Fortaleza e suavidade

São Pio X realizou maravilhosamente, em sua vida, a síntese de dois aspectos do Catolicismo: fortaleza e suavidade. Acolhedor e afável para os bons e os verdadeiramente arrependidos, foi o martelo inexorável das heresias, não regateando os golpes com que feriu os propagandistas do erro. É este mesmo Papa doce e amável quem acumula, em suas encíclicas, as expressões duras e contundentes contra os semeadores da mentira e da discórdia. Ainda aí havia a inenarrável suavidade do pastor que, por amor de suas ovelhas, acomete corajosa e intrepidamente, sem cuidar de si, a matilha dos lobos esfaimados.
O Modernismo, por exemplo, se apresentava com esta nota inédita: a primeira heresia que não abria luta declarada contra a doutrina oficial, mas se confundia habilmente em manejos tortuosos, procurando aninhar-se no seio da Igreja. Foi São Pio X quem, de espada em punho, saiu a desentocar essa serpente.
Entretanto, embora ferido de morte, o Modernismo ainda continua a empestar os ambientes católicos. Certas mofas contra o valor da apologética, a incoerência em que se diluem os conceitos mais elementares e principalmente tanto laxismo que corre o mundo sob capa de caridade não passam de autêntico Modernismo.
Que as virtudes do grande Papa sejam um estímulo e exemplo para os que combatem os erros da era presente.
(Extraído de O Legionário n. 488, 18/1/1942)

Que o Coração de Maria seja a nossa morada

Dr. Plinio desejaria não somente reclinar a cabeça sobre o Coração de Maria, mas poder estabelecer lá dentro a sua morada para que, iluminado nessa luz, virginizado nessa pureza e inflamado nas chamas dessa caridade, tudo o que ele dissesse fossem palavras de luz e fogo a brotar da abundância desse Coração inefável.

“Coração de Maria, minha esperança!” era o lema do célebre João Sobieski, Rei da Polônia, que nos transes difíceis de sua vida e do seu reinado ia haurir no Coração Imaculado de Maria alento e valor para as dificuldades. Com este grito de guerra, “Cor Mariæ, spes mea”, a vibrar-lhe na alma e a inebriar-lhe o coração, se lançou ele afoito contra os turcos em 1683, e pouco depois libertava heroicamente a cidade de Viena do apertado cerco muçulmano.

Grito de guerra para uma Cruzada invencível

“Coração de Maria, nossa esperança!” é o grito de guerra com que dum recanto ao outro da Terra temos que convocar todas as almas de boa vontade para, numa Cruzada invencível, sob a égide da Rainha dos Céus, marcharmos à rude tarefa de libertar enfim a pobre humanidade dos terríveis cercos de ferro com que a perversidade e a insânia tentam aniquilá-la. É pelo Coração de Maria que faremos triunfar o Coração de Jesus!
Leão XIII apontava para o Coração Santíssimo de Jesus como o grande sinal no firmamento a prometer-nos vitória: In hoc signo vinces! – Com este sinal vencerás! E com ele nos mandava armar, como outrora os soldados de Constantino, com o Sinal da Cruz. E muitos dos cristãos obedeceram e o mundo foi consagrado oficialmente pelo Papa ao Sagrado Coração do Salvador.
Por isso podia na sua primeira encíclica escrever Pio XII: “Da difusão e aprofundamento do culto ao Divino Coração do Redentor, que encontrou o seu coroamento não só na consagração da humanidade, ao declinar do último século, mas também na instituição da festa da Realeza de Cristo pelo nosso imediato Predecessor, de feliz memória, resultaram indizíveis bens para inúmeras almas; foi um caudal impetuoso que alegra a cidade de Deus: fluminis impetus lætificat civitatem Dei” (Sl 45, 5).
Mas havemos de reconhecer que os triunfos do Coração de Jesus ainda não correspondem plenamente nesta época às sorridentes esperanças de Leão XIII ao consagrar-Lhe o universo. “Que época mais do que a nossa – diz ainda Pio XII – foi atormentada de vazio espiritual e profunda indigência interior, a despeito de todos os progressos técnicos e puramente civis?… Pode conceber-se dever maior e mais urgente do que evangelizar as insondáveis riquezas de Cristo (Ef 3, 8) aos homens do nosso tempo? E pode haver coisa mais nobre do que desfraldar o estandarte do Rei – vexilla Regis – diante dos que têm seguido e seguem ainda bandeiras falazes, e procurar reconduzir para o pendão vitorioso da Cruz os que o abandonaram?”

 

Arrebatadora dos corações

zas insondáveis de Cristo aos homens, o caminho mais rápido e obrigatório é Maria – per Mariam ad Iesum. Tem sido sempre assim desde o começo da Igreja. É por Maria que nos vem Jesus.
E o impulso cristão – que irrompe afinal das almas sob a ação do Espírito Santo, como numa das suas encíclicas sobre o Rosário o notou Leão XIII – vai mais longe afirmando cada vez mais clara e afoitamente, sobretudo de há um século a esta parte, que é pelo Coração de Maria que nos há de vir o Coração de Jesus; é pelo Reinado do Coração da Mãe que há de vir o Reinado do Coração do Filho.
Para O fazer reinar é mister amá-Lo – é o seu triunfo nos corações e nas vontades. Para O amar é urgente primeiro conhecê-Lo – é o seu reinado nas inteligências.
Contribuam estas linhas para levar às almas essa luz e esse calor.
Assim como não se conhece deveras a Cristo enquanto não se conhece seu Coração – o Coração de Jesus é o melhor ponto de vista do Salvador, é a chave do enigma de todas as suas misericórdias, o abismo inesgotável de todas as suas invenções de amor –, assim também Maria Santíssima só será conhecida e amada e reinará plenamente nas almas quando intimamente for conhecido o seu Coração Imaculado. É também ele o melhor ponto de vista de Maria. À luz do seu Coração ilumina-se das mais suaves e deslumbrantes tonalidades a sua virgindade sem par, a sua inexcedível dignidade de Mãe de Deus, de Esposa do Espírito Santo e de Filha predileta do Altíssimo, a sua terníssima solicitude de Mãe dos homens e de Rainha dos Céus e da Terra.
O seu Coração é o ímã misterioso que nos arrebata os corações, o que levou São Bernardo a denominá-La a arrebatadora dos corações: raptrix cordium. Mas se é pelo Coração que Ela nos conquista, é também ele a arma com que A conquistamos: tocar-Lhe no Coração é vencê-La. E – mistério profundo! – não é outro o cetro com que Maria impera junto do Altíssimo. Mostrar ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo o seu Coração de Filha, Esposa e Mãe é conquistar a Deus; é inclinar a nosso favor toda a Santíssima Trindade.

“Sozinha destruiu todas as heresias do mundo inteiro”

Daqui vem que tudo o que se afirma de Maria Santíssima na sua missão e misericórdia a respeito dos indivíduos, da humanidade e da Igreja em especial, se haja de afirmar com mais forte razão do seu Coração Imaculado.
Portanto, não conhece Maria quem não conhece o seu Coração; mas quem conhecer esse Coração possui o melhor conhecimento de Maria. Não ama a Maria quem não ama o seu Coração; mas amar o Coração de Maria é amá-La pelo melhor modo como Ela deseja ser amada. É no seu Coração que está a razão de todas as suas bondades para com os homens; é essa a força que nos atrai quando a Ela acudimos e o bálsamo que nos conforta quando A imploramos, na certeza de sermos socorridos.
É porque no peito de Maria palpitava um Coração tão semelhante ao seu que o Coração de Jesus, à hora da Morte no Calvário, no-La deu por Mãe: “Ecce Mater tua”, e a Ela nos entregou por filhos: “Ecce filius tuus”.
Se de São Paulo se afirmou que tinha um coração parecido ao de Cristo: cor Pauli, Cor Christi, muito mais e melhor que ninguém tem direito a este encômio supremo Maria Santíssima: Cor Mariæ, Cor Iesu.
É porque em seu peito continua lá no Céu a pulsar o mesmo Coração dulcíssimo e amantíssimo, que a Santa Igreja, nas horas aflitivas, nos manda acudir a Maria, seguros de obtermos sempre pronto socorro.
“Quem considerar atentamente os anais da Igreja Católica – escrevia o saudoso Pontífice Pio XI –, verá facilmente unido a todos os fastos do nome cristão o valioso patrocínio da Virgem Mãe de Deus. E na verdade, quando os erros, grassando por toda parte, procuravam dilacerar a túnica inconsútil da Igreja e subverter o mundo católico, Àquela que ‘sozinha destruiu todas as heresias do mundo inteiro’1 acudiram nossos pais e se dirigiram com o coração cheio de confiança; e a vitória por Ela obtida trouxe-lhes tempos mais felizes.”
Quando a impiedade muçulmana, confiada em potentes armadas e grandes exércitos, ameaçava arruinar e escravizar os povos da Europa, foi implorada instantissimamente, por conselho do Sumo Pontífice, a proteção da Mãe Celeste; deste modo foram destruídos os inimigos e submergidas as suas naus.
E tanto nas calamidades públicas como nas necessidades particulares, têm acudido à Maria, suplicantes, os fiéis de todos os tempos, para que Ela venha benignissimamente em seu socorro, obtendo-lhes o alívio e remédio dos males do corpo e da alma. E jamais seu poderosíssimo socorro foi esperado em vão por aqueles que o imploram em prece confiante e piedosa.

 

Que Nossa Senhora nos faça como que desaparecer n’Ela

Com toda a razão, portanto, nas horas difíceis em que hoje vivemos, todas as nossas esperanças de salvação, de triunfos e de paz estão postas nesta Arca de salvação: no Coração de Maria.
“A mim, o mínimo dos santos, foi-me dada esta graça de evangelizar às gentes as investigáveis riquezas de Cristo” (Ef 3, 8), dizia São Paulo.
Uma das mais insondáveis riquezas que nos legou Cristo foi o Coração de sua Mãe. Ah, se nos fora dado carisma parecido ao do Apóstolo de evangelizarmos aos nossos leitores toda a profundeza, longitude e latitude, todos os abismos preciosos de amor encerrados no Coração de Maria!
Um erudito e piedoso autor dizia, ao escrever sobre o Coração da Mãe de Deus, que ambicionava para si poder reclinar-se, como outrora São João Evangelista na última Ceia sobre o peito do Senhor, também sobre o peito de Maria para, depois de escutar as palpitações de seu Coração, conseguir mais facilmente dizer desses segredos de amor.
As nossas ambições vão mais longe neste instante: quiséramos não somente reclinar a cabeça sobre o Coração Imaculado de nossa Mãe do Céu, mas poder estabelecer lá dentro a nossa morada para que, iluminados nessa luz, virginizados nessa pureza e inflamados nas chamas dessa caridade, tudo o que disséssemos fossem palavras de luz e fogo a brotar da abundância desse Coração inefável.
Que Ela nos acolha nesse recôndito de amor, nos faça aí como que desaparecer n’Ela, para que afinal seja Maria quem diga de Si mesma, pelo débil instrumento que todo se Lhe consagra, as maravilhas do seu Coração.
Que seja aí também que os nossos leitores coloquem a sua mansão, para nessa escola e a essa luz melhor compreenderem a obra-prima do Senhor.v

(Extraído de O Legionário
n. 555, 28/3/1943)

Santa Clotilde e a conversão do Rei Clóvis

Enfrentando duríssimas provações com muita Fé e confiança na Divina Providência, Santa Clotilde conseguiu a conversão de seu esposo Clóvis, Rei da França. Após a vitória obtida na Batalha de Tolbiac, ele e três mil de seus soldados foram batizados por São Remígio, Bispo de Reims.

Apesar de ser filha dos Reis de Borgonha, teve Clotilde uma infância muito triste. Nascida em torno a 475, em Gundobaldo, seu tio, obcecado pela ambição, assassinou os pais de Clotilde, dois dos irmãos, enclausurou a irmã mais velha num convento e levou consigo Clotilde, menina de extraordinária beleza. Embora vivesse num ambiente todo ariano, Clotilde teve a felicidade de receber uma mestra católica que a educou na Religião verdadeira. Quanto mais aversão lhe inspirava a presença do assassino dos pais, tanto mais se entregava a Deus e à sua divina Mãe.

 

Capela riquíssima e culto esplendoroso

Debalde se esforçava por ficar desconhecida do mundo: rara beleza e, mais ainda, as belas qualidades de coração e de espírito da donzela atraíram a atenção de toda a Borgonha, que se orgulhava de possuir uma princesa tão virtuosa.
Pedida em casamento por Clóvis I, Rei da França, deu consentimento só depois de muito rezar, e ainda assim com a condição do Rei, que ainda era pagão, deixar-lhe praticar a Religião cristã. Clóvis deu palavra de honra de querer respeitar a Religião de Clotilde, e assim contraíram núpcias em 493.
O único desejo de Clotilde era a conversão do Rei e do povo ao Catolicismo. Contando com a influência do bom exemplo, instalou a Rainha no palácio uma capela riquíssima e organizou o culto do modo mais esplendoroso. Pessoalmente, de pontualidade rigorosa no cumprimento dos deveres religiosos, sua vida era de penitência, de caridade sem precedentes. Deste modo Clotilde não só alcançou ser respeitada e amada no meio dos elementos mais ou menos hostis à Religião cristã, mas ainda conseguiu que o Rei perdesse os preconceitos em matéria de religião e se sentisse feliz em possuir uma esposa virtuosa.
Clotilde não perdia ocasião de mostrar ao esposo a beleza da Religião de Cristo. Incessantemente dirigia preces à misericórdia divina, para que se compadecesse do Rei e do povo da França e lhes concedesse a graça da conversão. Clóvis não era inacessível aos rogos da esposa, mas não se animava a abandonar as superstições do paganismo, receando o desagrado do povo. Não obstante consentiu que o primeiro filhinho fosse batizado com toda a solenidade.

Provações duríssimas enfrentadas com confiança em Deus

Aprouve a Deus sujeitar a fiel serva a provações duríssimas. O primeiro filho morreu poucos dias depois de ter recebido o Batismo. Indescritível era a dor do Rei e o seu coração encheu-se de rancor contra a esposa, levantando-lhe as mais duras acusações.
— Vejo na morte de meu filho a ira dos deuses que, irritados com o Batismo cristão, assim se vingaram.
Clotilde, com mansidão, respondeu:
— Não menos motivo tenho de chorar a morte da criança; mas dou graças a Deus que Se dignou de dar-me um filho para recolhê-lo logo ao seu reino.
Que bela resposta, digna duma mãe cristã!
Clotilde não desanimou e continuou a preparar o espírito de Clóvis para que recebesse a graça do Cristianismo. Quando deu à luz o segundo filho, conseguiu do Rei o consentimento para o Batismo da criança. Aconteceu, porém, que esse segundo menino também adoeceu gravemente depois da recepção do Sacramento. Para Clóvis já não havia mais dúvida que era o Sacramento cristão o causador da morte do primeiro e da doença do segundo filho. Alucinado pela dor, rompeu em blasfêmia e lançou contra a esposa os mais graves insultos. Clotilde sofreu tudo calada, mas seu amor a Deus e a confiança na Divina Providência nenhum abalo sofreram. Com o intuito de desagravar a Santa Religião ultrajada, tomou a criança doente nos braços e, de joelhos ante o crucifixo, ofereceu a inocência do filhinho pela conversão do pai. Deus recompensou essa humildade e caridade pela repentina cura do menino.
A alegria e o pasmo de Clóvis, ao ver o filho são e salvo, eram indescritíveis. Bendizendo a grandeza e o poder do Deus dos cristãos, prometeu aceitar a Fé cristã, promessa cujo cumprimento, porém, depois protelou, alegando mil motivos.

“Se eu lá estivesse com os meus francos…”

Neste entrementes, veio a guerra contra os alamanos. Despedindo-se da mulher, esta lhe disse:
— Não ponhas tua confiança em teus deuses que nenhum poder têm, mas confia em Deus Todo-Poderoso que te dará a vitória sobre teus inimigos. Lembra-te destas palavras, quando te achares em perigo.
Em Tolbiac, travou-se sangrenta batalha e a vitória pendia para o lado dos alamanos. Nas fileiras dos exércitos de Clóvis reinavam já desordens, e ele mesmo corria risco de ser aprisionado. Nesta suprema angústia, Clóvis se lembrou das palavras que a esposa lhe dissera na despedida e, olhos e mãos elevadas ao céu, assim rezou:
“Ó Deus de Clotilde valei-me! Se me libertardes desse perigo e me concederdes a vitória, acreditarei em Vós e a vossa Religião será introduzida no meu reino.”
Imediatamente as coisas mudaram de aspecto. Um pânico inexplicável apoderou-se dos inimigos, que foram completamente derrotados. Indescritível foi o júbilo dos francos e do Rei, que tão evidentemente acabara de experimentar o poder do Deus dos cristãos.

Desta vez Clóvis cumpriu a palavra. Instruído na Doutrina cristã por São Remígio, pelo mesmo santo bispo foi batizado em 496, em Reims, e com ele três mil francos receberam o mesmo Sacramento. As ruas da cidade ostentavam ornato pomposo e a catedral achava-se solenemente enfeitada.
— É este o reino dos Céus, santo padre? – perguntou o Rei ao transpor o limiar da catedral.
Quando o bispo lhe falou da morte de Cristo na Cruz, Clóvis respondeu:
— Se eu lá tivesse estado com os meus francos, nada Lhe teria acontecido.
Quando Clóvis se dirigiu à pia batismal, São Remígio o recebeu com estas palavras:
— Inclina tua cabeça, altivo sicambro, e adora o que até hoje perseguiste e persegue o que até agora adoraste.
Diz a tradição que, no momento do Batismo de Clóvis, todo o povo viu uma pomba branquíssima que trazia no bico um frasco com os santos óleos, e um Anjo levava um estandarte de bordado riquíssimo. O frasco se conservou até o tempo da Revolução Francesa, quando foi quebrado. O lis, desde então o brasão dos reis de França, é um símbolo antiquíssimo de origem céltica e significa fertilidade.
Embora cristão, Clóvis continuou na carreira de conquistador, dando muitas provas de um caráter bárbaro e índole feroz. Morreu na idade de setenta anos. Clotilde teve muitos e profundos desgostos com os filhos, que se guerreavam em lutas fratricidas. Morreu em 545 e seu corpo acha-se na Igreja de Santa Genoveva, em Paris.v

(Extraído de O Legionário
n. 773, 1/6/1947)

Disse “sim” para a vocação e a realizou

Padre Damião, considerando a existência de pessoas imersas num infortúnio profundo, com a doença horrível da lepra, sentiu tanta compaixão e um tal desejo de ajudá-las a carregar essa infelicidade tremenda, que teve um movimento interno de alma de ir à Ilha Molokai, onde havia um imenso leprosário, para cuidar dos leprosos.
Certo dia, pregando um retiro para eles, disse-lhes: “Meus filhos, eu queria vos dizer que hoje, mais do que nunca, sou dos vossos, porque comecei a sentir em mim os primeiros sintomas da lepra.”
Morreu leproso, contente por ter ajudado aqueles coitados a suportar com alegria e resignação a doença da qual acabou contagiado, dando por bem empregado seus sofrimentos.
Foi a graça de Deus que deu a ele uma especial sensibilidade e clareza de vistas para perceber os padecimentos daquela gente e o quanto ele era dotado de recursos pessoais, de graça, de bondade, de consolação para atenuá-los. Então, por amor a Deus, decidiu renunciar a todas as alegrias desta vida para imergir naquele oceano de dor.
É uma vocação. Esta graça especial bateu em sua alma, como quem bate numa porta, e perguntou: “Meu filho, queres fazer esse sacrifício? Queres ir para o meio dos leprosos? Queres correr o risco de ficar leproso, para fazer o bem àqueles infelizes?”
Ele respondeu: “Sim!”
Nessa hora começou um caminho. Ele disse “sim” para a vocação e a realizou.
(Extraído de conferência de 24/8/1991)

Campeão da Fé, defensor da ortodoxia

São Basílio viveu num mundo minado pelos mais satânicos métodos de perseguição ao Catolicismo, precisamente por serem hipócritas e velados, numa época em que, humanamente falando, a causa da ortodoxia estava perdida.
Mais do que o Santo da ação social, devemos ver no grande Bispo de Cesareia o campeão da Fé, o defensor da ortodoxia, o homem da Igreja.
Sua pureza de doutrina, santa intransigência em matéria de Fé e de costumes são a chave de sua obra no setor social. Se o sumo bem que podemos aspirar para o próximo é a realização de sua missão sobre a Terra para atingir a bem-aventurança eterna, é claro que sem essa chama da vida interior seria vã toda a obra de assistência social desenvolvida pelo grande Santo.
São Basílio enfrentou o totalitarismo do Estado como os católicos de hoje terão de fazer perante os imperadores neopagãos e neocoroados, sem vacilações nem conivências, sem concessões ao erro, sem mutilações da Doutrina da Igreja, sob pretexto de proselitismo.
Só assim podemos imitar o grande e santo Doutor em sua desassombrada intervenção a favor dos humildes, dos fracos, de todas as vítimas da arbitrariedade, da tirania, das injustiças sociais.
Só com esse verdadeiro conceito de Caridade poderemos trazer à Igreja as multidões desgarradas que hoje se debatem no meio da mais completa miséria, principalmente espiritual.

(Extraído de O Legionário n. 718, 12/5/1946)

Esplendidamente atendidos por Deus

Segundo tradições antigas do Oriente e revelações privadas, São Joaquim e Santa Ana não tinham
filhos e já estavam numa idade avançada. Isso lhes causava um pesar muito grande
porque, entre os judeus, era uma vergonha não ter filhos, pois então não se podia ser antepassado
do Messias, a glória do judeu.
Apesar disso, o santo casal sempre pediu a Deus para ter um filho. Quando veio, era Nossa Senhora!
Se São Joaquim e Santa Ana raciocinassem como algumas pessoas: “Ah, eu estou pedindo
uma criança há cinco anos! Rezo todo dia meio minuto e não sou atendido! Já desanimei…” –
quanto menos a pessoa reza, mais depressa quer ser atendida – poderiam não ter sido os pais da
Santíssima Virgem, e a Mãe do Salvador nasceria de outro casal.
Assim se passa com as graças que nós pedimos: devemos rogar muito. Afinal, quando Deus
concede, Ele atende exuberante e esplendidamente, pelos rogos de Maria.
(Extraído de conferência de 31/1/1976)

O Profeta Elias e a Ordem do Carmo

O incomparável Elias deu à Ordem do Carmo riquíssima seiva espiritual, produzindo legiões de homens e mulheres que se coroaram com as rosas da santidade, com os astros da sabedor

ia, com os louros do martírio e com os lírios da virgindade.

Qualquer que seja a ideia que nós formemos de uma Ordem Religiosa, é mister reconhecer que os esplendores de suas futuras glórias dependem sempre dos princípios vitais sobre os quais se alicerça o seu organismo, e da seiva vivificante que em divinas difusões corre por todos os membros que compõem sua organização secular.

Espírito de fogo

A instituição religiosa assim formada, nutrida, vivificada, amará necessariamente o seu princípio, a sua origem, assim como os filhos amam aos pais, a Terra ao Sol que a fecunda, e os astros ao centro de gravidade em que repousam.

Posto isto, cumpre perguntar: Que seiva misteriosa tem conservado sempre a vida exuberante da Ordem Carmelitana? Que fator lhe proporciona os elementos da

sua organização sempre jovem e louçã, após tantos séculos de existência?

Não será difícil responder a essa pergunta se remontarmos a tempos remotíssimos, se buscarmos no Carmelo a formosa e celestial figura do Profeta de Deus, Elias de Tesbe. Foi este grande Profeta, o espírito de fogo, o incomparável Elias, quem deu à Ordem do Carmo a riquíssima seiva espiritual de que a mesma se tem alimentado através da sua existência multissecular, produzindo legiões de homens e mulheres que se coroaram com as rosas da santidade, com os astros da sabedoria, com os louros do martírio e com os lírios da virgindade!

Pai e Fundador da Ordem do Carmelo

a Igreja Universal, quem reconhece e venera o Santo Profeta Elias como o Pai e Fundador da Ordem do Carmelo. Não podemos resistir ao impulso de inserir, a este propósito, um brilhante testemunho do exímio teólogo Suárez1, que confirma esta verdade:
“É uma tradição geralmente recebida e muito antiga que a origem da Ordem Carmelitana remonta ao tempo dos Profetas, e especialmente ao tempo de Elias, e que deste mesmo provém a sucessão hereditária iniciada no Monte Carmelo, do qual monte a Ordem tira o seu nome, tradição esta que recebemos como verdadeira, tanto mais que os Sumos Pontífices Sixto IV, João XXII, Júlio II, Pio V, Gregório XIII, Sixto V e Clemente VIII, nas Bulas concedidas a esta Ordem, falam dos seus membros, os religiosos, nestes termos: Resplandecem na caridade como espelho e modelo, datando a sua origem do tempo dos Santos Profetas Elias e Eliseu e de outros Santos Padres, que habitaram a Montanha Santa do Carmelo. Por isso, Sixto V lhes permitiu honrassem a Elias e Eliseu como seus Patriarcas, celebrando suas festas e recitando seus ofícios próprios. Donde resulta que se reconhece a Elias como verdadeiro Pai e Fundador (Suárez, tom. 4, de Relig., tratado 9, cap. 9).
Eis, pois, segundo o testemunho dos pontífices e dos teólogos mais eminentes, o manancial riquíssimo donde tem brotado a seiva vivificante que anima o espírito do Carmelo!
Os carmelitas, por sua vez, não têm cessado de venerar aquele de quem receberam a vida espiritual. Desde os primeiros moradores do Carmelo até Santo Ângelo, mártir carmelita, que em nome de Elias dividiu como Moisés as águas do Jordão; e desde este Santo até à gloriosa Reformadora do Carmelo com quem se comunicou o Santo Profeta, e desde Santa Teresa até os nossos dias, nem um instante sequer se tem interrompido a cadeia de santos afetos, com que os carmelitas têm manifestado seu amor e gratidão a seu admirável Pai e Fundador.v

(Extraído de O Legionário n. 786, 31/8/1947)

1) Francisco Suárez de Toledo Vázquez de Utiel y González de la Torre (*1548 – †1617), teólogo, filósofo e jurista jesuíta espanhol, conhecido como Doutor Exímio.

 

Castidade comunicativa

São Casimiro era tão casto, que comunicava aos outros o desejo de serem puros. É bonito este fato, porque muitas vezes encontramos pessoas puras, mas a quem a Providência não deu esse dom de tornar comunicativa sua pureza. Sabe-se que são puros, admira-se, presta-se homenagem, mas sua virtude não é comunicativa.
Ora, uma das melhores formas de fazer apostolado é ter essa virtude comunicativa que passa de uma pessoa a outra como que por osmose. Às vezes isto acontece, e castidade comunicativa é um dom enormemente precioso para se fazer apostolado.
Mas como Deus está irado com o mundo, dons como esse se tornam raríssimos. Por isso precisamos recorrer a um São Casimiro no século XV para compreender o que é a pureza convidativa e irradiante, a qual atrai as pessoas para a virtude que é o contrário da impureza, da voluptuosidade também conquistadora, a qual arrasta para o mal.
A virtude arrastando para o bem é algo que pouco se vê em nossos dias e, no entanto, dá tanta glória a Nossa Senhora!

Perseverança incólume diante dos tormentos do corpo e do espírito

Santa Tecla demonstrou o vigor de sua alma tanto nos combates físicos travados durante os inúmeros suplícios a que foi submetida, quanto nas lutas espirituais, recusando tudo por amor a Nosso Senhor e compreendendo a inimizade do mundo para com os que são íntegros.

Dia 23 de setembro é festa de Santa Tecla, virgem e mártir. Godescard, em “La Vie des Saints”1, diz o seguinte:

Considerada a primeira mártir, embora tenha saído ilesa de todos os suplícios

Santa Tecla, cujo nome foi sempre muito celebrado na Igreja, é chamada a primeira mártir de seu sexo por Santo Isidoro de Pelúsio e por todos os gregos. Foi um dos mais belos ornamentos do século dos Apóstolos.
Nasceu ela na Isáuria ou na Licaônia. São Metódio diz, em seu “Banquete das Virgens”, que ela era profundamente versada na filosofia profana, que possuía imenso conhecimento das Letras e que se exprimia com tanta força e eloquência, como com doçura e afabilidade.
Foi convertida ao cristianismo por São Paulo e tornou-se hábil nos conhecimentos da Religião. Ele louva o ardor de seu amor por Jesus Cristo, que ela demonstrou em numerosas ocasiões e sobretudo nos combates que sustentou pela Fé, com uma coragem digna do vigor de sua alma.
Segundo Santo Agostinho, Santo Epifânio e Santo Ambrósio, foi em Nicônia que São Paulo a converteu com suas prédicas, no ano de 45.
Decidida a permanecer virgem, Santa Tecla sofreu toda sorte de pressões por parte de seu noivo e de seus familiares. Nem carinhos, nem ameaças a fizeram voltar atrás em sua decisão. E a santa passou a considerar como inimigos aqueles que mais lhe haviam demonstrado afeição. Tendo um dia ido procurar São Paulo para buscar algum consolo, Tecla foi perseguida por seu noivo, que a denunciou como cristã. Exposta às feras no anfiteatro, estas deitaram-se a seus pés, sem a tocarem. Levada à fogueira, dela também saiu ilesa. Vencendo ainda outras provas, foi posta em liberdade. Passou o resto de sua vida retirada do convívio mundano, morrendo em Isáuria e sendo enterrada em Selêucia”.

Sob os primeiros imperadores cristãos, construiu-se uma basílica sobre seu túmulo, local de peregrinações sem conta. A catedral de Milão é dedicada à invocação de Santa Tecla, que é invocada também para se obter uma boa morte.
A vida de Santa Tecla nos oferece um tema interessante de meditação a respeito das intenções que o mundo tem para com os que praticam a virtude. Este ponto é uma matéria sobre a qual jamais nos fartaremos de fazer comentários.

Duas categorias de demônios e de homens

 

Podemos afirmar que há dois graus ou duas categorias de pessoas ruins, assim como há duas espécies ou duas categorias de demônios.
O pecado dos anjos foi o mesmo para todos: eles se revoltaram contra Deus. Mas nem todos cometeram esse pecado do mesmo modo ou no mesmo grau. Alguns foram os líderes do movimento, outros se deixaram arrastar, não se rebelaram por iniciativa própria, mas uma vez que os primeiros começaram, eles se deixaram arrastar. Por causa disso, Deus condenou a todas à desgraça perpétua, expulsando-os do seu amor e do seu convívio.
Entretanto, estabeleceu uma diferença: enquanto os que iniciaram a revolta foram precipitados no Inferno, os que foram arrastados, a esses, permitiu que ficassem fora do Inferno, sofrendo, portanto, menos tormentos durante todo o tempo em que durar a História deste mundo. Eles, então, infestam a Terra. Não me lembro bem, mas houve um santo que afirmou que se nós pudéssemos ver os demônios que estão soltos pelos ares, veríamos que eles são tão numerosos que constituem como que uma capa em torno da Terra, que nos obnubilaria até de ver o céu, por assim dizer. É uma metáfora para nós entendermos o quanto são numerosos.
Segundo diz Catarina Emmerich – e é uma coisa muito arquitetônica –, enquanto os demônios do Inferno nos tentam para o pecado, os que andam pelos ares predispõem as nossas almas para o pecado. Eles não tentam diretamente, mas predispõem. Birras de certo tipo, fobias, antipatias, simpatias desregradas, preguiças, cóleras, tiques esquisitos, nervosos às vezes – é claro que nem sempre –, nevroses que conduzem ao pecado, tudo isto é uma ação que esses demônios que pairam pelos ares exercem sobre os homens, preparando profundamente as almas para as tentações.
Os homens se abrem muitas vezes largamente para esta ação e se abrem tanto que é quase impossível evitar que caiam no pecado. Por quê? Porque o demônio dos ares tomou conta deles e quando vem o do Inferno encontra uma casa aberta, em que as defesas foram quase completamente destruídas e, naturalmente, ele entra.

Nessa perspectiva, portanto, nós temos duas espécies de demônios e também de homens: os péssimos, são os líderes do movimento da Revolução e outros, que são arrastados pela Revolução, consentindo serem levados por ela. Estes são moleirões, molengos, são o que forem, vão seguindo a Revolução por fraqueza, por debilidade.

 

Os bons tendem a condescender com o homem menos péssimo, achando que no fundo ele é bom

Ora, acontece que na consideração de homens assim o contrarrevolucionário muitas vezes tem uma posição mole. Ele compara esses homens com os piores e, como estes não são dos piores, ele pensa: “Coitado, este aqui não tem culpa. Ele está sendo levado pela Revolução não porque queira, mas porque está sendo arrastado; no fundo ele é bom.”
Seria o mesmo dizer que os demônios que pairam pelos ares foram arrastados pelos piores, mas, no fundo, não são maus. Pelo contrário, eles são maus, de uma maldade autêntica, mesmo que essa maldade não os faça tão maus quanto os outros e, quando terminar a História, eles devem ser acorrentados no Inferno. Porque, como sabemos, no Inferno há gradações de mal, como no Céu existem gradações de bem.
O homem que se entrega ao mal de modo habitual, sem remorso ou pelo menos sem remorsos eficazes e úteis, chega a ter antipatia pelo bem, faz coro com os que lutam contra o bem; é, portanto, um homem mau e inimigo do bem. Ele odeia aqueles que se convertem.

 

Na vida de Santa Tecla vê-se isso. Ela era uma pessoa eminente. Tinha uma grande cultura, numa época em que isso era um prestígio quase igual ao que é, em nossos dias, jogar muito bem futebol ou então falar muito bem na rádio. Quer dizer, era uma pessoa verdadeiramente adornada. Ela tinha um noivo. Assim que se converteu, diz a biografia, ela percebeu que precisava romper com todos com os quais ela se dava antigamente. Por quê? Porque ela notou, naturalmente, que todos estavam postos no mal e que não há comunicação entre o bem e o mal, a luz e as trevas.
O que aconteceu com o noivo? Ele a persegue, procura arrancá-la do estado de virgindade, por um sentimento que humanamente se chamaria amor, mas que não é senão egoísmo e ódio. Ela resiste e não recua diante da felonia. Ele a acusa como cristã para ser morta. Aí vê-se o que é o ódio, o amor do mundo, o que são os sentimentos do mundo e até onde o ódio dos maus pode chegar em relação aos bons.

Diante de tantos milagres, ninguém se converteu

Ela é sujeita a vários tormentos e milagrosamente escapa. Essa biografia não entra nos pormenores, mas em geral esses tormentos eram infligidos aos fiéis em auditórios enormes – estádios, circos – nos quais havia um enorme número de pessoas presentes.
Ao presenciar os milagres sensíveis praticados a propósito dela, como seria natural que toda a multidão entusiasmada se convertesse! Aí está o mundo. Ele não abre os olhos nem ante os maiores milagres, nem diante das maiores maravilhas. Uns e outros – maus da gama “A” e da gama “B” – estão com os olhos fechados e são solidários com este noivo que perseguiu a sua noiva. Eles são solidários com o demônio, que não quer que eles vejam e se entreguem à evidência desses milagres. E por causa disto não se convertem.

A malícia do mundo, nesta biografia de Santa Tecla, está muito evidente e é muito oportuno que nós a lembremos.
Santa Tecla perseverou no seu caminho. Maravilhosamente salva de vários tormentos, ela, entretanto, é considerada mártir, embora não tenha morrido em defesa da Fé. E o que fez ela? Passou o resto de sua vida retirada do convívio mundano, morrendo em Isáuria e sendo enterrada na Selêucia. Ela não quis saber do mundo. Ela era dotada, prendada, poderia ter tido uma vida de realce, mas recusou tudo compreendendo a inimizade do mundo.
Eu considero muito importante pôr isto em realce, porque nós, do contrário, nos adocicamos numa glicerina. Devemos servir a Nossa Senhora sem olhar para nós, preocupados apenas neste ponto: que o reino d’Ela venha logo e venha por inteiro!v

(Extraído de conferência de 22/9/1966)

1) La vie des Saints. D’Alban Butler et de Godescard. Avec le martyrologe romain, un traité de la canonisation des Saints. Lille, 1855, p. 182-186, t. VIII.

 

Os Anjos da Guarda e a ordem do universo

A criança inocente sente o desejo de conhecer grandezas extraordinárias. Instintivamente ela faz um exercício de transcendência, pelo qual considera que todas as criaturas constituem meios de chegar até o Criador. O papel do Anjo é ajudar o espírito humano a ter cogitações que o elevem ao mais alto dos píncaros, ou seja, a Deus.

Para tratar da relação entre o estado de inocência, a ordem do universo e os Anjos, começo por mencionar uma dificuldade encontrada naquilo que costumamos chamar de exercício de transcendência.

 

Operação natural para a alma inocente

Até certo ponto, esse exercício dá a muitos a impressão de um ser um esforço hercúleo do pensamento para destacar-se das coisinhas corriqueiras a fim de elevar-se às realidades transcendentes. Mais ou menos como uma pessoa que ache atraente fazer alpinismo, porém não conseguiria passar a vida inteira subindo e descendo montanhas.
Os pesos de alma que tal dificuldade denuncia servem para contrastar melhor o que o estado de espírito da inocência tem de angélico com aquilo que se chama o “homem carnal”.
Eu sustento que esta operação, tão penosa depois das influências que degradam a alma – pecados, egoísmos, ingratidões, etc. –, é natural para a alma inocente. A primeira impostação da alma, embora concebida no pecado original e, portanto, com tendência para se resvalar, é o exercício de transcendência. Entretanto, há uma ação calculada para desviá-la, logo nos primeiros reflexos e levá-la para outro lado.
Esse exercício não seria feito propriamente de baixo para cima, peça por peça, mas de um modo diferente. Eu quero descrever para evitar ideias erradas.
Por exemplo, é justo, e respeito muito, que se faça uma distinção entre a introspecção e a extroversão. Mas isso é bom na medida em que não nos leve a perder de vista a seguinte verdade originária, a qual se encontra no estado da inocência: a alma vê a si mesma e o mundo fora com o mesmo olhar primeiro. Pode-se distinguir como alguém que, conversando com duas pessoas em uma sala, vê ambas sentadas em um sofá. Distingue-se uma da outra, mas essa distinção não impede que, com o mesmo olhar, esteja vendo as duas.
Assim também, na noção do ser entra o conhecimento do mundo exterior e do interior no mesmo olhar, e abarca a ideia de que eu sou e os outros são. Estas noções entram distintas, não separadas. Isto proporciona que o gáudio da inocência flua logo nos primeiros instantes da vida, e a transcendência se faça como um homem dotado de constituição física normal respira.

Ação angélica no indivíduo, na História

A criança inocente sente dentro de sua alma o desejo de grandezas extraordinárias a conhecer, de uma zona etérea e magnífica da realidade com a qual ela quer se relacionar e para a qual voa. Não sente o tempo inteiro, mas vai tomando conhecimento disso junto com o chocalho, a mamadeira, tudo misturado; entretanto, esse é o fundo de quadro que de vez em quando renasce e de algum modo está sempre presente, e à luz do qual a criança vai vendo as várias coisas com que toma contato.
Portanto, não é um pequeno filósofo, com as pernas trançadas no berço, mãozinha no queixo e pensando: cogito, ergo sum1. Absolutamente não é isso: a criança esperneia, tem vagidos, dorme fora de hora… Quando começa a tomar conhecimento, fá-lo nessa natural desordem: ora é o rosto da mãe, ora é o barulho da rua, ora o chocalho, ora o berço…
Não obstante, o fundo da própria alma que a criança conhece junto com as outras coisas vai orientando-a para o lado das grandezas e, de vez em quando, ela faz uma sucessão de imagens pela qual compara o que está conhecendo com aquilo para que sua alma tende. Assim, esses anseios da alma vão se robustecendo no mais alto e ela vai fazendo a transcendência de cima para baixo. É quase um exercício de descendência.
Mas, às vezes, a criança encontra coisas externas magníficas que despertam nela aquilo que a sua alma deseja. Por esta ação mútua, feita sem esforço no próprio viver e respirar, é que ela vai se tornando uma viajante, peregrina rumo às magnificências.
E aqui entra o lado angélico.

A meu ver, quando e na medida em que faz isto, o homem torna-se como que o irmão mais moço, o caçula do Anjo da Guarda que o toma, o ajuda nesta trajetória mais importante e delicada do que todas as outras. E assim a alma vai caminhando nessa direção com uma regularidade e naturalidade inteiras porque esse é o viver dela. Ela poderá ter, em certos momentos, tentações, são as provas do caminho. No entanto, o mais importante não são as provas e sim o traçado da estrada. As provas, com a ajuda de Nossa Senhora, serão vencidas uma a uma quando se apresentarem, mas o traçado do caminho é a grande questão, e este corre por aí, de tal maneira que cem outras faculdades da alma afloram sob essa luz.
Também a ação angélica na História, embora seja extrínseca, não exclui afinidades, inter-relacionamentos possantes. Admitir a ação angélica como tão extrínseca que cada uma é quase como um milagre de Lourdes, o qual ocorre de vez em quando deixando as pessoas pasmas, também é errado. Por certo, há intervenções angélicas muito palpáveis, visíveis, notórias que são assim, mas tenho a impressão de que a ação real é uma espécie de quase atuação de irmão a irmão, porque o Anjo está junto de nós e nós juntos dele, ele se nos comunica e nós nos comunicamos a ele.

Interpenetração entre o mundo exterior e o interior…

Há em nós uma relação entre a nossa alma e a ação externa que praticamos. De maneira que, quando nossa alma deliberou por um determinado ato, ela gradua todas as suas energias, suas disposições para a efetivação daquela ação; entretanto a qualidade do ato – não me refiro apenas à qualidade moral, mas também à metafísica – de algum modo se reflete sobre a alma, porque o homem, ao praticar a ação, põe-se numa certa clave e fica passageiramente com esses reflexos. Isso faz parte dessa interpenetração entre o mundo exterior e o interior.
Julgo que nos Anjos isso é muito mais vigoroso, e que não só eles são chamados para ministérios especialmente adequados à natureza de cada um, mas ao realizarem as várias ações do seu ministério todos eles refulgem e vibram – se pudéssemos dizer “vibrar” de um ser espiritual – de um determinado modo.
De maneira que quando um Anjo tem aquele refulgir, todos os espíritos angélicos que estão participando com ele daquela ação possuem isso entre si, em coro; e depois os outros do Céu recebem, há um reluzir recíproco.
Também uma pessoa devota de um determinado Anjo recebe essa refulgência ou ao menos pode receber. Mas como o Anjo é muito mais possante do que o homem, ele comunica a jorros o que nós transmitimos a conta-gotas; a natureza dele se enche com as graças esplêndidas que ele recebe e se comunicam a nós de cheio.
A inocência leva a ter comunhão com os Anjos. E o estado normal do batizado é ter esta comunhão, embora subconsciente.

…o natural e o sobrenatural

Entre o sobrenatural e o angélico há uma distinção. Um dos modos de a graça agir é através dos Anjos, e a pessoa pode ter um certo discernimento do sobrenatural em si sem perceber que é angélico. No mais das vezes, as coisas se interpenetram de tal maneira que não creio que uma pessoa consiga distinguir.
Aliás, devemos considerar que o natural e o sobrenatural não formam gavetas no ser humano. São campos distintos para a cogitação científica do homem; em quem tem ambas as coisas psicologicamente elas não formam gavetas, mas se interpenetram a todo momento como o sangue na carne.
Sou propenso a achar – salvo ensinamento em sentido contrário da Igreja – que se os homens tiverem noção clara dessa interpenetração angélica, e esta for uma verdade bem realçada por ocasião do Reino de Maria, haverá uma grande elevação, e a ideia desta ação dos Anjos na inocência produzirá um fulgor e um esplendor incalculáveis.

Uma pergunta que se põe é a seguinte: Se o universo criado e ordenado por Deus é tão perfeito, por que existe Anjo da Guarda? Este evita, de fato, coisas ruins que aconteceriam e, portanto, o universo é imperfeito?
Alguém dirá: “Tem a imperfeição humana.” Entretanto é preciso andar com cuidado. Nossa Senhora tinha milhões de Anjos da Guarda. Para quê, se Ela fazia tudo perfeito?

Então, a perfeição específica do universo não é a de uma máquina, como o comum das pessoas imagina. Tenho a impressão de que o universo não funcionaria sem Anjos da Guarda e, portanto, eles não são superfluidades. Por certo, intercorrem muitos fatores que não conhecemos, os quais poderiam perturbar a ordem do universo, e que os Anjos da Guarda evitam. Ademais, eles não apenas evitam o mal, mas promovem o bem.

 

Estalactite e estalagmite

Contudo, a respeito do papel do Anjo da Guarda no universo e junto às almas, há um elemento que me parece importante. Para o normal progresso da inocência são necessárias duas circunstâncias: de um lado, o isolamento interior, de outro, a comunicação.
Na medida em que a alma é fiel a essa impostação primeira, é fácil para ela fazer exercícios de transcendência, talvez à maneira de estalactite e estalagmite, ou seja, a pessoa vai relacionando as coisas que vê com o que vem de cima, encantando-se e se endireitando em função disso, e notando na coisa inferior um símile do que está em cima.
Por exemplo, antigamente era normal um menino gostar de espada. Gostava por ver nela um modo de dar corpo a uma porção de impressões, desejos, ideias, estados de espírito que vibravam na sua inocência, mas que ele precisava de algo material para simbolizar.

Isso corresponde a uma disposição de alma vinda do olhar conjunto que a pessoa tem sobre si e o universo; olhar inspirado pelo senso do ser e por meio do qual, na linha metafísica e sobrenatural, a alma é apetente de grandes coisas e nelas cogita.

No menino cuja alma esteja nessas condições e a quem tudo quanto se refira ao heroísmo diz muito, a espada desencadeia o processo e a relação simbólica que dá corpo àquilo que ainda não atingira toda a maturação humana porque faltava um símbolo. Ao encontrar o símbolo, o processo mental e da inocência dele se encerra com gáudio.

Assim, a criança vai vendo uma série de coisas de cima para baixo, porque o analogado primário2 do símbolo existe vivo no espírito dela, por onde tende a ver de modo simbólico uma quantidade incontável de criaturas.
Seria um movimento natural do senso do ser, portanto metafísico, no qual a graça penetra e atua muitas vezes pelo Anjo. A semelhança do Anjo com o seu protegido, a afinidade existente entre eles desempenha o seu papel na moção que o Anjo exerce sobre o homem.

Mesmo porque, sendo o homem sociável por natureza, o é com os Anjos também. O instinto de sociabilidade seria incompleto se o considerássemos existente apenas entre os homens. Dessa analogia entre o Anjo da Guarda e seu custodiado, este instinto toma misteriosamente um movimento do qual Deus se serve para a realização de seus planos.

Reino de Maria e devoção aos Anjos

Estou tratando de um processo que conheço melhor em mim do que num outro. Por isso, ao falar do processo humano, tenho que dar o meu depoimento. Sustento que esse processo se dá com todos os homens, uns mais outros menos, mas todos têm meios e graças para isso. Aliás, a própria noção do Reino de Maria vem da retidão desse processo em todos os homens, criando as condições para esse Reino.
Nesta perspectiva, o acender o amor a Deus na alma humana não pode ser concebido sem a assistência dos Anjos. O papel próprio do Anjo é ajudar o espírito humano a ter aquelas cogitações que o elevem ao mais alto dos píncaros, ou seja, Deus.
Então, o exercício de transcendência, pelo qual todas as criaturas constituem meios de chegar até o Criador e, portanto, a visualização do universo enquanto caminho para Deus, parece impossível sem o ministério dos Anjos.

Há uma ação santificante da Igreja Católica que é o vaso espiritual no qual se derrama, para as almas subirem até Deus, a ação angélica exercida por cima do Magistério eclesiástico, nunca em desacordo com ele, pois este é infalível. Assim, com uma vida que o mero ensino não tem, a graça faz germinar no homem os impulsos para a elevação suprema. Portanto, a missão santificante da Igreja, que nos une a Deus através dos sacramentos, acende em nós o amor a Deus com o ministério dos Anjos.
Estas verdades suporiam para o Reino de Maria uma intensidade extremamente grande da devoção aos Anjos.v

(Extraído de conferência de 27/11/1980)

1) Do latim: penso, logo existo.
2) Termo utilizado em Filosofia, significando matriz, padrão.