade

“Luminosíssimo farol de sabedoria, baluarte da ortodoxia, fortaleza inexpugnável da Fé, sobressaindo em talento e ciência entre os demais doutores da Igreja, Agostinho foi homem eminente, tanto pelos exemplos de ­suas virtudes, quanto pela riqueza de sua doutrina.

“A obra que deixou é imensa. Cento e treze Tratados, entre os quais se destacam o ‘De Trinitate’ e ‘A Cidade de Deus’ que inaugura a teologia da História; 218 epístolas, mais de 500 ‘Sermões’, ‘Diálogos’ e ‘Comentários’ bíblicos, e, por fim, essa obra singular que são as ‘Confissões’, a primeira autobiografia de todos os tempos.

“A sua teologia, feita de experiência e permanentemente existencial, eleva-se até a contemplação pura, sem ignorar a psicologia, a historicidade, a realidade humana. Da iluminação fulgurante da sua juventude ao final da sua velhice, Santo Agostinho nunca deixou de meditar sobre o dom feito por Deus ao homem, e que faz dele um investigador apaixonado da verdade.”

“Dai-me o que me ordenais; ordenai-me o que quiserdes!”

Vemos, portanto, como Santo Agostinho se destacou não apenas por suas insignes virtudes, mas também pela luminosa sabedoria que Deus lhe concedeu, a fim de a utilizar para o bem das almas e da doutrina católica.

Em seu famoso livro autobiográfico — “Confissões” — tem ele esta linda passagem sobre a qual gostaria de tecer alguns breves comentários:

“Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e sempre nova. Tarde Vos amei! Eis que habitáveis dentro de mim, e eu lá fora a procurar-Vos! Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes. Estáveis comigo, e eu não estava convosco! Retinha-me longe de Vós aquilo que não existiria se não existisse em Vós. Porém, chamaste-me com uma voz tão forte que rompestes a minha surdez. Brilhastes, cintilastes e logo afugentastes a minha cegueira! Exalastes perfume: respirei-o suspirando por Vós. Saboreei-Vos, e agora tenho sede e fome de Vós. Tocastes-me e ardi no desejo da vossa paz. Só na grandeza da vossa misericórdia coloca toda a minha esperança. Dai-me o que me ordenais, e ordenai-me o que quiserdes.

“Ora, afirmou um sábio: ‘É já um efeito da inteligência saber que ninguém pode ser casto sem o dom de Deus’. Pela continência, reunimo-nos e nos reduzimos à unidade, da qual nos afastamos ao nos derramarmos por inumeráveis criaturas. Pouco Vos ama aquele que ama, ao mesmo tempo, outra criatura sem ser por vossa causa. Ó amor que sempre ardeis e nunca Vos extinguis! Ó caridade, ó meu Deus, inflamai-me! Ordenais-me a continência. Dai-me o que me ordenais e ordenai-me o que quiserdes!”

Trata-se de um texto tão elevado e nobre que sua intelecção pode parecer, à primeira vista, um pouco árdua.

Belos jogos de palavras

Santo Agostinho faz alguns jogos de palavras, muito apreciados pelos antigos. Não sei como soam e que sabor têm na audição e no paladar espiritual das gerações posteriores à minha, mas a meu ver são lindíssimos.

Como se sabe, Santo Agostinho se converteu na idade madura, após ter levado uma vida de pecados. Por isso, se dirige a Deus dizendo: “Tarde Vos amei”, e utiliza o primeiro jogo de palavras: “Ó Beleza tão antiga e sempre nova”. O Criador é antigo, pois, sendo eterno, existiu antes de todos os séculos. Mas é uma Beleza sempre renovada, porque é infinito, manifestando continuamente algo de inédito à nossa consideração. E o homem, adorando-O por tais predicados, encontra em Deus a plenitude, a perfeição expressa pelo aludido jogo de palavras. Este como que vincula dons antitéticos que o espírito humano não saberia unir.

Exclama o Santo: “Eis que habitáveis dentro de mim e eu lá fora a procurar-Vos!”

Em todos os homens, sobretudo nos batizados, Deus age de modo permanente através da ação da graça. Portanto, o Altíssimo permanecia no interior de Santo Agostinho. Porém, como um louco, ele O procurava fora, almejando um contentamento que as criaturas não dão, pois a verdadeira felicidade está dentro de nós.

Vemos, então, outro jogo de palavras: dentro e fora. Ele possuía, no mais fundo da alma, aquilo que tinha o desatino de procurar fora.

Continua o Bispo de Hipona: “Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes. Estáveis comigo, e eu não estava convosco!”

Quer dizer, Deus habitava em seu interior, mas ele não permanecia com o Senhor. É uma antítese, sem ser uma contradição.

Recebemos graças para obedecer às ordens divinas

Em certo trecho, Santo Agostinho tem esta linda afirmação: Deus nos proporciona aquilo que nos ordena. O que significa isso?

Quando o Criador nos prescreve um mandamento, nos concede anteriormente a possibilidade de observá-lo. Assim, antes de nos preceitua a castidade, Ele nos dá a graça para praticá-la. Pois Deus, ao contrário de certos dirigentes humanos, é um bom Pai e nos governa pelas regras da sua inesgotável misericórdia.

Com base nessa concepção, Santo Agostinho apresenta uma interessante justificativa para a castidade. Segundo ele, o bem de cada ser e o da ordem do universo é a unidade. O homem puro é aquele que ama a Deus acima de tudo, e as outras coisas por amor ao Criador. Pelo contrário, o impuro corre atrás de mil criaturas, e nessa espécie de pluralidade se afasta da unidade originária, primitiva, para a qual deve tender. Ao agir assim, ofende a ordem do universo.

Tal visualização encerra uma maravilhosa repulsa da poligamia e do divórcio, e é mais valiosa, penso eu, do que qualquer refutação sociológica contra esses desvios morais. Pois a metafísica é muito mais apropriada para convencer o espírito humano do que os dados técnicos, mesmo quando acompanhados de argumentos de índole psico-social. Creio que em qualquer época de minha vida, esse raciocínio a favor da castidade, baseado no conceito da unidade, convenceria mais do que todos os outros.

Com esses breves comentários é-nos dado recordar, então, a memória deste extraordinário varão de Fé e de sabedoria, exemplo fulgurante de amor a Deus, que foi o grande Santo Agostinho de Hipona.

Santa Monica

Nas “Confissões” de Santo Agostinho há um trecho especialmente magnífico: é chamado o “Êxtase de Óstia” ou o “Colóquio de Óstia”. Hoje em dia se diria o “diálogo de Óstia”.

O episódio é o seguinte: a mãe de Santo Agostinho, Santa Mônica (331–387), passou uns trinta anos ou mais chorando a pedir a Deus a conversão de seu filho. Parecia que quanto mais ela rezava, esta conversão se tornava mais longínqua. Até que, de desatino em desatino, Santo Agostinho acabou por comer as bolotas dos porcos e começou um processo de conversão que fez dele o grande Doutor da Igreja.

Santo Agostinho, já convertido, e Santa Mônica resolveram voltar para a África do Norte, naquele tempo inteiramente romana, e mais especificamente para a cidade de Cartago, de onde eram naturais, para ali residirem. E assim percorreram uma certa parte da Itália para tomar um navio em Óstia, que é um porto pequeno perto de Roma, mas que tinha naquele tempo uma certa importância. De lá iam seguir para a África.

Encontravam-se então numa hospedaria de Óstia, encostados junto a uma janela e começaram a conversar a respeito de Deus e das coisas do Céu, quando os dois juntos tiveram um êxtase.

Santo Agostinho relata este colóquio extraordinário e é um dos trechos mais famosos das “Confissões”. Poucos dias depois Santa Mônica morria, ainda estando na cidade de Óstia. Sua missão na terra estava cumprida e Nosso Senhor a chamou ao Céu para gozar do prêmio que merecia.

Então, o último lance de sua vida foi exatamente a alegria de ter na terra com o filho este colóquio, que era um prenúncio, um antegozo da visão beatífica. Tenho a impressão que qualquer um de nós que passasse por Óstia, gostaria de ver se ainda existe essa hospedagem.

Resolvi ler aqui a narração desse colóquio, porque é um página célebre e abre os nossos horizontes para os grandes portentos na perspectiva da hagiografia e da doutrina católica. O trecho é extraído diretamente das “Confissões”:

“Próximo já do dia em que ela ia sair desta vida – dia que Vós conhecíeis e nós ignorávamos…”

Estas interpelações diretas de Santo Agostinho a Deus são magníficas. Os senhores deveriam ler os “Solilóquios” de Santo Agostinho, que há em nossa biblioteca e que são qualquer coisa de absolutamente estupendo.

“…sucedeu, segundo creio, por disposição de Vossos secretos desígnios, que nos encontrássemos sozinhos, ela e eu, apoiados a uma janela cuja vista dava para o jardim da casa onde morávamos. Era em Óstia, na foz do Tibre, onde, apartados da multidão, após o cansaço duma longa viagem, retemperávamos as forças para nos embarcarmos.

“Falávamos a sós, muito docemente, esquecendo o passado e dilatando-nos para o futuro. Na presença da Verdade, que sois Vós, alvitrávamos qual seria a vida eterna dos santos, que ‘nunca os olhos viram, nunca o ouvido ouviu, nem o coração do homem imaginou’.”

Vejam que beleza: dois santos conversando sobre qual seria a vida eterna dos santos, e a alegria de Santa Mônica em sentir aquele filho perdido que agora estava incendiado de desejos de contemplar o Céu. É uma verdadeira maravilha!

“Sim, os lábios do nosso coração abriam-se ansiosos para a corrente celeste da nossa fonte, a fonte da Vida, que está em Vós, para que aspergidos segundo a nossa capacidade, pudéssemos de algum modo pensar num assunto tão transcendente.”

Faço notar aos senhores a maravilha da expressão “os lábios do coração”… quer dizer, aquilo por onde o coração bebe, por onde o coração sorve, estavam abertos para receber de Deus aquilo que nesta vida terrena se pode receber a respeito das alegrias do Céu.

“Encaminhamos a conversa até a conclusão de que as delícias dos sentidos do corpo, por maiores que sejam e por mais brilhante que seja o resplendor sensível que as cerca, não são dignas de comparar-se à felicidade daquela vida, nem mesmo que delas se faça menção. Elevando-nos em afetos mais ardentes por essa felicidade, divagamos gradualmente por todas as coisas corporais até ao próprio céu, donde o sol, a lua e as estrelas iluminam a terra.”

É uma verdadeira procura do absoluto. Eles começaram a considerar: primeiro as coisas da terra, que lisonjeiam os sentidos, porque estavam no Império Romano decadente, em que havia fortunas fabulosas e pessoas que tinham luxo para deleitar os sentidos de que os Srs. não têm ideia. Então, o primeiro confronto é da felicidade celeste para a felicidade dos homens, que no tempo do Império, eram tidos como felizes. Resposta: isto não é nada. Então, começam a perguntar: como é então (a felicidade verdadeira)? E começam a percorrer os céus, a imaginar com os dados do céu material e visível, como seria o paraíso celeste material, mas invisível, e como seria a glória da visão beatífica que neste paraíso se goza. É este o esquema da conversa deles. Então continua:

“Subíamos ainda mais em espírito, meditando, falando e admirando as Vossas obras. Chegamos às nossas almas e passamos por elas para atingir essa região de inesgotável abundância, onde apascentais eternamente Israel com o pastio da verdade. Ali a vida é a própria Sabedoria, por Quem tudo foi criado, tudo o que existiu e o que há de existir, sem que ela própria se crie a si mesma, pois existe como sempre foi e como sempre será. Antes, não há nela ‘ter sido’, nem ‘haver de ser’, pois simplesmente ‘é’, por ser eterna.”

Ou seja, depois de ter considerado todas as coisas materiais, começaram então a considerar a alma como elemento para se ter algo da ideia da beleza, da perfeição de Deus. E depois de considerar a alma, chegaram à conclusão de que no ápice de tudo isto figurava a Sabedoria Eterna e Incriada. Essa Sabedoria que é eterna, que não tem passado, nem presente e nem futuro. Foi nessa consideração sapiencial, suprema, que os espíritos deles se detiveram.

“Enquanto assim falávamos, anelantes pela Sabedoria…”

Quer dizer, visando conhecer a Deus enquanto Sabedoria, enquanto fim e explicação de todas as coisas.

“…atingimo-la momentaneamente num vislumbre completo do nosso coração.”

É o êxtase. Enquanto conversavam a respeito dessas coisas, conduzidos pela graça de Deus, em certo momento a Sabedoria se revelou a eles, e tiveram um fenômeno místico por onde viram Deus.

Os senhores vêem que é algo muito natural: são dois santos que tem uma conversa que é uma oração; esta vai subindo de voo, de ponto em ponto, e quando chega ao seu ápice, então lhes aparece Deus Nosso Senhor, mas aparece de maneira a fazê-los conhecer enquanto Sabedoria Eterna. E tudo isto com tanta simplicidade,   numa janela de uma hospedaria de Óstia…

“Suspiramos e deixamos lá agarradas as primícias de nosso espírito.”

Quer dizer, o que havia de melhor neles ficou na visão, não voltou para a terra.

“…Voltamos ao vão ruído dos nossos lábios, onde a palavra começa e acaba. Como poderá esta, meu Deus, comparar-se ao Vosso Verbo, que subsiste por si mesmo, nunca envelhecendo e tudo renovando?”

Aqui está uma insinuação de que Deus lhes disse uma palavra. Naturalmente é o Verbo. E que isto que foi dito por Deus sobre Sua própria Sabedoria, foi qualquer coisa tal que o que continuassem a conversar seria um balbucio. A visão cessou e as palavras deles eram umas coisas vazias à vista do que Deus havia revelado de Si mesmo.

“Dizíamos pois: suponhamos uma alma onde jazem em silêncio a rebelião da carne, as vãs imaginações da terra, da água, do ar e do céu…”

É a doutrina dos quatro elementos.

“Suponhamos que ela guarde silêncio consigo mesma, que passa para além de si, nem sequer pensando em si; uma alma na qual se calem igualmente os sonhos e as revelações imaginárias, toda a palavra humana, todo o sinal, enfim, tudo o que sucede passageiramente.

“Imaginemos que nessa mesma alma existe o silêncio completo, porque se ainda pode ouvir, todos os seres lhe dizem: ‘Não nos fizemos a nós mesmos, fez-nos O que permanece eternamente’. Se ditas estas palavras os seres emudecerem, porque já escutaram quem os fez, suponhamos então que Ele sozinho fala, não por essas criaturas, mas diretamente, de modo a ouvirmos a sua palavra, não pronunciada por uma língua corpórea, nem por voz de Anjo, nem pelo estrondo do trovão, nem por metáforas enigmáticas, mas já por Ele mesmo.

“Suponhamos que ouvíamos Aquele que amamos nas criaturas, mas sem o intermédio delas, assim como nós acabávamos de experimentar, atingindo num voo de pensamento, a Eterna Sabedoria que permanece imutável sobre todos os seres.”

Quer dizer, ele imagina uma alma que não cogita de nada mais criado, que consegue abstrair de tudo e que de repente ouve uma palavra de Deus que diz alguma coisa a respeito de Si próprio.

“Se esta contemplação continuasse e se todas as outras visões de ordem muito diferente cessassem, se unicamente esta arrebatasse a alma e a absorvesse, de modo que a vida eterna fosse semelhante a este vislumbre intuitivo – a visão beatifica – pelo qual suspiramos, não seria isto a realização do “entra no gozo do teu Senhor”? E quando sucederá isto? Será quando todos ressuscitarmos? Mas então não seremos todos transformados?”

Ele afirma então que se uma alma pudesse ficar eternamente apenas naquele vislumbre, já teria um prazer paradisíaco inefável, extraordinário.

“Ainda que isto, dizíamos, não pelo mesmo modo e por estas palavras, contudo, bem sabeis, Senhor, quanto o mundo e os seus prazeres nos pareciam vis, naquele dia quando assim conversávamos. Minha mãe acrescentou ainda: ‘Meu filho, quanto a mim, já nenhuma coisa me dá gosto nesta vida. Não sei o que faço ainda aqui, nem porque ainda cá esteja, esvanecidas já as esperanças deste mundo. Por um só motivo desejava prolongar um pouco a minha vida: para ver-te cristão e católico, antes de eu morrer. Deus concedeu-me esta graça super abundantemente, pois vejo que já desprezas a felicidade terrena para servirdes ao Senhor. Que faço, eu, pois, aqui?’”

Dias depois ela morreu.

Santa Mônica, nesta visão, teve o prenúncio de sua própria morte, compreendeu que não tinha nada mais para fazer. Agora os senhores considerem a diferença de uma grande santa com uma mãe piegas (excessivamente sentimental). Esta última diria: “Agora que meu filho está convertido, começou para mim a vida! Eu vou ouvir os sermões dele, vou ver suas obras, vou viver com ele uma vida gostosinha na casa episcopal, admirando a virtude e o talento daquele que eu gerei para a vida natural e que eu arranquei, pelas minhas orações, à morte eterna, para dar um grande santo. Agora é que está bom…”

Santa Mônica não queria ver seu filho para nada disso. Ela o queria para Deus. Quando sentiu que Santo Agostinho estava nas mãos de Deus, não quis perder  tempo vendo-o servir a Deus. Alguns dias depois ela expirou.

É uma grande santa e seu último grande lance da vida narrado por um grande santo.

Aí vemos um pouco o que é a vida de um santo, quando não é descrita por um “heresia branca”. Os senhores vêem quantas coisas há de comum com essa narração – e das quais já tinha me esquecido inteiramente – com as conferências sobre a “Procura do Absoluto” e temas conexos que temos feito aqui ultimamente.

Plinio Corrêa de Oliveira (Santo do Dia, 31 de agosto de 1965)

 

Os tempos de São Luís, Rei da França

Assim como Deus deseja encaminhar o desenvolvimento da Igreja para a realização de seus planos, é natural que esteja nos desígnios d’Ele, correlativamente, estabelecer, proteger e desenvolver a civilização católica. Em virtude dessa disposição divina, desperta o maior interesse uma análise da história à procura das pessoas providenciais, dos problemas, das crises, dificuldades e êxitos que a formação e conservação dessa civilização encontrou diante de si.

Vejamos hoje um de seus períodos-auge, aqueles anos do século XIII nos quais desabrochou um sábio governante e um grande herói da Fé: São Luís IX, rei da França.

Santidade e infâmia numa mesma dinastia

Ele era filho de Luís VIII e de uma princesa cercada de uma auréola bem medieval e poética, tanto pelo seu  nome como pela origem, pelo estilo e pelas qualidades morais: Branca de Castela.

Parece-me um nome de contos de fadas, que faz pensar num lírio particularmente alvo, brotado no alto da torre de uma fortaleza sobranceira e inexpugnável! Branca de Castela…

Dela nasceu, em 25 de abril de 1215, um filho igualmente lirial, do qual se podem fazer todos os elogios.

Por ocasião da morte de seu pai, em 1227, Luís tinha 12 anos. Com esta idade foi proclamado rei, bem antes do reconhecimento de sua maioridade, que sobreviria apenas em 1235. Neste mesmo ano casou-se com uma princesa de nome também literário, Margarida de Provença. Situada no sul da França, a Provença, além de rica e bela, é  uma  região de clima suave, terra dos trovadores e da poesia. E assim como a mãe era um lírio desabrochado nos cumes de uma fortaleza, a esposa era uma margarida nascida no meio dos encantos provençais.

Pelo lado materno, era primo-irmão de Luís outro monarca santo, o rei Fernando de Castela, grande herói da reconquista espanhola contra os mouros. Quanto a seus descendentes, São Luís foi pai do rei Filipe III, o Ousado, e avô de um dos piores reis de toda a história, Filipe, o Belo. Quer dizer, uma virtuosa mãe na origem, um primo santo no ramo colateral e um neto iníquo. É a confirmação de uma triste regra no existir das dinastias, segundo a qual a santidade e a infâmia costumam disputar lugar numa mesma genealogia…

Temas candentes no tempo de São Luís

Viveu São Luís numa época em que alguns temas eram candentes, revestindo-se de importância transcendental e ocasionando as mais profundas repercussões na organização da Idade Média. Não se tratava, portanto, de problemas meramente especulativos, nos quais o santo soberano deve ter tomado parte relevante, embora haja carência de dados históricos para situar essa participação.

Para mencionar apenas alguns desses temas, havia, em primeiro lugar, a luta entre o Império e o Papado, que atingia então seu estágio mais delicado.

Luís IX, rei de França ou seja, da “Filha Primogênita” da Esposa de Cristo santo, terceiro franciscano, cheio de zelo pela causa da Igreja, acompanhou com apreensão essa querela que envolvia os poderes espiritual e temporal. Infelizmente, não se conhece muito de sua atividade diplomática, nem da força política ou material que tenha empregado para assegurar a preponderância do Papado sobre o Império, questão absolutamente nevrálgica para a Civilização Católica daquela época. Seria preciso esclarecer ainda alguns pontos, para se poder chegar a uma conclusão acertada sobre a atitude do monarca francês nessa controvérsia.

Outro tema interessante é o seguinte: São Luís viveu no ápice da Idade Média. Sabemos que foi contemporâneo de São Tomás, de São Boaventura, e que no tempo dele a sociedade orgânica e corporativa atingiu o máximo de seu desenvolvimento. Ora, gostaríamos de saber se ele teve consciência de todo esse florescimento que se dava na sociedade, e de sua importância.

De modo mais particular é preciso abordar outro ponto.

Sabemos que o regime feudal, para corresponder à concepção católica da sociedade que o engendrou, devia ser constituído pelo inteiro equilíbrio de forças entre suseranos e vassalos. Sobretudo, entre o rei e os nobres. Esse equilíbrio é garantido por dois fatores: é necessário que o rei tenha uma autoridade efetiva e, por isso, que seja bastante vigoroso para impor sua vontade aos senhores feudais. Mas é preciso também que estes últimos sejam bastante fortes para poderem conter os eventuais abusos do monarca. Assim se mantinha a harmonia social na Idade Média.

Tal situação era possível em virtude do ascendente do Papa sobre toda a sociedade, pois, sendo o Pontífice superior aos reis e aos senhores feudais, podia servir de árbitro. E um rei que tinha sobre si esse poder pontifício (maior que a própria tutela exercida pelo Imperador do Sacro Império), não era inteiramente livre para estrangular os vassalos e nobres inferiores.

No tempo de São Luís, esse equilíbrio social parece ter atingido um apogeu. Segundo conceituados historiadores, no século XIV portanto, no período imediato ao de São Luís o feudalismo alcançou na Europa a sua posição ideal. Se isto é assim, deve ter havido uma preparação, realizada pela geração anterior, precisamente a que viveu sob a influência direta do virtuoso monarca francês.

Um santo no trono da França

Logo após a morte de Luís VIII, Branca de Castela, tão enérgica quanto jeitosa em política, assumiu a regência do governo. Depois de enfrentar vitoriosamente algumas crises, deixou o caminho livre e bem calçado para que as jovens mãos de seu filho continuassem a magna tarefa de governar a França. Os contemporâneos de São Luís afirmavam que a melhor distração do rei era cantar no coro da Igreja e conversar a respeito de assuntos religiosos com os cortesões. Costumava servir comida a 200 pobres, cujos pés lavava. Cuidava de bom grado dos doentes e tinha uma predileção especial em tratar dos leprosos, numa época em que esta doença era epidêmica e dificilmente curável.

Quando se pensa na aparência de um desses pobres enfermos, com as carnes em decomposição, cobertos por um manto grotesco e esfarrapado, agitando um guizo para afugentar as pessoas sãs, e se imagina um rei, no esplendor de seu poder, aproximar-se dele para tratá-lo com todo o carinho e solicitude, pode-se vislumbrar a autenticidade de suas virtudes.

Além de sua admirável caridade e paternal benevolência, São Luís era também louvado pela justiça e equidade com que governava seus súditos. Tornou-se quase legendário o fato de proceder pessoalmente a julgamentos e decisões, sob um grande carvalho nas proximidades de seu palácio, em Vincennes. Igual retidão marcou também outro episódio de sua vida, no qual esteve em jogo a integridade territorial francesa. Tratava-se de uma rebelião levada a cabo nada menos do que pelo próprio sogro do rei, Raimundo VII, Conde   de Tolosa, que se aliara a outro importante nobre francês revoltoso, Hugo de Lusignan, ambos simpatizantes de Henrique III, soberano inglês com pretensões não pequenas de conquista na França.

São Luís, para quem os interesses do reino contavam acima de quaisquer sentimentos familiares, partiu em luta contra seu sogro, derrotou-o e o obrigou a assinar um tratado ratificando os direitos da coroa francesa. Por fim, em 1243 se estabeleceu a chamada “paz de Bordeaux”, pela qual o rei da Inglaterra foi obrigado a ceder terras a São Luís. Aproveitando-se da ocasião propícia, os conselheiros do santo monarca quiseram convencê-lo a exigir mais do que o razoável. Prevaleceu, no entanto, o equilíbrio e a honestidade de São Luís, decidido a exigir apenas aquilo a que tinha direito, isto é, o proporcional à sua vitória.

Diante desse modelo de desprendimento, o ímpio e ganancioso Voltaire fez este interessante comentário: “É impossível ao homem levar mais longe sua virtude…”

Rei cruzado e penitente

Não se pode falar de São Luís IX sem mencionar um  dos aspectos mais rutilantes de sua personalidade: o de cruzado.

Depois de enfrentar e vencer as mais duras batalhas no seu reino, viu-se na contingência de conquistar vitória ainda mais árdua, ou seja, aplacar as resistências e as injunções maternas que tentaram demovê-lo da promessa feita de abraçar a cruz. Afinal, prevaleceram suas inabaláveis disposições, e São Luís acabou vestindo a túnica de cruzado e partindo com seus guerreiros para a Terra Santa.

Nessa  campanha, semeada de reveses e pontilhada de poucos sucessos, São Luís lutou como herói, mas acabou sendo preso por causa da imprudência de um irmão seu, que não seguiu as ordens do rei sobre a tática a ser empregada na batalha decisiva. No cárcere, São Luís deu provas de heroísmo ainda maior, edificando os próprios inimigos que o mantinham cativo. Após um longo período de sofrimento, recobrou a liberdade e pôde voltar ao seu reino, cujos súditos rezavam e ansiavam por seu feliz retorno.

Sem fundamento, São Luís pensou haver cometido alguma imperfeição, algum pecado, em punição do qual Deus permitira o inglório fracasso daquela Cruzada. Sua delicadeza de consciência e sua profunda piedade o faziam pensar numa reparação, quando lhe chegou o oferecimento de uma preciosa relíquia, vinda diretamente da Terra Santa: um espinho da dolorosa coroa que, na Paixão, cingira a fronte adorável de Nosso Senhor Jesus Cristo.

O que fez São Luís?

Não mandou confeccionar apenas um precioso escrínio, mas ordenou a construção de uma verdadeira joia de arquitetura, a Sainte Chapelle (Capela Santa), no interior da qual fosse abrigada aquela relíquia de inestimável valor. E como se tal não bastasse, resolveu partir para as fronteiras de seu reino com a Itália, onde recebeu pessoalmente o es-

pinho sagrado, a fim de conduzi-lo a pé, em trajes de penitente, até Paris. Tudo isso, em reparação pela suposta falta que ele teria cometido nos campos de batalha, defendendo a Terra Santa.

Eis a verdadeira fisionomia de um santo, e de um santo que era rei! Autêntico monarca, que dizia  “mea  culpa, mea culpa, mea maxima culpa”, quando não tinha culpa alguma. Possuía, sim, um senso moral tão desenvolvido, uma aversão tão completa ao pecado, que se julgava na obrigação de reparar uma pretensa falta, em virtude da qual Deus não havia sido glorificado como merecia.

Foram almas dessa categoria que levaram a Civilização Cristã aos seus dias de maior esplendor. Foram personalidades assim, santas e providenciais, que procuraram realizar neste mundo a sociedade humana perfeita, regida pelas leis de Deus e pelos ensinamentos da santa Igreja.

O santo monarca entregou sua alma ao Criador em 1270, aos 55 anos, após ser atingido pela peste, em plena guerra, durante outra Cruzada que ele comandou. Até chegar a seu leito de morte foi um batalhador, a respeito do que haveria muito a dizer noutra oportunidade.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

São Luís IX

Em tudo correspondendo ao seu título de Rei Cristianíssimo, pleno de zelo pela causa da Santa Igreja, São Luís IX de França foi suscitado por Deus a fim de se tornar um perfeito modelo de governante para o seu tempo e os séculos sucessivos.

Viveu no auge da Cristandade medieval, e com sua combatividade, sua fé, esperança e caridade exemplares, contribuiu para o grande florescimento dos melhores valores da Idade Média.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

São Bartolomeu

O Protótipo do homem amado por Deus

O elogio de Nosso Senhor a São Bartolomeu é um dos maiores que possam ser feitos a alguém, porque é o filho do povo eleito, protótipo do homem amado por Deus, no qual não há fraude.

Ele era, portanto, o contrário daqueles que se encontravam em decadência, dentro da nação eleita.

A este título, há uma relação muito grande entre ele e um contrarrevolucionário que deseja ser um verdadeiro católico no qual não há fraude e que, por isso, em face da Revolução e do espírito do demônio, não faz concessão alguma, odeia tudo quanto o demônio ama e ama tudo quanto o demônio odeia; odeia tudo quanto a Revolução ama e ama tudo quanto a Revolução odeia.

Nesse contrarrevolucionário não há fraude, e ele merece inteiramente o nome de católico. Assim, é natural que peçamos o auxílio da intercessão de São Bartolomeu.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/8/1965)

São Luís Rei, o Varão Católico

Admitindo que cada santo represente, no firmamento da Igreja, algum aspecto específico — São Bento, por exemplo, o recolhimento;
São Domingos, a pregação; São Francisco, a pobreza; Santo Inácio, a luta pela Igreja, etc. —, o que simbolizou de modo particular São Luís, Rei de França? A fim de compreendermos o brilho especial da alma de São Luís, acompanhemos Dr. Plinio:

A respeito de São Luís, parece-me que uma das coisas mais comovedoras é a tradição que ele deixou atrás de si. Quer dizer, além de ele ter sido um grande santo da Idade Média, e de ter enchido seu tempo com sua personalidade, de maneira tal que se pode dizer que o século em que viveu foi o século de São Luís; além do fato de que as crônicas da Idade Média estão repletas de episódios da vida dele, e sua canonização foi inteiramente regular, tendo a Igreja analisado a personalidade dele e dado os fundamentos pelos quais o achava santo; além de tudo isto, ficou na memória popular dos europeus, e sobretudo dos franceses, uma recordação a respeito de São Luís que não procedeu do conhecimento dessas coisas.

Porque o povo de hoje já não conhece esses fatos, mas tem uma recordação dele, trazida de geração em geração. E essa lembrança, comovida, enternecida, entusiasmada, recolhida, corresponde exatamente aos documentos históricos que de São Luís se possui. Quer dizer, a legenda, ou a tradição, são exatamente iguais à realidade histórica. Não houve um exagero, um dado errado, tudo é inteiramente certo, nenhuma mentira se fez para dourar mais sua coroa de glória. Ele deixou atrás de si um sulco de verdade, de objetividade, e uma imagem que, apesar de tantas revoluções, transformações, de pregação de tantas doutrinas de ódio e de erro, se conserva fiel à realidade histórica.

Em que aspecto brilhou especialmente sua personalidade?

O que o povo francês venera na pessoa de São Luís? O que a História bem narrada, bem estudada, nos ensina a respeito de São Luís? Ele brilhou especialmente pela castidade? Pelo recolhimento? Pela pobreza? Em favor da Igreja? Se considerarmos os feitos externos de sua vida, nada disso se pode afirmar inteiramente.

Que ele brilhou pela castidade, não há dúvida nenhuma. Mas ele brilhou como todos os santos reluziram, inclusive aqueles cuja castidade não foi a virtude mais notável. Todo santo é necessariamente casto. Mas São Luís de Gonzaga, por exemplo, teve um brilho de castidade maior do que alguns outros santos.

São Luís conservou a virgindade até o matrimônio; casou-se, foi um esposo fidelíssimo, mas não teve ocasião — sua vocação não lhe pediu — de guardar uma castidade à maneira de São Luís de Gonzaga.

Foi então o recolhimento que o fez brilhar? Em outros santos, o recolhimento refulgiu muito mais. Porque foram eremitas que se separaram completamente do mundo e passaram a viver em lugares completamente desertos. Ou cenobitas que foram viver em conventos, afastados completamente da civilização, para levar ali uma vida inteira de silêncio, de estudo e de oração. São Luís, não. Ele viveu no meio do mundo, na direção do maior reino da Terra no tempo dele, que era o reino da França, e misturado continuamente com os homens.

Teria sido o espírito combativo? São Luís foi um cruzado, um grande guerreiro, mas houve na Civilização Cristã guerreiros mais bem sucedidos do que ele. As duas Cruzadas que ele empreendeu não alcançaram as vitórias que ele desejava. Houve, portanto, guerreiros que realizaram feitos de guerra, dentro da inspiração católica, maiores do que ele. Houve até guerreiros não santos que alcançaram vitórias maiores do que as obtidas por São Luís.

Por exemplo, Dom João d’Áus­tria, que não foi um santo e até esteve bem longe de o ser, obteve em Lepanto uma grande vitória cristã que São Luís não conseguiu com as suas Cruzadas.

Então, o que em São Luís nos dá um brilho da personalidade dele que, sob certo ponto de vista, se realça mais do que nos outros santos? O que houve em São Luís?

Varão católico na plenitude da expressão

São Luís representou, com uma plenitude que poucas vezes se encontra na História da Igreja, o varão católico como a Igreja deseja que ele seja. O varão leigo vivendo no século a vida de todo mundo, e levando até à mais alta perfeição o cumprimento dos Mandamentos da Lei de Deus. De maneira tal que, misturado com todos, ele, entretanto, superou a todos.

Há um ensinamento profundo da Igreja, quando canoniza santos assim. Ela canonizou vários santos leigos, se bem que nenhum deles tenha talvez brilhado com tanto fulgor como São Luís, no qual esta recordação do santo leigo se prolongou pelos séculos e ficou mais vivaz do que em outros santos. É uma missão histórica de São Luís post mortem, como houve a missão histórica de Santa Terezinha post mortem, que consistiu em derramar uma chuva de rosas em torno dela. E São Luís?

Ele foi o varão na plenitude do termo, para provar que o homem deve ser santo dentro da vida quotidiana. Que a santidade não é apenas o distintivo do padre, do frade, do monge, mas de todos os católicos dos quais Deus espera o cumprimento exato dos Mandamentos. E a muitos ele pede um cumprimento tão perfeito, que depois possam ser levados à honra dos altares. Isso São Luís nos ensinou. Ele foi um homem que provou que o bom católico pode ser varão até onde se deve, mas não lhe é vedado, por causa disto, ter certas qualidades que os espíritos superficiais reputam incompatíveis com a varonia. Assim, podemos analisar agora a figura de São Luís.

Realizou o equilíbrio feudal perfeito

Era um rei que tinha mão firme, e manteve de tal maneira a autoridade em seu reino, que poucos reinados na História da França conheceram a paz interior tão ampla e tão perfeita como se conheceu no tempo de São Luís.

O regime feudal, no meio das admiráveis vantagens que proporcionava, dava, entretanto, oportunidade a uma nobreza ainda muito turbulenta, devido à proximidade dos bárbaros, de se levantar nos seus feudos contra o rei. Por causa disto, muitos reis perseguiram a nobreza e tentaram extingui-la; e afinal quase todos eles reduziram a nobreza a um mero papel de aparato.

Com São Luís, o que se deu? O equilíbrio perfeito. Ele foi um rei que conservou o regime feudal e manteve a nobreza no uso de todos os seus privilégios. Em várias ocasiões ele herdou feudos e poderia tê-los reunido à coroa, mas não quis fazê-lo e nomeou outras famílias para esses feudos; não açambarcando todos os feudos, mas mantendo-os autônomos.

A ideia da sucção de todos os feudos, para formar a monarquia do tipo luís-quatorziano, nem de longe lhe passava pela cabeça. E apesar de ter robustecido de tal maneira o poder feudal — pela firmeza, energia, pelo medo que ele metia, pelo respeito que sua justiça incutia a todo mundo, pela veneração que tinham para com a pessoa dele —, São Luís manteve em paz o reino da França; conseguiu realizar o equilíbrio feudal perfeito.

Mostrou que um homem pode manter a ordem com força, mas que, pelo fato de ser um homem forte, não é necessariamente um tirano. Que para a manutenção da ordem, a bondade, a justiça, a respeitabilidade, têm um papel que a força nunca chega a preencher completamente. E que a irradiação das virtudes é, em muitas ocasiões, uma circunstância indispensável para a manutenção da autoridade.

Ele não foi brutal como Luís XIV para com os nobres. Luís XIV exigia que os nobres morassem todos em torno dele, que abandonassem os seus castelos, perdendo assim sua influência nas várias partes da França. Mandou inclusive destruir vários castelos de nobres, para poder ter a nobreza na mão.

São Luís manteve a nobreza. E o que Luís XIV só conseguia realizar por meio da força e do esplendor da pompa real, São Luís realizou com a força, o esplendor, mas, de outro lado, também com a manifestação de uma justiça, de um equilíbrio, de uma bondade que encantava e atraía a confiança de todos.

Foi o varão ao mesmo tempo forte e bondoso; justo, equitativo, mas, por isso mesmo, ciente de seus direitos; que sabe se fazer temer e respeitar, bem como dar a cada um o que é seu; e que introduz então em torno de si a verdadeira paz, ou seja, a tranquilidade da ordem. Não é a tranquilidade da chibata, mas a da ordem; pôr todas as coisas em ordem para que elas fiquem em paz, e depois castigar quem saltar para fora da ordem. Esta é a verdadeira tarefa do ordenador.

Questão feudal com o Rei da Inglaterra

Outro aspecto: São Luís teve uma questão feudal com o Rei da Inglaterra. Sendo uma questão complicada, nosso Santo propôs no Conselho que ele sugeriria ao Rei da Inglaterra que lhe prestasse homenagem, como feudatário de algumas terras na França; e que, por gentileza e amabilidade, ainda acrescentaria estas e aquelas terras como cláusulas do acordo.

Os conselheiros de São Luís, quando ouviram isso, ficaram arrepiados, e disseram: “Mas senhor, nós poderíamos conhecer a causa dessa liberalidade?” Resposta de São Luís: “Sim, é para que haja amizade entre os meus filhos e os filhos do Rei da Inglaterra, porque são primos-irmãos.” Todos se entreolharam, como que exclamando: “Mas meu Deus, isto é política!? Uma política feita na base da amizade… Depois, nunca o Rei da Inglaterra virá prestar homenagem ao Rei da França!”

São Luís não permitiu discussão e foi enviada a proposta ao Rei da Inglaterra. Este veio à França, ajoelhou-se diante de São Luís e prestou-lhe homenagem, com espanto de toda a Cristandade. E esse donativo feito por São Luís contribuiu para um longo tempo de paz entre as duas coroas.

Armado de couraça dourada, desembarcou no Egito

Recordo-me de outro fato. São Luís passou quatro anos na Terra Santa, tratando com os maometanos. Os historiadores reconhecem que ele foi tão ágil em jogar uns maometanos contra outros e embrulhá-los, que o poder maometano ficou durante muito tempo entrelaçado por querelas, porque ele soube cortar a erva debaixo dos pés desses ou daqueles; e que a obra política de São Luís valeu mais que sua obra militar.

Ele foi o rei sumamente confiante, e confiante até a candura, quando era o caso, sumamente esperto, e esperto até os bordos, sem transpor esses bordos para o maquiavelismo. Embrulha os maometanos e é gentil com um cristão; atrai o coração de um e deixa os outros nas trevas. O varão perfeito como a Igreja Católica o imagina, o forma, como ela lhe dá forças; é um ideal a ser atingido.

São Luís e a majestade. Todo mundo concorda em dizer que ele era um homem de uma majestade extraordinária. Os cronistas descrevem o esplendor da personalidade de São Luís quando ele desembarcou no Egito, em terra de infiéis: estava armado de uma couraça dourada, um elmo, uma alta cimalha dourada também; era o mais alto dos homens do barco no qual navegava, esbelto,”élancé”. Quando a embarcação chegou perto da terra, ele se jogou dentro da água, coberto com armadura, e foi de encontro ao Egito para dominá-lo.

A ideia que temos hoje de um rei é a de um rei de museu: que não fala de medo de dizer bobagem, não se move de receio de ser deselegante, não agride, está perpetuamente sentado num trono, olhando para a frente e pousando para a História.

Ao ver um rei tão “délié”, tão elegante, o mais alto de todos e que salta, ataca, é o primeiro na hora do risco, todo o exército correu atrás dele.

Rei derrotado, mas venerado pelos seus adversários

Esse varão católico perfeito sofre um infortúnio: depois de lutas enormes, é preso. O poder muçulmano é maior do que o dele. O prisioneiro é o humilhado, dependente de todo mundo. São Luís ficou durante muito tempo preso, porque se discutiu o seu resgate; ele impôs tal veneração a todos, que os mouros vinham pedir a sentença dele a respeito dos processos que tinham entre si. Porque confiavam na justiça do rei cristão mais do que na de qualquer outra pessoa. E ele era tratado por todos com veneração.

Ser grande assim na derrota é muito mais do que ser grande na vitória. Ser grande na vitória, qualquer vencedor pode ser. Mas na derrota não é qualquer um que o consegue. Houve Um, que foi maior na derrota do que em todas as outras ocasiões de sua Vida — a respeito do Qual disse São Paulo: “Só sei pregar Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado”(1). Na Cruz, Ele realizou o “summum” de sua majestade, de sua grandeza e de sua glória.

São Luís imitou Nosso Senhor Jesus Cristo: ele realizou o “summum” da majestade humana, provando que um rei pode ser grande e impor-se, não só porque está no trono e cercado de toda a pompa real, mas porque ele é um varão católico.

Ele foi o rei derrotado, porém venerado pelos seus adversários. São Luís volta da Cruzada derrotado. A Cruzada não deu o resultado que ele queria.

O povo todo o aclamou como verdadeiro herói e lhe preparou uma glorificação no seu trajeto através da França, porque compreendia quanto ele tinha sido grande guerreiro, grande homem, apesar da derrota, e porque queria consolá-lo da derrota sofrida; e nunca o prestígio dele foi maior na França do que aureolado com a coroa de espinhos da derrota.

Trato de São Luís com os leprosos

Este rei era um homem extremamente simples, dentro de toda a sua majestade.

Na Idade Média, para evitar o contágio da lepra, a Igreja tinha conseguido persuadir os leprosos de que deveriam viver isolados de todo mundo e, ao andar pelas ruas, precisariam agitar um sino para que ninguém chegasse perto deles. E a polícia apoiava essa atitude, de maneira que o leproso que não cumpria tais normas era punido; tratava-se de um regulamento, mas que só se tornou exequível porque a Igreja convenceu o próprio leproso da necessidade disso.

Podemos imaginar a situação tristíssima de um homem que tem de atravessar uma cidade, pois precisa pedir um pão senão morre de fome e, ostentando uma face chagada, horrorosa, caminha agitando um sino para significar: “Fujam porque sou eu!”; e vê as criancinhas fugirem, as pessoas jogando coisas para ele, de longe. Em que estado de humilhação está um homem assim?

É um dos mais belos feitos da Igreja ter convencido doentes de que eles devem agir desse modo. Porque é difícil imaginar uma situação mais dolorosa do que esta: um homem tocando um sino, como que dizendo: “Fujam e tenham pena de mim; façam o vazio em torno de mim, até que eu atravesse esta cidade carregando algumas coisas para ir num lugar onde ficarei só, causando horror a todos, devorado pela minha própria lepra.” E ele ali permanece anos e anos na dor e na solidão, até quando Deus quiser. É uma coisa tremenda. Essa era a regra geral.

E a Igreja, sempre prodigiosamente sábia, ensinava não só aos leprosos que deviam fazer isto, mas que o povo precisava dar esmolas; e que os leprosos deveriam depois fugir. Esse é o equilíbrio extraordinário da Igreja. E a Igreja suscitava em alguns homens ou mulheres sadios, padres ou freiras, que fossem morar com os leprosos para cuidar deles. Diante de um infortúnio mais pungente, é impossível levar o equilíbrio mais longe.

O que fazia São Luís?

O rei está acima da lei. A uma lei feita por Deus o rei deve obedecer mais do que ninguém; mas se elaborada apenas pelos homens, o rei, estando acima da lei, pode violá-la porque é o autor da lei. Assim, São Luís transgredia a lei; quando por seu caminho passavam leprosos, não era raro ele parar, descer do cavalo, conversar com eles e uma vez chegou até a oscular um leproso. Este rei cheio de glória aproxima-se do homem carregado da maior infâmia — não uma infâmia moral, mas uma espécie de infâmia social, de degradação social.

Podemos imaginar o consolo desse leproso durante a vida inteira, pensando: “O reino todo tem nojo de mim, mas o santo, o homem perfeito, o guerreiro denodado, o varão casto e piedoso, que é a glória e o entusiasmo da nação francesa, esse apeou do seu cavalo e, como um verdadeiro pai dos filhos que mais sofrem, não teve medo de mim. Ele se acercou de mim e não teve receio de que a minha lepra contagiasse as suas carnes régias, aristocráticas, juvenis e sadias. Ele ajudou-me, dirigiu-me algumas palavras de consolo, deu-me ouro, e eu durante a vida inteira, no meio da minha tristeza, direi: ele fez por mim o que não realizou pelos mais altos fidalgos de seu reino.”

Pode haver maior equilíbrio do que este: um homem, que era o mais esplêndido da Europa, descer assim até os últimos degraus da caridade e da humildade?

Nós poderíamos passar uma noite inteira comentando a personalidade de São Luís e mostrando esses contrastes de virtudes que faziam dele uma espécie de sinfonia viva, que entusiasmava a todo mundo.

A personalidade de São Luís expressa na Sainte Chapelle

Sua personalidade se exprimiu do modo mais esplêndido na Sainte Chapelle, que foi a obra dele. A Sainte Chapelle é incomparável, e foi a única coisa no mundo diante da qual fiquei estupefato. Ela possui dois andares; quando entrei no de baixo, exclamei oh! Eu não tinha visto o mais bonito, que é o de cima…

Quando eu estava na Sainte Chapelle, procurava reconstruir a personalidade de São Luís. Imaginem uma capela toda feita de cristal — e que era um relicário! —, com cristais alegres, de cores diáfanas. Entretanto, coisa curiosa, não há nada de frágil, de efeminado, de dulçoroso; é um monumento grave, sério e forte.

De tal maneira que, dentro dela, a pessoa se sente como se estivesse numa fortaleza. Por outro lado, uma majestade régia, não se fica intimidado, mas se tem a sensação de estar dentro de casa. Uma castidade em tudo; percebe-se que um homem impuro não pode sentir-se bem à vontade. Porém tanta suavidade que qualquer pecador envereda pela porta do perdão. Todas as harmonias da alma de São Luís estão lá. E isto nos explica que a humanidade tenha ficado sempre com os olhos postos nele.

“Non est inventus similis illi”

Aí está a figura do rei santo. Quando se olha para ele, tem-se a impressão de que é inigualável. Na Missa de certos santos, a liturgia diz: “Não se encontrou um varão parecido com ele”. Afirma isto de uma série de varões, o que não é uma contradição, porque são homens tais que, quando se os contempla, se exclama: “Como esse, não houve!”

Como São Luís, Rei de França, não existiu outro igual!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/8/1970)

1) 1 Cor 2,2.

Vós sois Rainha

“Em mim, ó minha Mãe, Vós sois Rainha. Eu reconheço o vosso direito e procuro atender às vossas ordens.

Dai-me ‘lumen’ de inteligência, força de vontade, espírito de renúncia para que as vossas ordens sejam efetivamente obedecidas por mim. Ainda que o mundo inteiro se revolte e Vos negue, eu Vos obedeço.”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 31/5/1975)

Rainha dos Apóstolos

Como Nossa Senhora exercia sua realeza sobre os Apóstolos?

A situação era, debaixo de todos os pontos de vista, delicada; uma dessas situações que a sabedoria divina, por assim dizer, se empenha em resolver com brilho especial. A Santíssima Virgem era Rainha do Céu e da Terra. Portanto, Rainha e Mãe da Santa Igreja Católica. Porém, na Igreja, Ela não possuía um cargo especial de jurisdição.

Quer dizer, a Hierarquia Católica foi, desde o primeiro instante, constituída essencialmente pelo papa, pelos bispos e pelos sacerdotes incumbidos de participar, com os bispos e sob a ordem destes, do governo da Igreja. Ora, Nossa Senhora, sendo do sexo feminino, não podia pertencer à Hierarquia. Isso criava, então, uma situação bonita e complexa: Ela era Rainha da Igreja, mas na Igreja era súdita daqueles de quem Ela era Rainha. E Maria Santíssima devia prestar, enquanto membro da Igreja discente, homenagem, reverência, obediência àqueles de quem Ela era Rainha.

Mas, de outro lado, ponham-se, por exemplo, na posição de São Pedro — o Chefe da Igreja, o Príncipe dos Apóstolos: dar ordens a Nossa Senhora, sua Rainha? Ele ordenava e Ela obedecia. Mas, pensem um pouco… Que Rainha!

Imaginemos — para termos uma pálida ideia dessa situação — que a esposa de um rei fosse, de repente, parar numa ilha que é dirigida por um governadorzinho qualquer das terras de seu marido. A função de governador é dele, a rainha reinante propriamente não governa. Mas como ele vai dispor a respeito da rainha?

E essa comparação não é inteiramente verdadeira. Porque Nossa Senhora não era Rainha apenas, mas Esposa do Divino Espírito Santo e Mãe do Rei da Igreja, que é Nosso Senhor Jesus Cristo. Ela possuía uma autoridade de outra natureza, de outro tipo, sobre a Igreja Católica.

Ela obedecia a São Pedro, de uma obediência efetiva, humilde, enlevada, cheia de entusiasmo; nunca ninguém obedeceu melhor à Sagrada Hierarquia do que a Santíssima Virgem, porque, sendo a obediência à Sagrada Hierarquia uma virtude essencial, então Nossa Senhora a praticou de um modo inconcebivelmente perfeito. Mas, de outro lado, Ela possuía esse reinado sobre as almas dos Apóstolos, que Ela exercia de modo perfeito.

Quer dizer, Nossa Senhora tinha um conhecimento, antes de tudo, profundo, bem entendido, sobrenatural, da mentalidade de todos os Apóstolos, sacerdotes e discípulos de Nosso Senhor. Ela privava, conversava com eles.

O que era esse conversar? Não pensemos que consistia apenas numas consultinhas. Devia ser normalmente um trato por onde eles e Nossa Senhora discorriam; não iam eles contar novidades insípidas, banais, mas falavam das coisas de Deus e de tal maneira que havia uma comunicação de alma, propriamente uma conversa.

Naturalmente, compreendemos como seria a conversa de qualquer pessoa com Nossa Senhora. Quer dizer, a pessoa balbucia alguma coisa e Ela se põe a falar. O resto é enlevo, veneração, admiração, é absorção e tudo quanto podemos imaginar.

Mas eles também diziam algo. Não eram solilóquios em que apenas Ela falava. Eles conversavam. E, como boa Mãe, Maria Santíssima gostava de ouvir o que eles tinham a dizer. E Ela sabia qual a missão de cada um na Igreja, porque conhecia o passado, o presente e o futuro; na economia da Providência, Nossa Senhora conhecia não só a função que eles tinham, ou teriam, mas o que Deus queria que fizessem: de um, que convertesse um povo; de outro, que morresse lapidado; de outro, que construísse uma igreja; de outro, que transpusesse o mar e fosse fundar uma cristandade num ponto remoto.

Conhecendo tudo isso, em todo trato que tinha com eles, Ela ia dispondo a alma de cada um de acordo com os desígnios de Deus. Daí decorria um convívio lindíssimo, maravilhoso, que os Apóstolos e os que se aproximavam d’Ela sabiam notar e respeitar no mais alto grau.

Vemos assim o efeito de Pentecostes. Os Apóstolos, que tinham tratado com Nosso Senhor, foram tão frios com o Redentor na hora extrema; dir-se-ia que não entenderam Nosso Senhor. Mas depois de terem recebido o Espírito Santo, a vista deles ficou inteiramente clara; conhecendo a Mãe de Deus, insondavelmente perfeita, mas infinitamente inferior a Nosso Senhor Jesus Cristo, eles, entretanto, sabiam admirá-La, dar-Lhe o apreço e a veneração que deviam.

Assim, na Igreja nascente Ela irradiava, para um círculo inicial de pessoas, toda essa beleza. Houve, então, um altíssimo grau de devoção a Nossa Senhora. E a primeira expansão da Igreja foi intensamente iluminada por este fogo maravilhoso: a presença e a ação de Maria Santíssima.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 31/5/1972)