Deus é admirável nos seus santos!

“A santidade torna o homem capaz de multiplicar-se por si mesmo, excedendo os limites de suas capacidades naturais.” Este princípio comentado por Dr. Plinio no presente artigo está muito presente na vida de São João de Capistrano: assistido por milagres, convertia multidões; com autêntica austeridade, contundia os desvios de sua época.

A figura de São João de Capistrano é simplesmente admirável. Ele representa a imagem por excelência do asceta franciscano.

Comentemos alguns dados biográficos a seu respeito(1):

Pelo fervor de suas prédicas, São João de Capistrano podia ser comparado a um leão que rugisse, ou a uma trombeta celeste. E seus exemplos confirmavam suas palavras. Viajava sempre a pé, carregando aos ombros os livros que utilizava. Após longos e veementes discursos, exausto de fadiga, acreditava nada ter feito. Tomava logo seu alforje e ia mendigar seu pão de porta em porta. Suas mortificações eram extremas: alimentava-se apenas uma vez ao dia.

Em compensação, Deus fazia acompanhar a palavra de seu servo por milagres extraordinários. Ele não se bastava para satisfazer todas as populações que reclamavam seu ministério.

Aonde chegava, auditórios imensos de até 150 mil pessoas se reuniam para ouvi-lo.

Os frutos de seu apostolado foram incalculáveis: restabelecia a paz em cidades divididas e convertia os pecadores irredutíveis.

Certa vez, o povo de certo lugarejo obstinava-se a não dar ouvidos aos convites do santo. Repentinamente o território da cidade foi invadido por uma multidão incrível de ratos, que devoravam os arbustos e as ervas.

Noutra ocasião, pregava numa praça pública: 60 mil pessoas estavam suspensas às suas palavras e nessa multidão havia numerosos endemoninhados. Em sua fervorosa improvisação, o homem de Deus, dirigindo-se a eles gritou: “Em nome de Jesus, respondei-me e repeti comigo três vezes: Ó Nome todo-poderoso, ó Nome terrível, ó Nome todo divino!” Os pobres possessos repetiam isso. Mas o mais admirável é que todos os demônios espalhados na região, ao redor de 8 milhas, o repetiram juntamente, como se tivessem ouvido a abjuração do santo.

Quando pregava contra a vaidade das mulheres, fazia-o com tanta energia que, após o sermão, elas lhe levavam suas joias e adornos, lançando-os publicamente na fogueira.

Durante os seus sermões, São João detinha a chuva nos céus e impunha silêncio aos pássaros que perturbavam sua pregação.

Um historiador assim descreve um dia desse santo, quando pregava em Nuremberg:
“Levantava-se antes da aurora a fim de recitar o Ofício e preparar-se para a Santa Missa. Dirigia, então, ao povo um sermão em latim, que um intérprete traduzia no idioma do lugar. Voltava ao convento, rezava Sexta e Nona. Boa parte da tarde era consagrada à visita aos doentes. Depois concedia audiência àqueles que tinham necessidade de lhe falar. Recitava Vésperas e voltava ao serviço dos doentes até à noite. Após as Completas e a oração da noite, concedia algum repouso a seu corpo, embora roubasse ao sono vários momentos para rever a Sagrada Escritura. Tal era a eficácia de suas palavras, que ele fazia chorar mesmo aqueles que não compreendiam sua língua.”

Com autêntica austeridade, São João contundia os desvios de sua época

A espiritualidade de São Francisco de Assis apresenta dois aspectos diversos: de um lado, a doçura, da qual nos dá exemplo o próprio São Francisco; de outro lado, a severidade.

A severidade dos capuchinhos da grande época tornou-se famosa na História da Igreja. Homens austeros, que praticavam a pobreza levada aos extremos limites, e que combatiam a infidelidade, a imoralidade, as heresias dos grandes e poderosos de um modo verdadeiramente admirável.

São João de Capistrano viveu numa época em que os efeitos do Concílio de Trento ainda não se tinham feito sentir, onde o amor exagerado ao luxo tinha invadido os ambientes eclesiásticos — fato que foi aproveitado como pretexto pelos pseudo-reformadores do protestantismo.

Os sacerdotes daquele tempo davam-se com o que era antigamente a classe dominante, a nobreza; por isso, tanto quanto podiam, aspiravam levar uma vida de luxo e de pompa, imitando os grandes senhores feudais.

Por outro lado, muitos ingressavam no estado religioso sem possuir vocação autêntica e, com isso, degradavam o estado sacerdotal.

Também os nobres daquele tempo levavam uma vida repleta de delícias, de opulências, uma vida de gozo sensual, oposto à austeridade evangélica.

Contra essa forma da Revolução, os religiosos capuchinhos e franciscanos aparecem como contra-revolucionários por excelência.

Por onde passava, São João de Capistrano aparecia como a personificação da austeridade.

Em estradas percorridas por magníficas carruagens, atravessadas por homens a cavalo ricamente ajaezados, viajadas por burgueses em cômodas liteiras, via-se também a figura austera de um franciscano todo ele sobrenatural, num passo veloz e decidido, recolhido em oração, varonil, forte, saudável, carregando às costas um saco cheio de livros de oração.

Isso constituía um tremendo contraste com toda aquela moleza, com toda aquela efervescência de sensualidade e de orgulho que já estava produzindo seus frutos e que os ia produzir intensamente mais adiante.

Assistido por milagres, o santo austero convertia multidões

Quando esses franciscanos ocupavam o púlpito faziam sermões tremendos, dizendo as verdades a todo mundo, increpando a moleza de vida, a sensualidade, o orgulho, a luxúria em que estavam se afundando.

Vemos na história de São João de Capistrano auditórios de até 150 mil pessoas ouvindo-o. Podemos imaginar o que era a vontade de ouvir descompostura — porque era descompostura grossa que vinha! — que aquele povo manifestava.

Ele falava contra o luxo das mulheres, contra os vícios do povo. Era dito tudo e o povo acorria em grande quantidade para ouvir. Naturalmente, isso causava impressão. Mas entre causar impressão e causar conversão, a distância é grande. E São João de Capistrano muitas vezes não conseguia o resultado visado.

Porém, esta era ainda uma época onde os milagres se multiplicavam. Então, quando ele falava, os ratos vinham roer as plantas; a terra que tremia; endemoninhados repetiam aquilo que ele exigia. Vemo-lo, portanto, alcançar enormes resultados no púlpito.

Pequeno repouso depois do fatigante labor cotidiano

Terminado o trabalho apostólico, o que fazia São João?

Retirava-se calmamente para o recolhimento de sua cela.

Ele — que acabava não só de abalar cidades, mas de arrancar milagres da própria misericórdia de Deus — dormia, então, no seu cantinho. Depois, enquanto a cidade ainda estava imersa no sono, ele começava longas orações.

Podemos imaginar a edificação de alguém que, voltando para casa às três, quatro horas da manhã, passando perto de um convento, vê uma luzinha acesa, e comenta: “É Frei João de Capistrano, um santo, que já está acordado. Um dos primeiros na cidade a acordar, enquanto a cidade ainda dorme. A esta hora o santo varão reza, ele lê o seu livro de Horas, ele se prepara para a Missa”.

Só de imaginar a oração de São João de Capistrano, um calor sobrenatural nos enche a alma.

Depois disso ele vai visitar os doentes, vai atender às pessoas. Come uma única vez ao dia. No final de contas, vai se deitar exausto. Mas no momento em que se deita, ele revê um pouco a Sagrada Escritura.

A santidade torna o homem capaz de multiplicar-se por si mesmo e exceder os limites de suas possibilidades naturais

Vemos, em São João de Capistrano, como Deus é admirável nos seus santos! Nele vemos bem o que é a santidade.

Trata-se de uma graça excelente que toca a alma no que ela tem de mais profundo, proporcionando-lhe dons magníficos que excedem a simples natureza.

A graça a completa de tal maneira que o homem, como que, multiplica-se por si mesmo e fica muito superior a uma pessoa comum: ele torna-se quase um Anjo; mas não somente um Anjo, ele fica uma figura do próprio Deus.

“Christianus alter Christus”. É Nosso Senhor Jesus Cristo dizendo as verdades, sacrificando-se, fazendo penitência, orando continuamente, visitando os pobres e produzindo milagres.

Temos, portanto, a figura de um grande contra-revolucionário em função dos aspectos da Revolução naquele tempo; um santo cuja biografia nos enche a alma.

Que São João de Capistrano reze por nós.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/3/1967)

1) Infelizmente, não possuímos a fonte da ficha utilizada por Dr. Plinio nessa ocasião.

Santo Abércio, o fulminante

Para imitar o Divino Redentor, deve o santo ser sempre um derrotado? Ao comentar alguns dos extraordinários feitos de Santo Abércio, Dr. Plinio responde a esta pergunta e delineia o perfil do autêntico católico, mesmo quando sobre este se abate a derrota.

Tenho em mãos uma ficha a respeito de Santo Abércio, bispo e confessor, extraída de uma obra do Padre Emmanuel D’Alzon(1), fundador dos agostinianos assumpcionistas.

Destruindo ídolos e exorcizando possessos

Numa zona da atual Turquia, elevava-se outrora a cidade de Hierápolis, dedicada a Apolo e evangelizada por São Paulo. Ao subir ao poder Marco Aurélio, em 161, era Bispo de Hierápolis, Abércio, já conhecido por suas virtudes. Um acontecimento, contudo, ia tornar esse Bispo um nome particularmente famoso. O novo Imperador incrementou o culto aos ídolos e, como Hierápolis era cidade consagrada, cresceu o número de procissões aos deuses pagãos.

Abércio sofria muito com isso. E certa noite, enquanto dormia, foi despertado por um Anjo que lhe entregou uma vara e lhe disse:

— Levanta-te, é hora! Com essa vara vai derrubar os falsos deuses que iludem o povo.

Sem delongas, ele correu ao templo, agora silencioso, e com seu instrumento lançou ao chão Apolo, Hércules, Diana, Vênus, e os estraçalhou.

Os sacerdotes e guardas acorreram, por causa do tremendo ruído, e viram, surpresos, o Bispo.

— Ide, afirmou ele, dizei aos magistrados e ao povo de Hierápolis que seus deuses, empanturrados de carne e embriagados de vinho, rolaram uns sobre os outros e se fizeram em mil pedaços. Juntai agora esses destroços, que eles talvez sirvam para algum entulho!

E retirou-se sem que ninguém ousasse tocá-lo. Foi dar aulas a alguns discípulos, como fazia todas as manhãs.

Entretanto, vozes começaram a se ouvir pedindo sua morte. Pagãos furiosos o procuraram e, ao encontrá-lo, avançaram para exterminá-lo. Mas foram detidos por três possessos, famosos na cidade, que se atiraram ante o Bispo, mordendo-se e uivando. A multidão deteve-se, fixando os olhos em Abércio, cuja nobreza e doçura a enchia de admiração, ao mesmo tempo em que as contorções daqueles infelizes a aterrorizava.

O Bispo ergueu as mãos e disse:
— Deus Todo-Poderoso, Pai de Jesus Cristo, cuja misericórdia ultrapassa infinitamente a malícia dos homens, eu Vos suplico: livrai esses infortunados das cadeias de Satanás para que todo esse povo Vos reconheça como Deus verdadeiro.

Com seu bastão, já vencedor dos ídolos, tocou os três possessos, que caíram inanimados aos seus pés. Ele os ergueu salvos e os enviou para suas casas.

Ante esse espetáculo, a multidão a uma só voz gritou:
— O Batismo! O Batismo! O Deus de Abércio é o verdadeiro Deus!

O exército salvo por um milagre

Santo Abércio teve sua fama difundida por toda a Ásia após esse fato. De regiões longínquas vinham procurá-lo. Possuindo o dom dos milagres, várias vezes favoreceu maravilhosamente a família de Marco Aurélio, inclusive libertando sua filha, a Princesa Lucila, de uma possessão diabólica. Era estimado pelo Imperador que, entretanto, nunca se converteu.

No fim da vida, Santo Abércio recebe uma missão muito especial, que foi a de consolar os cristãos na Síria, então muito perseguidos. Após exaustivas viagens, algumas igrejas quiseram fazer-lhe doações em dinheiro. Como ele recusasse, os cristãos não se conformaram em não lhe manifestar concretamente sua gratidão. Um católico de família ilustre propôs, então, prestar ao santo um outro tipo de homenagem. Dar a Abércio o título de “Igual aos Apóstolos”. Acrescentaram-lhe então, o nome grego de Isapóstolos.

É interessante acrescentar que tendo Santo Abércio recebido um aviso sobre sua morte, escolheu sua sepultura e fez gravar em mármore uma inscrição bem detalhada. Ao ser descoberto esse túmulo, no século XIX, tais dizeres comprovaram vários fatos históricos, que historiadores céticos haviam negado. Um dos mais interessantes é o que se refere a um acontecimento da vida de Marco Aurélio:

Seu exército, cercado num desfiladeiro, ia perecer de sede e fome. Seus soldados, torturados, chegavam a abrir as veias e beber o próprio sangue. Marco Aurélio, que então perseguia os cristãos, teve a ideia de recorrer ao verdadeiro Deus. Procurou por soldados cristãos e, indignado, verificou que eram muito numerosos, principalmente porque ali havia toda uma legião cristã, de Melitene. Os soldados invocaram o Todo-Poderoso e, nesse momento, relâmpagos caíram como chamas sobre os bárbaros, enquanto uma chuva benfazeja reanimou os romanos. Marco Aurélio deu a essa legião de Melitene o nome de “Legião Fulminante”. O senado romano, na coluna que mandou erguer em homenagem ao fato, atribui o milagre a Júpiter.

Erro muito grave: julgar que todo santo é sempre um derrotado

Nota-se nessa ficha a resposta a uma pergunta que a leitura da vida de tantos santos suscita.

Com efeito, os hagiógrafos se comprazem, e a muito justo título, em mostrar que o santo é um sofredor, compreende que essa Terra é um vale de lágrimas, a vida é o caminho da cruz e que é preciso levar a cruz até o alto do Calvário, seguindo Nosso Senhor Jesus Cristo. E por causa disso, na história dos santos, muitas vezes acentuam com especial ênfase o lado do sofrimento. E como a derrota é um dos grandes sofrimentos desta vida, naturalmente eles destacam também as derrotas.

E disso se depreende, de um modo geral — para um espírito que não esteja suficientemente advertido —, a ideia de que o santo é necessariamente um derrotado. E que não ser sempre um derrotado, esmagado, não estar sempre por baixo, não sofrer de uma espécie de inferioridade diante do adversário, é não ser verdadeiramente santo.

De onde nasce o tipo de católico amolecido e sentimental, que tem uma espécie de escrúpulo de se sentir triunfante, vitorioso, que julga uma impiedade alguém ser combativo, inclusive em relação ao demônio.

Na realidade, muitas vidas de santos são uma série de derrotas; outras, embora não o sejam, têm na derrota, entretanto, sua característica mais sublime. De fato, na vida do católico nesta Terra, muitas vezes a aceitação do insucesso se impõe como um modo de se unir a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Mas daí se tirar a conclusão de que é inerente à santidade estar sempre derrotado, em posição de inferioridade, há um erro muito grave. A começar pelo fato de que o verdadeiro santo, mesmo quando perseguido, derrotado, não sofre nenhuma forma de complexo, e muito menos ainda o de inferioridade em relação ao adversário. O modelo de todos os santos é Nosso Senhor Jesus Cristo, e Ele morreu sobranceiro e divinamente majestoso no alto da Cruz.Um homem que esmaga a impiedade.

Mas há certas vidas de santos em que esse sentido da vitória, do triunfo, se realça de uma maneira particular.

É o que podemos notar de um modo sensível na vida extraordinária desse santo. Vemos que ele tem todas as qualidades de um homem habitualmente triunfante, e que esmaga a impiedade com a sua virtude, sua coragem, levando a impiedade de roldão.

Notem o primeiro fato interessante: ele sofria muito pelo fato de que havia na cidade na qual morava, Hierápolis, um grande número de ídolos, e por isso ele rezou muito a Deus. Ele não sofreu porque lhe faltava algo na sua vida particular. Nem sequer a ficha trata da existência particular dele, mas da causa de Deus em Hierápolis, e mostra como ele não encontrava alegria nem satisfação porque a glória do Altíssimo estava calcada aos pés nessa cidade.

Remédio: sentindo a desproporção entre os ídolos que ele quer abater e as suas próprias forças, o santo recorre à oração. E através desta vem a solução.

Ele é acordado por um Anjo de quem recebe uma vara milagrosa. Vai ao templo, que está naturalmente vazio durante a noite, e toca com a vara os ídolos que estão eretos em alguns altares. Os ídolos rolam pelo chão e fazem um barulho tremendo. O que se concebe, porque esses ídolos eram muito maiores do que o tamanho natural de um homem, e sempre esculpidos em pedra.

Podemos imaginar o barulho que haveria de fazer, numa pequena cidade romana do tempo de Marco Aurélio, durante a noite, quatro ídolos grandes que caem no chão com tanta força que se espatifam. Entram os sacerdotes, e então há cenas que mereceriam figurar num teatro.

Filme sobre Santo Abércio

Vou dizer mais: se algum dia devêssemos fazer um filme ou espetáculo de televisão, a vida de Santo Abércio seria o tema.

Primeira cena: À noite, um templo de beleza clássica, no qual penetra um pouco de luar e uma coruja ou morcego esvoaça no recinto. Surge Abércio sozinho, com grande túnica branca, manto lançado sobre os ombros, segurando na mão a vara e rezando. Ele para no limiar do templo e olha com santo ódio. Depois diz: “Em nome de Deus Todo-Poderoso e para a glória de Maria Santíssima…” Caem os quatro ídolos e se espatifam no chão.

Imaginem a majestade e a dignidade do gesto! Os ídolos tinham tanta massa que uma forte pancada não os derrubaria, mas por uma força sobrenatural eles vacilam e caem. E o olhar de Abércio, vendo os ídolos se espatifarem…

Segunda cena: Na vaga claridade do amanhecer, vêm correndo ao templo os sacerdotes, com tochas, e encontram Abércio calmo, que os enfrenta cara a cara.
Pasmos, eles perguntam:

— Que fez este homem? Como ele se justificará deste sacrilégio?
Abércio, então, se justifica daquele “sacrilégio” por uma “blasfêmia”:
— Juntem este entulho e podem jogar no lixo! São deuses empanturrados de carne e vinho. Não valem nada! Vejam se ao menos para o lixo servem…

E o santo sai lentamente, enquanto os sacerdotes ficam olhando para aquele homem que se retira como uma aparição.

É um prenúncio do grande triunfo de Constantino, uma espécie de antegozo da época em que o paganismo vai ser esmagado definitivamente, e será instaurado o Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Depois disso, o que ele faz? Nada que seja gabar-se por seus próprios feitos. Vai com toda a calma retomar sua função de professor; senta-se e começa a dar aula para os alunos.

Representou a vitória e a glória de Deus na Terra

Fato curioso, a calúnia começa a trabalhar. Alguns dos alunos, para os quais os sacerdotes haviam contado o ocorrido, difamam Abércio. O ódio cresce em torno dele e, talvez, através das janelas da sala em que lecionava, ele ouvisse murmúrios e sinais desse ódio.

Sereno, tranquilo, terminada a aula, ele sai e defronta-se com a multidão. Podemos imaginar o que é uma população trabalhada pela calúnia, efervescente, com alguns bruxos pelo meio:
— Pega, é aquele homem! Derrubou os ídolos! Onde já se viu?!

E Abércio, calmo, sobranceiro:
— O que é?

O povo olha para ele, e é tal a superioridade, a maravilha, a harmonia da natureza e da graça, sobretudo uma tal plenitude de superioridade da graça que se encontrava no santo, que todos ficam pasmos.

Alguns procuram ainda sublevar a multidão:
— Apedreja, apedreja!

Mas outros respondem:
— Fiquem quietos, não façam barulho! Vamos ouvir o que ele tem a dizer.

Cheios de raiva, os caluniadores veem a população dispersar-se lentamente, comentando:
— Realmente, Abércio é um grande homem! Ele nos deteve a todos pelo espetáculo de sua superioridade! Nele há qualquer coisa de celeste, a qual vale mais que todos os nossos deuses.

E o feito de Abércio fica famoso. Depois de Deus ter querido que tantos morressem como mártires, de um modo infamante, o Altíssimo quis que esse santo representasse a vitória e a glória d’Ele na Terra.

Com Santo Abércio, a Igreja alcança a sua primeira vitória sensível.

Depois disso, a fama dele se espalha por toda a Ásia e chega aos ouvidos do Imperador, cuja filha estava possessa. E o Imperador deve ter ouvido falar daqueles três possessos libertos por Santo Abércio. Cena também lindíssima: Durante aquela confrontação com o povo, ele expulsa os demônios como quem manda embora lacaios asquerosos, ou como quem condena ao cárcere demagogos infectos.

O Imperador manda pedir a Santo Abércio que cure a Princesa. E ele a curou.

Temos, então, a confrontação deste grande santo não mais com a população, mas com Marco Aurélio, considerado um pináculo da sabedoria romana e o receptáculo de todos os ensinamentos morais dos grandes mestres do paganismo.

Vitorioso, fulminante e humilde

Acontece que Marco Aurélio, dentro dessa manifestação da veracidade da Religião Católica, não se converte e mostra bem o que ele é: um pagão empedernido no paganismo e de má-fé. Entretanto, há uma coisa ainda mais digna de nota e que se dá com a “Legião Fulminante”, a qual se encontrava num estado verdadeiramente desesperador. Os legionários estavam na iminência de morrer de sede e fome, e chegaram a romper suas veias para beberem o próprio sangue. Pedem o auxílio de Santo Abércio, em nome de quem acontece um milagre: há, de um lado, uma intempérie que derrota o adversário e, de outro, uma chuva benfazeja que cai sobre a legião, a qual recebe assim a água necessária para continuar adiante.

Marco Aurélio e o Império Romano deveriam considerar que a legião era fulminante?

De fato haviam caído raios sobre o adversário. Mas quem os fulminara não fora a legião — nem tinham raios nas mãos para fulminar! —, e sim Santo Abércio.

Eles deveriam, portanto, ter chamado Abércio “o Santo Fulminante”, que passou a vida inteira fulminando.

Pelo contrário, a maldade do paganismo: para a legião que ia morrer miseravelmente como um bando de ratos, se não fosse o santo, eles levantam uma coluna no Fórum romano em louvor de Júpiter.

Com isso Santo Abércio passa para a História mostrando o paganismo desmascarado, e a pequenez de espírito do mundo pagão, mesmo no que ele tinha de mais grandioso, isto é, o Império e o exército romano. Ele passa fulminando todas essas grandezas pagãs, e vai diretamente para a honra dos altares.

Nós deveríamos chamá-lo de “Santo Abércio, o Fulminante”. Sempre que, em nossa vida, queiramos ser fulminantes, à maneira deste santo, mas ao mesmo tempo humildes, atribuindo toda a glória a Nossa Senhora, saibamos recorrer a Santo Abércio!

De tal maneira essa figura e essa biografia me entusiasmam, que se tivéssemos neste momento alguma sede, serviço ou sala para inaugurar, eu gostaria que se chamasse “Santo Abércio, o Fulminante”. Porque realmente é com esse nome — “Santo Abércio, o Vitorioso e o Fulminante” — que ele deve passar para a História da Igreja.

Fica, assim — tantos séculos depois —, oferecida à fronte majestosa dele esse cognome, deixando de lado a paródia ridícula da “Legião Fulminante”.

Para finalizar este comentário, eu diria: “Santo Abércio, fulminante e humilde, tornai-nos fulminantes e humildes como vós!”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/4/1972)

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da referida obra.

São Pedro de Alcântara: personificação da penitência

Devido à explosão de orgulho e sensualidade promovida pela Renascença, havia no século XVI uma tendência geral das pessoas em procurar o gozo da vida e abominar a penitência. São Pedro de Alcântara enfrentou essa onda, e brilhou na Santa Igreja pelo seu espírito de mortificação levado até a sublimidade.

São Pedro de Alcântara era um santo sumamente penitente, a própria personificação da penitência na Igreja Católica, no século XVI. A respeito do caráter penitente deste religioso, podemos tecer algumas considerações.

Espírito de contemplação e de penitência, na sociedade civil

Na Santa Igreja Católica, nem todos são chamados a ser contemplativos, mas para que todos aqueles que vivam no século tenham a medida de contemplação necessária, cumpre haver algumas Ordens que levem o espírito de contemplação tão longe quanto possível. Essas Ordens dão uma espécie de sustentação à nota contemplativa que deve caber na vida comum de todos os homens, que querem realmente se santificar.

É muito expressivo que o próprio São Francisco de Assis tenha fundado a Ordem Terceira dos Frades Menores, para pôr cobro à generalização do desejo das pessoas, no século XIII, de entrarem para a Ordem franciscana. Tantos eram os que queriam ser franciscanos, que o século corria o risco de ficar abandonado. Então, para que o espírito franciscano pudesse florescer no mundo, ele fundou a Ordem Terceira que foi uma espécie de padrão para a fundação depois de Ordens Terceiras em outras famílias religiosas.

O que se diz da contemplação, pode-se afirmar da penitência também. Não há a possibilidade de todos os homens praticarem as penitências que os grandes santos penitentes fizeram, nem isso seria desejável. Se todos quisessem praticá-las, a Igreja poria um freio a isso.

Deve haver uma certa medida de penitência na vida quotidiana do homem comum, que quer seriamente se santificar; e os grandes santos penitentes, os grandes santos sofredores são exatamente aqueles que mantêm nos outros, pelo exemplo e pelo deslumbramento da penitência que praticaram, o espírito de penitência necessário.

A este título, são pilares da Igreja porque, como o sal que evita a podridão, eles conservam esse espírito na sociedade civil, nas Ordens religiosas não especialmente consagradas à penitência, no clero secular e nos mais altos degraus da Hierarquia eclesiástica.

E isto fez São Pedro de Alcântara numa época na qual o espírito de penitência era abominado, a Renascença estava tomando conta do mundo e, exatamente em virtude daquela explosão de orgulho e de sensualidade à qual me refiro em meu livro “Revolução e Contra-Revolução”(1), havia uma tendência universal para fazer da vida uma larga série de prazeres, até transformá-la num ininterrupto gozo.

Duas formas de penitência

Por penitência entendemos, antes de tudo, as doenças, os infortúnios, os desastres, as humilhações a que os outros nos sujeitam, as incompreensões, todas as coisas que nos fazem sofrer, permitidas por Deus ou que Ele manda e das quais não podemos fugir.

Além disso, existem as penitências voluntárias que impomos a nós mesmos por amor de Deus. A ladainha do Cardeal Merry del Val(2) sugere muitas penitências assim, implicitamente. “Que os outros possam ser louvados e eu desprezado, Jesus, dai-me a graça de desejá-lo!” Quer dizer, se tendo a oportunidade de ser honrado e não há glória especial de Deus nisso, faço uma bonita penitência apagando-me e permitindo que outros sejam honrados para, por esta maneira, eu sofrer, desapegar-me de alguma coisa, dar glória a Deus, Nosso Senhor.

Paradoxalmente, essas duas formas de penitência contêm em si a realização da promessa do Divino Salvador, pela qual aquele que deixasse tudo por amor a Ele receberia o cêntuplo nesta Terra e, depois, a vida eterna.

Se prestarmos bem a atenção, notaremos o seguinte: há uma categoria de almas na Terra que são felizes, e outra de almas infelizes. É feliz, alegre, cheia de bom humor, a alma que compreende o papel do sofrimento na vida. Quando lhe acontece um infortúnio, não toma isso como um “bicho de sete cabeças”, não se revolta, não se apavora, mas compreende que o próprio de nossa condição humana é sofrermos. E que seria uma coisa sem precedentes, sem explicação, não sofrermos frequentemente muitas coisas.

Quando uma alma assim recebe um sofrimento, ela sofre mesmo, mas sem frigir, não começa a “fritar”. Sofre achando aquilo natural, entendendo que a razão de ser do homem nesta Terra é de dar glória a Deus, e isso não se consegue sem sofrimento. Por essa forma, é normal que soframos e podemos aguentar o infortúnio.

Almas esquecidas de si mesmas, voltadas para Deus e a Santa Igreja

Tendo firmeza e decisão, o sofrimento cai sobre nós e o aguentamos como Nosso Senhor Jesus Cristo aguentou a Cruz. Às vezes até caindo sob o peso dela, porém nunca se desesperando nem tentando abandoná-la — achando que está lhe acontecendo um absurdo, mas compreendendo que aquilo faz sentido, tem razão de ser —, levantando-se de novo e carregando a cruz.

As almas assim são, antes de tudo, dotadas de bom gênio, nativamente ou pela força que se impuseram a si mesmas. Quando se lhes faz algo de mau, elas estão prontas a perdoar. Quando se lhes manda alguma coisa, estão prontas a obedecer. Quando alguém se esquece delas, não tomam isso em linha de conta. São almas que estão longe de serem insensíveis. Mas têm isto de particular: são sensíveis para o bem, mas não para o mal que se lhes faz.

Essas são as almas que saltam na defesa da causa da Igreja, caso os princípios sejam atingidos. Porque quem se esquece de tal maneira de si mesmo pode ter amor aos princípios. São, portanto, as almas doutrinárias, que sabem o que é a procura do absoluto, convictas de que na vida a única coisa que vale é defender as coisas que são, afinal de contas, a semelhança de Deus na Terra e por causa disso, mais do que tudo, a Santa Igreja Católica Apostólica Romana, a qual compendia em si todos esses valores.

O sofrimento é a lei da vida

Pelo contrário, uma alma que não se tenha compenetrado de que o sofrimento é a lei da vida, vive sofrendo. Porque cada coisa desagradável que lhe acontece é para ela uma aberração. Ela anda na rua, por exemplo, e tropeça, resmunga contra o calçamento; toma um táxi e o motorista não entende o caminho, ela acha um absurdo ter que explicar para o chauffeur como chegar ao destino; faz um passeio e, por mais que durante a viagem desfrutasse tudo do melhor — a hospedagem, um palácio; a comida, um banquete —, se teve algum enfado com companhias pouco interessantes, já é o suficiente para considerar frustrado o passeio. Por quê? Porque a pessoa imagina o seguinte:

“O normal, o banal é que me corra tudo perfeito. É a mínima das obrigações da vida para comigo. Alguma coisa que tenha saído de errado é um contrassenso. Como isso foi me acontecer?! Não entendo, não posso aceitar! Revolto-me!”

Às vezes, uma pessoa assim apresenta fisionomia muito alegre. Mas, vai-se ver por detrás e se nota uma tensão contínua, porque ela está, a todo o momento, com pânico de acontecer alguma coisa que seja um sofrimento. E, por outro lado, como os padecimentos vão surgindo, o indivíduo fica mais ou menos como um sujeito que tem a toda hora um pernilongo pousando em cima dele.

Quando não é pernilongo, é uma pedrada ou um tiro… Então a pessoa julga-se como uma espécie de tiro ao alvo, com os mil sofrimentos que lhe vêm sucedendo. Resultado: é a pior vida possível. Há um tipo de homem infenso à penitência porque julga estar nesta vida só para gozá-la, e não se preocupa com mais nada. Por isso, não quer aceitar a virtude e as dificuldades que ela traz consigo e, portanto, recusa toda e qualquer forma de sacrifício.

Uma segunda modalidade, que vem disfarçada com aspecto de virtude e, por isso, nos ilude mais facilmente, apoia-se na seguinte ideia: “Os sofrimentos necessários para não pecar eu aceito; porém, nenhum outro. Tenho o direito de gozar minha vida e quero fruí-la inteiramente, pois ela me foi dada para ser desfrutada. Eu me limito a não pecar; quanto ao mais, vivo completamente folgado”.

Quem pensa assim, na grande maioria dos casos, não se mantém fora do pecado e acaba por sucumbir nele, porque é um desvio completo da ideia da finalidade desta vida, que não consiste em que nós apenas gozemos dentro dos limites da virtude. A vida nos foi dada para conhecer, amar e servir a Deus neste mundo. E, entre os serviços que podemos prestar ao Criador, um dos mais insignes, sobretudo em nossa época, é lutar por Ele. Servir, amar e lutar por Deus em toda medida do possível: é para isso que existimos.

Soldados da Igreja militante

Quer dizer, a vida não nos foi dada para o prazer, mas para o heroísmo, para a luta. E devemos considerar um ou outro prazer que nós nos proporcionemos apenas como uma coisa transitória, para descansar e recomeçar a batalha.

Para saber se o prazer é bom ou mau, devo julgá-lo de acordo com este critério: se terminado um determinado deleite, estou mais disposto à luta, à seriedade, à mortificação, esse prazer é bom; se, pelo contrário, fico mais mole ou menos desejoso de seriedade e de coisas elevadas, então esse deleite é ruim.

Todo prazer, todo descanso não é senão um interstício para servimos melhor a Nossa Senhora. Mas, como filhos da Igreja militante, nossa finalidade é de lutarmos a vida inteira, e de aguentarmos todas as aridezes e dificuldades da vida combatente.

Imaginem um soldado que esteja sentado na trincheira, num momento de intervalo de luta, olhando para o campo: “Que bonito esse campo, que lugar pitoresco onde foi aberta essa trincheira!”
Alguém diz para ele:

— Fulano, você tem que se preparar para a luta de amanhã!
— Ah, eu não! Esse negócio de avançar, passar o dia inteiro lutando, não! Cumpro o meu dever mínimo de soldado, sem desertar nem trair em favor do inimigo. Não entrego um palmo de território nacional.

Com um homem assim perdem-se todas as guerras!

Ora, somos soldados da Igreja militante e devemos ter em mente que a vida nos foi dada não para o prazer, mas para o dever.

As almas com espírito de mortificação, que compreendem quanto é natural sofrer, estão aclimatadas ao sofrimento como no seu ambiente próprio. Elas podem até gemer e pedir a Deus que afaste delas a dor, mas considerando normal passarem por padecimentos. Essas recebem o cêntuplo nesta vida, e até mais do que isso.

Intrepidez e iniciativa na luta contra o mal

Aqueles que procuram fugir da dor sofrem muito mais. Não há coisa pior do que a vida empregada exclusivamente para o prazer. O gozo meramente terreno, sobretudo quando é imoral, não passa de uma ilusão. Nos primeiros momentos dá uma satisfação pseudoinebriante, mas depois não resta mais nada a não ser a frustração.

Verdadeiramente, o papel do sofrimento bem aceito é o de dar esta alegria, esta serenidade que os antigos chamavam consolação, em meio a uma nobre tristeza.

Se analisarmos bem a realidade, veremos que nos povos onde mais se busca o prazer e mais se foge do sofrimento, há maior número de psicoses. Naqueles em que há menos procura de prazer e mais resignação com o sofrimento, existe mais força, mais consolação.

São Pedro de Alcântara e outros santos penitentes nos dão exemplos, para admirarmos até o último extremo da admiração — termos uma dessas venerações que nos varam a alma de lado a lado — aqueles que sofrem; mas que sofrem com grandeza, com resignação, com entusiasmo.

Uma das mais profundas e importantes formas de sofrimento é aguentar a luta contra o mal. E não apenas aguentar, mas ter espírito de intrepidez e de iniciativa nessa luta, o espírito militante de um São Miguel Arcanjo, de espada na mão, pronto a ser o primeiro em todas as batalhas, a dizer “não” a todos os adversários da Fé. Esse ânimo de heroísmo e de intrepidez, enfrentando todos os trabalhos e todas as lutas, é a fina ponta do espírito de sofrimento.

É, sobretudo, isso que devemos querer ao pedirmos o espírito de penitência, o senso da mortificação, sem os quais não se pode ter o desejo das coisas espirituais nesta Terra nem das coisas celestes. Peçamos, então, a São Pedro de Alcântara que no-los alcance.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 19/10/1964 e 19/10/1965)

1) Parte I, Cap. III, 2. B.
2) Publicada na Revista Dr. Plinio n. 107, p. 13.

Modelo de penitente

Sumamente penitente, São Pedro de Alcântara foi a própria personificação da penitência na Igreja Católica, durante o século XVI.

Os grandes santos sofredores, os grandes santos penitentes, são aqueles que pelo exemplo e pelo deslumbramento de sua entrega, mantêm nos homens o espírito de penitência necessário.

Isto fez São Pedro de Alcântara numa época em que a Renascença começava a tomar conta do mundo e o espírito de penitência era abominado. Época em que, devido à explosão do orgulho e da sensualidade, manifestou-se uma tendência universal para transformar a vida num ininterrupto prazer.

Peçamos a São Pedro de Alcântara a graça de admirarmos e imitarmos o seu exemplo em nosso tempo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/10/1964)

A prece dos fortes

No dia 7 de outubro celebra-se a festa de Nossa Senhora do Rosário, estabelecida pelo Papa São Pio V a fim de manifestar a jubilosa gratidão da Igreja para com a Santíssima Virgem, cuja solícita  intercessão determinou a vitória da causa católica na batalha de Lepanto.

Ardoroso devoto do santo Rosário, por ele rezado diariamente, Dr. Plinio não perdia oportunidade de enaltecer as excelências dessa prática mariana, sendo-lhe — como afirmava — “motivo de sumo agrado” recomendá-la e incentivá-la entre seus filhos espirituais. Nesse intuito, fazia-lhes compreender como o Rosário “ocupa privilegiadíssimo papel na história da piedade católica. Em primeiro lugar, porque une o fiel a Nossa Senhora, e atrai para ele toda sorte de graças celestiais. Em segundo lugar, porque afugenta o demônio. Alguém que se sinta tentado, tome fervorosamente o Terço em suas mãos, e ver-se-á forte contra a investida do inimigo de nossas almas.

“Excelente meio de venerar a Mãe de Deus, é incalculável a torrente de bênçãos que a recitação do Rosário efundiu sobre a Cristandade. Por isso, Papas e autoridades eclesiásticas não se cansam de elogiá-lo. Se tal não bastasse, a Santíssima Virgem, querendo Ela mesma incentivar essa inestimável devoção, mais de uma vez apareceu trazendo em suas mãos virginais o piedoso instrumento. De modo particular, nas aparições de Fátima, em Portugal, quando recomendou aos homens, com tocante insistência, a recitação diária do Terço. Além disso, a Igreja enriqueceu o Rosário com muitos privilégios e indulgências, inclusive plenárias, de maneira a fazer dele um verdadeiro tesouros de bênçãos inapreciáveis.

“A recitação do Rosário se dilatou de tal maneira que, durante muito tempo, identificou-se com a piedade católica: uma e outro eram a mesma coisa. Fosse nos atos cotidianos da vida espiritual, fosse nas festas e celebrações de maior significado, o Rosário — ou o Terço — sempre esteve presente como expressão do fervor das almas devotas.

“São Domingos recebeu da Rainha do Céu este mesmo Rosário cuja forma hoje conhecemos: começando pelo Crucifixo, que devemos oscular pedindo à Mãe de Deus que seja nossa intermediária e apresente a seu Filho nossas orações; em seguida, três Ave-marias, um Glória, e depois as cinco dezenas em que meditamos nos principais Mistérios da vida de Jesus e de Maria Santíssima — Gozosos, [Luminosos(1)], Dolorosos e Gloriosos.

“Ainda que rezado por almas mais frágeis, o Rosário é a prece dos fortes, é a súplica dos batalhadores, porque é um conjunto de orações de tal eficácia que faz avançar o bem e recuar o mal. A par das riquezas espirituais que encerra, temos a pluralidade dos feitios e coloridos com os quais é utilizado: rosários pequenos, graciosos, delicados, para crianças de trato; modestos e rústicos, mas fortes, dedilhados por mãos vigorosas que passam sobre aquelas contas;sério, varonil;rosários de princesas, de rainhas, lavorados como verdadeiras jóias, preciosos como esses que pendem das mãos das imagens de Nossa Senhora. Todos nos fazem ver algo da suavidade e da bondade régias de Maria, protetora dos débeis, amparo dos fortes, como foi o próprio São Domingos, enfrentando e vencendo com o Rosário a heresia albigense.”

E após recomendar com incansável empenho a recitação do santo Rosário, necessária aos fiéis de todos os tempos, Dr. Plinio ainda oferecia este tocante conselho: “Nunca nos separemos do Terço. Que ele esteja sempre junto a nós, em todos os momentos: quando dormimos, quando descansamos, quando estivermos lendo ou fazendo toda e qualquer coisa. Jamais o larguemos. E quando nossas mãos não puderem mais nem se abrir nem se fechar, mas forem fechadas por outros para a nossa última atitude de oração, que o Rosário esteja entrelaçado em nossos dedos. De sorte que, chegado o momento da grandiosa Ressurreição dos mortos e nosso corpo recobrar vida, nosso primeiro gesto possa ser o de oscular o Terço que encontraremos cingidos às nossas mãos…”

 

Plinio Corrêa de Oliveria

1) Dr. Plinio faleceu em 1995, antes de o Papa João Paulo II enriquecer o Rosário com os Mistérios de Luz, na sua Carta Rosarium Virginis Mariae. Motivo pelo qual acrescentamos os mesmos entre colchetes, para o presente comentário adquirir ainda mais atualidade.

Santa Margarida Maria – A hora da misericórdia voltará

A festa de Santa Margarida Maria Alacoque, que a Igreja Universal celebra hoje, trouxe-me à memória um fato antigo, que não é sem interesse para os dias que correm.

Quando viveu na França a humilde visitandina à qual o Sagrado Coração de Jesus fez suas tão suaves confidências, reinava Luís XIV, que a admiração universal consagrou com o título de “Roi-Soleil”.

Este epíteto correspondia à realidade. Dizia Mazzarino, que vivera na sua mais absoluta intimidade, que havia nele estofo para cinco reis. Tanto do ponto de vista físico como moral, representava Luís XIV o tipo clássico daqueles reis de fantasia, com que certos contos costumam deslumbrar as imaginações infantis.

De uma formosura viril e majestosa, acentuada por uma perfeita nobreza de porte e de gestos, e por uma indumentária admiravelmente escolhida, foi ele o modelo supremo dos gentis-homens de seu tempo. As qualidades de inteligência e caráter estavam à altura desse físico magnífico. Sua inteligência era clara, vasta, metódica e idealmente equilibrada. Sua vontade dotada de tal força imperativa, que dobrava quaisquer obstáculos. De um soberano domínio sobre si, não se permitia ele em manifestações extremadas de cólera, de prazer ou de dor. Pelo contrário, todos os acontecimentos o encontravam sempre igualmente sereno, igualmente grande, igualmente sobranceiro. De tal maneira sua índole se havia conformado com as obrigações de “métier” de Rei, que o protocolo era, nele, como que conatural, e até mesmo as suas ações as mais triviais denotavam a alta noção que ele tinha de sua dignidade e de seus deveres.

* * *

Quando Deus dá a alguém qualidades naturais singularíssimas, de qualquer natureza que sejam, impõe-lhe implicitamente responsabilidades onerosas.

Conta-se que os PP. Jesuítas, que foram educadores de Voltaire, impressionados com a inteligência do menino, costumavam dizer que ele seria ou um Santo, ou um demônio.

Luís XIV era uma dessas almas privilegiadas que Deus chama a grandes realizações, e que, por isso mesmo, estão na eminência de descambar pelos mais profundos abismos, caso não correspondam à própria vocação. Se ele tivesse querido ser um novo São Luís, é provável que a Revolução Francesa não tivesse explodido, que a pseudo-reforma protestante tivesse sofrido desastres irreparáveis, e que o curso da História, em lugar de correr pelos precipícios por onde vai, tivesse assumido orientação inteiramente diversa.

Mas Luís XIV não quis ser um novo São Luís. Sensual, ávido de prazeres, ambicioso e vaidoso em extremo, sacrificou à sua lascívia e ao que ele supunha ser sua glória, tempo, recursos e prestígio que Deus lhe havia dado para fim inteiramente diverso. Depravando o Reino por seu mau exemplo, provocando guerras com o único intuito de dilatar seus Estados, desunindo entre si as potências católicas então ameaçadas pelo alastramento do protestantismo, e aliando-se com os próprios muçulmanos contra o Santo Império, faltou ele a seus mais elementares deveres de Rei, e mereceu a censura, em seu tempo, de todos os franceses verdadeiramente católicos mesmo entre aqueles que lhe eram mais fielmente devotados.

Manda, entretanto, a justiça que se acrescente que a vida do grande Rei teve altos e baixos, e que, se em certo sentido ele faltou gravemente a seus deveres para com a Igreja, em outro sentido, lhe prestou assinalados serviços, entre os quais figura com destaque a sapientíssima revogação do Edito de Nantes.

Não obstante tudo isto, o certo é que o Rei não desempenhava aquela missão providencial à qual, evidentemente, fora chamado por Deus.

* * *

Santa Margarida Maria Alacoque 

Intervém aí a humilde Visitandina. Em revelação, o Divino Redentor mandou-lhe dizer ao Rei que se consagrasse, e bem como o Reino, ao Sagrado Coração. A comunicação foi feita em tom imperativo, e deixava ver claramente que a recusa do monarca acarretaria para ele e para a França os mais severos sofrimentos.

Evidentemente, o Sagrado Coração de Jesus não desejava de Luís XIV apenas uma consagração “pro forma”, mas uma consagração real, que implicasse na renúncia a todos os pecados e todos os erros do Rei.

Por meio de uma pessoa da nobreza, com quem tinha relações, Santa Margarida Maria fez chegar a comunicação a Luís XIV, que, entretanto, não lhe deu importância, e a consagração não foi efetuada.

Recusada assim essa providencial fonte de graças, o Reino foi descambando cada vez mais pelos abismos da impiedade e da libertinagem, até que o extravasamento destes males, isto é a Revolução Francesa, veio lançar por terra o trono dos Bourbons, e atear pelo mundo inteiro o facho diabólico e incendiário do espírito de rebeldia.

Entretanto, não se sabe se a recordação do recado de Santa Margarida Maria perdurou na família de Bourbon, ou se o fato que passamos a narrar foi devido a um mero movimento de piedade espontânea de Luís XVI. O que, de qualquer modo, é certo, é que, entre os papéis do Rei, encontrados em sua miserável prisão do Templo, se achou uma nota em que o desditoso soberano prometia a Deus que se consagraria, e a toda a França, solenemente, ao Coração de Jesus, o que desde logo, em forma privada, ele fazia no cárcere. Assim, dizia ele, seria de esperar que o Coração de Jesus arrancasse a França aos horrores da Revolução.

O piedoso e infeliz monarca fez, pois, no cárcere, o ato de piedade que seu poderoso antecessor se recusara a fazer nos esplendores de Versailles. Mas ao que parece a hora da misericórdia já tinha passado, e já era tarde para deter o curso da justiça divina.

Luiz XVI, pessoalmente, teve sua recompensa com a graça de morrer de modo edificante, chegando alguns a afirmar que foi mártir. Conta-se que, ao subir ao patíbulo, o carrasco quis amarrar suas mãos com cordas, ao que o Rei se recusou terminantemente, originando-se daí um ligeiro início de luta física entre ambos. O Rei voltou-se, então, para seu confessor, perguntando-lhe o que dizia a isto. A resposta do sacerdote foi pronta: “Se Vossa Majestade se deixar amarrar, sua morte terá mais um traço de analogia com a do Salvador”. Imediatamente, a resistência da vítima cessou. Daí a pouco, sua cabeça tombava sob a lâmina da guilhotina, e o Sacerdote que o acompanhava exclamava: “Filho de São Luiz, subi ao Céu”.

* * *

É possível, realmente, que a hora da misericórdia tivesse passado. Não porém, de modo definitivo. A França tem tido por demais Santos, de lá para cá, para que se afirme que a hora da misericórdia de Deus passou para ela. Hoje mesmo, quando a França está imersa em luto profundo, e uma metade de seus filhos já não reconhece a outra, na desolação do panorama contemporâneo, se pode afirmar entretanto que há Santos. Santos verdadeiros. Santos autênticos, vivendo na penumbra em território francês, e preparando por suas penitências, por suas orações, por seu trabalho, a grande França de amanhã, que não será nem a França liberal de ontem, nem a França totalitária de Vichy, mas a França católica, de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Enquanto na Europa os legisladores reformam  as instituições, os banqueiros reformam a economia ao sabor das heresias de hoje, na penumbra os Santos reformam as almas e, pela reforma autêntica da almas, destruirão a falsa reforma das instituições e da economia.

Plinio Correa de Oliveira, (in Legionário, N.º 423, 20 de outubro de 1940)

A beleza e a harmonia

A majestade real resplandeceu num dos atos mais belos da história da Inglaterra quando o Rei Santo Eduardo, cumprindo o desejo do Papa, conduziu em seus ombros um mendigo ao qual curou e uma terrível doença.  Analisando o fato, Dr. Plinio nos aponta, com profundidade, a beleza do princípio de ordem e harmonia que nele está refletido.

Num trecho do livro “La Baja Edad Media”(1), de autoria de Cristopher Bruck, Professor de História Medieval da Universidade de Liverpool, está descrito o seguinte fato da vida de Santo Eduardo, a respeito do qual eu gostaria de fazer algumas considerações.

A imagem medieval da pobreza, a realeza e a vontade divina se ilustram na vida do Rei Eduardo, o Confessor, do século XII.

Essa história narra que Gila Michael, um irlandês, foi a Roma em busca de remédio, mas São Pedro lhe disse que sanaria o mal se o Rei Eduardo da Inglaterra o levasse sobre os ombros desde a Westminster Hall até a Abadia de Westminster.

São Pedro, neste contexto, quer dizer o Papa.

O virtuoso monarca consentiu. Pelo caminho, o intumescido irlandês sentiu que se afrouxavam os seus nervos e suas pernas se distendiam.

O sangue de suas chagas corria pelos trajes reais, mas o Rei o levou até o altar da Abadia. Ali chegando, o pobre doente ficou curado; começou a andar e pendurou as muletas na Abadia, como sinal do milagre.

“Basta o Rei carregar-te aos ombros”

Como lemos acima, um homem vítima de grave e dolorosa enfermidade, a qual fazia com que seus nervos se contraíssem, produzindo, com isso, feridas que dificultavam extremamente seus movimentos. Certo dia, esse homem conseguiu que o levassem até o Papa para que lhe pedisse a cura. Este respondeu ao enfermo que ele seria curado, mas para isso era necessário que o Rei da Inglaterra o pusesse sobre os ombros e o levasse da grande sala de Westminster até a Abadia, onde por fim encontraria a cura do mal que o atormentava.

Voltando à Inglaterra, o pobre homem teve certamente de percorrer longos trajetos, por estradas onde a todo momento estava em risco de cair em mãos de salteadores. Por outro lado, quanto bom trato e hospitalidade não terá o viajante recebido nos conventos pelos quais passava. Talvez as pessoas generosas lhe ofertassem esmolas para assim poder prosseguir a aventura que consistia tal viagem.

A majestade e a repugnância se encontram

Tendo chegado, por fim, à Inglaterra, o doente dirigi-se ao palácio real. Alegando trazer uma mensagem pontifícia, ele conseguiu comparecer à presença do soberano. Imagine-se como terá sido a cena daquele homem chegando diante do Rei, o qual provavelmente se encontrava em seu trono, cingindo o diadema e as vestes reais, resplandecente de majestade, mas ao mesmo tempo de bondade e afabilidade.

— O que quer? Interroga-lhe o Rei.
— Senhor, eu venho da parte do Papa.
— Então, diga-me do que se trata.
— Ele pede que vós me cureis.
— Mas como poderei fazer isso?
— É ordem do Papa…

Quanto contraste nesta cena! De um lado, o pobre homem, provavelmente um mendigo, coberto de chagas sangrentas e repugnantes; do outro lado, o Rei, saudável, presumivelmente jovem e cheio de majestade.

O recado que é transmitido consiste na manifestação do desejo do Papa de que esse grande monarca, glorioso chefe da nação, carregue ao pescoço aquele mendigo chagado e purulento, apresentando-se nessa postura humilhante pelas ruas, ao longo de todo o percurso.

O santo soberano atende o pedido. E, na pequena Londres de então, o Rei sai de seu palácio, enquanto as sentinelas se perfilam e um arauto toca trombeta avisando que Sua Majestade vai passar. Provavelmente, nas ruazinhas estreitas da cidade de Londres, o povo se espanta com a saída do Rei, sobretudo porque ele não está, como de costume, montado em seu magnífico corcel, nem tampouco numa carruagem, mas está a pé, sozinho, sem guardas nem tropas e fazendo-se montar por aquele indivíduo.

Dos mais belos fatos da monarquia inglesa

Naquela cidade pequena, onde todo mundo se conhece, certamente o povo deve ter comentado: Logo Gila Michael, esse mendigo miserável, carregado assim pelo Rei! Nosso augusto Rei, Santo Eduardo, símbolo da Inglaterra e da virtude da Igreja Católica, ele tão majestoso, digno e altivo como um lírio, trazendo um mendigo montado sobre si! Que coisa extravagante!”

Enquanto isso, tanto o mendigo quanto o Rei vão rezando, e pedindo a Nossa Senhora a esperada cura.

Atrás do Rei o povo atônito forma um cortejo que caminha rumo à Abadia de Westminster, a fim de ver qual será o desfecho daquela curiosa cena.

No caminho, porém, as vestes reais vão se enchendo de pus e sangue que começam a verter das chagas daquele homem, o qual ao mesmo tempo começa a sentir que algo nele está se dando. Ao entrar na Abadia, em meio à expectativa geral, talvez devido ao fato de o povo pressentir que uma das mais belas cenas da história daquele recinto estava prestes a acontecer, o monarca dirige-se para junto do altar, lá tira o precioso fardo de seus ombros e o põe no chão. Então, o homem, que montando no Rei, vinha trazendo nas mãos suas muletas, larga-as e começa a andar, pois suas chagas estavam inteiramente secas e ele miraculosamente curado.

Por outro lado, o Rei está com seus trajes gloriosamente cobertos de sangue e pus. Enquanto se operou por seu intermédio um grande milagre através do qual a majestade real resplandeceu esplendorosamente num dos atos mais belos de toda a história da monarquia inglesa.

Belo como fato ou como lenda

Alguém poderia levantar dúvida sobre a historicidade desse fato. A meu ver, isto não tem grande importância, pois ainda que venha a ser um mito ou uma lenda, o importante é ter havido numa determinada época multidões desejosas de que as coisas tivessem se passado deste modo; caso contrário, nem mesmo seriam capazes de inventar algo assim.

Pode tratar-se de uma lenda baseada num fato verídico, o qual foi glosado e embelezado para atender mais plenamente a apetência das pessoas, porém, o que importa é ter existido um povo que tivesse o estado de espírito tendente a se entusiasmar com a possibilidade das coisas se passarem desta forma.

Como vibram de entusiasmo por realidades diferentes as pobres multidões hodiernas, infelizmente tão massificadas, materializadas e quase aniquiladas!

Este episódio é indiscutivelmente belo, porém é necessário fazermos uma análise a fim de que a beleza que nele se encontra não permaneça apenas como convicção, mas seja fundada no raciocínio, para desta forma podermos compreender mais profundamente o esplendor da Igreja Católica, sem a qual tais fatos seriam impossíveis, seriam impensáveis.

A espera só aos fortes é pedida

O primeiro aspecto encontra-se na Fé daquele homem, que não hesita em ir candidamente pedir ao Papa um milagre. Por outro lado, também, quanto prestígio gozava o Papado naquele tempo! Pois, o enfermo foi até ele com certeza de que seria curado.

Como a Providência tratou a Fé desse homem?

Poderia tê-lo curado logo, mas não o fez. Pelo contrário, inspirou ao Sumo Pontífice de enviá-lo de volta à Inglaterra para lá ser miraculado. Tal ato de confiança Nossa Senhora pede aos fortes. Enquanto aos débeis na Fé, a maior parte das vezes Ela atende imediatamente.

Outro aspecto de beleza é a certeza do pobre homem de que o Rei Eduardo o iria curar. Caso fosse rabugento poderia pensar: “Por que fui até Roma se eu tinha tão perto de mim quem me podia curar?” Mas, não possuindo esse defeito, ele aceitou que Nossa Senhora dispusesse dele como quisesse, indo ter com o Rei cheio de tranquilidade e uma Fé que move montanhas.

Um rei “cavalgado” por um mendigo

Chegando à Inglaterra, o mendigo pede a cura apresentando ao Rei a condição do Papa para alcançar o milagre. Era de que ele “cavalgasse” o Rei.

A condição não poderia parecer mais extravagante, pois o Rei podia curar o mendigo ali na mesma hora. Então, por que deixar-se cavalgar por um doente como aquele? Por outro lado, tratando-se de irem até a Abadia de Westminster, não podiam os dois para lá se dirigir sentados numa carruagem?

Aquele pedido do Papa, o qual no fundo manifestava o desejo da Providência, parece ser a inversão de toda a ordem, pois Deus criou os reis para governar e não para serem montados por mendigos. Isso é uma desordem?

Não, a ordem encontra-se profundamente presente nesse fato. Por quê?

A grandeza de se fazer pequeno

Trata-se do seguinte: É lindo o fato de o poder público dominar, é verdadeiramente maravilhoso e nobre que os inferiores prestem aos detentores deste poder o respeito que lhes é devido. Sobretudo quando se trata de alguém que reconhece a origem divina de seu poder.

Mas, é também esplendoroso que, em certas ocasiões, o maior, às vezes heroicamente, seja pai, amparo e auxílio do menor. Por isso, é bonito que um rei, homem posto no mais alto píncaro da hierarquia social, se lembre de que ele é homem como o outro, pois de certa forma todos são iguais. São desiguais apenas em seus acidentes, os quais por vezes são de uma importância muito grande, mas, em sua essência, o rei é homem como o outro.

Por causa disso, o maior deve ser capaz de servir o menor, respeitando assim a qualidade de homem que ambos têm em comum.

Estes são os dois aspectos lindíssimos desse fato: um pobre resignado, mas que com essa naturalidade e Fé pede ao Rei para que o leve sobre os ombros; um Rei que reconhece a altura de sua realeza, mas é capaz de dizer: “Meu filho, pois não. Suba e vamos juntos pedir o milagre que você necessita”.

A maravilhosa harmonia das desigualdades

Há neste episódio uma harmonia que corresponde à lei profunda das harmonias, a qual admite que os extremos se toquem: é belo ver a realeza tocar na mendicância e, assim, ambas se unirem harmoniosamente.

É belo, portanto, ver ambas se aproximarem do altar junto ao qual está Deus que se encanta ao ver o esplendor daquela obra da qual Ele próprio é Autor. Ele criou o mendigo e também o rei. Ele quis que no mundo houvesse realeza, mas também pobreza, sofrimento, dor, doença, mendicância. E em tudo isso Ele pôs uma harmonia perfeita.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/6/1974)

 

1) “La Baja Edad Media”, Ed. Labor, Barcelona, 1968, p. 32.

Santa Margarida Maria

Algumas pinturas retratam as aparições do Sagrado Coração de Jesus a Santa Margarida Maria Alacoque: Ele se dirige à vidente numa expressão de bondade, comprazimento e misericórdia insondáveis. Ela, por sua vez, naturalmente nimbada de enlevo e adoração.

Ah! Se pudéssemos ouvi-Lo manifestando aos homens o infinito amor de seu Coração Sagrado por nós! Se nos fosse dado conhecer o timbre de sua voz, ensinando como Divino Mestre: repassado de clareza, sabedoria, profundidade e horizontes extraordinários, ao lado de uma simplicidade desconcertante! Como gostaríamos de ali estar, ao lado de Santa Margarida Maria, adorando-O com todas as veras de nossa alma!

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Decisão, perseverança e reflexão

Em Santa Teresa de Jesus vemos qualidades suavemente justapostas, com algo de harmonicamente dissonante entre a ação e a contemplação, altivez e misericórdia, determinação e bondade, que denotam e constituem uma imensa personalidade. Realmente, ela foi uma das maiores figuras femininas de toda a História. Tão extraordinária que mereceu ser proclamada Doutora da Igreja.

Seu olhar e seu semblante parecem dizer: “Eu só tenho Aquele a Quem admiro, e não temo absolutamente ninguém ou nada que me possa acontecer, porque Ele é tudo e vence tudo”. É a própria expressão da decisão, perseverança e reflexão.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 22/7/1975 e 6/6/1980)

Santa Teresa de Ávila, uma alma universal

Possuidora de uma alma verdadeiramente católica, ante as devastações do protestantismo Santa Teresa se re-afervorou e reformou o Carmelo, constituindo um dos principais elementos da Contra-Reforma.

Santa Teresa de Jesus viveu na época em que o protestantismo deixara de ser uma centelha que começava a incendiar apenas uma parte da Alemanha para tornar-se um fogo invadindo o mundo inteiro. Na França — de onde vinham para a Espanha notícias muito mais frescas, por estar mais próxima da Alemanha —, o incêndio religioso era tremendo.

Sobre este aspecto de sua vida, Rohrbacher faz as seguintes considerações:

No primeiro capítulo de sua obra, “O Caminho da Perfeição”, Teresa explica os motivos que a levaram a estabelecer uma observância tão rigorosa no mosteiro carmelita de São José de Ávila.

Diz ela: “Tendo conhecimento dos desastres, em França, da devastação que aí faziam os heréticos, e como essa infeliz seita aí se fortificava dia a dia, fui por isso tão vivamente tocada que, como se eu pudesse alguma coisa, ou fosse alguma coisa, chorava em presença de Deus e implorava que remediasse tão grande mal.

“Parecia-me que eu teria dado mil vidas para salvar uma só alma, do grande número delas que se perdiam nesse reino. Mas, vendo que era somente uma mulher, e ainda tão má e totalmente incapaz de prestar a Deus o serviço que eu desejava, acreditei, como acredito ainda, que, como há tantos inimigos e tão poucos amigos, eu devia trabalhar o quanto pudesse para fazer com que esses últimos fossem bons.

“Assim, tomei a resolução de fazer o que dependia de mim para praticar os conselhos evangélicos com a maior perfeição que pudesse, e procurar levar esse pequeno número de religiosas que estão aqui, a fazer a mesma coisa. Nesse sentido, confiei-me à bondade de Deus, que não deixa jamais de assistir aqueles que a tudo renunciam por seu amor. Esperei que com essas boas moças, sendo como meu desejo as figurava, meus defeitos seriam cobertos por suas virtudes e poderíamos contentar a Deus em alguma coisa, ocupando-nos todas em rezar pelos pregadores, pelos defensores da Igreja e pelos homens sábios que sustentam discussões. Pois assim faríamos o que estava em nosso alcance para socorrer nosso Mestre, que esses traidores, que Lhe devem tantos benefícios, tratam com tanta indignidade, que parecem querer crucificá-Lo ainda e não deixar lugar algum onde Ele pudesse repousar a cabeça.”

Ante o avanço do protestantismo, Santa Teresa se reafervora e reforma o Carmelo

A reflexão de Santa Teresa é lindíssima. Simples religiosa de um convento carmelita, não propriamente corrupto, mas relaxado, ela mesma passou muito tempo na tibieza e na mediocridade quanto ao amor de Deus. Ela ouviu falar das devastações — naquele tempo muito grandes — que o protestantismo estava fazendo na França.

Os protestantes tinham conquistado completamente um pequeno reino que havia no Sul desse país: Navarra. Além disso, tinham eles se espalhado por toda a França, e um terço da nação havia se tornado protestante. Faziam toda espécie de blasfêmias, de agressões às igrejas; era um verdadeiro incêndio religioso na França.

As notícias desses fatos chegam à Espanha e ao conhecimento dessa freira. A graça de Deus toca a alma dessa religiosa e ela compreende o imenso desastre que isso representava. Em vez de ficar com ideias nacionalistas idiotas, pensando: “Aquilo é na França; estou na Espanha e não tenho nada a ver com o que se passa naquele país”, mas convicta da universalidade da Religião Católica, da Redenção de Nosso Senhor Jesus Cristo, ela entendeu também que isso era um verdadeiro desastre para o mundo católico. Então, ela se pôs a chorar copiosamente, e daí veio a ideia de sua conversão.

Alma verdadeiramente católica!

Por outro lado, ela sabia naturalmente que a nação espanhola era muito mais fiel à Fé católica do que a nação francesa; portanto, para o país dela, naquelas circunstâncias, ao menos para prazo breve, o perigo não era grande. Tinha ela a felicidade de viver sob um grande rei católico, Felipe II, adversário acérrimo do protestantismo.

Santa Teresa possuía uma alma verdadeiramente católica, quer dizer, universal, capaz de considerar não só os perigos nos quais se encontrava e os problemas da Igreja que tocavam a sua pessoa, mas também a causa da Igreja Católica como um todo, e de se interessar por essa causa, ainda que seu próprio país não estivesse atingido. Ou seja, ela amava a Igreja sem nacionalismo estreito, sem egoísmo, sem personalismos. Vemos aqui um grande exemplo de espírito sobrenatural que ela dava.

Há muitas pessoas que começam a considerar apenas o que lhes é mais próximo; depois, por ampliações sucessivas, chegam até a uma visão geral das coisas. É um feitio de espírito, um modo de caminhar.

Porém, é muito frequente encontrar pessoas que, fazendo-se católicas, se interessam apenas por sua paróquia, ou então pela sua diocese ou pelo seu país. Negócios católicos de outras nações são mais ou menos como o mundo da Lua; a ideia de uma Causa católica como um todo, elas não chegam a compreender. Ora, uma alma bem formada, que ama a Deus, precisa amá-Lo não somente na sua paróquia, mas no mundo inteiro.

E, fundamentalmente falando, deve alegrar-se com os triunfos da Causa católica, desolar-se com suas derrotas, quer sejam no âmbito de sua vida ou fora dele, no próprio país ou no exterior. Esta é uma alma verdadeiramente católica, universal.

Santa Teresa de Jesus possuía uma alma de fogo, com uma viva noção da Causa católica. Embora naquela época as comunicações entre a França e a Espanha fossem muito lentas, sendo preciso atravessar os Pirineus, com estradas muito ruins, o que tornava difícil a semeadura das doutrinas más das heresias, ela se entregou por inteiro à tarefa de reformar a Ordem do Carmo.

Ideia de conversão

De onde lhe veio a ideia da conversão? Ela expõe esse assunto apenas de passagem aqui, mas em outros trechos isso fica mais claro. Santa Teresa fez o seguinte raciocínio: “Sou uma simples religiosa e, como mulher, nada posso fazer. A não ser o seguinte: os amigos de Deus são poucos e tíbios, enquanto que seus inimigos são muitos e ardorosos. Devo, portanto, rezar, imolar-me, renunciar a tudo para que os amigos de Deus se tornem mais fortes e sejam capazes de fazer face aos seus inimigos”.

Então, afervorar, “catolicizar” os católicos era o meio de levar o inimigo à derrota. Assim, tornava-se necessário que algumas freiras, as quais estavam ao seu alcance, se imolassem, rezassem, e ela mesma passasse da mediocridade para o fervor, a fim de conseguir que os pregadores, os doutores católicos, os batalhadores pelas armas católicas se tornassem capazes de derrotar os protestantes.

Dessa ideia surgiu a reforma do Carmelo. E, naturalmente, graças incontáveis se derramaram sobre a França, em consequência das orações das carmelitas.

Vemos que tudo isso foi inspirado por ideias altamente teológicas e sapienciais: a comunhão dos santos; o valor preponderante da oração e do sacrifício para a Igreja vencer suas grandes batalhas; “catolicizar” os católicos, como meio de vencer os não católicos e deter o furor destes últimos. É uma concatenação de ideias esplêndidas, que se ligam umas às outras, e têm, como desfecho, a reforma da Ordem do Carmo.

A reforma do Carmelo: um dos principais episódios da Contra-Reforma

Santa Teresa de Jesus apenas estabeleceu a reforma das Carmelitas Descalças. Humanamente falando, não é uma obra tão extraordinária. O que representa, sob o aspecto humano, multiplicar o número de conventos de religiosas trancadas no seu convento? Ou, digamos, de mosteiros de padres fervorosos?

Entretanto, não há História da Igreja, um pouco cuidadosa, que não mencione entre os principais fatos da Contra-Reforma, a reforma teresiana do Carmelo. Porque essa reforma teve um efeito extraordinário nos imponderáveis de toda a Cristandade. Em torno das carmelitas desencadeou-se um movimento de afervoramento, que foi um dos motores mais vigorosos da Contra-Reforma.

Os padres carmelitas também atuaram da mesma maneira. Quer dizer, desenvolveram uma ação maior do que os meios humanos nela empregados, uma espécie de expansão de um espírito, de uma mentalidade, de uma atitude de alma, a qual teve como consequência um afervoramento geral dos católicos.

A prioridade da vida interior

Isso se explica muito mais pelo lado sobrenatural do que pelo natural. E nos mostra quanta razão temos em algumas impostações nossas: prioridade da vida interior sobre a vida ativa; preocupar-se mais em “catolicizar” os católicos do que conquistar não católicos para a Igreja Católica; a ideia de que a oração e o sofrimento valem mais, na luta contra os adversários, do que a ação; o desejo, entretanto, ardente da ação levada até suas últimas audácias, que caracterizavam o espírito de Santa Teresa de Jesus.

Tudo isso faz com que percebamos, pela grande autoridade de Santa Teresa de Jesus, quantas concepções nossas são verdadeiras e, portanto, como a elas devemos ser fiéis.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 14/10/1966 e 29/11/1969)