Nossa Senhora de la Salette: Majestade entremeada de amor

Majestade entremeada de amor

O olhar imaculadamente puro de Nossa Senhora, espelho de sua
face e de seu coração, é algo tão sublime que se torna impossível
descrevê-lo. Segundo a vidente de La Salette, a visão dos olhos de
Maria bastaria para preencher a eternidade de um bem-aventurado.

A Aparição de Nossa Senhora de La Salette: Uma Descrição Admirável

No dia 19 de setembro, a Igreja celebra a aparição de Nossa Senhora de La Salette. O texto a seguir comenta trechos do livro de Regamey, Les plus beaux textes sur la Vierge, baseado no depoimento de Mélanie Calvat, a menina que viu Nossa Senhora.


Rainha Incomparável

Aparência

A Santíssima Virgem era alta e bem proporcionada. Parecia tão leve que um sopro poderia atingi-La. No entanto, Ela permanecia imóvel e inalterável. Sua fisionomia era majestosa e imponente, mas não como a dos poderosos da Terra.

Ela inspirava um temor respeitoso e, ao mesmo tempo, sua majestade impunha respeito entremeado de amor. Ela atraía. Ao seu redor e em sua própria pessoa, tudo inspirava majestade, esplendor e magnificência de uma rainha incomparável.

Ela parecia bela, clara, imaculada, cristalina e celeste. Também me parecia uma boa mãe cheia de bondade, amabilidade, amor, compaixão e misericórdia para conosco. Por esta descrição, Mélanie, a pastorinha analfabeta, mereceria entrar na Academia Francesa de Letras. É uma descrição admirável.

Lágrimas

A Santa Virgem chorava durante quase todo o tempo em que me falou. Suas lágrimas corriam lentamente, uma a uma, até seus joelhos. Depois, como fagulhas de luz, elas desapareciam. Eram brilhantes e cheias de amor.

Eu queria consolá-La e que Ela não chorasse. Mas parecia-me que Ela precisava mostrar suas lágrimas para melhor demonstrar seu amor, esquecido pelos homens. As lágrimas de nossa terna Mãe, longe de enfraquecerem seu ar de majestade de Rainha e Senhora, pareciam, ao contrário, embelezá-La, torná-La mais amável e mais radiante.


Verdadeira Porta do Céu

Olhos

Os olhos da Santíssima Virgem, nossa terna Mãe, não podem ser descritos por uma língua humana. Para deles falar, seria preciso um Serafim, seria preciso a própria linguagem de Deus, de Deus que formou a Virgem Imaculada, obra-prima de seu poder.

Os olhos da augusta Maria pareciam mil e mil vezes mais belos que os brilhantes, os diamantes e as pedras preciosas. Eram como a porta de Deus, por onde se podia ver tudo aquilo que pode encantar a alma. Somente essa visão dos olhos da mais pura das virgens seria suficiente para ser o Céu de um bem-aventurado.

Seria suficiente para fazer uma alma entrar na plenitude das vontades do Altíssimo, impelindo-a a contínuos atos de louvor, agradecimento, reparação e expiação. Somente esta visão concentra a alma em Deus e a torna como uma morta-viva, que olha as coisas da Terra, mesmo as mais sérias, como brinquedos de criança. Ela só queria ouvir falar de Deus e daquilo que se refere à Sua glória.


Celestial, Régia e Incomparavelmente Bondosa

Cada pormenor da aparência de Nossa Senhora é uma verdadeira beleza, simbolizando três ideias principais:

  1. A sobrenaturalidade: um ente todo celestial, inundado de valores sobrenaturais e de graças, personificando a graça de Deus.
  2. A majestade régia: sem nome, que se expressa n’Ela inteira e se irradia em torno d’Ela.
  3. A bondade sem precedentes: uma pena, misericórdia e condescendência que se une à majestade de forma indissolúvel.

Todos os traços da descrição foram feitos para simbolizar essa conjunção de virtudes.


Características da Majestade de Nossa Senhora

A Santíssima Virgem era alta e bem proporcionada. A altura é um apanágio da majestade (tanto que aos príncipes, que não são reis, diz-se “Vossa Alteza”). Não era uma altura esmagadora, mas condescendente e acessível, graças à perfeição de suas proporções, uma unidade na variedade.

Ela parecia tão leve que um sopro poderia atingi-La, mostrando que Seu corpo, dominado pelo espírito, não estava sujeito à lei da gravidade. O sobrenatural n’Ela estava em sua plenitude.

Ela impunha um temor respeitoso, que não vinha do medo, mas do receio de desagradar um ser tão elevado. Ao mesmo tempo, incutia amor por ser quem era. A verdadeira majestade atrai, não repele, ao contrário do que se vê em majestades falsas.

Ao seu redor, como em sua pessoa, tudo inspirava majestade, esplendor e magnificência. O que havia em torno d’Ela, um campinho ordinário, se transformava em um palácio porque, como diz a Escritura: “Omnis gloria filiæ regis ab intus” (Sl 44, 14): toda a glória da filha do rei lhe vem de dentro.


Rainha e Mãe de Suma Misericórdia

Ela parecia bela, clara, imaculada, cristalina, celeste. A ideia de cristalino, para quem gosta de cristais, ressalta a pureza e a diafaneidade de Sua essência.

Depois, vem o corolário: “Parecia-me também como boa mãe, cheia de bondade, amabilidade, amor para conosco, compaixão e misericórdia.”

Aqui está a justaposição perfeita de Rainha e Mãe de misericórdia, expressa no início da “Salve Rainha”. Essa união de majestade e bondade é a ideia da majestade perfeita.


O Nobre Pranto de Maria

Nossa Senhora chorava, mas há dois modos de chorar: com fraqueza ou com sobranceria. Seu pranto era nobre e sereno.

Suas lágrimas corriam lentamente, uma a uma, até seus joelhos. Isso indica o domínio, a ausência de pranto convulsivo, e a profundidade de Sua dor, que inunda toda a Sua alma.

Depois, como fagulhas de luz, elas desapareciam. Essa forma de desaparecer, em vez de cair na terra, mostra que a lágrima brilhava, dava uma luz e era recolhida nos esplendores do Padre Eterno. As lágrimas de uma Rainha deviam ser luminosas, cristalinas e cheias de amor.

Lágrimas que Embelezam a Majestade

As lágrimas de nossa terna Mãe, longe de enfraquecerem seu ar de majestade, pareciam, ao contrário, embelezá-La, torná-La mais amável e mais radiante.

A verdadeira rainha tem uma beleza especial para cada situação. Em Nossa Senhora, as lágrimas davam a beleza inconfundível da dor da Rainha. Elas a tornavam “amável” (digna de amor) e “radiante” (com sua personalidade mais expandida).


Sublimidade Impossível de Ser Descrita

A face é o resumo do corpo, e os olhos são a quintessência de toda a sua expressão. Como se expressaria a alma de Nossa Senhora na parte mais expressiva de seu corpo santíssimo?

Os olhos da Santíssima Virgem… não podem ser descritos por uma língua humana. Para deles falar, seria preciso um Serafim, seria preciso a própria linguagem de Deus, obra-prima de seu poder. O próprio do sublime é não poder ser descrito por língua humana.

Os olhos de Maria pareciam mil e mil vezes mais belos que os brilhantes e as pedras preciosas. Eram como a porta de Deus, onde se podia ver tudo que pode encantar a alma. Na Ladainha, Nossa Senhora é chamada de “Janua Cæli”, Porta do Céu. Olhar para os olhos dela é olhar a mais alta manifestação da alma que é o espelho da justiça de Deus.

O olhar imaculado de Nossa Senhora tem o poder de purificar. Somente essa visão seria suficiente para ser o Céu de um bem-aventurado e para fazer uma alma entrar na plenitude das vontades do Altíssimo, impelindo-a a contínuos atos de louvor, agradecimento, reparação e expiação.

As Coisas Desta Terra Tornam-se Sem Importância

Depois de ver o olhar de Nossa Senhora, a alma concentra-se em Deus e torna-se como uma morta-viva, que olha as coisas da Terra, mesmo as mais sérias, como brinquedos de criança. A pessoa não dá mais importância a nada, a não ser a não pecar.

Peçamos a Nossa Senhora de La Salette uma impregnação de todas essas graças em nossa alma. E, sobretudo, uma apetência de ver os Seus sagrados olhos, o espelho de Sua face e de Seu coração, para que tenhamos o desejo de vê-los no Céu.

(Extraído de conferência de 19/9/1966)

São Roberto Belarmino: “Martelo” contra a heresia protestante

“Martelo” contra a heresia protestante

São Roberto Belarmino foi um Santo onímodo,
recebendo de Deus a tríplice vocação de ensinar
os fiéis, de orientar a piedade das almas sendo
diretor espiritual exímio e de confundir os
heréticos protestantes de sua época. Foi um
homem de autêntica ação contrarrevolucionária,
uma fortaleza que combateu pela Santa
Igreja Católica em todas as direções.

São Roberto Belarmino: Bispo, Confessor e Doutor da Igreja

Temos aqui dados sobre São Roberto Belarmino, bispo, confessor e Doutor da Igreja, tirados da Vida dos Santos do Pe. Rohrbacher, do L’Année Liturgique de Dom Guéranger e de Schamoni, O verdadeiro rosto dos Santos.


Santo com uma tríplice vocação

Desde as origens da Igreja até nossos dias, a Providência sempre suscitou homens ilustres pela ciência e santidade. Eles conservaram e interpretaram as verdades da Fé Católica e refutaram os ataques heréticos. Entre esses homens, destaca-se São Roberto Belarmino, celebrado por seu ensino, suas obras polêmicas, seu zelo pela reforma da Igreja e suas virtudes.

O santo cardeal parecia ter recebido de Deus uma tríplice vocação: ensinar os fiéis, orientar a piedade das almas e confundir os heréticos protestantes do século XVI, a era de plena efervescência do protestantismo.

Sua vida oferece um espetáculo diferente do de outros santos de sua época. Ele foi um misto de pastor de almas, homem de ação e teólogo, dedicando-se a uma luta contra um adversário (o protestantismo) que havia atingido uma consistência sem precedentes. Enquanto outros santos lutaram contra heresias, poucos dedicaram toda a sua vida exclusivamente a essa batalha.

Nascido em 4 de outubro de 1542, em Montepulciano, Toscana, de uma família de alta nobreza, Roberto Belarmino ingressou na Companhia de Jesus em 1560. Seus estudos na Universidade de Louvain, um dos principais bastiões contra o protestantismo, foram decisivos para sua atividade científica. Entre 1570 e 1576, ele pregou com grande sucesso como professor de Controvérsia Teológica.

O Papa Gregório XIII, reconhecendo-o como uma grande figura europeia, o chamou a Roma. Lá, Belarmino assumiu a responsabilidade pela formação de alunos de colégios alemães e ingleses, preparando-os para as batalhas espirituais em seus países. A Santa Sé o apoiou na formação de seminaristas de nações protestantes, que fugiam para Roma para se tornarem sacerdotes e depois voltarem para casa e desenvolverem seu apostolado.

São Roberto Belarmino os formou e lhes forneceu livros de sua autoria para refutar o protestantismo. A ele se deve o fato importantíssimo da preservação da Áustria da “gangrena protestante” e a recuperação de aproximadamente um terço da Alemanha para a Religião Católica. O impacto disso foi fabuloso, pois o curso da História teria mudado se ele e outros santos não tivessem obtido essa recuperação.


Herói na luta contra o Protestantismo

Belarmino possuía uma grande inteligência que lhe permitia ordenar e dominar um vasto número de matérias. Sua memória era lendária, capaz de reter tudo o que lia de uma só vez. Seu conhecimento dos Padres da Igreja e teólogos era assombroso, e ele dominava vários idiomas com um estilo ameno e fluído. Essas qualidades o capacitaram a empreender obras brilhantes.

O Geral de sua Ordem o colocou à frente de tarefas administrativas para lhe dar descanso das terríveis dores de cabeça. Clemente VII o nomeou cardeal, dizendo: “Nós o nomeamos cardeal porque ninguém na Igreja de Deus se iguala em saber, e por ser sobrinho de Marcelo II”. Em 1602, tornou-se Arcebispo de Cápua e, em 1605, Paulo V o chamou de volta a Roma.

Ainda que tenha realizado outras atividades, a nota fundamental de sua vida foi ser um grande herói na luta contra a heresia. Ele foi um herói em dois sentidos:

  1. Qualidades intelectuais extraordinárias: A Providência lhe deu dons intelectuais para servir à sua missão de polemista. Esses dons, em uma época que valorizava a inteligência, lhe conferiram prestígio e profundidade em sua obra.
  2. Ações impactantes: Suas “devastações” contra o protestantismo foram tremendas, especialmente em países já protestantes.

Recebeu o título elogioso de “martelo da heresia”

Foi um grande pregador, professor e polemista. Recebeu de Bento XV o título de “martelo da heresia”. Escreveu muito, e São Francisco de Sales, seu contemporâneo, elogiava seus livros, dizendo: “Preguei em Chablais durante cinco anos sem outros livros que a Bíblia e as obras de São Roberto Belarmino.”

Sua obra mais famosa é Controvérsias, uma compilação de suas aulas no Colégio Romano. Nela, ele defende os dogmas atacados pelos luteranos, usando o testemunho dos Padres, dos Concílios e do Direito da Igreja. A obra é tão magistral que muitos a consideram insuperável. Sua publicação causou grande satisfação entre os católicos e fúria entre os adversários. O protestante Teodoro de Beza disse: “Eis o livro que nos perdeu.” A Rainha Isabel I da Inglaterra chegou a proibir a leitura do livro a quem não fosse doutor em Teologia, sob pena de morte, tal era o número de conversões que operava.

Não satisfeito em convencer os hereges, Belarmino também queria prevenir os fiéis. Para isso, compôs um pequeno catecismo, que ele mesmo fazia questão de ensinar às crianças e pessoas simples. Esse catecismo ainda é usado na Itália e foi traduzido para sessenta idiomas.

Ele agiu como “martelo dos hereges” ao escrever livros que demonstravam a verdade e atacavam duramente os hereges, levando muitos à conversão. A proibição do seu livro por Isabel I é uma prova do seu impacto.


Não basta ensinar o bem, é preciso também atacar o mal

São Roberto Belarmino entendeu que a heresia não pode ser destruída apenas ensinando a verdade; é preciso também atacar o erro. Além de propagar o bem, ele atacava o mal. Sua vida, canonizada de acordo com as virtudes cardeais (justiça, prudência, temperança e fortaleza), é uma prova viva de que esse método é eficiente.

Ele prova que o argumento de que toda polêmica e ataque ao adversário são prejudiciais à união das igrejas está equivocado. Quem quiser trabalhar pela conversão à Igreja Católica trabalhará de modo sumamente eficaz se seguir seu exemplo. A vida de São Roberto Belarmino, um santo de altar, foi ininterruptamente dedicada a isso.


Delicadíssimo burilador de almas

Um dado empolgante de sua vida, não mencionado anteriormente, é que São Roberto Belarmino foi um grande diretor de consciências. Ele teve a glória de ser o confessor e diretor espiritual de São Luís Gonzaga, uma alma virginal e delicadíssima que se tornou modelo em uma Europa afundada na impureza.

A beleza do contraste dentro da Igreja é notável: um campeão da ortodoxia, grande lutador, era ao mesmo tempo um “burilador de almas delicadíssimo”. Ele soube orientar a alma de São Luís Gonzaga, fazendo dela uma verdadeira obra-prima de santidade. Belarmino viu o valor dessa alma e a dirigiu de acordo com sua própria via, depondo até em seu processo de canonização.


Santo onímodo e grande contrarrevolucionário

No final de sua vida, Belarmino retirou-se para o noviciado de sua Ordem em Roma para se preparar para a morte. Entre outras publicações, escreveu cinco pequenos tratados ascéticos e, por fim, A arte de bem morrer.

Ele é uma grande figura que nos mostra como a Igreja conseguiu conter e fazer o protestantismo recuar em parte. Sua vida também é uma obra-prima de serenidade em meio à luta. Apesar de ser um cardeal ocupadíssimo, ele sabia usar o tempo de tal maneira que encontrava momentos de calma para meditar e escrever obras profundas que o levaram a ser Doutor da Igreja.

Pouco depois de seu falecimento, em 1621, iniciou-se seu processo de canonização, que só foi concluído em 1923.

Em São Roberto Belarmino, temos um modelo de grande contrarrevolucionário. Que ele reze por nós e nos ensine a praticar sua virtude.

(Extraído de conferências de
12/5/1966 e 12/5/1967)
1) Cf. ROHRBACHER, René-François.
Vida dos Santos. São Paulo: Editora
das Américas, 1959. v. VIII, p.
318-325.
2) Cf. SCHAMONI, Wilhelm. El verdadero
rostro de los Santos. Ed. Ariel, 1952.

Santa Catarina de Genova: A Paz e a alegria da contrição

A paz e a alegria da contrição

Santa Catarina de Gênova teve uma experiência mística
do estado de uma alma no Purgatório e compreendeu o
quanto a verdadeira contrição proporciona paz e alegria.
Se carregarmos nossa cruz com resignação, teremos na
alma torrentes de paz, tranquilidade, estabilidade, ordem,
cuja fruição ninguém nesse mundo poderá nos tirar.

 

Santa Catarina de Gênova: A Paz da Contrição e o Amor Purificador

 

Num êxtase, vê a enormidade de seus pecados e se converte

Catarina de Gênova, oriunda de nobre linhagem dos Fieschi, nasceu na citada cidade mediterrânea, em fins do ano 1447. Seus desejos de ingressar num convento foram contrariados por seus pais, que a desposaram com um patrício genovês, Giuliano Adorno, atendendo às conveniências políticas.

Seu esposo era-lhe infiel, violento e debochado. Durante os cinco primeiros anos de seu casamento, a jovem sofreu em silêncio. Mais tarde, quando seu marido tratou de arrastá-la a uma vida mundana, onde pensaria em desenvolver seus extraordinários dotes de beleza e invulgar espírito, viu aumentar sua desventura, chegando inclusive a perder o consolo da Religião que até então a sustentara.

Santa Catarina de Gênova Paróquia dos Italianos, Lisboa

A paz e a alegria da contrição Hagiografia

Dez anos depois de seu casamento, Catarina visitou sua irmã, que vestia o hábito monacal, contando-lhe as dificuldades. O conselho da jovem religiosa foi que se confessasse e se entregasse à penitência. Quando se decidiu a seguir esse maravilhoso caminho, caiu em êxtase, sendo-lhe descoberta a grandeza de seus pecados, enquanto nela se despertou um tão grande amor a Deus que dessa experiência se converteu.

Assim, voltou a acariciar o desejo de sua infância. Durante muitos anos, na Quaresma e no Advento, viveu quase que exclusivamente da Sagrada Comunhão. Seu marido, que se arruinara, ainda a fez sofrer muito, confessando-se apenas no seu leito de morte. Catarina dedicou-se a cuidar dos doentes num hospital de Gênova, onde sua conduta foi particularmente heroica durante a epidemia de 1493. Faleceu a 15 de setembro de 1510.

O fogo abrasador do Purgatório

Nunca se escreveram palavras tão profundas sobre o Purgatório como as desta Santa. No abrasado fogo de seu amor a Deus, reconhecia o que padecem as almas que passam por aquele lugar de purificação, onde o amor depurador do fogo limpa os espíritos de todos os resquícios de pecado.

Ao separar-se do corpo, disse ela, a alma impura se sente destroçada, reconhecendo o peso que a oprime e, com a convicção de que só se verá livre de tal peso através do Purgatório, deseja caminhar imediata e voluntariamente para ele.

A essência divina encerra tanta pureza e claridade, que aquelas almas que possuem um só resquício de imperfeição em si preferem lançar-se em mil purgatórios a colocar-se em presença de Deus com a mancha do pecado. É verdade que o amor a Deus lhes proporciona um indizível bem-estar, mas isto não diminui a mínima parcela do sofrimento que devem padecer no Purgatório. Ao contrário, seu padecimento consiste precisamente em sentir-se refreadas no amor, e tal tormento cresce à medida que seu amor se torna mais perfeito. Deste modo, as almas do Purgatório gozam as maiores delícias, ao passo que sofrem as maiores dores, sem que uma coisa impeça a outra.


Uma alma muito chamada

Nesta ficha há duas considerações a tirar. Uma delas é propriamente a biográfica, sobre a vida de Santa Catarina. E a outra é a respeito do trecho referente ao Purgatório.

Na parte biográfica, poderíamos fazer várias observações. Trata-se de uma alma muito chamada que, entretanto, não correspondeu ao convite de Deus. Ela se casou com Giuliano Adorno quando quisera ter sido religiosa, e se deixou arrastar ao mesmo tempo por um oceano de sofrimentos, de padecimentos que seus pais lhe infligiram, de um lado e, de outro lado, pelo mundanismo e pela vaidade, que fizeram dela uma pessoa preocupada, durante grande período, apenas com prazeres e sem cogitar das coisas de Deus.

Vemos, depois, uma conversão maravilhosa. Naquele tempo, eram muito numerosas as pessoas que entravam para o estado religioso. Mesmo nas famílias das mais altas categorias, havia sempre dois, três, quatro filhos, que se faziam frades, freiras, padres, bispos, ou então iam para as Ordens de Cavalaria. A coisa mais corrente, mais comum, era alguém ser religioso.

Certo dia, ela foi visitar sua irmã, que era religiosa, e se expandiu a respeito de tudo quanto sofria no mundo. Eram padecimentos que se contradiziam, se chocavam. De um lado eram por causa do péssimo marido, o qual pôs fora a fortuna, continuou a levar uma má vida e só se converteu no leito de morte.

E de outro lado – não está dito de modo expresso na ficha, mas se compreende – o enorme vazio dos prazeres nos quais ela procurava uma compensação daquilo que sofria. A irmã, então, lhe recomenda que volte a Deus, à prática dos Sacramentos que ela abandonara. Catarina atende o conselho e é ferida por um êxtase, no qual vê todo o horror dos pecados que cometeu.

Passou, então, a levar uma vida de penitência. Ela, que fora uma dama de grande honra – ocupara um lugar de destaque pela sua beleza, situação social, riqueza, numa das cidades mais celebres do mundo de então, Gênova, república aristocrática, que dominava partes do Mar Mediterrâneo – vai cuidar despretensiosamente dos doentes num hospital, para fazer penitência.

A ideia da expiação do pecado por meio do sofrimento domina toda sua vida, e ela se entrega a um verdadeiro Purgatório na Terra. Vai ajudar os outros no sofrimento e sofre com eles para expiar o pecado que cometeu. Assim vemos quanto é lógico que ela tenha uns pensamentos profundos – êxtases, visões e revelações – a respeito do Purgatório.

Antes, porém, de passar a esse tema, vamos considerar o conjunto desta biografia.


Procurou escapar do bom caminho e recebeu grandes sofrimentos

Há certas almas que Deus persegue com obstinação; porém, elas fogem e, às vezes, se debatem contra o Criador. Mas Ele, na sua misericórdia, em determinado momento as atinge de tal maneira que elas se entregam a Ele por completo. Essas almas, na História da Igreja, são incontáveis. Temos um exemplo em São Paulo, a quem Nosso Senhor disse, na hora da conversão: “Saulo, Saulo, por que Me persegues?” (At 9, 4). E acrescentou que era duro para ele relutar contra o vento da graça de Deus, que o chamava para uma determinada finalidade.

Santa Catarina procura escapar do bom caminho. Deus não lhe corta o mau caminho, mas nele coloca um sofrimento. O mau marido, a frustração do mundo, predispõem sua alma para aquele momento abençoado em que a irmã lhe dá um bom conselho.

Sua alma provavelmente estava preparada por mil sofrimentos. Catarina era naquela ocasião mais ou menos como um filho pródigo que volta à casa paterna. Ela é vencida por Deus, que arranca essa vitória de um modo magnífico. Em vez de inspirar considerações piedosas sobre o pecado para fazer tão somente um ato de contrição, Deus lhe dá muito mais. Concede-lhe uma visão na qual ela tem uma noção clara do pecado que cometeu.

Davi, depois de ter pecado, disse aquela frase estupenda que está nos Salmos e sempre me impressionou: “Eu pequei só contra Ti, ó meu Deus, e o meu pecado está o tempo inteiro diante de mim” (cf. Sl 50, 5-6), como se fosse um acusador que se levanta dizendo aquilo que ele fez. Catarina poderia dizer isso, porque teve uma visão na qual viu o seu próprio pecado.


A verdadeira contrição é alentadora e proporciona muita alegria

Poderíamos nos perguntar se Deus foi para com ela misericordioso ou duro, um pai cheio de bondade ou, pelo contrário, de severidade. Compreendo que alguns possam achar ser em extremo duro ver de frente o seu próprio pecado, pois deve produzir uma impressão de desalento, tristeza, desânimo e até o desmaio. A pessoa que pensa assim não tem uma noção clara do que seja uma contrição.

No meio de seus crepes, de suas lágrimas, a verdadeira contrição é alentadora e proporciona belas, talvez lúgubres, mas magníficas alegrias. Para mostrar isso ela descreve o Purgatório, que é por excelência o lugar de contrição. Para lá vão as almas que têm de se purificar de alguma coisa antes de ver a essência de Deus.

Santa Catarina, no trecho transcrito, fala de um modo conciso, mas muito elevado, sobre o Purgatório. Mostra que a alma de uma pessoa boa, fiel, que morre, tem uma primeira noção da pureza infinita de Deus e sabe que vai possuí-Lo por toda a eternidade, a felicidade insondável que não se compara com as alegrias da Terra. Mas, ao mesmo tempo em que é atraída para o Criador, ela se sente fora de condições de se apresentar a Ele.

Então, a alma passa por dois movimentos: um cheio de alegria e outro pleno de pesar. O movimento cheio de alegria a conduz para unir-se a Deus. O de pesar vem do contraste entre aquela mancha que ela nota em si e a pureza infinita do Criador. Então, por um desejo de união, de purificação, diz Santa Catarina, a alma suportaria mil Purgatórios para poder unir-se a Deus.

Ali, no Purgatório, ela sofre o tormento delicioso ou a tormentosa delícia de ir sentindo que aquilo que a separa de Deus vai se tornando mais adelgaçado ao longo das purificações e, ao mesmo tempo, querendo chegar mais próxima do Criador.


A tristeza depurativa e a paz da contrição

De maneira que ela tem uma fundamental alegria junto a uma tristeza que a vai depurando e aproximando de Deus. Algo disso existe também na paz de alma causada pela contrição. Nos Salmos, Davi, inspirado pelo Espírito Santo, canta o pesar por ter pecado, de maneira que cada uma daquelas palavras é uma gota de fogo caída do Céu para a alma humana. Faz certas comparações magníficas. Ele diz, por exemplo, que por causa do pecado ficara isolado, rejeitado e se sentia como um pardal solitário no telhado de uma casa.

A similitude não podia ser mais pitoresca. As pessoas se reúnem em família debaixo do telhado da residência, onde talvez esteja acesa uma lareira e haja o calor do convívio entre todos. Do lado de fora sobre o telhado, sozinho, exposto à chuva, intempérie, não tendo ninguém com quem “conversar”, está o pardal solitário. Assim, longe do convívio dos bons que se entreamam, está o pecador solitário. A imagem não podia ser mais poética, mais bonita para exprimir a solidão do pecador. Davi descreve de mil modos lindos a própria dor.

Ao mesmo tempo em que vai falando de sua dor, nota-se que ele está em paz. É a paz de alma do pecador que reconhece ter errado, não está mentindo para si nem para Deus, e tem coragem de olhar de frente o seu próprio pecado. Em geral, os Salmos terminam com um cântico de esperança: “Mas Tu és Deus meu Salvador e terás compaixão de mim.” Todas aquelas palavras magníficas indicam a esperança da alma de ser atendida, ser remida e salva. Compreende-se a torrente de paz, de esperança e o júbilo triunfal que existe por detrás da penitência. Assim nós devemos considerar Santa Catarina de Gênova.


Um hospital em Gênova, naquele tempo

Imaginemos um hospital em Gênova, naquele tempo: edifício bonito, como geralmente eram as construções italianas. Às cinco horas da manhã, toca uma sinetazinha, a Missa vai começar, as primeiras mulheres fiéis usando véu entram na capela. Entre elas se encontra Santa Catarina de Gênova, lembrando-se talvez de outras madrugadas em que não estava saindo de casa, mas entrando nela. Em que ela não tinha diante de si a perspectiva de um dia de sacrifício, mas a recordação amarga de uma noite inteira de prazer, seguida de inconsolável frustração.

Ela caminha com passo ligeiro, mais uma vez pede perdão pelo seu pecado, ajoelha-se e começa a rezar no recolhimento do prédio. Inicia-se a Missa, os fiéis oram com o padre, aos poucos a claridade entra na igreja, as luzes das velas tornam-se inúteis, a natureza vai acordando, é a normalidade da vida.

Santa Catarina se prepara para começar a sua penitência enorme, infinda, junto aos doentes, ouvir gemidos, assistir agonias, consolar dores. Mas, para além de tudo isto, há uma luz que se levanta e vai ficando cada vez mais nítida: o perdão está vindo, o Céu nascendo, a paz de alma entrando. E com ela se dá o que ocorre no interior daquela capela.

Ao mesmo tempo nela também as luzes vão entrando e brilhando, como uma capela na qual a madrugada vai se fazendo luz e as imagens tomam colorido. Em certo momento, ela morre e é o Céu. Esta é a paz, a tranquilidade da alma na contrição, um perfume que existe na tristeza, na resignação católica e que os espíritos pagãos não conhecem.

Tratando da vida espiritual, quando se fala de mortificação, tristeza, etc., as almas em geral ficam arrepiadas. Não compreendem toda a alegria e felicidade que não estou conseguindo expor adequadamente, mas espero fazer pressentir nesta exposição, porque há qualquer coisa que a palavra humana não descreve por completo. É este misto de amargura e de esperança, de tristeza e de paz, em que a esperança vale muito mais que a amargura, e a paz muito mais que a tristeza. Lembro-me das palavras que creio serem de São Paulo: “Eu tenho uma superabundância de alegria em meio a minhas tribulações” (cf. I Ts 1, 6). Isso o mundo não conhece.


Oceano de paz que só a pessoa verdadeiramente católica possui

O membro verdadeiro da Igreja vive uma espécie de Purgatório na Terra, que é um vale de lágrimas onde expiamos os nossos pecados. Se carregarmos nossa cruz com resignação, teremos na alma torrentes de paz, tranquilidade, estabilidade, ordem, de cuja fruição ninguém, dentro desse mundo transviado, pode ter a verdadeira noção.

Esses bens coexistem com uma verdadeira dor, uma autêntica contrição. Se eu conseguisse dizer as palavras para fazer sentir como a verdadeira paz torna a dor suportável e quanto é digno de entusiasmo, nessas condições, carregar a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, teria feito bem para várias almas que aqui se encontram. É meio inexprimível. Entretanto, encontramos um exemplo disso na vida de Santa Catarina de Gênova.

Que ela do alto Céu interceda por nós e torne luminoso, pela obtenção da graça no interior de nossas almas, aquilo que não consigo senão vagamente indicar, fazer sentir. E que Nossa Senhora nos dê a paz e a alegria da verdadeira contrição, próprias a quem Ela concede a força de ver seus defeitos de frente. É o oposto do olhar oblíquo sobre a própria consciência, de uma tirada de corpo, um não querer ver bem e não se corrigir nunca, uma perpétua maromba diante dos próprios defeitos. Daí também, um mal-estar, uma agitação, um nervosismo contínuos.

Se, pelo contrário, com toda a paz olhássemos para o nosso próprio defeito e disséssemos: “Meu defeito é este. Eu o vejo por inteiro e noto que chega a tal ponto, mas o observo com paz, olhando para Nossa Senhora. Não faço a fraude de não olhar e fico observando-o com uma tristeza que talvez ainda não seja eficiente na ordem da correção, até o momento em que a Santíssima Virgem tenha pena de mim.”

Esse é o primeiro passo para se corrigir. Mas é preciso ter essa lealdade interior por onde se veja o próprio defeito de frente, não se feche os olhos para ele. Eliminar de dentro da alma o caos, a confusão, o mal-estar desse defeito que de vez em quando surge e nós entravamos; com o qual temos a cumplicidade que nos causa horror e depois some de novo; e não sabemos como pegar, não queremos extirpar, mas que nos agarra. Ter a alma limpa dessas misérias e ver as coisas de frente é um oceano de paz que só a pessoa verdadeiramente católica possui. E isto já nos dá um pouco a ideia das amargas delícias do Purgatório, que são o prenúncio do Céu.

Que Nossa Senhora nos faça entender isso, pelos rogos de Santa Catarina de Gênova.

(Extraído de conferência de 27/3/1971)

A festa da seriedade triunfante

A paz de alma é uma disposição pela qual a pessoa, colocada diante das piores dores, não sofre fratura em seu princípio axiológico. Ela compreende que a vida é assim e tem de ser assim. Portanto, não se agita, não se convulsiona, não se entrega a frenesis ou manifestações de inconformidade sem propósito. Pelo contrário, sabe que tudo se passa dentro das normas.

O ideal é quando a pessoa possui um temperamento tão dócil que não precisa fazer esforço para manter-se nesse estado de espírito. Para outros, de temperamento agitado, será necessário lutar, e nisso há um mérito especial.

Este é o primeiro ponto: considerar que o sofrimento é normal e parte integrante da vida, faz bem às almas e dá glória a Deus.


A dor, um “nonsense”?

A esperança de passar uma vida sem sofrimento é das mais mentirosas que possa haver. Segundo a concepção mundana, “coitado” é aquele a quem acontecem habitualmente infelicidades. Ele deve se conformar, porque “não tem remédio”.

É como alguém que nasceu, por exemplo, com uma doença na espinha dorsal, é paralítico, passa a vida numa cama. Não há o que fazer. A ideia que fica é: “Há gente que nasce assim, mas não sou desses, nem sequer posso pensar nisso. Isso é um absurdo.”

Então, a dor apresenta-se como o grande nonsense¹ e a alegria como o único sentido da vida. Resultado: a pessoa se apega enormemente a essa noção.

Olha, por exemplo, para seus próprios parentes: são todos ricos, bem instalados, não enfrentam contrariedades, os negócios dão certo, os planos de viagem não são perturbados, têm as relações que querem e evitam as que não desejam. Enfim, fazem a vida como lhes apetece. São “felizes”.


Mania do riso, negação da seriedade

Se considerarmos verdadeira essa teoria – que, na realidade, é infame –, o riso torna-se a atitude habitual do homem. Tudo quanto leva a pensamentos tristes é absurdo, porque perturba a alegria, considerada a finalidade da vida.

Nesse sentido, a seriedade seria irmã, filha ou mãe da melancolia. Logo, é preciso não ser sério, mas brincalhão, engraçado, viver rindo o dia inteiro. Se, durante o dia, houver vinte oportunidades de rir e de estar contente, tem-se um “bom dia”. Fora disso, nenhum dia seria bom.

Não é preciso ser adulto para ter essa mentalidade. Muitos meninos estudam pouco porque acham absurdo ter de estudar, pois isso “rouba” a alegria. Querem apenas uma vida de eterno feriado.

E, se alguém pergunta a um deles:

— Mas você não pensa que se tornará um adulto ignorante?

Ele responde:

— Não tem problema.
Desde que eu seja rico e possa me divertir, cultura, talento e todos os outros atributos humanos não têm importância nenhuma. É preciso ter dinheiro, vestir-me bem, frequentar o meio social que eu quero e rir, rir, rir o tempo inteiro.

Essa se torna a finalidade da vida. A seriedade torna-se impossível, pois tal mentalidade é a negação mais rotunda dessa virtude. O homem contemporâneo foi habituado a esse estado de espírito.

Ora, exatamente o contrário disso nós devemos adquirir.


Qualidade de sub-homem

Qual é o oposto desse estado de espírito? Antes de tudo, é compreender quão desprezível é uma pessoa que não possui as qualidades verdadeiras do homem.

O seu pensamento é como uma cartilagem inconsistente: só pensa asneiras. Sua vontade é como um leme quebrado: incapaz de indicar o rumo do navio. Sua sensibilidade é como a de uma pele doente: dolorida ao mínimo toque, incapaz de suportar o menor sofrimento.

Quem não é capaz de entender, admirar, querer ou fazer qualquer coisa um pouco acima do nível do chão não é um homem, mas um sub-homem, um bicho. Os passarinhos levam essa vida: se é agradável voar de um galho a outro, lá vão; se querem esvoaçar perto de um tanque, lá estão. Fazem apenas o que é deleitável, guiados pelos instintos.

Pois bem, assim agem certos homens. Uma pessoa que recebeu essa formação desde pequeno, e não foi habituada a reagir adquirindo um estado de espírito oposto, inevitavelmente desemboca na quarta Revolução, cuja essência está expressa num dos slogans da Revolução da Sorbonne: “É proibido proibir.”


Necessidade do árduo

Entretanto, isso se liga a outra realidade: o espírito humano bem construído possui tendências pelas quais, em certo momento, deseja realizar grandes ações.

É como um jovem que, de vez em quando, quer subir uma montanha, atravessar a nado uma baía, participar de um torneio de esgrima, fazer algo difícil. Seu corpo e sua sensibilidade têm necessidade do árduo, do grande, para se sentirem proporcionados às potências que não podem permanecer adormecidas.

Daí a existência de campeonatos — alguns medíocres — mas que, afinal, exprimem de algum modo essa necessidade. Daí também a nobreza do risco bem calculado. Se, diante de um risco, o indivíduo percebe ser capaz de enfrentá-lo e sair-se bem, e então se lança, essa atitude é nobre, elevada. A própria palavra “nobre” começa a ter sentido para ele.

Mesmo a melancolia e a tristeza podem acrescentar algo à sua alma. Por exemplo, a tragédia grega, com tudo o que tem de horrível, acaba sendo bela; e o homem, ao lê-la, acrescenta algo ao seu espírito.


Páscoa: seriedade gloriosa e triunfante

Esse mesmo homem, colocado diante da leitura da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo e das cerimônias da Semana Santa, tem a alma naturalmente disposta a corresponder à graça específica desses Mistérios da Vida do Redentor.

Ele vê o que Nosso Senhor fez de insigne e admirável e, estimulado por isso, diz:
“Eu também quero! Ainda que me venha um sofrimento tremendo, desde que eu O imite e seja um só com Ele, eu quero!” — É algo admirável!

Só então o homem começa a conceber o encanto das coisas vistas em profundidade, a compreender o aspecto do universo que conduz a Deus; aprende a elevar o espírito para os destinos eternos, para a adoração, para o serviço e para a glória de Deus.

Isso confere ao homem a solidez e a seriedade devidas. Ele introduziu em seu “mobiliário” mental o mais belo dos ornatos: a Cruz de Cristo. Porque compreendeu que nunca se fez coisa mais bela do que o Homem-Deus ter querido sofrer tudo quanto sofreu, da parte de homens que não tinham nenhum direito de fazer o que fizeram — homens infames, grosseiros, sem-vergonha. Nosso Senhor aceitou isso imediatamente, por um povo ingrato e por discípulos infiéis. Um nonsense aparente, mas sustentado no peito! Assim é: vitorioso!

Neste sentido, pode-se dizer que a Páscoa da Ressurreição é a festa da seriedade triunfante — não a seriedade esmagada, melancólica e triste, mas gloriosa, brilhando com todas as luzes de Deus.


¹ Do inglês: disparate.
(Extraído de conferência de 26/1/1989)

Madre Francisca do Rio Negro e a santidade brasileira

Madre Francisca do Rio Negro
e a santidade brasileira

Há ocasiões em que Deus desafia os seuseleitos paraexperimentá-los. Nesses casos
não se trata de optar entre o  bem e o mal, mas entre o bom e o ótimo. Nesta perspectiva,
Madre Francisca nunca recusou
nenhuma adversidade. Ela reflete bem a alma brasileira com uma profundidade cheia de discernimento das realidades celestes.

Madre Francisca de Jesus

A dama brasileira marcada pela Providência

Madre Francisca de Jesus, falecida em 28 de maio de 1932, é em grande parte desconhecida. Se não fosse o livro escrito por um grande teólogo, o Pe. Garrigou-Lagrange, O.P., pouco saberíamos sobre essa vida extraordinária, profundamente marcada pelo selo da Divina Providência.

✝️ Uma vida mística

O catolicismo é essencialmente místico: uma relação íntima entre o fiel e Deus, marcada pela oferta generosa da alma e pela ação purificadora e santificadora do Senhor. A mística se realiza, muitas vezes, no sofrimento, na vivência da Paixão de Cristo em cada fiel.

Na vida de Madre Francisca, fundadora da Companhia da Virgem, essa “morte em Cristo” foi profundamente visível. Em 1927, enfrentou uma das maiores provas espirituais: a sensação de abandono de Deus e o temor do Inferno. Um dominicano experiente lhe escreveu:

“É necessário experimentar esse vazio absoluto, para vir a se estar cheio da plenitude de Deus. […] Não é o prelúdio de uma morte eterna como temeis, mas é a verdadeira morte mística para tudo e para si mesmo, e o prelúdio da vida eterna.”

⛪ Uma vocação fora do comum

Francisca Carvalho do Rio Negro era filha do Barão do Rio Negro. Nascida em 1877 em Petrópolis, viveu sua infância no Brasil e mudou-se jovem para Paris. Desde cedo, por inspiração sobrenatural, consagrou-se a Deus por um voto de virgindade perpétua diante de uma imagem de Nossa Senhora de Lourdes.

Durante catorze anos, lutou contra os insistentes esforços da família para casá-la — mesmo contra a opinião de seu confessor, que dizia ser o voto nulo. Mas ela perseverou. Como Jacó, teve de lutar com anjos.

“Se houvesse obedecido cegamente, a Igreja teria hoje uma ordem religiosa a menos.”

👑 Beleza, distinção e firmeza

Francisca era uma mulher de rara beleza — calma, firme, nobre. Não a beleza estereotipada e vulgarizada, mas a que impõe respeito e eleva. Sua aparência refletia sua alma: profunda, decidida e voltada para o alto.

Aos 30 anos, livre da pressão familiar, passou três anos buscando, em vão, o caminho exato de sua vocação. Foi em alto-mar, de volta ao Brasil, que Deus lhe falou no silêncio da oração: deveria fundar uma ordem voltada à oração pelo Papa e pelas vocações sacerdotais.

🤲 Aprovação de São Pio X

Em 1910, após várias resistências, Francisca foi recebida em audiência pelo Papa São Pio X. O Pontífice reconheceu a autenticidade sobrenatural da inspiração que ela recebera. Em 1912, fundou-se o embrião da Companhia da Virgem, um pequeno grupo consagrado a rezar e se imolar pelas intenções da Igreja.

Enquanto o mundo se preparava para a Primeira Guerra Mundial, três mulheres escondidas no Corso d’Italia teciam silenciosamente uma “conspiração mística” que o tempo provaria ser mais forte do que qualquer poder humano.

😔 Sofrimento e heroísmo

Sua vida foi marcada por intensas dores físicas e espirituais. Sofreu da doença de Basedow, passou por operações graves e foi curada milagrosamente em pelo menos duas ocasiões — por intercessão de São Pio X e de Santa Teresinha do Menino Jesus.

As perdas também a atingiram: em 1928, viu suas principais filhas espirituais abandonarem o convento. A dor foi imensa, mas ela ouviu interiormente a voz de Cristo:

“Serás sacudida tu e a tua barca, mas nem tu nem a tua barca naufragarão!”

🌑 Noite escura da alma

Nos últimos anos, Madre Francisca foi envolta em densas trevas espirituais. Chegou a julgar ter perdido a fé. No entanto, permanecia firme: cria porque queria crer, num ato heroico da vontade.

“É preciso amar Nosso Senhor generosamente até a destruição de si mesmo.”

Assim foi destruída, e nela já não vivia senão Cristo.

👁️ Um olhar que contempla o eterno

Sua fisionomia expressava uma santidade tipicamente brasileira: doce, profunda, cheia de discernimento sobrenatural. Não era alguém presa às trivialidades da vida, mas uma alma voltada a Deus, que via nas criaturas reflexos do Criador.

Era capaz de um olhar que iluminava e educava, um gesto que transformava um ambiente vulgar em algo elevado, digno e cheio de sentido.

🌾 Modelo para o Brasil

Madre Francisca representava o que o Brasil tem de mais elevado em sua alma católica. Sem sentimentalismo, sem superficialidade, sem espírito hollywoodiano. Apenas uma presença discreta, firme, contemplativa, que irradiava Deus — com distinção, com generosidade, com amor verdadeiro.

“Isto é o Brasil totalmente.” — Dr. Plinio Corrêa de Oliveira


Se quiser, posso adaptar essa formatação para um ebook, post de blog, encarte devocional, ou um roteiro de vídeo/homenagem. Gostaria disso?

Santo Olavo: Um santo aparentemente fracassado

Um Santo aparentemente fracassado

Santo Olavo e o Êxito do Apostolado

Certas concepções um pouco simplistas dizem que tanto o êxito quanto
o fracasso dependem da pessoa que faz o apostolado. Entretanto, é
preciso considerar que o sucesso está sujeito também à cooperação
daqueles junto aos quais se age. Por isso, até mesmo os Santos podem
fracassar quase por inteiro. É o caso de Santo Olavo, Rei da Noruega.

O êxito do apostolado não depende apenas do apóstolo

Certas concepções um tanto simplistas afirmam que tanto o êxito quanto o fracasso dependem exclusivamente da pessoa que realiza o apostolado. No entanto, é preciso considerar que o sucesso está sujeito também à cooperação daqueles junto aos quais se atua. Por isso, até mesmo os santos podem parecer fracassar quase por inteiro.

É o caso de Santo Olavo, Rei da Noruega.


Vida e missão de Santo Olavo, Rei da Noruega

No dia 29 de julho, a Igreja celebra a festa de Santo Olavo II — também chamado Olavo, o Santo — Rei da Noruega. Governou com sabedoria e retidão.

Filho de Haroldo, príncipe do Folde Ocidental, Olavo nasceu no final do século X, numa época em que a Noruega vivia sob o jugo alternado da Suécia e da Dinamarca. Essas nações escandinavas disputavam continuamente a sucessão ao trono norueguês.

Por volta de 1017, Olavo alistou-se no exército e decidiu libertar a pátria, particularmente do domínio de Canuto, o Grande, rei da Dinamarca, que aspirava ao trono norueguês. Com apoio do povo, insurgiu-se, foi eleito rei e fixou a capital em Trondheim.


Um rei que quis a glória de Deus

Durante seus 17 anos de reinado:

  • Organizou a nação;

  • Catequizou o povo;

  • Uniu-se ao rei da Suécia para difundir o Cristianismo;

  • Enviou expedições para converter a Groenlândia e a Islândia.

Por combater os abusos de nobres desleais, Olavo foi traído por eles, que aliaram-se a Canuto. Este declarou guerra contra o santo rei. Olavo saiu ao campo de batalha, mas sem o apoio necessário do povo, foi derrotado e morreu heroicamente em Stiklestad, no ano de 1030.


Uma derrota que preparou a vitória futura

Após sua morte:

  • A Noruega caiu novamente sob o domínio dinamarquês.

  • Arrependidos, os noruegueses o proclamaram padroeiro da nação.

  • Em 1098, seu corpo foi encontrado incorrupto e transferido para a Catedral de Trondheim.

  • O Martirológio Romano o reconheceu como mártir.

Mesmo após a Reforma, a Noruega manteve a Ordem de Santo Olavo como símbolo nacional.


Um santo fundador

Santo Olavo é um exemplo típico dos santos fundadores da Idade Média: homens providenciais, escolhidos por Deus para obras extraordinárias.

Ele não buscou o poder por vaidade ou ambição, mas quis as coisas temporais com vistas à glória de Deus e ao bem da Igreja Católica. Por isso, é um verdadeiro fundador de nação: não apenas estruturou um reino, mas procurou dar-lhe uma alma cristã.


A semente do sacrifício

Apesar da ingratidão do povo e da oposição de parte da nobreza, algo da obra de Santo Olavo permaneceu:

  • Um senso nacional resistente;

  • A inspiração cristã para futuras gerações;

  • A esperança de reconversão da Noruega à fé católica.

Embora o país hoje seja protestante e profundamente influenciado pelo socialismo, a semente do sacrifício de Olavo permanece viva. Se algum dia a Noruega retornar ao seio da Igreja, certamente será pela intercessão e exemplo desse rei santo.


Reflexão sobre o êxito no apostolado

Este episódio é uma lição clara contra certas teorias modernas e mecanicistas sobre o apostolado, como a que circula em alguns meios da Ação Católica: a ideia de que, se o apóstolo usar técnicas adequadas, seu sucesso será garantido — e, se fracassar, a culpa é dele.

Essa concepção é determinista e ilusória. Santo Olavo fez tudo o que estava ao seu alcance. Mesmo assim, foi rejeitado. O êxito do apostolado depende da cooperação daqueles a quem ele se dirige.

Como ensina Santo Agostinho:

“Qui creavit te sine te, non salvabit te sine te.”
(“Aquele que te criou sem ti, não te salvará sem ti.”)

Os homens negaram a Olavo o concurso necessário. Aos olhos humanos, ele fracassou. Mas aos olhos de Deus, não. E isso é o que importa.


Conclusão

Mesmo as obras dos santos podem parecer fracassar, mas isso não invalida a sua grandeza. Pelo contrário: o verdadeiro êxito do apostolado é ser fiel à vontade de Deus, mesmo que isso exija o sacrifício de tudo, inclusive da própria vida.

(Texto extraído de uma conferência proferida em 29/7/1965)


Se quiser, posso também adaptar esse texto para formato de e-mail devocional, resumo para redes sociais, ou versão para áudio/roteiro de vídeo. Deseja alguma dessas opções?

Santo Agostinho: um antegozo da visão beatifica

Um antegozo da
visão beatífica

Santo Agostinho e o último lance da vida de Santa Mônica

No dia 28 de agosto, comemora-se a festa de Santo Agostinho. Nesta ocasião, podemos refletir sobre um trecho marcante de sua biografia. Aliás, recomendo muito a leitura do livro Confissões — desde que o leitor tenha alguma familiaridade com a linguagem filosófica, pois há descrições mais profundas. Ainda assim, a parte biográfica é acessível a todo leitor piedoso, e é simplesmente estupenda!

Um dos episódios mais belos da obra é conhecido como o “Êxtase de Óstia” ou “Colóquio de Óstia”. Santa Mônica, mãe de Santo Agostinho, passou mais de trinta anos rezando e chorando pela conversão do filho. E parecia que, quanto mais rezava, mais distante a conversão se tornava. Agostinho mergulhou em diversos erros até tocar o fundo do poço — simbolicamente comparado ao filho pródigo, que chega a comer as bolotas dos porcos. Foi aí que se iniciou seu caminho de retorno, que o tornaria um dos maiores Doutores da Igreja.

Após sua conversão, Agostinho decidiu retornar com sua mãe à África do Norte, sua terra natal, então parte do Império Romano. Durante a viagem, passaram por Óstia, um pequeno porto próximo a Roma, de onde embarcariam para Tagaste. Hospedados ali, mãe e filho conversavam junto a uma janela com vista para o jardim. Durante esse diálogo sobre Deus e as realidades celestes, ambos foram tomados por um êxtase espiritual.

Santo Agostinho descreve esse momento nas Confissões, num dos trechos mais célebres da obra. Poucos dias depois, ainda em Óstia, Santa Mônica faleceu. Sua missão estava cumprida. Deus a chamou para o Céu, para o gozo eterno daquilo que ela havia tanto buscado em oração. Seu último grande momento foi esse colóquio com o filho, um verdadeiro antegozo da visão beatífica.

Dois santos conversando sobre a eternidade — que beleza sublime! Santa Mônica, que tanto sofreu por seu filho, agora podia vê-lo inflamado pelo desejo das coisas do alto. E isso enche seu coração de alegria profunda.

Eles refletiam sobre as realidades do Céu, reconhecendo que todos os prazeres terrenos, por maiores que sejam, são pálidos diante da felicidade da vida eterna. Subiram, em espírito, da criação à contemplação do Criador. Meditaram sobre as almas, a sabedoria divina e, num voo elevado, alcançaram um vislumbre da própria Eternidade. Era o êxtase — a experiência mística de dois corações abertos à Verdade.

E o mais belo: Santa Mônica não desejava seu filho para si mesma, mas para Deus. Não buscava orgulho, reconhecimento ou convivência confortável com o agora convertido Agostinho. Sua única alegria era vê-lo totalmente entregue ao Senhor. Quando isso aconteceu, sentiu que nada mais a prendia a este mundo. Dias depois, partiu em paz.

Essa é a diferença entre uma mãe verdadeiramente santa e uma mãe apenas sentimental. Santa Mônica não quis colher os frutos de sua missão para si, mas ofereceu tudo a Deus. E seu último grande lance na Terra foi narrado por aquele que se tornou um dos maiores santos da Cristandade.

Só ama o bem quem odeia o mal

Só ama o bem quem odeia o mal

 

São Lázaro, monge do século IX, teve as mãos queimadas por ordem de um imperador iconoclasta porque fazia imagens sagradas. Os humanitários que hoje declamam contra as Cruzadas e a Inquisição não têm uma palavra de censura para com os imperadores romanos que martirizavam os católicos.

Temos para comentar alguns dados biográficos de um Santo extraordinário: São Lázaro, Confessor. Não é o amigo de Nosso Senhor, irmão de Marta e Maria. Monge e pintor de sagradas imagens, viveu no século IX. Queimaram lhe as mãos com ferro em brasa, mas foi curado pelo poder de Deus e pintou novamente imagens que haviam sido raspadas pelos iconoclastas. O Criador restaurou suas mãos e ele restaurou as pinturas.
Mãos queimadas até os ossos
Lázaro, nascido no Monte Cáucaso, deixou seu país na primeira juventude e veio para Constantinopla, onde abraçou a vida religiosa. Além dos exercícios ordinários do estado monástico, aprendeu pintura, arte que se cultivava nos claustros, sobretudo em Constantinopla, desde que a guerra contra as sagradas imagens tinha sido declarada pelos iconoclastas1.
Como os iconoclastas eram contra o uso das imagens, nos bons mosteiros os monges aprendiam a pintá-las como um meio de combatê-los. Naturalmente, depois eles difundiam essas pinturas.
Os imperadores, não contentes de quebrar as imagens e perseguir seus defensores, tinham ainda de tal modo intimidado os pintores com o rigor de seus editos, que o medo da morte, da prisão e do exílio os impedia de fazer qualquer quadro de Jesus Cristo ou dos Santos. Foi o que levou muitos superiores de mosteiros a querer reparar esse dano, apesar das ameaças e da indignação do soberano, introduzindo a arte da pintura em suas casas, para impedir que as santas imagens fossem abolidas pelos ímpios.
Lázaro tinha se tornado muito hábil nessa profissão, e a perpetuação, a reputação que adquiriu foi causa da perseguição particular que teve de sofrer.
O Imperador Teófilo, em 829, tendo ordenado a pena de morte para todos os pintores que recusassem a rasgar os quadros nos quais tivessem pintado os Santos, mandou buscar Lázaro em seu mosteiro, para executar o edito em sua presença. Não conseguiu levá-lo a isso pela doçura e recorreu à tortura. Fê-lo tão cruelmente que pensou que São Lázaro morreria no suplício. Mas, tendo recuperado suas forças algum tempo depois, continuou a pintar. O imperador mandou prendê-lo de novo e torturá-lo com brasas de ferro rubro nas mãos, queimando-as até os ossos.
A imperatriz Santa Teodora obteve do marido a sua libertação e o manteve oculto na Igreja de São João Batista, onde o fez curar. Quando Lázaro se restabeleceu, pintou, por reconhecimento, um quadro do Precursor, que se tornou um dos mais célebres de seu tempo.
Após a morte de Teófilo, a imperatriz Santa Teodora e seu filho Miguel III restabeleceram a honra das imagens. Lázaro elaborou um Salvador que colocou sobre uma coluna para ser exposto à veneração pública.
Vendo, então, o culto antigo bem fortalecido, entregou-se aos santos exercícios da vida monástica, não pensando senão em santificar-se nas obscuridades do claustro, onde morreu em 867.
Ódio contra os que defendem a Fé
Percebemos nesta narração, de modo muito notável, a fidelidade desse Santo à sua vocação, levando-o a enfrentar toda espécie de torturas. Mas me parece ser tal o número de mártires com essa fidelidade – isso é algo refulgente de tal maneira na Igreja que as nossas almas estão cheias dessa luz –, não sendo o caso de insistir sobre isso.
Talvez seria conveniente apontar, nesse conjunto de fatos, um aspecto não tão batido quanto o da glória insondável do martírio: a impiedade é fina e perspicaz no seu ódio, e devemos lamentar que nós, filhos da luz, não sejamos tão perspicazes e finos como ela.
Os humanitários declamam muito contra as Cruzadas, a Inquisição e toda forma de guerra de religião – porque, dizem eles, são torturas horrorosas, não se deve absolutamente permitir uma coisa dessas, é contra a caridade etc. – porém, não têm uma palavra de censura para com os imperadores romanos que martirizavam os católicos. Quando se diz a um deles:
— Você não fala contra Diocleciano, Nero? Só contra Torquemada2?
E num movimento temperamental de um ódio todo platônico, ele diz:
— Ah, também contra esses eu sou contra. Mas Torquemada… é preciso acabar com ele.
— E Nero não foi horroroso?
— Sim, sim. São coisas que se deve censurar, e – bocejando, acrescenta – eu censuro…
Mas o ódio dinâmico dos ímpios é contra aqueles que derramaram o sangue na defesa da Fé. Contra os que o fizeram verter para combater a Fé eles não têm ódio dinâmico nenhum. Isso prova que, no fundo, o ódio deles não é contra o derramamento de sangue, mas é contra a defesa da Fé.
Quanto se tem falado contra os Autos de Fé espanhóis! No que isso tem de diferente de um Auto contra a Fé, do ponto de vista sangue? Não tem nada de diferente. Tanto um quanto outro envolvem sangue, são opressões da liberdade. Entendamo-nos a esse respeito. O ódio dos humanitários, dos liberais vai exclusivamente contra aqueles que derramaram o sangue para defender a Fé.
Sanha de perseguição contra os bons
Isso vai mais longe. Se eles não têm ódio aos que promoveram o derramamento de sangue perseguindo os católicos, muitos dentre eles, podendo, também não verteriam o sangue dos católicos? Uma coisa traz a outra, como consequência. Se eu, diante de crimes atrozes como esse, me manifesto frio, no fundo acho que quem fez isso tem uma certa razão e eu, no caso, talvez o fizesse. Compreende-se, então, até onde chega a ferocidade dos ímpios: não só até a contradição, mas até uma sanha de perseguição que não revelam, mas que, no fundo, eles têm.
Reflexão muito útil quando estivermos em presença de pessoas como essas, pois quase todo mundo tem esse estado de espírito.
Façam um teste nos ambientes frequentados. Digam algo sobre a Inquisição e todo mundo se levanta para atacá-la. Falem contra as perseguições, por exemplo, dos iconoclastas no Império Romano do Oriente, e sai o tal ódio frio, platônico, que não é verdadeiro ódio.
Portanto, toda essa gente tem, no fundo – ao menos em algumas fibras da alma, quando não em todas –, uma complacência com a ideia de matar os autênticos católicos.
Então, em contato com pessoas desse naipe, devo pensar: “Esse indivíduo que está falando comigo quereria matar-me, se pudesse”. É preciso chegar até o caso pessoal, atingir a pele e o instinto de conservação. Não considerar apenas em tese a morte dos cristãos, dos católicos.
Não conhece nem ama o bem quem não conhece e não odeia o mal
Se esse indivíduo fosse meu familiar, eu poderia cogitar: “É verdade. Mas sendo ele meu parente, não me mataria”. Isso é falso. O ódio deles contra a Fé é tão grande que gostariam de matar os católicos e não poupariam ninguém.
Quem julgasse que o indivíduo não faria isso com ele porque é seu parente, pensaria como um ingênuo. Seria bom passar por um curso de “desingenuização” porque levou a ingenuidade até extremos muito grandes.
Peçamos, então, a São Lázaro esta graça penetrante: perceber e discernir nos ímpios com os quais tratamos o ódio que eles têm a nós.
Alguém dirá: “Mas, Dr. Plinio, qual é a vantagem disso? Eu vivo tão bem com os meus parentes. São agradáveis, influentes, conversam bem. Agora está o senhor me fazendo ver um Nero ou um Calígula… O senhor desarranja tudo! E parece estar contente com o desarranjo produzido.”
A minha resposta é a seguinte: Não conhece nem ama o bem quem não conhece e não odeia o mal. O conhecimento do mal é indispensável para o conhecimento do bem, como contraste. Depois do pecado original, não se pode dispensar o conhecimento do mal. E é preciso medir o mal em toda a sua extensão, para conhecermos o bem em toda a sua nobreza.
Portanto, é necessário fazer esse exercício com as pessoas próximas de nós. Porque, ademais, seria uma atitude simplória achar que os parentes dos outros não prestam e são muito ingênuos quando acreditam neles, mas os nossos são diferentes.
Vale muito a pena nos compenetrarmos do ódio pessoal que eles têm a nós, porque enquanto não tivermos essa compenetração, um restinho de complacência com o mundo pode ficar. E se trata, exatamente, de dissipar toda e qualquer complacência com o mal. Então, fica isso indicado à nossa consideração a propósito da vida de São Lázaro.

 

(Extraído de conferência de 22/2/1967)

1) Não dispomos dos dados da ficha utilizada por Dr. Plinio.
2) Tomás de Torquemada (*1420 – †1498), sacerdote dominicano espanhol, confessor da Rainha Isabel, a Católica, e do Rei Fernando de Aragão. Foi também grande Inquisidor de Espanha.

 

Mártir da liberdade da Igreja

Mesmo inerte em seu jazigo, São Tomás Becket, séculos depois de se tornar mártir pela liberdade da Igreja, constituía ainda um obstáculo para que a caudal da heresia pudesse avançar entre os ingleses. Por isso, o ímpio Henrique VIII mandou profanar e queimar seus restos mortais.

 

Há um adágio latino que diz: “Nemo summo fit repenter”. De fato, nenhuma ação sumamente boa ou má se faz repentinamente, mas é precedida de uma série de atos que a preparam. Isto que se aplica à vida moral dos indivíduos revela-se igualmente verdadeiro no que diz respeito à história das civilizações, das nações, dos ciclos de cultura: os grandes acontecimentos históricos se preparam com antecedência.

Como explicar um dos episódios mais tristes da História da Igreja?

 

Nesse sentido, um dos episódios mais tristes da História da Igreja é, sem dúvida, a passagem quase maciça da Inglaterra da plena observância da Religião Católica para o protestantismo, no século XVI. Bastou o Rei Henrique VIII entrar em desacordo com a Santa Sé, por esta não lhe permitir divorciar-se de Catarina de Aragão e contrair novas núpcias, para que ele se proclamasse chefe da igreja inglesa e se separasse de Roma.

No momento em que o monarca rompeu com a Igreja Católica Apostólica Romana, um número muito pequeno de eclesiásticos e de leigos manteve-se fiel. Alguns deles se tornaram mártires, entre os quais os dois mais ilustres foram São Tomás Morus, como leigo, e São João Fischer, como cardeal. Contudo, a maior parte entregou-se e mudou de religião vergonhosamente, sem o menor remorso. Conventos inteiros, universidades, instituições de caridade, tudo passou em bloco para o protestantismo.
Como explicar um fato tão escandaloso como esse? Como uma ação dessa natureza foi praticada, ao mesmo tempo e por tantas pessoas, pelo simples sopro de um rei?
Compreende-se que, estando a Europa no período das monarquias absolutas e sendo muito grande, em consequência, o poderio dos monarcas, fosse grande também a pressão exercida por eles para obrigar o reino à apostasia. Contudo, cabe observar que, em primeiro lugar, esse não era exatamente o caso de Henrique VIII, pois há muito os poderes da monarquia inglesa se encontravam limitados pelos do Parlamento. Em segundo lugar, mais absolutos do que todos os monarcas da Europa daquele tempo foram os potentados da Roma pagã; entretanto, incontáveis mártires souberam resistir a eles. Portanto, o despotismo da autoridade que prevarica não justifica a prevaricação do súdito.
Estamos, pois, diante de uma página nigérrima da História da Igreja, a qual, aliás, repetiu-se, mutatis mutandis, em alguns outros reinos. A deterioração da Igreja Católica para a igreja protestante na Suécia, na Noruega, na Dinamarca e em várias partes da Alemanha deu-se assim. Houve uma pressão do poder civil, e o corpo eclesiástico aderiu maciçamente à heresia.

Duas concepções opostas da vida

No caso concreto da Inglaterra, nós encontramos a explicação no ocorrido com São Tomás Becket.
Já no século em que ele viveu, em plena Idade Média, havia uma disputa entre a realeza e o Papado. Os reis entendiam que a Hierarquia Eclesiástica inglesa deveria estar sob seu domínio, enquanto os Papas, fundamentados na instituição criada por Nosso Senhor Jesus Cristo, reivindicavam o pleno domínio em matéria espiritual sobre todos os bispos, sacerdotes e fiéis.
Por trás desse desacordo encontrava-se um princípio mais alto, uma discussão a respeito de um ponto que continha em si os germens da Revolução: quem afirma que o rei tem poder sobre a Igreja, no fundo sustenta que o poder temporal, representante das coisas desta Terra e da matéria, possui um primado sobre o poder espiritual.
Isso equivale a dizer que, na ordem dos valores, os assuntos terrenos e civis têm mais importância que os religiosos, sendo estes meros instrumentos daqueles. Donde fica subentendido, embora não se afirme explicitamente, que o fim da religião se restringe à vida do homem neste mundo e que a Fé é um mito útil para disciplinar os homens, mas não representa uma verdade revelada, objetiva e absoluta.
Ao contrário, o princípio sustentado pela Igreja é de que as coisas desta Terra existem em função da vida eterna e que, embora o Estado possua uma finalidade própria temporal, ele deve ajudar a Igreja a cumprir sua missão. Por essa razão, além de estar revestida de todo direito e poder em matéria eclesiástica, no que diz respeito à salvação das almas a Igreja tem autoridade até sobre o Estado, o qual não pode promulgar leis que contrariem a Lei de Cristo.
Trata-se, portanto, de duas concepções opostas da vida: uma sacral e religiosa, sustentada pela Igreja; outra laica, materialista, revolucionária.

Lenta invasão do Estado nos poderes da Igreja

No século XII houve uma luta muito forte entre o Rei Henrique II e São Tomás Becket, o qual defendia o poder do Papado e rejeitava a jurisdição do monarca sobre a Igreja.
O embate teve especial importância porque ele era Arcebispo de Canterbury, sede primacial da Inglaterra, e, portanto, implicitamente representava todo o corpo eclesiástico inglês enquanto sua mais alta figura.
A disputa tornou-se intensa e São Tomás Becket acabou exilado durante anos. Tendo voltado para a Inglaterra, foi assassinado pelos esbirros do Rei.
Boa parte do povo ficou a favor de São Tomás Becket e indignada com o Rei, a tal ponto que este se julgou na necessidade de fazer penitência pública diante do sepulcro do santo Arcebispo, pedindo perdão a Deus pelo que havia acontecido.
Contudo, uma porção considerável das classes dirigentes continuou a dar apoio ao Rei em segredo, enquanto certo número de intelectuais católicos e mesmo de clérigos sustentavam, na surdina, que São Tomás Becket havia exagerado e, embora o Rei tivesse agido mal ao matá-lo, doutrinariamente a razão estava com ele, pois o Estado gozava de superioridade em relação à Igreja.
De fato, acompanhando a História da Inglaterra vê-se que houve uma lenta e progressiva invasão do Estado sobre os poderes da Igreja. Esta era cada vez mais garroteada, e glaterra ainda era católica, mas sua catolicidade tornara-se tão superficial que foi possível derrubar a Igreja naquele reino mais ou menos como se abate uma árvore em cuja raiz há cupim: com um solavanco ela cai. Por mais que algumas fibras continuem ligadas ao solo, facilmente se cortam e está tudo acabado.
Quando subiu ao trono Maria Tudor, que se casou o Rei Felipe II da Espanha, houve uma restauração religiosa na Inglaterra. A nação inteira se converteu à Fé Católica e um legado papal foi enviado para dar absolvição ao Parlamento; ter-se-ia a impressão de que estava tudo em ordem.
Entretanto, nada estava em ordem. Morta Maria Tudor, aqueles mesmos bispos e outras autoridades que haviam se convertido à Religião Católica voltaram para o protestantismo. Logo, era tudo aparência e oportunismo.

Se não houver uma reação, o progressismo levará os fiéis à heresia

Esses fatos têm analogia com nossos dias. Notamos precisamente o pensamento católico minado pela Revolução a partir, pelo menos, do século XIX. Inicialmente por meio de simples omissões ou concessões em pontos doutrinários não bem definidos; mais tarde, mediante a adesão explícita a doutrinas injustificáveis.
Vemos no mundo atual o surto do progressismo. Se não houver uma reação, é forçoso que ao cabo de algum tempo os fiéis caiam em heresia. Com efeito, o edifício espiritual de um país minado pelo progressismo assemelha-se à madeira corroída por dentro pelo cupim, mas que conserva sua aparência exterior: quem a olha, pensa que está tudo normal, quando na realidade basta calcar o dedo para aquela casca ceder. Aliás, nem mais essa aparência está muito conservada; há apenas um resto de ortodoxia. Põe-se a mão, e logo aparece o pensamento revolucionário.
Eu pude assistir a essa evolução no Brasil. Quando era jovem congregado mariano, entre 1929 e 1932, notava que a Religião Católica professada em torno de mim parecia inteiramente ortodoxa, tal como eu aprendera em menino. Contudo, observava com estranheza que o sentido de luta havia desaparecido por completo. Dez anos antes ainda se atacavam muito os erros do protestantismo, mas quando eu tinha cerca de vinte e três anos já quase não se falava disso.
Ademais, eu percebia que as verdades católicas mais características, aquelas que doem mais aos hereges, não eram afirmadas nos seus pontos protuberantes. Por exemplo, chamava-me a atenção como todo mundo admitia a infalibilidade da Igreja e o princípio da monarquia papal, mas se tratava com indiferença quem quisesse falar com muito entusiasmo a esse respeito. Em geral, os temas que interessavam limitavam-se aos que não despertavam polêmica.
Por volta de 1937 e 1938, começou a primeira infiltração das ideias progressistas. Em 1970 essas ideias vão tomando conta de tudo. Primeiro as omissões, depois as concessões, em seguida as traições: um ritmo tríplice. Vemos isso tanto na História da Inglaterra com em nossos dias.

Preparação remota para a completa negação da Igreja

Assim caminham as grandes heresias: os silêncios preparam as traições. A Inglaterra aderiu ao protestantismo não com explosões de ódio como aconteceu, por exemplo, na Alemanha, nem com uma espécie de crise de consciência coletiva que cortou o país ao meio, como se deu na Revolução Francesa, mas sim na indolência e na inexistência de qualquer reação.
Em nossos dias, as alas mais avançadas do progressismo sustentam que a Igreja, como a conhecemos, deve ser desarticulada e praticamente abolida a sua Hierarquia. Os bispos e padres precisam ser tutelados por uma espécie de “profetas”, e as paróquias, aglutinadas ao sabor desse “espírito profético”.
Essas ideias estão na lógica de um mesmo erro que avança: primeiro afirma-se que a Igreja deve estar sujeita ao Estado, porque o princípio leigo prevalece sobre o religioso; mais adiante se diz que o princípio religioso é inútil.
Com efeito, é tão antinatural defender que o leigo está acima do religioso que tal contradição não se sustenta, e só pode ser vista como uma etapa para a rejeição do religioso. Então, a posição inglesa representou uma preparação remota de terreno para a completa negação da Igreja.
Essa preparação remota teve seus primórdios nos episódios vividos por São Tomás Becket, de cuja post-história nos fala Dom Guéranger no L’Année Liturgique.

Relíquias profanadas e destruídas

O século XVI veio acrescentar algo mais à glória de São Tomás Becket, quando o inimigo de Deus e dos homens, Henrique VIII da Inglaterra, ousou perseguir com sua tirania o mártir da liberdade da Igreja até no esplêndido relicário onde ele recebia há quatro séculos as homenagens da veneração do mundo cristão.
Henrique VIII pretendia dirigir a Arquidiocese de Canterbury, transformando seu Arcebispo numa espécie de lacaio mitrado. Uma vez que o mais importante dos prelados ingleses cedesse, era natural admitir que os outros se deixassem arrastar também e a Igreja na Inglaterra se transformasse numa repartição pública.
São Tomás Becket foi morto na sua catedral, tornando-se mártir da liberdade da Igreja. Tendo sido canonizado, seu corpo jazia num relicário esplêndido, onde durante quatro séculos recebeu as homenagens dos ingleses.
Ora, a partir do momento em que Henrique VIII se separou de Roma e se declarou chefe da igreja da Inglaterra, era natural que ele quisesse injuriar as relíquias daquele que morrera para que isso não se desse. Então, mandou algumas pessoas irem à Catedral de Canterbury para violar a sepultura de São Tomás Becket. Como comenta Dom Guéranger, é uma glória a mais para esse Santo o fato de seus restos mortais terem sido profanados pelo homem nefando que separou a Inglaterra da Igreja Católica.
Continua o texto:
Os ossos sagrados do prelado, morto pela justiça, foram arrancados do altar. Um processo monstruoso foi instituído contra o pai da pátria, e uma sentença ímpia declarou Tomás réu de crime de lesa-majestade.
Esses restos preciosos foram colocados sobre uma fogueira, e nesse segundo martírio o fogo devorou os despojos do homem simples e forte cuja intercessão atraía sobre a Inglaterra os olhares e a proteção do Céu.

A Inglaterra não era mais digna daquele tesouro

Também era justo que o país que devia perder a Fé por uma desoladora apostasia não guardasse em seu seio um tesouro que não seria mais devidamente estimado. Além disso, a sede de Canterbury estava manchada. Cranmer sentava-se na cadeira dos Agostinhos, dos Dunstanos, dos Lanfrancos, dos Anselmos, de Tomás enfim; e o santo mártir, olhando ao redor de si, não teria encontrado entre seus irmãos dessa geração senão João Fisher, que consentiu em segui-lo até o martírio. Mas este último sacrifício, por muito glorioso que fosse, nada salvou. Há muito a liberdade da Igreja perecera na Inglaterra. A Fé, lentamente, apagar-se-ia.

O autor comenta ser explicável esse processo monstruoso. A Inglaterra protestante destruiu um tesouro que não era mais digna de conter. Privou-se, assim, pelas suas próprias mãos, da presença das relíquias de um Santo que seria um intercessor ainda válido para evitar que ela caísse nos últimos degraus da apostasia. E, com isso, consumou-se o crime.
Além disso, até mesmo a Igreja na Inglaterra não era mais digna desse tesouro. Com exceção do Cardeal João Fisher, todos os bispos do país apostataram. Os padres e as freiras, na sua quase totalidade, aceitaram a passagem para o protestantismo com uma passividade simplesmente vergonhosa, como aconteceu na Suécia, Noruega, Dinamarca e em certas partes da Alemanha. Conventos, dioceses, populações inteiras deixaram a Religião Católica com a maior indolência, quando não com a maior alegria, e se fizeram protestantes.

Ser odiado pelos maus, até depois da morte, é uma glória

Quase ninguém fala dessa execução póstuma de São Tomás Becket; entretanto, há nela uma verdadeira glória para o Santo. Ser odiado pelos maus, sofrer perseguição por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo é uma glória. Mas que o exemplo dado por um homem tenha sido tão magnífico que os maus não conseguem violar os Mandamentos da Lei de Deus sem primeiro destruir suas relíquias é uma glória ainda maior!
Até depois de morto ele era uma barreira, e foi preciso remover esse obstáculo para que a caudal da heresia pudesse avançar. Ora, não há nada mais belo do que um varão deitado no seu jazigo, inerte, posto na sombra da morte – ao menos quanto ao seu corpo – ser ainda uma sentinela pela qual só se passa eliminando-a. É uma verdadeira beleza!
Santa Teresinha do Menino Jesus dizia que ela passaria seu Céu fazendo bem à Terra. São Tomás Becket, à maneira dele, fez o mesmo: seu corpo incutia pavor nos adversários.
Nesse sentido, Louis Veuillot1 afirmava que a sua suprema alegria seria se suas cinzas ainda incomodassem os inimigos, depois de durante a vida ele ter levado tão longe quanto possível a luta e lhes arrancado a máscara da hipocrisia.
Alguns amigos meus que estiveram no Equador contaram-me que até hoje não se sabe onde García Moreno2 está enterrado, porque a divulgação do lugar de sua sepultura poderia ocasionar manifestações pró e contra esse ex-presidente, fiel imitador de Nosso Senhor Jesus Cristo por ser sinal de contradição e pedra de escândalo.3
Como eu gostaria de saber que não só a minha sepultura, mas a de cada um dos que me seguem na luta contrarrevolucionária, fosse um marco de divisão e de escândalo! Muito mais do que isso, eu desejaria que, indo para o Céu, me fosse dado voltar continuamente à Terra para perseguir os maus, confundi-los, passar-lhes descomposturas, incutir terror e batalhar contra a Revolução de todos os modos imagináveis, de maneira a fazer, depois de morto, tudo aquilo que em vida eu quereria ter feito, mas não me foi possível.

Seria uma linda maneira de prosseguir em nosso apostolado se todos nós, do Céu, continuássemos a deitar sobre a Terra essas e outras “chuvas de rosas”.v

(Extraído de conferências de 28/12/1968 e 29/12/1970)

1) Escritor e jornalista francês (*1813 – †1883).
2) Gabriel Gregorio Fernando José María García y Moreno y Morán de Buitrón (*1821 – †1875). Presidiu a República do Equador por dois mandatos consecutivos, tendo sido assassinado durante o segundo, depois de ser eleito para o terceiro.
3) Somente em 16 de abril de 1975 foram encontrados os restos mortais de Gabriel García Moreno.

Como é grande este nome!

Chamai-vos Amigos da Cruz. Como é grande este nome! Confesso-vos que ele me encanta e deslumbra. É mais brilhante que o sol, mais elevado que os céus, mais glorioso e mais pomposo que os títulos mais magníficos dos reis e dos imperadores. É o grande nome de Jesus Cristo, a um tempo verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, é o nome inequívoco de um cristão.
São Luís Grignion escreveu essa obra, Carta Circular aos Amigos da Cruz, numa época em que os títulos ainda tinham muita importância, e por meio deles se definiam as pessoas com o direito de usá-los. Então o Santo utiliza o valor da titulatura, conforme à ordem natural das coisas, para mostrar como o título de amigo da Cruz é elevado.
Esse título equivale ao nome d’Aquele que é verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Nosso Senhor Jesus Cristo. Pensamento lindíssimo e acertado, pois ao longo de toda a História a piedade católica elegeu a Cruz como símbolo do próprio Redentor.
Nota-se, ainda, que ele não se refere à cruz apenas como sofrimento, aceito e levado até seu termo em união com os méritos infinitos de Nosso Senhor, mas considera filosoficamente a forma de uma cruz como símbolo que traz consigo algo de santo, pelo vínculo que adquiriu com a Paixão. São Luís deseja nos comunicar, assim, ternura e veneração pelo holocausto redentor de Jesus, bem como pela Santa Cruz.
(Extraído de conferência de 6/6/1967)