O “canticum novum”

Quais as graças, as cogitações, a poesia e os cânticos que caracterizarão os Natais no Reino de Maria? A este respeito Dr. Plinio tece belos e inéditos comentários.

Gostaria de tratar de alguns aspectos do Natal a partir de conjecturas a respeito de como seria a música de Natal no Reino de Maria. Sobre isso haveria diversas hipóteses que se entrecruzam.

Uma canção natalina que abrangesse desde o Nascimento até a Ascensão de Jesus

A mim pessoalmente agradaria uma música que considerasse o mistério do Natal relacionando-o com o futuro do Menino Jesus. Assim, em determinado momento, desenvolvesse algo sobre a vida contemplativa d’Ele com Nossa Senhora durante os trinta anos vividos em Nazaré. Depois, a dor da despedida, a vida pública, Paixão, Morte, Ressurreição, glória no Céu. Terminando, por exemplo, com esse pensamento: se os Anjos cantaram “glória a Deus no mais alto dos céus e paz na Terra aos homens de boa vontade” (Lc 2, 14), o Homem de boa vontade por excelência foi Ele, o Homem-Deus. Ninguém teve boa vontade como Ele, em nenhum sentido, nem de longe. Logo, a glória d’Ele não se iguala à de ninguém. Os Anjos, quando entoaram “glória a Deus no mais alto dos céus”, cantaram a Ele enquanto Segunda Pessoa da Santíssima Trindade também. E quando cantaram “paz na Terra aos homens de boa vontade”, glorificaram-No enquanto trazendo para a Terra a possibilidade da verdadeira ordem e, com esta, a verdadeira paz.

Depois a luta d’Ele e a Ascensão ao Céu, porque sendo Ele o Homem de boa vontade por excelência que realizou tudo quanto devia realizar, teve uma glória incomparável no Céu. Seria, portanto, uma música muito mais longa do que simplesmente o Stille Nacht.

Cântico do inocente, do penitente, do pecador e do guerreiro

Eu também imaginaria de bom grado canções natalinas para estados de alma diferentes. Então, para a alma inocente que, imersa neste mundo e dentro da luta, tem receio de ver a sua inocência comprometida, agradece a Deus a inocência que tem e pede que essa inocência seja de aço até o fim.

O cântico de Natal da alma inocente seria diferente do cântico da alma penitente. O penitente arrependido, humilde, de cabeça baixa, se acerca da manjedoura e canta a São José e a Nossa Senhora. A São José dizendo não ser digno, mas pedindo ao Santo Patriarca que obtenha da Santíssima Virgem para ele um olhar e uma compaixão. Seguem-se a resposta afirmativa de São José e um apelo a Nossa Senhora. A Mãe de Deus atende e o recebe maternalmente.

O pecador arrependido então pede a mediação d’Ela para chegar até o Menino Jesus. Sentindo-se indigno de entrar na gruta, canta do lado de fora, dizendo: “Até o bafo do boi é digno de estar ali dentro, porque está na ordem de Deus. Mas eu sou o pecador que rompi em determinado momento essa ordem. Portanto, não sou digno de aproximar-me dali. Onde os animais entram eu não posso entrar. Mas se Vós, minha Mãe, me cobrirdes com o vosso manto, eu ouso tudo!” Ela o cobre, e coberto pelo manto, ele recita um Confiteor e recebe do Menino Jesus um gesto, que pode ser interpretado como um movimento instintivo de uma criança, mas na realidade tem o sentido de um perdão. O penitente se retira agradecido.

Outro poderia ser o cântico natalino do pecador atolado no pecado. Que gostaria de sair desse estado, mas não o quer com toda a eficácia. Mas ao menos de longe, de fora, canta implorando a Nossa Senhora enviar-lhe um mensageiro que leve a Ela uma súplica dele. Aproxima-se um passarinho, e o pecador põe a mensagem no bico da ave.

A súplica é entregue, e nela ele diz não ser como o pecador anterior que tendo rompido com Deus, rompeu depois com o pecado. Aquele, quando entrou na gruta, após reconhecer que não merecia estar onde até o boi e o burro eram dignos, já estava reconciliado com Deus. Este, entretanto, não é nem o pecador arrependido nem o boi: ele é a serpente, pois se encontra em estado de pecado mortal. Está carregado de pecados, mas tem tristeza e esperança, e implora de longe a Nossa Senhora, cujo pedido pode obter de seu Divino Filho que um aceno de mão remova as montanhas internas do pecado na sua alma e faça dele um homem que, afinal, se arrependa e se entregue a uma vida de penitência.

Quando o pecador se aproxima de Nossa Senhora, o Menino Jesus sorri, senta-Se e abre os braços. Diante desse gesto, ele pede perdão, é perdoado e sai contrito.

Poderíamos imaginar também o Natal do guerreiro, do combatente, do cruzado aos pés do muro de Jerusalém. Viriam as objeções: “Natal é festa da suavidade, da concórdia, não entra em considerações de guerra.” Mas se essa guerra é lícita, por que não cabe um lugar para ela aos pés da manjedoura onde está o Menino Jesus?

Seriam, portanto, cânticos destinados a vários estados de alma, para dar ânimo aos mais miseráveis como aos mais fortes.

Acréscimo legítimo às comemorações natalinas

Contra tudo quanto acabo de dizer há uma objeção muito séria. É a defesa do não se acrescentar nada ao Natal como atualmente é comemorado. O Natal é uma festa com um significado próprio, preponderante, não de um Deus presente no mundo e já exercendo a sua missão. Mais tarde Ele perdoará os pecadores, moverá as montanhas. No momento está existindo só para Nossa Senhora e São José, e deve ser considerado apenas assim. Por causa disso, é ordenado que os espíritos retos fruam a beleza específica do Natal e mais nada. Misturar todos esses pensamentos seria tirar a especificidade dessa festa. A liturgia da Igreja tem outras comemorações reservadas ao pecador, por exemplo, a Paixão de Nosso Senhor.

O Natal é a festa da candura, da infância, da aliança de Deus com o homem, encarnando-Se e descendo à Terra. É a festa da distância fabulosa no caminho percorrido pelo Verbo de Deus, estando eternamente na Santíssima Trindade, convivendo com as outras duas Pessoas num relacionamento perfeito e ininterrupto, sem começo nem fim, e que Se faz Homem, vem para a Terra, e está ali, no Presépio, entre Maria e José. Isso tudo é tão alto e tão cheio de significado que não se deve misturar com outras considerações.

A meu ver, essa defesa tem seu sentido, mas de fato o Natal existiu não só para que Nossa Senhora, São José, os pastores e os Reis Magos contemplassem o Divino Infante, mas também todos os outros homens. Portanto, o Natal enquanto vivido por todas as outras gerações que, em certo sentido, se aproximam do Menino Jesus merece essa ampliação.

Daí não vem uma censura ao Natal atual, mas o desejo de algo a mais. Ouso esperar que no Reino de Maria esses argumentos sejam ponderados por quem de direito possa realizar esse acréscimo. Temos assim uma ideia apenas esboçada, porque nunca aprofundei esse pensamento, de como seriam os vários Natais do Reino de Maria.

Sacralidade dos Natais de outrora

A isso acrescento um elemento que me parece decisivo dentro do assunto. Havia nos antigos Natais um traço que eu alcancei: uma sacralidade da qual as gerações mais novas não podem fazer ideia.

No meu tempo, nos dois, três dias que precediam o Natal, já um certo aroma, uma certa atmosfera natalina começava a envolver a São Paulinho. No Centro velho, o triângulo formado pelas Ruas Líbero Badaró, XV de Novembro e Direita, depois o conjunto de ruas em torno e dentro desse triângulo, havia lojas que vendiam brinquedos e expunham na vitrine um presepe. Esses estabelecimentos comerciais possuíam gramofones que tocavam músicas de Natal. Então, percorrendo a pé, por exemplo, a Rua Direita, de ponta a ponta ouviam-se as melodias natalinas.
Quando chegava a noite de Natal, as famílias todas começavam a ir em grupos para a igreja, devagarzinho, nas ruas vazias de qualquer gente que não fosse quem se dirigia para a Missa, na paz, naquele andar vagaroso de famílias que saem numa hora na qual costumam estar dormindo. Da igreja saía uma luz forte que iluminava a rua cada vez que se abria a porta, e lá dentro estavam começando a cantar. Em certo momento batia o sino e começava a Missa.

Tinha-se a sensação de uma graça vinda de uma altura, mas de uma altura…! Graça de uma qualidade tal que enchia a pessoa de duas disposições de espírito aparentemente incompatíveis, mas que convivem maravilhosamente: a noção recolhida, humilde e enlevada do sublime, e a doçura de quem recebe uma misericórdia sem limites. Talvez de nada da minha infância eu tenha tantas saudades quanto desse aroma e dessa graça de Natal.

A graça de Natal no Reino de Maria

Como será essa graça no Reino de Maria? Estou certo de que ela se reapresentará. Porém, ninguém pode prever qual vai ser sua magnificência e esplendor. Lendo o que São Luís Grignion escreve a respeito desse assunto, notamos que ele prevê em palavras magníficas a vinda do Reino de Maria, mas não o descreve, porque tem qualquer coisa superior a tudo quanto poderíamos imaginar.
É compreensível, pois o tormento dos justos na época em que estamos é superior a tudo quanto poderíamos conceber. E se esse foi o tormento dos justos, foi também o sofrimento de Maria, que previu e padeceu com tudo isso. Portanto, a um tormento sem proporções com nada deve seguir-se uma glorificação e um gáudio sem proporções com nada.

Eu pergunto: Aos que formos fiéis até a hora do Reino de Maria, não é verdade que a alegria do primeiro Natal deverá ser com graças que ninguém imagina? Mais ainda: às vezes tenho me perguntado se o primeiro dia do Reino de Maria não será um dia de Natal. Quer dizer, na véspera o demônio é derrotado, seu reino acaba e os Anjos levam umas tantas horas para limpar a Terra dos vestígios dos pecadores. A própria natureza torna-se diferente. Tem-se a impressão de que do alto do céu, mas também do fundo da terra saem bênçãos, evolam-se graças, é tudo tão diverso… É a primeira noite de Natal, nasceu o Reino de Maria! É uma possibilidade, não digo que seja certo. É uma hipótese entre outras, e é legítimo fazer hipóteses.

O nascimento de uma nova melodia natalina

Compreende-se como nascem as grandes coisas. Nessa noite uma pessoa dotada de dons poéticos, caminhando rumo à igreja, sussurra aos ouvidos de um companheiro: “Está vindo à cabeça uma poesia em louvor do Menino-Deus e de Nossa Senhora!” E recita um poema que ele mesmo não percebe ser admirável. Isso se espalha, e uma pessoa com dotes musicais começa a cantar, ali mesmo na rua. A certa altura, todos aprenderam a melodia e entram na igreja entoando esse cântico.

Nasceu mais uma música natalina para todos os séculos. O Anticristo, quando vier, ainda encontrará essa canção sendo entoada. Os últimos fiéis, na escuridão de alguma catacumba, ainda cantarão a mesma melodia no último Natal da História. Qual será a surpresa deles quando perceberem que alguém canta muito melhor do que eles essa música, do lado de cima da terra. Eles ficam comovidos e delegam alguém para subir, pé ante pé, e ver o que está acontecendo. Ele volta correndo e extasiado: são os Anjos que estão cantando no céu!

Um gênero de poesia livre da rima e da métrica

Como serão essa música e essa poesia? Vem aqui uma conjectura, mais uma vez toda ela pessoal: A poesia como ela existe hoje, e mesmo como os clássicos romanos e gregos a conheceram, eu admiro muito, é muito bonita. Mas ela tem qualquer coisa que me dá a impressão do que sentiria um homem ao usar um colete para corrigir a desvio na espinha dorsal ou algo semelhante. Aquele sistema métrico, aquela rima que deve bater com a outra… Parece-me que o pensamento e o sentimento ficam meio algemados dentro daquilo.

E eu gostaria de imaginar um gênero de poesia liberta desses entraves, e que fizesse exprimir toda a sua beleza sem a obrigação desse pesadelo da rima e da métrica. Eu, tão desconfiado com a espontaneidade, nesse ponto advogo uma certa espontaneidade. Assim, eu imaginaria algum gênero de composição que fosse poético muito mais pelo pensamento, pelo sentimento, do que pela forma literária. Como seria isso? Também não sei. A canção de gesta tem um pouco disso.

O verdadeiro espírito poético e o “canticum novum”

Como se forma o espírito poético? Nós estamos tão deformados pela Revolução que quando se fala de espírito poético vem à mente a ideia da canção sentimental, com a eterna lenga-lenga do rapaz que queria a moça e ela não queria o rapaz ou vice-versa. Então sai um choro mole, triste, que por vezes dá numa reconciliação, e fica no puro choro e acabou-se. É a última lágrima, o último ponto final da poesia.

Não é isso. O espírito poético verdadeiro é de quem não tem na alma esses vapores tóxicos do sentimentalismo. É uma alma limpa do vício da pena de si mesmo, e que não quer cantar as suas aspirações, a sua vida interna, mas os ideais para os quais vive. Quer dizer, é o cântico da alma generosa que compreende o elevado, o sublime, e quer cantar a sublimidade. Uma poesia onde possivelmente não figure sequer a palavra “eu”, nada egocêntrica. Não canta a sua dor, canta aquilo que adora.

Quem cantou o grande Carlos, quem compôs a canção de gesta? Discute-se. Uma das hipóteses é que um anônimo tenha cantado pela primeira vez, e depois as multidões começaram a repetir, acrescentando episódios, trovas, etc. É quase um imenso autor anônimo que não se preocupou em deixar seu nome para a posteridade, mas desinteressadamente se preocupou em cantar os pares de Carlos Magno. Essas são as almas capazes de poesia.

Na América Latina há mil criatividades à espera da hora da graça, e que Deus não quis que se gastassem na época da Revolução. Estão reservadas para glorificar a Mãe d’Ele quando Ela reinar. Serão o canticum novum(1) que este continente, descoberto pela Europa e povoado muito preponderantemente por filhos daquelas terras, acrescentará ao lindíssimo, ao admirável canticum antigo que a Europa entoou, e que ela conservará e legará para o futuro.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/1/1989)
Revista Dr Plinio 237 – Dezembro de 2017

1) Do latim: cântico novo.

O menino do tambor

Há mais de dois mil anos, nos imensos e longínquos arenais da Arábia, vivia um menino muito pobre, que possuía tão somente um pequeno tambor. Órfão de mãe desde muito pequeno, vivia sozinho com seu pai, guardião de um oásis, cujas águas eram abundantes e cristalinas.

Numa fria noite de inverno, enquanto o menino tocava seu tambor, apareceu no céu uma estrela que brilhava mais do que todas as outras. Contemplando o luminoso astro, logo compreendeu que ele prenunciava um feliz e grandioso acontecimento.

Na manhã seguinte, o menino divisou no horizonte uma longa fila de homens e animais. Percebeu não se tratar de uma caravana comum, pois até o menor dos servos vestia-se ricamente. No fim do longo cortejo, sentados no alto de vigorosos dromedários, vinham três nobres senhores, vestidos com trajes coloridos e turbantes de seda. Um deles era um ancião de longa barba, outro um homem maduro de vivos olhos e ruivos cabelos, o terceiro um vigoroso árabe de pele escura. Dir-se-ia que os três eram poderosos reis.

Ao se aproximar a caravana, curioso, o menino dirigiu-se aos reis: “Senhores, perdoem meu atrevimento, mas a que se deve a presença de tão ilustres pessoas nestas desoladas paragens?”

Um dos reis sorriu e explicou-lhe que vinham de muito longe e que seguiam uma estrela que haveria de guiá-los até o local onde nasceria o Messias, o Salvador da humanidade, anunciado pelos profetas. “Então, tomamos ouro, incenso e mirra e pusemo-nos a caminho, a fim de prestar-Lhe homenagens”.

O menino sentiu um irresistível desejo de ir conhecer o Messias prometido e, com a permissão de seu pai, juntou-se aos viajantes.

Alguns dias depois, a caravana fazia sua entrada em Belém de Judá e numa humilde casa, sobre a qual se detivera a milagrosa estrela, os três nobres senhores encontraram um inocente Menino nos braços de uma bela Senhora. Logo compreenderam que aquele lindo Infante era o esperado Messias. Prosternaram-se, adorando-O e Lhe ofereceram ouro, incenso e mirra.

Mas, eis que ouve-se o rufar de um tamborzinho e uma harmoniosa e pueril voz:

Eu quisera pôr a vossos pés
Algum presente que vos agrade, Senhor!
Mas Vós sabeis que eu sou pobre também,
E não possuo mais do que um velho tambor!

Era o “menino do tambor” que cantava para o Salvador uma humilde e bela canção, acompanhada pelos graves acentos de seu tambor. E a face do Menino Jesus iluminou-se com um belo sorriso.

Felix Cæli Porta

Na hora bendita entre todas as horas, de um modo só conhecido por Deus, a Mulher bendita entre todas as mulheres, a Feliz Porta do Céu e sempre Virgem — como A exalta o cântico “Ave Maris Stella” — torna-Se, efetivamente, Mãe de Deus, pois a maternidade se completa quando Maria Santíssima dá ao mundo o Filho que Ela gerou.

Há uma belíssima música de Natal que canta de modo muito expressivo, como uma melodia vinda do alto: “Aparuit! Aparuit!” Afinal, apareceu na manjedoura o Verbo de Deus encarnado!

(Extraído de conferência de 2/7/1995)

As Graças do Natal

Queiram ou não queiram os homens, a graça lhes bate às portas da alma, mais sublime, mais meiga, mais insistente, neste tempo de Natal. Dir-se-ia que, apesar de tudo, paira nos ares um luz,  uma paz, um alento, uma estimulo ao idealismo e dedicação, que é difícil não perceber.

Ademais, em inúmeras igrejas, em muitos lares, o presépio ainda nos põe diante dos olhos a imagem do  Menino Deus, que veio para romper os grilhões da morte, para calcar aos pés o pecado, para perdoar, para regenerar, para abrir aos homens novos e ilimitados horizontes de fé e de ideal, novas e  ilimitadas  possibilidades de virtude e de bem.

Que a paz do Natal penetre em nós

Mais uma vez, Senhor, a Cristandade se apresta a Vos venerar na manjedoura de Belém, sob a cintilação da estrela, ou sob a luz ainda mais clara e fulgente dos olhos maternais e doces de Maria. A  vosso lado está São José, tão absorto em Vos contemplar que parece nem sequer perceber os animais que Vos rodeiam, e os coros de Anjos que rasgaram as nuvens e cantam, bem visíveis, no mais  alto dos Céus”.

Eis pequeno trecho de uma meditação de Dr. Plinio, em noite de Natal, diante do presépio, que o encontrava pela capacidade de reviver algo daquela atmosfera indizível reinante na gruta de  Belém. O primeiro presépio da história foi obra de um refulgente santo, há quase oito séculos. Conta Tomás de Celano — o biógrafo do seráfico São Francisco de Assis, e seu contemporâneo — que  este, no Natal do ano da graça de 1223, desejou compor do modo mais real possível a cena vista pelos pastores na Gruta de Belém.

Com seu espírito poético, voltado para o maravilhoso, sua candura e humildade, preparou uma manjedoura coberta com feno e mandou colocar de um lado um boi, e de outro um asno. Fez  celebrar nesse local a Missa e, observando a cena, dirigiu-se aos assistentes,  descrevendo com palavras ardentes de piedade e amor o nascimento do Homem-Deus.

A partir desse fato, difundiu-se por toda a Cristandade o costume de montar presépios por ocasião do Natal. Ativando a imaginação de pequenos e adultos, eles são ocasião de incontáveis flashes —  ara utilizarmos um termo pliniano —, proporcionando-nos algumas das mais inesquecíveis horas de nossa vida.

Considerando esse quadro, quantas e quantas vezes Dr. Plinio elevou suas cogitações até aquele convívio inefável da Sagrada Família, nunca se esquecendo de recordar que essa sublime cena nos  cobra uma determinada disposição de espírito: “Não basta que nos inclinemos ante Jesus Menino, ao som dos hinos litúrgicos, em uníssono com a alegria do povo fiel. É necessário que cuidemos  cada qual de nossa própria reforma, e da reforma do próximo, para que a crise contemporânea tenha solução, para que a luz que brilha no presépio recobre campo livre para sua irradiação em  todo o mundo”.

Contudo, Dr. Plinio destacava igualmente que, nesse dia bendito, Jesus e Maria querem especialmente de nós que nos deixemos impregnar pela doce e benigna atmosfera do acontecimento  grandioso: “Deus, ei-Lo exorável e ao nosso alcance, feito homem como nós, tendo junto de Si a Mãe perfeita. Mãe d’Ele, mas também nossa. […] Ao contemplar isso, nossas almas crispadas se  distendem. Nossos egoísmos se desarmam.

A paz penetra em nós e em torno de nós. Sentimos que em nosso vizinho algo também está enobrecido e dulcificado. Florescem os dons de alma. O dom do afeto. O dom do perdão. E, como  símbolo, a oferta delicada e desinteressada de algum presente”.*

Nessa ocasião do mais augusto de todos os aniversários, aproximemo-nos do presépio e, silenciosos e recolhidos, deixemos que nossas almas sejam inundadas por essa paz luminosa do santo Natal.

* Os trechos acima transcritos foram publicados respectivamente em Legionário, 22/12/46; Catolicismo, dez/52; Folha de S. Paulo, 27/12/70.

Plinio Corrêa de Oliveira

Stille Nacht

O Stille Nacht, a bela música alemã composta no século XIX, passou a ser a canção de Natal por excelência. Ao ouvi-la, tem-se a impressão de que o coro está na gruta de Belém e canta emocionado, mas canta baixinho para não acordar o Menino…

 

O comentário, evidentemente, abrange uma interpretação do Natal, visto com uma categoria extraordinária pelo povo alemão.

Há vários descendentes de alemães aqui, que poderiam falar a esse respeito com mais autoridade do que eu… Existe uma característica não muito própria ao latino, mas sim ao alemão: conceber as coisas de tal maneira que tudo quanto é altamente sacral vem acompanhado de muita calma e muito recolhimento.

A concepção italiana da noite de Natal

Um presépio elaborado, por exemplo, em certas regiões da Itália tem as figuras tomando atitudes muito enfáticas, tais como: o Menino Jesus, deitado na manjedoura, estendendo os braços a Nossa Senhora, a qual está debruçada sobre o Divino Infante, numa atitude de ternura profunda, mas borbulhante, que tende a se manifestar em gestos, e só falta falar.

Se o artista conseguir dar a Nossa Senhora e ao Menino Jesus uma impressão por onde alguém diga “Só falta falarem!”, ele fica encantado, porque o falar, se manifestar, é o auge da realização da cena. E São José — ao qual cabe, no diálogo entre Maria Santíssima e o Divino Infante, um papel mais modesto porque ele é apenas o pai jurídico do Menino Jesus — tem também uma atitude, que se não falta apenas falar, falta somente chorar ou sorrir, conforme a interpretação. Mas ele está se exprimindo.

É a ideia de que a emoção religiosa deve exprimir-se por meio de grande vivacidade. E, como é próprio a toda vivacidade, esta, por sua vez, precisa manifestar-se por pensamentos e palavras; os pensamentos devem ser vivos e as palavras enfáticas, calorosas.

A concepção alemã

É exatamente o contrário a concepção alemã da noite de Natal. Em todos os povos, a comemoração do Natal, para ser sacral, tem que produzir nas almas uma impressão profunda. Em certas partes da Itália se entende que essa sensação profunda deve manifestar-se, exteriorizando-se.

Mas para a mentalidade alemã, porque é profunda, tal impressão não deve expandir-se; estando no fundo da alma, o melhor modo de exprimi-la é o silêncio, o recolhimento e a calma.

 Quer dizer, enquanto para uns o auge da expressão é a palavra e os gestos, para outros, pelo contrário, esse auge está numa forma de silêncio e de inação, que dão a conhecer profundidades insuspeitadas da alma humana; e o próprio silêncio indica a importância que a pessoa dá ao assunto, para exprimir tudo quanto ela pensa. Trata-se de uma posição de alma menos exclamativa do que meditativa, elucubrante — eu diria quase filosófica ou teológica —, recolhida.

E a calma não é, entretanto, meramente científica, mas profundamente enternecida. Uma ternura indicando um afeto tão grande que prefere calar-se, a falar.

Então, se alguns têm a eloquência da palavra e do gesto, outros possuem a eloquência do silêncio e do recolhimento. São duas posições diferentes. Muitas vezes as coisas grandiosas, para o alemão começam na imparcialidade, na serenidade, piano, pianino, devagar, para acabar, em certas ocasiões, na barulheira wagneriana. Enquanto que no temperamento latino, do qual, sob alguns aspectos, o italiano — pelo menos de certas partes da Itália — é a expressão mais característica, tudo já se inicia no grande estilo.

Qual das duas posições é melhor? Compreendo que os italianos achem uma coisa, os alemães outra.

E a posição brasileira qual é? Entender perfeitamente ambas as posições e degustar tão bem uma quanto outra. É o que sinto em mim. Eu, como brasileiro — ainda mais tendo a loquacidade do nordestino nas minhas veias —, certamente falaria mais do que o alemão, e estaria um pouco aquém do italiano.

São variedades regionais, através das quais Deus quer ser adorado por cada povo. Não se trata aqui de escolher, mas de contemplar a beleza das variantes. Temos uma variante alemã. Não sei se existe alguma canção de Natal italiana. As francesas não possuem a beleza da alemã. Os Noëls franceses são muito bonitos, mas não como o Stille Nacht, que é propriamente a canção de Natal. A nós compete apreciar a música como vai ser apresentada aqui, característica de uma noite de Natal alemã.

O que o alemão sente na Noite Sagrada

O que o alemão sente na Weihnacht, na Noite Sagrada?

Uma grande calma, sobretudo numa cidadezinha da Alemanha onde foi composta a Stille Nacht. Houve uma dificuldade qualquer na paróquia, em razão da qual não puderam cantar a música sacra tradicional. Então, a pedido do vigário, solicitaram ao professorzinho secundário do lugar que compusesse uma musiquinha para a noite de Natal. E ele, sem julgar estar fazendo uma coisa genial, compôs uma canção que ficou a música de Natal do mundo.

Bem depois, pela difusão dessa canção, esse professor ficou célebre. Conserva-se a casa dele, que é visitada por turistas. Compreende-se muito bem o Stille Nacht, Heilige Nacht vendo fotografias da cidadezinha na neve, os tetos, em forma de cone, branquinhos, as casinhas marrons, tudo parecendo feito de pão de mel para se comer. E uma igrejinha como que feita de marzipã, um brinquedo de criança, como são as aldeias alemãs.

Imaginemos o caminho que conduz para a igreja, um pouco em zigue-zague, feito sobre a neve e bordejado de neve de ambos os lados, as casinhas todas com luzes acesas e suas janelinhas com renda e bem cuidadinhas, como os alemães fazem; o sininho que toca em certa hora e as famílias que aparecem todas agasalhadas — cada indivíduo parecendo uma bolota de lã —, criancinhas que vêm em fila, carregando lanternas — porque esses felizardos não têm iluminação pública. 

A neve, sem fazer barulho, cai em flocos ligeiros. Um imenso silêncio, recolhido, de uma noite sagrada, onde todo o mundo pensa no silêncio que cercava a gruta e a manjedoura. Meia-noite, Nossa Senhora e São José, sozinhos no estábulo. São José recolhido e Maria Santíssima num altíssimo êxtase; em determinado momento, não se sabe como, Nossa Senhora e São José ouvem um vagido: o Filho de Deus entrou no mundo, conservando intacta a Virgem, antes, durante e depois do parto. O maior fato da História, até então acontecido, se deu naquela manjedoura.

Nossa Senhora olha, pela primeira vez, a face de seu próprio Filho e se enternece extasiada; adora-O. São José não sabe o que dizer. Mas tudo é silêncio, eles não comentam nada, mas mil anjos ali estão em revoadas insensíveis. Sem que se ouça uma nota de música, mil músicas são entoadas dentro desse silêncio.

A união de alma da Virgem Maria com seu santo esposo atinge o auge em função do Menino, que nasceu d’Ela, mas sobre o qual São José tem um verdadeiro direito de pai, porque, como esposo, tem o direito ao fruto das entranhas da esposa. De maneira que sem ser o pai, ele tem o direito. Além disso, ele é da Casa de Davi e aquele Menino também o é.

Podemos imaginar o Divino Infante fazendo um gesto para São José, a adoração deste e a afabilidade com que Nossa Senhora lhe entrega o Menino Jesus, exercendo pela primeira vez a sua função de Medianeira.

Aquele silêncio só foi interrompido pela música dos anjos que, vindos do mais alto dos Céus, aparecem e comunicam aos pastores que nasceu o Menino-Deus. Essa música foi pastoril, quer dizer, com a tranquilidade, a candura, a inocência do ambiente pastoril.

Os pastores inocentes acordam e exclamam: “Que beleza!” E perguntam: “O que será?” Depois da explicação, eles começam a andar por extensões ligeiramente onduladas, numa daquelas noites brilhantes do Oriente Próximo, em que as estrelas aparecem num coruscamento quase excessivo para nossa sensibilidade de ocidentais. Uma maravilha! Um céu mais de Paraíso do que desta Terra. Chegam à manjedoura, e encontram Nossa Senhora e São José adorando o Menino Jesus. Tudo é silêncio, calma, harmonia, estabilidade. Temos a impressão de que, se lá estivéssemos, desejaríamos que aquela noite nunca mais terminasse, e por fim lá morrêssemos e fôssemos para o Céu.

O estado de espírito que Stille Nacht exprime

Foi esse estado de espírito — pastoril, angélico, sobrenatural, familiar, íntimo, de uma grande dignidade e um grande alcance metafísico — que a canção quis exprimir.

Vejamos alguns trechos dessa música.

 

“Stille Nacht! Heilige Nacht!”: Noite silenciosa! Noite Santa!

“Alles schläft, einsam wacht”: Tudo dorme, só está acordado

“Nur das traute hoch heilige Paar”: O venerável e altamente santo casal

 

“Venerável e altamente santo casal” — a adjetivação é caracteristicamente alemã.

Nota-se na alegria do Natal uma ternura meio lírica, na qual existe certa compaixão. Dentro do festivo há uma tristeza, devido ao frio e à pobreza em que nasce o Menino Jesus. Mais do que isso: é uma tristeza prevendo a Cruz. Há algo da sombra da Cruz que se projeta sobre a noite de Natal. De onde uma ternura com compaixão para Aquele que veio, afinal de contas, para ser o Redentor, sofrer e morrer.

 

“Holder Knabe im lockigen Haar”: Um Menino com cabelos cacheados

“Schlaf in himmlischer Ruhe!”: Dorme numa tranquilidade celeste

 

A nota de tranquilidade está acentuada de todos os modos. Trata-se de uma serenidade do céu, onde se movem as estrelas; não é a modorra da Terra, do menino preguiçoso.

 

“Stille Nacht! Heilige Nacht!” : Noite tranquila! Noite santa!

“Hirten erst Kundgemacht”: Pastores, aos quais foi feito o primeiro precônio

“Durch der Engel, Halleluja”: O Aleluia dos Anjos

“Tönt es laut von fern und nah”: Faz-se ouvir alto, longe e perto:

“Christ, der Retter, ist da!”: Cristo, o Salvador, está aqui!

 

Nota-se muito a impressão de um problema que se resolveu, pois uma salvação veio à Terra.

 

“Stille Nacht! Helige Nacht!”

“Gottes Sohn, o wie lacht”: Ó Filho de Deus, que sorriso cheio de amor

“Lieb’aus deinem göttlichen mund”: Sai de vossos lábios divinos

“Da uns schlägt die rettende Stund”: E bate para nós as pancadas da hora da Salvação

 

Quer dizer, os lábios se movimentam num sorriso, como se fosse um relógio que desse o timbre da hora da Salvação.

 

“Christ, in deiner Geburt!”: Ó Cristo, no dia de teu nascimento!

 

Vemos que é uma canção muito simples, popular, mas de um sentido profundo. Feliz o povo onde a cultura está tão entranhada em tudo, que um homenzinho do interior, de repente, abre a boca e sai tal música de seus lábios!

A cultura não consiste em ter somente gênios, mas em estar tão disseminada que floresçam coisas dessas inesperadamente, nos vários degraus da sociedade.

Uma magistral lição de vida interior

Tratar-se-ia de perguntar se os meridionais, sobretudo os de aquém-Atlântico, com sensibilidade borbulhante, têm algo a lucrar com isso. Eu responderia que bastante.

Os povos muito intuitivos são por demais extrovertidos e, por isso, se tornam facilmente agitados. Esta calma convida para o recolhimento, a interiorização, a fim de perceber a voz da graça dentro da alma e não estar a toda hora prestando atenção no outro, mas sim em Deus.

Uma magistral lição de vida interior nos é dada por essa música.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/12/1973)

Revista Dr Plinio 153 (Dezembro de 2010)

 

Um Natal na São Paulo de outrora

Nas suas reminiscências do tempo de menino, Dr. Plinio se comprazia em recordar as celebrações natalinas vividas por ele na “São Paulinho” do início do século passado, e mais especialmente em seu próprio lar, sob o carinhoso e maternal olhar de Dona Lucilia…

Para descrever uma noite de Natal na pequena São Paulo daquela época, é preciso fazer uma distinção entre as comemorações nas casas e as que se faziam no centro da cidade.

Preparativos para a magna festa

Nas residências, quatro ou cinco dias antes já se começava a sentir a alegria própria dessa data. Grandes pacotes chegavam das lojas, acolhidos e “confiscados” sumariamente pelos adultos, furtando os assim da curiosidade das crianças. Eram presentes, objetos para a árvore de Natal, enfeites destinados a chamar a atenção para o Nascimento do Menino Jesus, de um modo deleitável.

Além disso, nós, os pequenos, víamos as senhoras sair à rua e retornar com diversos embrulhos, não sem procurarmos nos lembrar do que havíamos pedido a São Nicolau que nos trouxesse. E este sempre os mandava o anelado presente!

Na verdade, não me recordo de uma só vez em que São Nicolau tenha trazido menos do que eu solicitara, e em várias ocasiões enviou mais do que o esperado por mim. Meu São Nicolau não era rico. Possuía apenas o suficiente para atender as minhas petições. Porém, era muito afetivo, e se percebia que ele fizera algum sacrifício para, de vez em quando, superar a minha própria encomenda!

A grande festa se aproximava, e um aroma de pão de mel, mesclado com o de chocolate, invadia as dependências da casa.

As crianças, que naquela época formavam um “submundo”, trocavam telefonemas — nós ligávamos para os nossos primos, e vice-versa —, contando as “últimas novidades” dos preparativos.

Ambiente da véspera e Missa do Galo

O dia 24 já amanhecia completamente diferente. Alguns cômodos estavam interditados para os meninos, os quais eram relegados para o jardim, se o clima o permitisse. Se não, para um quarto de brinquedos ou outro de crianças, onde devíamos passar o tempo. A partir de certo momento, nem neste último podíamos entrar, pois ali também estavam aprontando delícias.

Às 5 ou 6 horas da tarde, o movimento das ruas começava a declinar. Nas residências se acendiam todas as lâmpadas, o que conferia um ar mais festivo aos ambientes. Às vezes, as salas da frente — em geral, de cerimônia, e habitualmente fechadas nos dias comuns — tinham suas janelas abertas de par em par, permitindo ao cintilar das luzes refulgir no exterior, e aos transeuntes perceberem uma ou outra árvore de Natal erguidas lá, cá, e acolá.

Por volta das 9 horas da noite a expectativa da Missa do Galo era tão viva que a molecada na rua começava a bater com paus nos postes (então de ferro e ocos por dentro), ocasionando muito barulho, numa rudimentar imitação dos sinos das Igrejas. Estas começavam a se abrir a partir das dez horas, e logo chegavam os fiéis que desejavam obter um bom lugar para participar da cerimônia.

Aos poucos, ia se formando o público todo, e o templo sagrado se enchia. Em certo momento, o sino se punha a tocar para festejar o Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo. Todos se levantavam, cânticos natalinos eram entoados. Revestido com paramentos solenes, o sacerdote entrava portando a imagem do Divino Infante, a qual, depositada no Presépio, era venerada pelo público.

Terminada essa homenagem, o padre se dirigia para o altarmor e dava início à celebração da Missa do Galo.

A comemoração em casa

Ao voltarmos da Igreja, as crianças eram reunidas numa ou duas salas da parte da frente da casa, intensamente iluminadas. Nós, vestidos de gala, aguardávamos em meio a animadas conversas, enquanto terminavam os últimos arranjos para a festa. Afinal, quando tudo se achava pronto, nossos pais e as governantas nos vinham buscar. Era então organizada uma descida pela escadaria externa da casa, passando pelo jardim, todos de mãos dadas e cantando músicas de Natal — bem entendido, em alemão.

Em seguida, entrávamos no quarto de brinquedos, agora completamente transformado: no centro, erguia-se uma grande árvore de Natal, toda recoberta de enfeites, e em cujo topo brilhava uma estrela prateada ou dourada, ornada com uma figura de Anjo. Aos pés da árvore, um lindo e tocante Presépio.

Nos cantos do quarto estavam dispostas as mesas com toda espécie de iguarias. Mas, recomendação formal: “não comer nem beber nada antes de ter rezado para comemorar o Nascimento de Nosso Senhor”. Eu, sempre afeito às delícias do paladar, procurava ver o que haviam preparado. Não ousava me desviar do meu lugar (mamãe não o toleraria!), mas, de quando em vez, lançava furtivas olhadelas para aqueles lados…

Dando prosseguimento às comemorações, todos se ajoelhavam junto ao Presépio e Dona Lucilia recitava algumas orações, creio que compostas por ela na hora. Eram dirigidas ao Menino-Deus, a Nossa Senhora e a São Jo-sé, pedindo abundantes graças para cada um de nós e para a família inteira. Ela rezava de modo suave, com muita seriedade e piedade profunda, procurando nos incutir os mesmos sentimentos que a animavam.

Nenhuma criança se atreveria a soltar uma lamúria porque a oração se prolongava, nem ousaria se levantar para pegar alguma guloseima antes da hora. A ordem estava mantida pela simples presença de Dona Lucilia, de um modo irrepreensível. Mas, por via das dúvidas as Fräuleins vigiavam seus pupilos, e não fariam a mínima cerimônia em reprimir severamente aquele que desobedecesse.

Após a recitação das preces, todos se levantavam, davam-se novamente as mãos e se punham a cantar e a girar junto à árvore de Natal. Pouco depois era servido o lanche.

De longe chegava o som dos sinos bimbalhando. De longe, também, vinham ecos de outras casas onde igualmente se cantava e outras crianças tinham o seu Natal. Quase nenhum barulho nas ruas. Toda a festa era das famílias, nos lares, voltada para o Menino Jesus.

Mais delícias natalinas

O Natal ainda nos reservava algumas delícias. Uma delas, o repouso.

Terminadas as comemorações, os visitantes se retiravam para suas respectivas residências, e podíamos, afinal, descansar um pouco. Na casa voltava a reinar a tranqüilidade e um certo silêncio, posto que nós, meninos, juntos provocávamos uma tremenda barulheira. Agora éramos apenas minha irmã, uma prima que morava conosco, e eu.

Subia para meu quarto e, sob o ordenativo olhar da Fräulein, aprontava-me para dormir e me deitava. Uma vez na cama, pensava: “Ah! O repouso! Como é gostoso descansar! Como o travesseiro está bom, a roupa de cama fresca, a fronha aconchegante, o colchão macio!”

Mas, eu sabia que algo de melhor me esperava. Com efeito, na noite de 24 para 25 vinha São Nicolau, e deixava sobre os nossos sapatos, ou aos pés da cama, os presentes que nos eram destinados. Como já disse, aqueles mesmos que havíamos pedido. São Nicolau era muito exato…

Não será difícil imaginar como eu ficava na espreita de ver os meus novos brinquedos. Era-me muito agradável acordar de madrugada, pela expectativa, e sentir o peso dos presentes colocados junto aos meus pés. Eu dizia para mim mesmo: “Vou beber aos golinhos esta boa surpresa. Sei que acordarei várias vezes durante a noite, mas quero sentir o peso delicioso dos presentes a cada despertar, e depois adormecer de novo. Quando amanhecer, então será a hora de eu me lançar sobre os embrulhos!”

“No dia seguinte à festa de Reis a árvore era desmontada. Mais um Natal havia terminado…”

E assim, na manhã do dia 25, as alegrias natalinas se redobravam, diante dos maravilhosos presentes que tanto desejávamos.

O “enterro dos ossos” e o “Natal dos Pobres”

Também nesse dia havia o que no meu tempo se denominava “o enterro dos ossos”. Tratava-se do costume de comer o que sobrara da ceia, mas conservando uma parte importante desses restos, tendo em vista o “Natal dos pobres” celebrado no dia de Ano Bom. Então, os pacotes de alimentos que não tinham sido utilizados, o que ainda era novo e podia ser oferecido a uma criança indigente, separava-se e guardava-se para aquela ocasião, acrescidos de mais iguarias que se mandava comprar.

Na noite de 31 de dezembro procedíamos ao mesmo cerimonial de Natal, a descida da escada até a sala adornada para a ceia, etc., sob o olhar dos pobres. Estes entravam conosco na sala, acompanhavam as orações, e em seguida nós os estimulávamos a terem liberdade de se servir do lanche. Como, naturalmente, eram muito acanhados, lhes dizíamos: “Pegue isto, tome aquilo”, etc., para deixá-los à vontade.

Dessa vez, as crianças da família estavam severamente proibidas de comer mais do que os pobres. A comemoração era deles, não nossa, e por isso devíamos nos contentar com o que sobrasse. A árvore de Natal permanecia no quarto de brinquedos até a festa de Reis. No dia seguinte, acontecia o que sempre sucede com as coisas neste mundo: era o fim. A árvore era desmontada, mamãe guardava os enfeites e o Presépio.

Mais um Natal havia terminado…

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 69 – Dezembro de 2003

Reflexões do Divino Infante

Numa “palavrinha” para discípulos mais jovens, Dr. Plinio imagina como seriam as cogitações do Menino-Deus na Gruta de Belém, na noite de Natal. E nos faz admirar, especialmente, como o Verbo Encarnado possuía a suma ciência, tudo compreendia, e sobre nós se debruçava com amor, ao surgir neste mundo.

Como ponto de partida para nossa meditação sobre o Natal, consideremos o seguinte aspecto. Em geral, a iconografia católica nos apresenta o Menino Jesus com as características de uma criança recém-nascida, ainda sem o uso da razão, possuindo todas as limitações inerentes à primeira infância.

Uma criança com pleno uso da inteligência

Essa representação é justa, não encerra nada de censurável, porque o Divino Infante habitualmente se mostrava assim às pessoas com as quais tinha contato. Porém, tais ilustrações não nos propiciam a noção completa da realidade d’Ele na noite de Natal, e por isso algumas raras imagens do Menino-Deus no-Lo mostram com uma fisionomia bem diversa: séria, serena, pensativa, meditativa.

Quer dizer, apesar da exterioridade de uma criança tão terna, o Menino Jesus já possuía o pleno uso de sua inteligência, e desde o primeiro instante de seu ser, no recinto sagrado de Nossa Senhora, Ele já pensava e tinha o conhecimento de tudo.

Primeiros encantos com Nossa Senhora

Assim sendo, poderíamos nos perguntar quais seriam suas cogitações e reflexões naquela ocasião.

Antes de tudo, pensava Ele no Pai Eterno, no Espírito Santo, nos esplendores da Santíssima Trindade, da qual é a Segunda Pessoa em união hipostática com a natureza humana. Ao mesmo tempo, deveria refletir sobre Nossa Senhora, obra-prima de toda a criação. Sem dúvida, constituía para Jesus um profundo deleite considerar Maria Santíssima naquele momento, em atitude de conhecer, adorar, analisar e acariciar o próprio Filho. Alegrava-O vê-La guardar todas as coisas no seu coração, meditando-as, perscrutando nos traços fisionômicos do Menino as correlações com tudo o que Ela, pelo dom da sabedoria, aprendera nas Escrituras acerca do Messias.

Nossa Senhora estabelecia essas ligações com sumo respeito e insondável adoração para com o Divino Infante, que os recebia com verdadeiro encanto, prazer e intenso amor por sua Mãe.

Ali estava também São José, e a Santíssima Virgem já exercia sua mediação, apresentando ao Menino Jesus as orações de seu esposo, pai adotivo d’Ele. Embora não fosse o progenitor segundo a carne, tinha um autêntico direito sobre o fruto das entranhas sagradas de Maria e, portanto, sobre o Recém-nascido.

São José adorava o Menino Deus, agradecia a honra de ser seu pai e Lhe apresentava suas preces por meio de Nossa Senhora.

Vistas proféticas sobre a História

Mas o Verbo Encarnado não circunscrevia suas considerações a esse quadro radioso. Ele pensava igualmente nos anjos, nos pastores que vinham adorá-Lo, e nos Reis Magos, os quais se aproximavam de Belém e logo se prostrariam a seus pés. Além disso, podemos supor que refletia a respeito das razões que O levaram a tomar nossa natureza humana e nascer para o tempo. Esses motivos se estendiam, com vistas proféticas, ao longo de toda a História. E foi exatamente esta a meditação feita por Ele, trinta e três anos depois, no alto da cruz: durante a existência da humanidade, sofreria muitas ingratidões, mas também suscitaria incontáveis atos de adoração.

No presépio, Ele via então todos os Natais da História, até o fim do mundo, com os mais diversos modos de se prestar veneração e reconhecimento ao Filho de Deus. Contemplou, por exemplo, São Luís Rei que, maravilhado diante de uma imagem do Menino Jesus, foi o primeiro — acredita-se — a se inclinar quando entoadas as palavras do Credo: “… e se encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem”. Como considerou a todos nós que, à imitação daquele grande monarca francês, fazemos o mesmo gesto ao rezarmos essa passagem do Símbolo dos Apóstolos.

Quiçá terá antevisto os poucos ­fiéis no fim do mundo — antes de Ele retornar à Terra em sua pompa e majestade — cantando pela última vez o Credo, e se inclinando ao pronunciarem aquelas palavras.

Ponderava, enfim, todos os relacionamentos de alma dos homens com Ele e com Maria Santíssima, a propósito do Natal.

Peçamos graças para cumprirmos nossa vocação

E já no seu pobre berço, sofria ao prever a incredulidade e a impiedade se espalhando em tantos lugares da Terra, diante da apatia e indiferença de muitos que se pretendem seguidores d’Ele. Mas, por outro lado, o Menino Jesus contemplou também todas as almas católicas, zelosas da glória e do serviço de Deus, vivendo e batalhando para o triunfo da virtude, sofrendo com os pecados e as ofensas que os homens cometem contra Ele, reparando-as com penitências e espírito de ascese.

Desse modo, a mente e o coração sagrados do divino Recém-nascido, desde aquela ocasião, voltava-se para os católicos fervorosos, e implorava ao Pai Eterno, em favor deles, as forças necessárias para perseverarem no bom combate que devem travar pelo bem e pela Santa Igreja.

Então, acerquemo-nos do Presépio, e por meio de Nossa Senhora, São José, dos anjos, dos pastores e dos Reis Magos, peçamos a Jesus que aceite nosso desejo de sermos conforme seus divinos desígnios para conosco, o nosso anelo de nos unirmos às cogitações, às meditações e às considerações proféticas que fez na manjedoura, para vivermos o Natal em uníssono com Ele.

Roguemos ao Menino Jesus nos conceda o mesmo amor que Ele teve a tudo quanto hoje existe de bom sobre a face da Terra, próximo a nós, em nosso movimento, assim como ao bem que almas esparsas pelo mundo estarão realizando, por perseverarem no cumprimento da Lei de Deus, nos ensinamentos da doutrina católica apostólica romana.

“Dai-me tudo que de Vós me aproxima…”

São estas algumas das importantes intenções que devemos formular no Santo Natal, e assim implorarmos uma inteira união de alma com o Divino Infante, de maneira a que tudo quanto exista no coração d’Ele esteja no nosso; tudo quanto palpite no Imaculado Coração de Maria lateje também no nosso, e que o Natal celebrado por nós reflita exatamente o sentido de tudo quanto Jesus e Maria experimentaram naquela noite mil vezes bendita nas montanhas de Belém.

Alguém poderia lembrar: “Não posso pedir algo para mim, de caráter pessoal e material?”

Sem dúvida, é uma petição inteiramente legítima. Se tivermos as vistas postas, antes de tudo, nos bens espirituais, em nossa santificação e salvação eterna, suplicada para nós e pelos outros, é lícito que contemplemos também nossas necessidades temporais, uma vez que não comprometam em nada o interesse maior da alma.

Nesse sentido, convém nos lembrarmos da bela e concisa oração formulada por São Nicolau de Flue: “Meu Deus, dai-me tudo que de Vós me aproxima; tirai-me tudo que de Vós me afasta”. Eis um excelente pedido para apresentarmos ao Menino Jesus, a rogos de Maria Santíssima e São José.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 93 – Dezembro de 2005

Diante do Menino-Deus, a maternal admiração de Nossa Senhora

Dr. Plinio tinha o propósito de sempre, em suas conferências, palestras, reuniões, inserir em certo momento alguma referência a Nossa Senhora. E havendo oportunidade, dedicava a Ela todo o tempo da reunião, notando-se seu júbilo de alma em fazer reluzir, nos seus comentários, as excelências da Mãe de Deus. Enquanto fundador e mestre de uma família de almas, Dr. Plinio visava também, com tais reflexões, afervorar seus seguidores na devoção a Maria Santíssima, assim como alentá-los no cumprimento da vocação a que foram chamados. Exemplo disso é a meditação que a seguir transcrevemos, feita por ele numa véspera de Natal.

Nada mais oportuno, em torno do santo nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, do que considerarmos o afeto, o amor e a admiração indizíveis de Maria, a Mãe celeste, para com seu Filho único e incomparável.

Embora sabendo-se o ápice e a mais eleita de todas as meras criaturas, Nossa Senhora é também modelo de humildade, e tem pleno conhecimento da infinita distância que A separa de seu Criador. Trata-se, portanto, de uma humildade teocêntrica, isto é, mais ainda do que a sua condição limitada de ser humano, tem Ela em vista a inabarcável grandeza de Deus.

Tomando em conta essa perfeitíssima disposição de alma, é compreensível que, no sublime e augusto momento em que a Virgem Mãe trouxe ao mundo o Divino Salvador, tenha Ela, em primeiro lugar, manifestado todo o respeito, toda a admiração e toda a adoração que Ele merece. E somente num movimento posterior passasse a externar seu incomensurável amor pelo Menino Jesus. Há nisso uma ordenação lógica de sentimentos e atitudes. De fato, quando queremos muito bem a alguém, devemos começar por admirá-lo, porque a admiração é o fundamento do amor.

Ora, no caso concreto da Santíssima Virgem, tinha Ela para amar Aquele que, enquanto Homem-Deus, é o mais admirável ser da Criação, hipostaticamente unido à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. E Maria sabia, por revelação divina, que o fruto gerado em suas entranhas era Este que se encontra acima de tudo, o Verbo Encarnado. Havia, portanto, para essa admiração e esse amor, razões que excediam o fato de o Filho recém-nascido ser sumamente belo e gracioso. Então, o primeiro pensamento dEla é para Deus, no que Ele tem de magnificente: “Tão fraco, tão pequenino, entretanto o Altíssimo, na sua infinita grandeza, na sua incomensurável admirabilidade, aí está!”

Em seguida, Ela mede a profundidade dessa União Hipostática, e a glória que tal União faz derivar, a torrentes solares, sobre a natureza humana de seu Filho. Depois, começa a analisar o Menino, mas com todo o afeto de mãe: contempla aqueles olhos nos quais reluz o brilho da luz divina; toca-lhe os tenros braços, os pezinhos, e vai assim manifestando para com Jesus recém-nascido sua insondável ternura materna.

Quando qualquer mãe se enternece com seu bebê, no subconsciente dela está a seguinte reflexão: “Eis aqui um novo homem (ou uma nova mulher). Que grandeza há numa criatura humana, chamada a levar uma vida de extensa duração, a cumprir deveres graves, os deveres da paternidade, os da maternidade, mas, sobretudo, os deveres para com Deus, a ser boa filha ou bom filho da Igreja Católica, dominar as suas paixões, santificar-se e ir para o Céu por toda a eternidade! Esse como que projeto de anjo que está aqui, que coisa extraordinária! E como eu fico enternecida vendo como algo tão grande cabe em tão pouco!”

Depois, quando ela considera que aquele é seu próprio filho, ainda aí entra uma ternura muito grande, mas também uma imensa admiração: “Que mistério admirável pelo qual eu, criatura humana, gerei outra criatura humana! Que coisa misteriosa, profunda! Este menino nasceu de mim, foi alimentado por mim, formou-se no meu claustro, eu o liberei para a vida e aqui está, tão pequenino, tão minúsculo e, entretanto, para ele existir, realizou-se um vasto mistério, semeado de aspectos fascinantes”.

De um lado, o belíssimo prodígio pelo qual de um ser humano nasce novo ser humano. Mas, depois, essa outra misteriosa maravilha: o instante no qual Deus, debruçando-se sobre aquele embrião que começa a se formar, infunde nele uma alma. E lhe dá algo que a mãe não gerou, que não veio do ato nupcial, e sim da infinita bondade do Criador. Mais ainda. Por ser espiritual, essa alma confere àquele embrião uma participação na natureza dos próprios anjos. Que coisa magnífica!

Horizontes que se abrem para a nova vida

Assim, na ternura de uma mãe verdadeira, da mãe bem orientada para com seu filho, transparece a consciência que ela tem de toda essa série de mistérios que se formaram nela: a carne da carne, o sangue do sangue, um “outro eu mesmo” dela, ao qual se somou a obra divina, tão imensamente maior, soprando no novo ser uma alma imortal.

E para essa alma, que horizontes se abrem, ainda que consideremos apenas sua vida nesta terra! Horizontes de luta, de batalha, de abnegação, como também de alegria, de vitória, de momentos em que se tem a impressão de estar tocando o Céu com as mãos. Mas ainda, horizontes de tristeza, de abatimento, de desfalecimento, em que se tem de pedir a Deus graças para continuar a percorrer o caminho.

Tal reflexão faz surgir aos nossos olhos outro aspecto do nascimento de uma criança. É que, segundo a Igreja, a vida de toda criatura humana é comparável ao combate de um gladiador. Este, antes de entrar na arena, prepara-se com exercícios, fricções, óleos, etc., a fim de que toda a sua musculatura esteja em condições de enfrentar as feras ou outros lutadores. Em seguida, munindo-se de suas armas e escudo, penetra na cena da batalha. Quem, antes de ele ser chamado para a imensa contenda, o visse sentado, tranqüilo, preparado para entrar na arena, não poderia deixar de admirá-lo.

Ora, assim é uma criança que entra no mundo. Ela está no pórtico de uma imensa batalha. E seja ela menina, seja menino, poderá a mãe dizer: “Batalhador! Batalhadora! Eu te admiro porque és combatente do bom combate! Teu dever é este. Uma vez que recebas o Batismo, a graça te chamará. E a partir desse momento, começará uma vida sobrenatural em ti”.

Estes devem ser alguns dos movimentos de afeto e admiração de uma mãe em re-lação a seu filho recém-nascido.

Nossa Senhora em face do Menino Jesus

Se assim ocorre com as mães comuns, que dizer da Mãe das mães, Maria Santíssima, diante do Menino Jesus?

Sem dúvida, a alma dEla transbordava de admiração e de carinho para com seu Divino Filho. Ela tinha o conhecimento do mistério da Encarnação do Verbo, e bem sabia que aquele Ser, gerado em suas imaculadas entranhas por obra do Espírito Santo, representava a remissão do gênero humano. Ele era seu Filho, seu Deus, seu Redentor! E como tal Ela O amava e venerava na Gruta de Belém.

Só na Gruta de Belém? Evidentemente, não.

Junto ao presépio, existe já todo o desenvolvimento de uma história. Da história de ambos, Jesus e Maria. Do período que Ele passou recolhido ao lado dEla e de São José. Do tempo em que, após a morte do glorioso Patriarca, Ele prestava assistência à sua Mãe Santíssima, num sublime convívio que extasiava os Anjos. Podemos imaginar os dois, sozinhos na casa em Nazaré, à noite, após uma refeição que fora sóbria mas cheia de agrado, porque estavam juntos, olhavam-se e se queriam bem. Que indizível felicidade o estarem unidos, conversarem, trocarem pensamentos e desejos de alma!

Depois, em certas horas, enquanto Jesus executava seus trabalhos de carpinteiro, Nossa Senhora meditava no que aconteceria com Eles; vislumbrava aquele momento em que os Anjos haveriam de elevar aos ares a santa casa de Nazaré e transportá-la para um lugar chamado Loreto. E que ali, um incontável número de peregrinos, provavelmente até o fim do mundo, iria venerar as paredes sagradas onde ecoaram essas conversas; onde se ouviram os risos cândidos e cristalinos do Menino Jesus; onde se ouviu a voz grave, paterna e afetuosa de São José; onde se ouviu a voz modelada quase ao infinito como um órgão, de Nossa Senhora, exprimindo adoração, manifestando veneração, em todos os seus graus e modalidades. Em tudo isso Ela pensava.

Como pensava também nos milagres que Nosso Senhor praticaria na sua vida pública, nas almas que Ele iria conquistar, converter e salvar. Pensava em como toda essa bondade divina seria recusada pelos judeus, em como Ele teria de sofrer o esquecimento e a covardia dos Apóstolos, a traição de Judas e a morte na Cruz.

Ela pensava em Pentecostes, na dilatação da Igreja pela bacia do Mediterrâneo e por tantos lugares aonde chegariam os discípulos de seu adorável Filho.

Com vistas proféticas, Nossa Senhora considerava o reluzimento da Santa Igreja, saída vitoriosa das perseguições e brilhando sobre a face do mundo. Ela pensou na extraordinária figura de São Bento apartando-se da sociedade decadente do fim do Império Romano, fixando-se nas grutas de Subiaco e dando início, ali, a uma vida espiritual da qual nasceriam a Idade Média e a Civilização Cristã.

Mas, Nossa Senhora via também o processo de derrocada e ruína dessa Cristandade e todos os seus desdobramentos até os dias de hoje, lançando a humanidade na grave crise moral e religiosa que a Santíssima Virgem haveria de censurar em Fátima.

E por que não imaginarmos que Nossa Senhora considerou igualmente o triunfo de seu Imaculado Coração, por Ela prometido na Cova da Iria?

E essa meditação em torno do Santo Natal estende-se na consideração também da história individual de cada um dos que participam dos nossos ideais. Do caminho que a graça percorreu nas almas de todos, os altos e baixos, as correspondências e as infidelidades, as vitórias sobre si mesmo, às vezes as derrotas, e novamente a vitória e a misericórdia de Deus.

“Não me tireis os dias na metade da minha obra”

Tudo isso nós devemos considerar quando estivermos ante o presépio. E ao nos aproximarmos para venerar a maternal e enlevada figura da Santíssima Virgem, a respeitosa e protetora figura de São José, e, sobretudo, a imagem dAquele que é, segundo a Escritura, a pedra de escândalo que divide a História ao meio — e tudo quanto está com Ele é bom, tudo quanto é contra Ele é mau — façamos esta prece:

Eis-me aqui, Senhor Jesus Cristo, ajoelhado a vossos pés, antes de tudo para Vos agradecer.

Agradeço a vida que me destes. Agradeço o plano eterno que tínheis a respeito de mim, como de qualquer homem, um plano determinado e individual. Agradeço-Vos por terdes posto uma luta no meu caminho. Agradeço-Vos a força que me destes para resistir, para combater e para rezar.

Grato Vos sou por tudo isso, Senhor. Porém, há mais. Agradeço-Vos todos os anos de minha vida que já se foram e que se tenham passado na vossa graça. Agradeço-Vos também os anos que se foram e que não se passaram em vossa graça, porque Vós os encerrastes num determinado momento, e eu abandonei o caminho da desgraça, para entrar novamente na vossa graça.

Agradeço-Vos, ó Divino Infante, ó Menino Jesus, pelas mãos de Maria Santíssima e de São José, agradeço-Vos o momento em que eu disse “sim” ao vosso chamado e comecei a travar o bom combate por Vós.

Agradeço-Vos todo o auxílio que me destes para eu vencer os meus defeitos. Agradeço-Vos por não Vos terdes impacientado comigo, e por haverdes me conservado vivo para que eu ainda tivesse tempo de corrigi-los.

E se uma prece eu Vos posso fazer nesta noite de Natal, Senhor Jesus, formulá-la-ei inspirado nas palavras do Salmista, que Vos disse: Não me chames na metade dos meus dias (Sal. 101). E eu Vos digo: Não me tireis os dias na metade da minha obra, e ajudai-me para que meus olhos não se cerrem pela morte, meus músculos não percam seu vigor, minha alma não fique privada de sua força e sua agilidade, antes que eu tenha, por vosso louvor, em mim vencido todos os meus defeitos, galgado todas as alturas interiores às quais me destinastes, e que no vosso campo de batalha tenha eu, por feitos heroicos, prestado a Vós toda a glória que esperáveis de mim quando me criastes. Assim seja.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr. Plinio 09 – Dezembro de 1998

Uma meditação para o homem de hoje

Numa conferência para jovens, no tempo de Natal, Dr. Plinio fez duas meditações, de tipos diferentes, a fim de verificar qual delas mais tocava o coração de seus ouvintes. A primeira, seguindo o método de Santo Inácio de Loyola, com pouco apelo ao sentimento. Improvisou em seguida a outra, com pensamentos formulados mais de acordo com as novas gerações. Transcrevemos aqui o cerne da segunda meditação.

A bordo agora o tema por um prisma inteiramente diferente do da escola de Santo Inácio de Loyola. Isso servirá para verificar que tipo de meditação mais toca a geração dos que estão aqui.

Fundo de quadro

Imaginem-se vendo chegar os Reis Magos com suas caravanas, os animais carregados de tesouros, a estrela, etc., e esses Reis oferecendo ao Menino Jesus, em atitude de adoração, ouro, incenso e mirra.

Retendo na imaginação tal fundo de quadro, qual das cenas que vou descrever causaria a cada um dos que aqui estão mais alegria de alma? Por qual delas sentir-se-iam mais próximos do Menino Jesus?

N’Ele poderíamos considerar, entre outros aspectos, a infinita grandeza, de um lado; a infinita acessibilidade, de outro lado; e também sua infinita compaixão.

Grandeza do Menino Jesus e de Nossa Senhora

Ao considerar a infinita grandeza, podemos imaginar uma gruta alta, grande quase como uma catedral, que não tivesse evidentemente uma arquitetura definida, mas onde o movimento das pedras nos fizesse pressentir vagamente as ogivas de uma catedral da futura Idade Média.

Podemos imaginar ainda a lapa onde ficava o berço do Menino colocada num ponto majestoso da encruzilhada dessas várias naves laterais naturais, com uma luz celeste, toda de ouro, pairando  sobre Ele naquele momento.

O Menino Jesus, com majestade de verdadeiro rei, embora deitado em seu presépio e sendo ainda uma criança. Ele, rei de toda majestade e de toda glória. O criador do Céu e da terra, Deus  encarnado feito homem. Ele, desde o primeiro instante de seu ser — portanto já no claustro materno de Nossa Senhora —, tendo mais majestade, mais grandeza, mais manifestações de força e de  poder que todos os homens que existiram e existirão na terra.

Ele, incomparavelmente mais inteligente do que São Tomás de Aquino, mais poderoso do que Carlos Magno, Napoleão ou Alexandre. Ele, conhecedor de todas as coisas, sabendo  incomparavelmente mais do que qualquer cientista moderno. Ele, manifestando na fisionomia sempre variável essa majestade feita de sabedoria, de santidade, de ciência e de poder.

Imaginem-se, portanto, encontrando isso misteriosamente expresso na fisionomia desse Menino. Ele às vezes movendo-se, e no movimento aparecendo o seu lado de Rei. Abrindo os olhos, e no olhar aparecendo um fulgor de tal profundidade que fizesse ver n’Ele um grande sábio.

Estando rodeado por uma atmosfera tal que nimbasse de santidade todos os que d’Ele se acercassem. Uma atmosfera de pureza tal que as pessoas não se aproximassem sem antes pedir perdão por seus pecados, mas ao mesmo tempo se sentissem atraídas a se corrigirem, pela santidade que emanava do local.

Imaginem ali, ainda, Nossa Senhora aos pés do Menino Jesus, também Ela como verdadeira Rainha, com uma dignidade e imponência tais, que não precisava nem de roupas nobres nem de  tecidos de qualidade para se fazer valer.

Conta-se de Santa Teresinha que ela era tão imponente, que o pai a chamava “minha pequena rainha”. O jardineiro do carmelo contou, no processo de canonização, que viu certa vez uma freira, de costas, fazer alguma coisa, e essa freira era Santa Teresinha. O “advogado do diabo” então perguntou: “Como é que, vendo-a de costas, o senhor sabia que ela era Santa Teresinha?” Ele respondeu: “Pela majestade dela. Ninguém tinha a mesma majestade”.

Se assim foi Santa Teresinha, o que seria Nossa Senhora? Imaginem, portanto, Nossa Senhora majestosíssima, transcendente, puríssima, rezando ao Menino Jesus. E os anjos, invisíveis, cantando hinos de glorificação, com toda a atmosfera reinante saturada de valores tais que se diria haver naquela pobreza e naquela miséria uma atmosfera de corte.

Imaginem-se aproximando e sentindo a grandeza do Menino-Deus, e adorando-O pelos seus aspectos nobres, belos, santos, intransigentes e combativos. Adorando esse Menino que atrai para junto de si todas as formas de grandeza, todas as formas de pureza, todas as formas de santidade que d’Ele dimanam, e que não são senão participação  da santidade d’Ele; e que, ao mesmo tempo, rechaçando para longe de si o pecado, o erro, a desordem, o caos, a Revolução¹, deixa-os no chão, de longe, sem nem sequer ousar levantar os olhos para aquela cena magnífica em que a ordem, a hierarquia, a pompa e o esplendor dominam completamente.

Enorme acessibilidade

Imaginemos, agora, o Menino Jesus imensamente acessível. Esse Rei tão cheio de majestade em certo momento abre para nós os olhos. Notamos que seu olhar puríssimo, inteligentíssimo, lucidíssimo, penetra em nossos olhos até o mais fundo. Vê o mais fundo de nossos defeitos, como também o melhor de nossas qualidades, e toca nesse momento a nossa alma, como tocou, 33 anos depois, a de São Pedro.

Conta-nos o Evangelho que o olhar de Nosso Senhor para São Pedro foi tal que este saiu e chorou amargamente. Chorou a vida inteira. E esse olhar provoca em nós uma tristeza profunda por  nossos pecados. Dá-nos horror aos nossos defeitos.

Mas também, penetrando em nós, mostra-nos seu amor não só às nossas qualidades, mas também à condição de criaturas feitas por Ele. Um amor a nós, apesar de nossos defeitos, por sermos destinados a um grau de santidade e de perfeição que Ele conhece e ama enquanto podendo existir em nós.

E, quando o pecador menos espera, por um rogo amável de Nossa Senhora, o Menino sorri. E com esse sorriso, apesar de toda a sua majestade, sentimos as distâncias desaparecerem, o perdão  invadir nossa alma, uma qualquer coisa nos atrair. E, assim atraídos, caminhamos para junto d’Ele. Ele afetuosamente nos abraça e pronuncia nosso nome. — Fulano! Eu te quis tanto e te quero tanto! Desejo para ti tantas coisas e perdoo-te tantas outras. Não penses mais nos teus pecados! Pensa apenas, daqui por diante, em servir-Me. E em todas as ocasiões de tua vida, quando tiveres alguma dúvida, lembra-te desta condescendência, desta amabilidade, deste beneplácito que agora te faço, e recorre a Mim por meio de minha Mãe, que atender-te-ei. Serei teu amparo e tua força,  e esse amparo e essa força hão de te levar ao Céu para ali reinar ao meu lado por toda a Eternidade.

Essa seria, portanto, a meditação enfocada pelo prisma da acessibilidade do Menino Jesus.

Infinita compaixão para com todos os homens

Imaginem, agora, a misericórdia do Menino Jesus, não só enquanto visando ao nosso bem e ao que há em nós de bom e de mau, mas olhando para a condição miserável de todo homem na terra.

Olhando, portanto, para nossa tristeza, para o sofrimento que cada um traz em si, passado, presente e futuro, que Ele já conhece porque é Deus. Olhando, inclusive, para o risco que nossa alma corre de ir para o Inferno. Pois o homem, enquanto está  na terra, arrisca-se a se condenar.

Imaginem, ainda, o Menino Jesus olhando o Purgatório e os tormentos que ali nos aguardam se não formos inteiramente fiéis. Brota n’Ele, então, um olhar de pena, de participação profunda na nossa dor, um desejo de remover esta dor em toda a medida que for possível para nossa santificação um desejo de nos dar forças para suportar essa dor na medida em que ela for necessária para nos santificarmos.

Notamos n’Ele, então, aquilo que tanto consola o homem, e que Ele não encontrou quando chegou sua hora de sofrer: a compaixão perfeita. Está na natureza humana — e é uma coisa reta — de se consolar na hora do sofrimento pelo fato de ter alguém que nos tenha pena. A pena divide o sofrimento. O homem é feito de tal maneira que, quando ele está alegre e comunica sua alegria, ele dobra essa alegria; quando está triste e comunica sua tristeza, divide essa tristeza. “A fortiori” somos nós assim em relação ao Menino Jesus, ao encontrarmos n’Ele a compaixão perfeita.

Em todos os sofrimentos de nossa vida, portanto, quando a taça a beber for muito amarga, devemos repetir por meio de Nossa Senhora a oração d’Ele: “Meu Pai, se for possível, afaste-se de mim este cálice; mas faça-se a vossa vontade e não a minha”. Quer dizer, em todos os momentos pediríamos que a dor passasse; mas se fosse da vontade d’Ele que ela viesse sobre nós, teríamos certeza de que durante a dor encontraríamos a dor compassível d’Ele: “Meu filho, Eu sofro contigo! Soframos juntos, porque Eu sofri por ti. Há de chegar o momento em que tu participarás eternamente  de minha alegria”. E nós podemos ter a certeza de que o olhar compassível de Jesus não nos abandonará um momento sequer de nossa existência.

Ao longo das vicissitudes da existência quotidiana deveríamos reter esta tríplice lembrança: a da majestade infinita, a da acessibilidade infinita, e a da compaixão sem limites do Menino Jesus em  relação a nós. E esta deveria ser uma lembrança sensível, pois procuraríamos compor em nossa imaginação o quadro tal qual ele nos toca.

Uma objeção

Uma objeção que se poderia fazer é que o presépio não pode conter ao mesmo tempo esses três aspectos. Não é verdade. Em Nosso Senhor, enquanto natureza humana, as perfeições, os estados de alma, também todos eles perfeitos, existiam em graus diversos ao mesmo tempo, conforme as circunstâncias de sua vida. Existiam, e Ele foi cheio de majestade, de acessibilidade, de exorabilidade, de compaixão para com os homens desde o momento em que veio à terra. É natural que, apesar de Menino, conforme as almas que d’Ele se acercassem, ora aparecesse um aspecto, ora outro.

Escola de pintura especializada nos olhares

Seria muito bonito se numa igreja, em vez de um só, houvesse três presépios em três altares diferentes, nos quais as figuras e toda a ambientação representassem cada um desses aspectos,  facilitando assim a cada alma a meditação que mais lhe tocasse.

Como eu gostaria de ter entre nós pintores ou desenhistas que soubessem, por exemplo, pintar três presépios de acordo com essa concepção! Ou seja, presépio ostentando toda a grandeza, ou toda a acessibilidade, ou toda a compaixão de Nosso Senhor. Como Seria bonito!

O difícil seria pintar aquilo que é o centro do presépio: um Menino recém-nascido que, sem perder as características  de Menino, tivesse tudo isso. E tivesse sobretudo um olhar. Como pintar um olhar infantil capaz de exprimir  tais coisas? Antes de pintor, esse artista deveria ser psicólogo, para primeiro imaginar esse olhar, e depois  pintá-lo.

Se alguém se sente propenso a pintar olhares, esse seria o pintor que iniciaria a nossa escola. Tenho a impressão de que, no pintar expressão de olhar, nossa escola estaria largamente  representada.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 57 – Dezembro de 2002