Natal

Após Dona Lucilia anunciar que a festa de Natal ia começar, todos — umas vinte crianças — dávamo-nos as mãos e começávamos a entoar o “Stille Nacht”. Íamos, então, levando o presépio com o Menino Jesus, desde a saleta onde estávamos até a sala dos brinquedos, na qual havia uma árvore de Natal.

Ali cantávamos canções de Natal, girando em torno da árvore, mas já sentindo o cheiro do chocolate com o qual se iam enchendo as xícaras, acompanhado de creme “chantilly”; e o odor do pinheiro um pouco queimado por algumas velas, que deitava um perfume de resina especial.

Havia uma alegria cândida, pura, eu ousaria dizer virginal, que não era perturbada por qualquer intemperança. Nenhuma criança fazia uma travessura, uma peraltagem, todas brincavam entre si com a maior calma, dentro daquela paz que parecia sair das imagens de Nossa Senhora e do Menino Jesus que estavam no presépio, e se difundia por toda a sala.

Essa alegria proporcionava uma coisa que eu não sei exprimir. Mas era a ideia do “Puer natus est nobis” — Foi-nos dado um Menino —, e uma grande alegria tinha nascido no Céu. O Menino era Jesus. E ali se realizava algo de único, como que a repetição do Natal; parecia-nos estar vivendo as graças do Natal.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/12/1976)

Noite santa, Silenciosa…

Ao longo dos séculos da história cristã, as noites de Natal têm recordado aos homens e lhes feito compartilhar as bênçãos inefáveis do augusto momento em que o Redentor nasceu para o mundo. Sobretudo antes das festas laicas e comercializadas de hoje, as celebrações natalinas possuíam um néctar, uma poesia, um encanto, um discernimento de espírito por onde todos como que sentiam e conheciam a graça de Deus e de Cristo que desce como um orvalho do mais alto do céu, ou seja, do claustro sacratíssimo de Nossa Senhora, e sem transgredir a virgindade intacta da mãe, entra nesta terra. A Virgem teve um filho e a humanidade se extasia!

Dir-se-ia revestido de completa beleza o cenário dessa noite na Terra Santa, iluminada por estrelas reluzentes como nunca, povoada de Anjos que anunciam o nascimento do Salvador. Entretanto, como lucra em formosura o Natal, quando considerado nas manifestações de piedade e de inocência com que o festejam os povos germânicos! Imagine-se a igrejinha, a paroquiazinha toda coberta de neve, com o relógio iluminado por dentro, indicando 10 para a meia-noite; os aldeões que se aproximam com os tamancões grandes, porque a neve enche o caminho, e ainda cai aos flocos. A igreja, bem aquecida, acolhe generosamente os seus fiéis que entram depressa e logo se acomodam naquele pequeno palácio do Menino-Deus.

Ao longe, as casinhas da aldeia espargem cintilações douradas através de suas janelas, pontilhando de luz o imenso manto de neve com que se veste a natureza. Das chaminés escapam tufos de fumaça: é a festa de Natal que já está preparada, a lareira acesa, as suculentas, atraentes e substanciosas delícias da culinária alemã postas no forno, os presentes junto à esplendorosa árvore montada na sala principal, enfim, tudo pronto para as santas alegrias que se seguem à jubilosa celebração litúrgica.

Esses vários aspectos constituem, dentro da inocência da neve, um quadro só, completado pelos sentimentos da canção natalina por excelência, o “Stille Nacht”.

“Stille Nacht! Heilige Nacht!Alles schläft, einsam wacht Nur das traute hoch heilige Paar. Holder Knabe im lockigen Haar, Schlaf in himmlischer Ruh!”

Noite silenciosa, noite Santa! Tudo dorme. Solitário, está velando O nobre e altamente santo Casal. E o Menino de cabelos cacheados, Dorme em celestial tranqüilidade!

Composta no século XIX por um modesto professor austríaco, o mundo inteiro a adotou como a música do Natal. E desde então não se compreende um 25 de dezembro em que não se entoe, nos mais diversos países e nos mais diferentes idiomas, o “Stille Nacht” é o nosso “Noite Feliz”…

Por movimentos aos quais não é alheia a mão da Providência, o consenso popular soube compreender o significado mais profundo desta canção, e daí a indiscutível primazia dela sobre as demais melodias natalinas. Que significado?

No “Stille Nacht” existe em alto grau a ideia de que os Céus se abriram, e o Menino Jesus fez um percurso gigantesco para chegar até nós. Portanto, por trás da ideia da Encarnação, e como elemento necessário para se situar inteiramente a posição do homem em face do nascimento do Verbo, está a noção de um acontecimento fabuloso, desmedido, imenso, que se deu e se converteu em intimidade e amor. E, por causa disso, em ternura, o tempo inteiro maravilhada.

É a ternura diante das fragilidades de um Deus feito homem, diante das quais nós não temos nem sabemos o que dizer. De outro lado, porém, esse mesmo Deus é o Senhor do Universo, onipotente, eterno Juiz de toda a Criação. Portanto, num sublime paradoxo, é a ternura e a compaixão para quem é infinitamente mais do que nós, extremamente delicadas, envoltas num alto critério de sentimento para serem dignas de se apresentarem Àquele que de fato merece essa compaixão, mas que é Deus. Então é a piedade humana ao mesmo tempo admirativa e súplice, é o homem que tem pena fazendo um pedido ao Deus de quem tem pena… Outro paradoxo, outra grandiosa beleza!

Paradoxos e contrastes que despertam em nossas almas toda sorte de delicadeza de emoções. Ao lado da ternura e da compaixão, a reverência, a veneração, a submissão de todo o nosso ser ao Divino recém-nascido, e um deixar-se levar a subidas cogitações às quais esse acontecimento entre todos bendito nos convida. Além disso, a noção recolhida, humilde e enlevada do sublime, e um imenso agradecimento de quem recebe uma misericórdia sem limites, por nos sentirmos visitados e impregnados por todas as graças que Ele trouxe ao mundo, para a nossa salvação.

A todas essas boas disposições nos inclina a melodia do “Stille Nacht”, cujas notas e inflexões têm isso de próprio, que fazem um comentário do sentido da palavra cantada. Então, nos tons mais baixos, é a ternura vigilante que se debruça sobre a manjedoura, velando para que nada toque no Menino, que nada O moleste. Ele está chorando, mas a Mãe o consola… E com que incomparável desvelo!

Em outros momentos, porém, nas notas mais agudas, novamente ressalta a ideia de que este Menino de cabelos cacheados, é Deus. O Menino dorme. E a sua tranqüilidade, assim como Ele, não é da terra. É do Céu…

Plinio Corrêa de Oliveira

Diante do Presépio

“Deus, ei-Lo exorável e ao nosso alcance, feito homem como nós, tendo junto de Si a Mãe perfeita, Mãe d’Ele mas também nossa, …e São José, o varão sublime, que reúne em si a maravilhosa antítese das mais diferentes qualidades.

Ao contemplá-Los, nossas almas crispadas se distendem. Nossos egoísmos se desarmam.

A paz penetra em nós e em torno de nós…”

Plinio Corrêa de Oliveira

Como seria a música de Natal perfeita?

Esse assunto, sobre o qual me perguntam, é uma matéria abundante, com o inconveniente de que versa sobre um tema do qual não entendo muito, que é a música. Mas enfim, de algo eu posso tratar.

Um canto que considerasse a vida de Nosso Senhor

Primeiro, a respeito do que seria a música de Natal perfeita. Há uma porção de hipóteses que se entrecruzam nisso, e depois uma série de feitios de espírito que se colocam diante disso. Por exemplo: a mim pessoalmente me agradaria uma música de Natal que considerasse o mistério do Menino Jesus que se encarnou, e apareceu entre nós… O que todos sabem. E que se relacionaria, entretanto, com o futuro do Menino Jesus; de maneira que dissesse alguma coisa a respeito dos trinta e três anos de vida de Nosso Senhor. Porque o nascimento, por mais sublime que seja, é apenas o começo. E quem considera o começo de uma estrada, volta os olhos para a extensão da estrada que se desenrola a partir daquele início.

E, portanto, eu gostaria de uma música de Natal que, em determinado momento, desenvolvesse algo — um pouco que fosse — sobre os trinta anos de vida oculta, contemplativa, d’Ele com Nossa Senhora. Depois a dor da despedida, a vida pública, a Paixão, a Morte, a Ressurreição e a glória no Céu! Terminando, por exemplo, com este pensamento: “Se os anjos cantaram ‘glória a Deus no mais alto dos Céus e paz na Terra aos homens de boa vontade’, o Homem de boa vontade por excelência foi Ele, o Homem-Deus!” Ninguém teve a boa vontade que Ele teve, em nenhum sentido, nem de longe, nem comparado com nada. E então a glória d’Ele também é superior a de qualquer outro. Quando cantaram “glória a Deus no mais alto dos Céus”, os anjos louvaram a Jesus enquanto Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. E quando entoaram “paz na Terra aos homens de boa vontade”, glorificaram a Ele enquanto trazendo para a Terra a possibilidade da verdadeira ordem; e, com essa verdadeira ordem, a verdadeira paz.

Depois, a luta d’Ele em sua vida pública e a Ascensão ao Céu, porque Ele era o Homem de boa vontade por excelência, que realizou tudo o que tinha de realizar e recebeu uma glória incomparável no Céu. Essa seria uma ideia que muito me compraz.

Mas especialmente me agradaria focalizar o caráter militante da Igreja. Seria, portanto, uma música muito mais longa do que simplesmente o “Stille Nacht”, quase um canto épico. E não seria dirigida somente para as crianças. O Natal é, a titulo especial, uma festa de criança, mas ela é uma festa para todo mundo. Nosso Senhor chegou até a idade madura, trinta e três anos. E, portanto, o normal é que essa festa seja para todas as idades.

Canções para diversos estados de alma

Eu também imaginaria de bom grado canções de Natal para diversos estados de alma. Para a alma inocente, mas que se sente imersa neste mundo e dentro da luta para manter a virtude, que tem receio de ver a sua inocência comprometida, agradece a Deus a inocência que tem e pede que essa inocência seja de aço e que dure até o fim.

Depois, o cântico de Natal da alma penitente. Há duas espécies de penitentes.

O penitente arrependido, humilde, de cabeça baixa, que se acerca da manjedoura e canta a São José e a Nossa Senhora. A São José, pedindo que ele obtenha da Santíssima Virgem um olhar de compaixão. Nossa Senhora atende ao pedido, e o recebe ultra maternalmente. Ele então pede a mediação d’Ela para chegar até o Menino Jesus.

Ele se sente indigno de entrar na gruta, e canta do lado de fora, dizendo:
“Até o boi e o burro, com seus bafos, são dignos de ficar aí dentro, porque estão na ordem de Deus. Mas eu sou um pecador, que rompeu em determinado momento essa ordem; e não sou digno de me aproximar. Aonde os animais entram, eu não entro! Mas se Vós, minha Mãe, me cobrirdes com o vosso manto, eu ouso tudo!”

Ela o cobre, e ele, sob o manto da Santíssima Virgem, recita um “Confiteor”. E recebe do Menino Jesus um gesto, que pode ser interpretado como o gesto instintivo de uma criança, mas tem o sentido de um perdão. E ele se retira agradecido.

Depois podia haver a canção de Natal do pecador atolado no pecado, que gostaria de sair do pecado, mas que não quer querer. Mas ao menos chega ali e, de fora, canta pedindo a Nossa Senhora que lhe mande um mensageiro, que leve a Ela uma súplica dele. Aproxima-se um passarinho, e o pecador põe uma mensagem em seu bico.

A súplica é entregue, e nesta ele diz que não é como o pecador anterior, que rompeu com a Lei de Deus, mas depois rompeu com o pecado; e, quando entrou na gruta já estava reconciliado com o Criador. Mas ele não é nem o pecador arrependido, nem o boi, nem o burro: é a serpente. Ele está em pecado mortal! E, carregado de pecados, tem tristeza e ao mesmo tempo, esperança! E pede a Nossa Senhora, de longe, que Ela remova as montanhas internas do pecado na sua alma, e faça dele um homem que afinal se arrependa e se entregue a uma vida de penitência.

Ele é o primeiro dos visitantes para quem o Menino Jesus, quando o pecador se aproxima da Santíssima Virgem, sorri e abre os braços. O pecador pede perdão e, contrito e perdoado, sai da gruta de Belém.

Seria algo muito adequado para os vários estados de alma, que daria ânimo aos mais miseráveis como aos mais fortes.

Poderíamos imaginar também o Natal do guerreiro, do combatente. O Natal do cruzado aos pés do muro de Jerusalém. O Natal do cruzado do século XX.

Isso é uma ideia apenas esboçada, porque nunca aprofundei esse pensamento. Essa seria uma canção de Natal, a meu ver, perfeita.

O ”aroma” da graça de Natal na São Paulinho

A tudo isso eu acrescento uma coisa que me parece decisiva, como elemento dentro do assunto. Os Natais de outrora tinham uma sacralidade muito maior que dos dias atuais. No meu tempo de moço, dois, três dias que precediam o Natal, já um certo aroma, uma certa atmosfera natalina começava a envolver a São Paulinho. E alguns homens importantes tomavam na rua um ar de quem não percebia isso, e que estavam preocupados com outras coisas. Mas tinham o cuidado de não contundir, porque seria fazer saltar uma bomba!

E o centro velho de São Paulo, formado pelas Ruas Libero Badaró, XV de Novembro e Direita, depois aquele conjunto de ruas em torno e dentro desse triângulo, era assim: apareciam mais as casas que vendiam brinquedos e tinham na vitrine um presépio. Possuíam também — como se dizia naquele tempo — gramofones, que tocavam músicas de Natal. Andava-se a pé, por exemplo, na Rua Direita, e de ponta a ponta ouviam-se músicas de Natal, em estágios diferentes de andamento.

Mas quando chegava a noite de Natal, e as famílias todas — numa hora em que costumavam estar dormindo — começavam a ir em grupos para a igreja, devagarzinho e na paz, as ruas ficavam vazias de qualquer gente que não fosse caminhando para o templo. E de dentro da igreja saía uma luz forte, que iluminava a rua cada vez que se abria a porta; começam a cantar etc. E depois batia o sino e iniciava a Missa, com o cântico de Natal…

Tinha-se a sensação de uma graça que vinha de uma altura incomensurável, e era de uma qualidade tal que enchia a pessoa de duas disposições de espírito, as quais parecem incompatíveis, mas convivem maravilhosamente: a noção recolhida, humilde e enlevada do sublime; e de outro lado a doçura de quem recebe uma misericórdia sem limites.

Devo dizer que a “organizadora” das nossas festas de Natal era Dona Lucilia. Mas somente muito tempo depois dessas festas natalinas, dei-me conta de que eu gostava dessas comemorações porque o espírito dela as animava. Eu talvez de nada da minha infância tenha tantas saudades quanto desse “aroma” da graça de Natal.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/1/1989)

O Menino-Deus e sua Mãe

Quais seriam os pensamentos do Menino Jesus recém-nascido, reclinado no presépio?

Evidentemente, Ele pensava nos esplendores da Santíssima Trindade, dos quais a Segunda Pessoa participa em estado de união hipostática com a sua Humanidade. E deveria cogitar também em Nossa Senhora, a obra-prima de toda a criação, sua Mãe, a qual Ele tanto amava e se extasiava em considerar e acariciar.

Naturalmente, o Divino Infante se deleitava em ver a Santíssima Virgem conhecendo-O sensivelmente e adorando-O. Ela guardava em seu Coração todas essas coisas e as meditava, procurando pelos traços fisionômicos d’Ele fazer a ligação de tudo quanto sabia por sabedoria, interpretação da Escritura e revelação a respeito do Redentor.

E o Menino Jesus recebia essa adoração com verdadeiro encanto e prazer, ao mesmo tempo em que amava intensamente Nossa Senhora.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/12/1974)

Alegria e dor junto ao Presépio

O cântico de Natal por excelência, o Stille Nacht, expressa em si o equilíbrio das almas santas na junção entre a alegria e a dor. Não seria esta a própria canção de Maria Santíssima a seu Divino Filho?

 

Nas vésperas da noite de Natal, da “Stille Nacht, heilige Nacht” – a noite de graça por excelência –, que meditação me vem ao espírito?

Os acontecimentos que nos circundam são tão tumultuosos, tudo quanto nos cerca é tão premente, meditamos de dentro de uma luta tão forte, que não é possível que as marcas de tormento, de sangue e de lágrimas não repercutam em nossa meditação. É desta maneira que apresento o que está em meu espírito.

Plano metafísico de Deus a respeito da Encarnação

Segundo uma corrente de teólogos, Nosso Senhor Jesus Cristo ter-Se-ia encarnado e vindo ao mundo ainda que não tivesse havido o pecado original e, com este, a necessidade da Redenção.

Por que teria Ele vindo ao mundo se o gênero humano não precisasse ser redimido? Por causa de um plano metafísico de Deus, de uma beleza incomparável, sem o qual creio que as festas do Santo Natal não podem ser adequadamente compreendidas e aquilatadas.

A ideia de que o Verbo de Deus Se faria carne e habitaria entre nós e que haveria de ser um Homem com plena natureza humana, unido por união hipostática à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, este plano divino existia em virtude do princípio metafísico da “reductio ad unum”.

Tendo Deus criado os homens, não era necessária a Encarnação, mas convinha, era excelente que o Filho de Deus se fizesse Homem. Por quê? Por causa de uma excelência que aos Anjos não foi dada, e sim aos homens, inferiores aos espíritos angélicos.

Explico-me. Quando existe uma pluralidade de seres congêneres, há a conveniência de que haja um ser mais excelente do que todos, o qual reúna em si em alto grau todas as qualidades que nenhum daqueles seres plurais possui individualmente.

Exemplificando o princípio da “reductio ad unum”

Imaginem uma praia de onde alguém tomasse um punhado de areia com grãos prateados e brilhantes como se fossem pequenas estrelas, e utilizando um microscópio potentíssimo fosse contemplando grão por grão. Essa pessoa veria que cada grão é diverso dos outros e tem, por algum lado, uma excelência própria.

Qual seria a operação do espírito humano analítico, inteligente, capaz de se encantar com a beleza própria de cada grão, como quem vê um só? Ele tenderia a formar uma imagem una e se perguntaria como seria um grão ideal, que tivesse uma beleza plena. Este é o princípio da “reductio ad unum”.

Os grãos de areia são de um mesmo gênero, mas plurais. São milhões numa praia. Como seres plurais que são, cada um deles tem um dos aspectos de beleza de que o gênero “grão de areia” é capaz. Assim, depois de percorrer todos esses aspectos como quem lê as letras que formam palavras das quais nasce um livro, a alma humana, por ser una, pede uma figura também una e se pergunta, necessariamente, como seria o super-grão, o arqui-grão, o grão perfeito que contivesse magnificamente todos os outros.

Poderíamos supor a existência de um homem que quando menino tivesse começado a analisar grãos de areia e ao chegar à senectude, quando a sua vista cansada já não pudesse mais ver novos grãos, começaria a excogitar, com o poder de sua inteligência alcandorada pela vida, como seria o arqui-grão. Então realizaria a obra de arte de sua vida, deixando o grão arquetípico desenhado ou pintado num papel, evidentemente em dimensões maiores que a original, mas tão reduzidas quanto ele pudesse representá-lo, porque o homem não é capaz de acumular tantas perfeições em tão pequena superfície. Pode-se compreender que, no momento em que ele tivesse acabado de pintar o arqui-grão, de sua mão envelhecida caísse o pincel e ele morresse cantando o “Gloria in excelsis Deo” – Glória no mais alto dos Céus a Deus, e paz na Terra aos homens de boa vontade. “O arqui-grão eu concebi, a minha mente o desenhou!” Compreende-se que essa seria uma linda vida.

Alguém diria: “Vida de poeta!” Outros pensariam: “Vida de artista!” Nós afirmaríamos: “Vida de teólogo!” Mais ainda, diríamos: “Vida de um homem cheio do espírito do Reino de Maria!” Porque aqui está o espírito do Reino de Maria: assomar a pluralidade das belezas de um mesmo gênero e procurar reduzi-las a um só arqui-modelo que supere em qualidade tudo aquilo que ele sintetiza, e que ao mesmo tempo se veja representado e multiplicado ao infinito por aquilo tudo em que ele se reflete.

Isso nós vemos também no céu. Quando contemplamos todas as estrelas do firmamento, pensamos numa arqui-estrela. E tão misericordioso foi Deus, que não tendo querido criar a arqui-estrela, por desígnio de sua infinita Sabedoria, deu-nos uma ilusão de que essa arqui-estrela existe: o Sol e a Lua. Mas, ao mesmo tempo, Ele nos deu a ciência de que essa arqui-estrela não existe, porque com o telescópio vemos o Sol e sabemos que, embora ele nos pareça tão grande, é uma bolinha perdida nessa quantidade infinita de sóis existente no Universo.

Então, ao mesmo tempo em que Deus nos mostrou uma grandeza que, à primeira vista, não tem “unum” no céu, implantou ali, entretanto, a ilusão desse “unum” na Lua. Ao vê-la, nós sossegamos dizendo: “Ó Lua, tu és verdadeiramente rainha!” Contudo, enquanto a nossa sensibilidade aclama a Lua como rainha, a inteligência glorifica a Deus dizendo: “Não! Há algo de muito maior, de muito mais belo. Como a Lua é pequena! Ela não é senão uma insignificante representação da Mãe do Criador. E se esta é a Lua, como é Aquele que Se faz simbolizar no Sol?”

Tendo, pois, considerado a operação da “reductio ad unum”, pela qual o meu espírito caminhou, desde a minha juventude, com passo fiel, mas incerto durante tantos anos até conseguir encontrar a pista que nesse momento estou apontando, passarei a apresentar algumas aplicações correntes dessa ideia.

Reversibilidade própria ao Reino de Maria

Há poesias que declamam a beleza da flor. O que é essa flor em abstrato que tantos poetas cantam? Eles não percebem, porque os poetas muitas vezes não sabem Filosofia…

Aliás – abro aqui um parêntese –, o mal dos poetas é que não sabem Filosofia; e o mal dos filósofos é não saberem poesia. Eles mesmos não têm espírito voltado para a “reductio ad unum”. Se os filósofos fossem poetas de grande alma, não parariam sem ter sondado pelo sentimento a beleza do pensamento que tiveram. E se fossem filósofos de corpo inteiro, não descansariam sem ter expressado a beleza que seu pensamento concebeu, mas não sentiu. É nessa reversibilidade que a alma, sobretudo no Reino de Maria, se encontrará plena; assim as nossas almas devem ser.

Pois bem, o poeta canta, sem perceber, uma flor metafísica, ideal, que teria as qualidades de todas as flores: “flos florum” – a flor das flores, perfeita –, que encontra no miosótis, na rosa, em quantas outras flores a expressão suprema de sua beleza. Esta também não existe no reino das flores, mas é a poesia que a cria, é o homem que a imagina.

Encontramo-nos, portanto, nesta situação: para determinados seres Deus cria um padrão perfeito, onde se vê o arquétipo. Para outros Ele cria um imenso e esplendoroso farelo de maravilhas, mas não cria o padrão perfeito.

Deus quis que houvesse uma “Arqui-alma” entre os homens

Notamos isso em seres magníficos: os Anjos. Poder-se-ia argumentar: “Mas os Arcanjos não são o arquétipo dos Anjos?” Eu digo: São! Mas quem é o arquétipo dos Arcanjos? Há sete espíritos angélicos supremos que diante do trono de Deus O adoram eternamente. Serão sete, contados nos dedos das mãos, ou este deve ser um número simbólico? Quiçá seja simbólico, e ninguém sabe qual é o número desses Anjos mais magníficos do que todos, os quais, por sua natureza, são os mais altos dos seres criados, e que rutilam diante de Deus por toda a eternidade, arrancando d’Ele, por assim dizer, esta exclamação comprazida e eterna: “Como são perfeitos!” Entretanto são sete… E o “unum” desses Anjos não existe.

Deus, entretanto, ao criar o gênero humano tão inferior aos Anjos, ao conceber esta multidão incalculável de almas, desde Adão até o último que viverá sobre a face da Terra, fez cada uma à maneira de uma coleção tal, que cada alma é inteiramente única, e se ela se entregar a Deus será uma maravilha inteiramente singular como nenhuma outra. Umas poderão ser maiores, outras menores, mas como aquela só ela. Se Deus criasse duas almas iguais, Ele faria um absurdo, seria como se Ele gaguejasse repetindo errada e inutilmente duas sílabas na “palavra” perfeita que é a Criação. Isso Ele não pode fazer. O seu Verbo tem todos os poderes, menos o de tartamudear, pois isso seria imperfeito.

Deus teve a intenção de criar essa variedade prodigiosa de almas, todas destinadas a um ideal de santidade.

Consideremos não só os inúmeros povos dos quais a História nos dá uma ideia, ainda que vaga e pálida, cujos restos existem mais ou menos espalhados pela Terra, mas quantos povos houve que a História tragou. Há, por exemplo, pela Indonésia, cidades enormes em ruínas, com inscrições que ninguém entende, de povos com civilizações que nasceram e morreram não se sabe como, duraram não se sabe quanto. Ali estão na solidão, metidos nas selvas, em ilhas no meio dos mares, monumentos esplêndidos representando os anseios dos homens, de povos, de raças a respeito dos quais nada há no registro da História. Assim podemos fazer ideia da insondável quantidade de homens que nasceram, de almas surgidas do poder criador de Deus, desde o momento em que Ele criou Adão.

Mas para nós, homens, tão menores do que os Anjos, Deus deliberou criar uma Arqui-alma, e essa variedade Ele quis que tivesse um “unum”. Assim como o arqui-grão de areia, deveria haver um Homem tão prodigiosamente grande, que tivesse na sua inteligência mais do que as inteligências de todos os homens, em quem houvesse as peculiaridades de todos os homens em tão alto grau, e que seria enormemente mais perfeito do que todos eles.

O Unum de todos os homens

Suponhamos que conhecêssemos um homem dotado de tal poder que, quando ele se movesse, os astros parariam de pasmo; quando passasse, as flores se voltariam para ele, os animais viriam prestar-lhe homenagem, as plantas e as ervas se estenderiam à procura dos pés dele para, pelo menos, serem calcadas por ele; as brisas iriam a seu encontro; as águas que o refletissem estremeceriam de alegria. Pois bem, imaginemos esse varão, o Arqui-Homem, deitado numa manjedoura e teremos uma ideia irremediavelmente pálida e imperfeita do Menino-Deus nascido da Virgem Maria, que chorou e sorriu em Belém.

Com efeito, os clamores dos cruzados, a misericórdia de todos os Santos que se entregaram às obras espirituais ou temporais de caridade ao longo da História, tudo isso nasceu d’Ele, esteve na alma d’Ele de um modo inimaginável. Antes de encontrar algum reflexo na alma dos Bem-aventurados, cujos nomes, ao declinarmos, nos sentimos cheios de respeito e veneração, essa coorte incalculável ao longo dos séculos estava n’Ele, mas de um modo tal, que se nós temos vontade de fletir os joelhos pensando em Santa Teresa, em São Francisco de Assis, na majestade pensativa, meditativa, solene de São Bento, não podemos ter nem sequer uma pálida ideia de como tudo isso foi em Nosso Senhor. Eles todos foram fagulhas d’Ele. Fagulhas tão bonitas que não chegamos a poder representá-las; contudo, em face d’Ele tão pequenas que passam a ser insignificantes. Entretanto, por elas compreendemos o que foram essas perfeições em Nosso Senhor Jesus Cristo.

A essas perfeições estava associado um dom que se Jesus Cristo fosse apenas um arqui-homem não teria: a união hipostática fazendo de duas naturezas inteiramente distintas uma só Pessoa Divina. Ele é a própria imagem do Padre Eterno com todos os seus resplendores, contendo a expressão desses resplendores eternos de tal maneira que Ele, voltando-se para o Padre Eterno, como que se adora a Si próprio vendo-O. Dessa adoração entre essas duas perfeitas identidades procede a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade que é o Divino Espírito Santo.

A união deste Arqui-Homem com a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade Lhe confere algo em comparação do qual nada é nada! De tal maneira isso é possante, reluzente, eterno, divino, que vai acima de tudo quanto possamos pensar.

Vê-se como Deus quis fazer a nós, homens, tão inferiores aos Anjos, esta honra. Não houve um Anjo que fosse a “reductio ad unum” de todos os Anjos. Não houve um Anjo ligado por união hipostática a alguma das Pessoas da Santíssima Trindade. Mas houve um Arqui-Homem ligado por união hipostática ao Verbo Divino. “Hic taceat omnis lingua”! – aqui toda língua se cale!

Beleza da grandeza que se faz pequena

Quis a Providência – e aqui está o encanto do Natal – fazer-nos ver até que ponto esse Homem-Deus continha todas as belezas possíveis do homem, mas que toda meditação sobre o Santo Natal começasse por contemplar esse Homem divinamente grande como pequeno.

Aquele do qual nós cantamos a grandeza dizendo ser o firmamento pequeno para contê-Lo, começamos por analisá-Lo numa manjedoura; frágil, entregue ao zelo de Maria e José, objeto da adoração dos pastores e dos magos, ao bafo dos animais que O foram aquecer na noite fria daquele inverno.

Deus quis que Aquele que criou o Sol fosse acalentado pelo bafo dos animais. Deu-nos com isso uma lição da dignidade da vida: um boi vale mais do que o Sol, porque é um ser vivo. E, ao mesmo tempo, há uma humildade enorme em Deus Nosso Senhor permitir que o bafo desse animal, desta Terra de exílio, pousasse sobre quem criou o Astro-Rei. Há, porém, uma glorificação do que é vivo nessa honra primeira: enquanto o Sol “dormia”, o boi estava acordado e os Anjos chamavam os pastores. Percebem-se facilmente os contrastes magníficos contidos nisso.

Deus faz entender que o menor dos homens, mais torto, mais burro, mais “capenga”, mais doente, seja o que for, comparado com o Sol é muito mais, desde que não seja pecador, mas fiel à graça de Deus. Pois se o menor dos homens dista mais do boi do que este dista do Sol, quanto mais o menor dos homens vale mais do que o Astro-Rei!

Então, Nosso Senhor Jesus Cristo entra na Terra dando-nos esta magnífica e inesquecível lição: tão pequeno para mostrar a grandeza de tudo quanto é pequeno, de tudo quanto nasce e se desenvolve a partir de um determinado ponto, a grandeza das eras históricas no momento em que nascem de dentro da luta, das cóleras sagradas, das oposições irredutíveis de um pequeno grupo de perseguidos. Aí está a beleza e a grandeza de tudo quanto germina.

Ternura e compaixão no cântico natalino por excelência

Vemos, portanto, quanta meditação filosófica cabe dentro da consideração do Menino na manjedoura. Isso está bem expresso nos acentos da “Stille Nacht! Heilige Nacht! Alles schläft. Einsam wacht. Nur das traute heilige Paar”. A alma de um professorzinho da Baviera, no século XIX, cantou; houve um compositor e um poeta que, para tirar um vigário do apuro numa noite de Natal, exalaram uma canção que se poderia dizer que a humanidade tinha pressa de cantar.

Passaram-se mil e oitocentos anos da era cristã e o cântico de Natal popular e perfeito não tinha ainda aparecido, mas dir-se-ia que nas sombras todos o tateavam. Quando afinal esse anseio foi se acumulando nessas duas almas, que não tinham nenhuma noção disso, na hora certa desejada pela Providência eles compuseram a canção certa que em determinado momento o mundo ouviu maravilhado; ela se espalhou pelo mundo como o cântico natalino por excelência.

Ouçamos os acentos dessa música. Está o Menino Jesus, tão grande e tão pequeno, na manjedoura. Ele poderia ser tão terrível se nos manifestasse sua força. Mas está tão desarmado, e quis de tal maneira colocar-Se ao nosso alcance que para nos convencer bem de que Ele quer ter essa familiaridade, esse contato absolutamente desembaraçado conosco, fez-Se menor do que nós, embora seja infinitamente maior. Quis que o alfa da meditação a respeito d’Ele fosse considerá-Lo tão pequenino, e que nos extasiássemos não por vê-Lo criar os sóis, reerguer a Terra, presidir a História, criando as almas e modelando os corpos, inspirando as ações dos bons e punindo os maus; nada disso. Mas contemplá-Lo tão pequeno que exclamemos: “Mas como Ele, tão grande, veio a ser tão pequenino! Ele é tão imenso! Infinito! Entretanto, tem tanta ternura que chegou a esse extremo inimaginável de querer inspirar pena como proêmio de provocar admiração!”

Toda meditação da vida d’Ele é uma sequência de admirações. Ele quis que o primeiro movimento de admiração fosse misturado com compaixão. Como Ele quereria depois, que o último movimento de admiração fosse misturado com pena também. E quando chegasse o último episódio da vida terrena d’Ele, na última agonia, disséssemos: “Meu Deus! Que pena de Vós!” Quer dizer, Ele é tão maior do que nós, que não conseguiríamos amá-Lo caso Ele não Se nos apresentasse menor. Em sua bondade, para ter proporção conosco, tão pequenos, só Ele fazendo-Se criança é que a relação conosco podia começar. Só fazendo-Se verme e não homem, opróbrio dos homens e gargalhada do povo – como d’Ele diz o Profeta Isaías –, fazendo-Se assim no alto do Calvário é que poderíamos nos comover. Nós somos tão pequenos que não leríamos o livro inteiro se a primeira e a última letra não tivesse uma estatura menor até do que nossos olhos.

Ajoelhados diante do Presépio, contemplando o Menino Jesus, sentimos um respeito sacral acompanhado de ternura e compaixão. O amálgama entre o respeito e a compaixão – sentimentos aparentemente incompatíveis, à primeira vista – inspira, do princípio ao fim, a “Stille Nacht”.

Ogiva de incomparável esplendor

As palavras falam da noite silenciosa, santa; enquanto tudo dorme, vela isolado o respeitabilíssimo e altamente santo casal. Mas enquanto essas lindas palavras são proferidas, a melodia diz mais do que os vocábulos. A música exprime não tanto o que se sente a respeito da noite silenciosa durante a qual todos os filhos das trevas dormem e só o casal justo por excelência está acordado, mas o sentimento desse casal vendo o Menino Jesus.

Quando ouvimos cantar “Stille ­Nacht”, temos a impressão de entrar no Sapiencial e Imaculado Coração de Maria e de ouvir ali a própria canção d’Ela dizendo: “Meu Filho! Meu Deus e tão menino, tão pequenino, tão grande e tão adorável! Como Te adoro! Como tenho pena de Ti! Como Te respeito! Protege-Me! Como Te amo! Eu Te protegerei!”

Nessa música está a ogiva incomparável que para mim é o símbolo perfeito do sentimento que a noite de Natal deve despertar. Há qualquer coisa de muito alto! Ele está lá! Perto d’Ele está Ela, e perto d’Ela está São José! Mas, sobretudo, está Ele, tão infinito e tão pequeno, e ao mesmo tempo tão adorável!

Do começo ao fim no “Stille Nacht”, o sentimento que se desenvolve é esse. Se entoarmos este cântico debaixo dessa interpretação, notaremos ora o grave do pensamento adulto, ora qualquer coisa que fala do sentimento do menino; e é quase um diálogo entre o adulto e a criança. Por outro lado, há momentos em que se tem impressão de se ouvir o Menino chorar, e outros nos quais o Ele sorri.

Tristeza augusta, admiração jubilosa

Há mais algo no “Stille Nacht” que participa da atmosfera natalina à maneira de como Cristo Nosso Senhor, presente e vivo na Igreja Católica, faz parte da atmosfera interna de toda catedral gótica. Há, ao longo de toda a música, um certo amálgama harmonioso de alegria e de tristeza, independente dos momentos em que a nota de alegria ou de tristeza é maior. Desde o começo, no “Stille Nacht” há uma certa tristeza augusta, ao lado de uma admiração jubilosa. Mesmo quando fala de pranto, há uma certa alegria subjacente.

Quando entramos numa catedral e vemos uma rosácea na qual bate o Sol – a penumbra da catedral e aqueles dardos de luz multicolor que espalham safiras, esmeraldas e outras “pedras” pelo chão –, por todos os lados encontramos o esplendor cercado pela penumbra, percebemos uma composição de alegria e dor que forma um dos mais altos aspectos do equilíbrio da alma humana. Creio que esse aspecto se exprime muito na Liturgia católica, que muitos consideram enfadonha por só saberem viver de gargalhadas. Mesmo nos dias das comemorações de Páscoa, há qualquer coisa de tristonho; assim como na Semana Santa há um fundo de esperança que nada consegue apagar.

Se analisarmos bem o que fez a Revolução dessa ogiva composta de alegria e de dor, veremos como ela tentou destruí-la. Essa ogiva que se vê tão bem nas boas imagens de Nosso Senhor Jesus Cristo e de Nossa Senhora, no Santo Sudário, por exemplo, a dor tremenda, mas aquela decisão, o olhar daqueles olhos fechados, a proclamação daquela boca muda, o teso daquele corpo flácido; é uma coisa admirável! Eu não digo que não haja artista capaz de representar, não há artista capaz de conceber!

Dor no fundo da qual habita a alegria inefável

Pois bem, esse equilíbrio de alegria e de dor, se prestarmos atenção, a Revolução rachou. E as pessoas imaginam a dor como um estado de alma sem alegria, e definem alegria como um estado de alma sem dor. Olhando ao nosso redor vemos isso com uma frequência impressionante, para não dizer que só encontramos essa concepção, mesmo entre almas muito piedosas. Por exemplo, considerar a Semana Santa como a semana de dor, na qual só se chora; enquanto o Natal, a semana da alegria, onde só se fica contente.

Ora, quando uma cinde a alegria da dor, só concebe dores sem alegria e alegria sem dores, ela se racha ao meio. A Revolução, por não considerar a não ser desse modo, é maldita, porque rachou, liquidou e tirou de dentro das almas a paz da “Stille ­Nacht! Heilige Nacht”!, a paz do Natal e ao mesmo tempo da Sexta-Feira Santa.

Todos hoje fogem da dor. Há pregadores que querem convencer os homens a se resignar com a dor. Eles têm razão, mas quão raros são eles… Foram mais numerosos outrora. Será que eles sabiam pintar aos homens essa verdadeira dor no fundo da qual habita a alegria inefável de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, Ele crucificado, e Ela aos pés da Cruz? Será que na hora de júbilo eles sabiam comunicar as alegrias que não eram contrárias à dor, mas preparavam para ela? Quem não vê na alegria do “Stille Nacht” uma preparação para a Paixão? E quem não percebe que no meio daquelas alegrias arrebenta um pouco do soluço da Santíssima Virgem junto à Cruz?

Um dos meus primeiros encantos com a Igreja Católica foi quando eu era menino, tão pequeno que nem sabia bem o que era alegria nem dor, mas sentia essa penumbra na igreja e ouvia o órgão, o qual sempre tem algo de Sexta-Feira Santa e de Natal em tudo quanto toca, e dizia de mim para comigo: “Há aqui um equilíbrio ao qual dou um nome: santidade! Este é o estado temperamental, a fisionomia moral dos Santos. Encontro isso no interior de tantas igrejas, refletido em tantas imagens…” De onde vem o equilíbrio? Dessa junção do qual a “Stille ­Nacht” nos dá um exemplo, mas da qual a Igreja Católica nos dá mil outros.

Peçamos à Mãe de Deus, presente aos pés do Menino Jesus, e cujo Sapiencial e Imaculado Coração é o reflexo indizivelmente perfeito de tudo quanto há n’Ele, que nos dê muitas graças à maneira de sorrisos cumulativos de alegria e dor; e nos conceda esse especial equilíbrio de alma, o qual fará de nós os heróis que queremos ser, ou seja, os santos, pois só eles são os verdadeiros heróis.

É nessa perspectiva que, diante do Presépio que começa a se engalanar, dobro os joelhos e peço o auxílio de Nossa Senhora.              v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/12/1978)

A maravilhosa fragrância do Natal

A partir das revelações de uma célebre mística alemã sobre a noite de Natal, Dr. Plinio se compraz em evocar as magnificências, as delicadezas e os perfumes com que Deus Pai, por meio de incomparáveis manifestações de toda a natureza, ornou o nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, sob os olhares enlevados de Maria Santíssima e São José.

Nada mais oportuno, por ocasião do Natal, do que comentarmos algo a respeito do advento do Verbo Encarnado ao mundo, nascido da Imaculada Virgem Maria.

Vidente com grande lucidez

As considerações de hoje se baseiam nos escritos deixados pela vidente Ana Catarina Emmerich. Mística alemã do século XIX, ela foi favorecida por diversos êxtases e revelações, publicadas com o devido “imprimatur”.

Antes de analisarmos suas descrições, seria interessante salientar o aspecto profundamente racional que elas apresentam, e como Ana Catarina demonstra um tato extraordinário e um grande senso das coisas ao resolver problemas muito delicados que aparecem no curso de suas visões. Essa atitude fala em abono da lucidez da vidente e da veracidade de suas narrativas.

O Menino reclinado sobre flores e ervas finas

Descreve ela, então, o que se teria passado na noite de Natal. São José, tendo sido avisado por Nossa Senhora sobre o iminente nascimento do Menino, dedicou-se a preparar o presépio na gruta de Belém para receber o Filho de Deus. O modo como o fez é extremamente belo: estendeu uma camada de ervas finas e, acima destas, lindas flores que encontrou na pradaria próxima, cobrindo tudo com uma colcha modesta trazida pela Virgem Santíssima.

Parece-me de rara graciosidade essa ideia de que o Menino Jesus poderia dormir sua primeira noite sobre flores — quiçá alguns lírios do campo que Salomão, em toda a sua glória, não conseguiu imitar — e, coisa ainda mais esplêndida aos olhos de Deus, envolto numa colcha tecida por Nossa Senhora.

Segundo a vidente, mais ou menos uma hora antes do nascimento, após outro aviso de Maria Santíssima, São José acendeu várias lâmpadas que tinha levado para essa ocasião e as suspendeu em traves de madeira que haviam num e noutro lado da gruta. Eram os primeiros fogos que brilhavam em louvor do Menino Jesus.

Magnífica e intensíssima luz dourada

Chega então o momento ápice do nascimento do Homem-Deus. Nas visões de Ana Catarina Emmerich, como este se passou?

É dogma de fé que Nossa Senhora foi virgem antes, durante e depois do parto. Portanto, seria mister apresentar esse nascimento virginal cercado de imenso mistério. E ela narra o seguinte: São José, embora pai jurídico (e não natural) daquele menino, não devia presenciar aquele instante glorioso, pois era algo a ser visto apenas por Deus e Nossa Senhora. Então — delicadezas da Providência! — um carneirinho se aproximou da gruta e começou a balir, fazendo um barulho que poderia importunar Nossa Senhora naquele momento. Repassado de solicitude para com a divina Mãe, São José saiu e foi atrás do pequeno animal para sossegá-lo e afastá-lo dali.

Ora, ao retornar à gruta, a parte que ele havia acomodado para dormitório de Nossa Senhora, separada por paupérrimas esteiras, encontrava-se imersa em magnífica e intensíssima luz dourada. São José percebeu que Maria estava de joelhos, as mãos cruzadas sobre o peito, e voltada para o Oriente, em altíssima meditação. O patriarca entendeu que não devia avançar mais. A luz dourada o afastou desta cena, única, cujo real conteúdo só terá sido presenciado por Deus e os anjos.

Um Menino belo como o relâmpago

São José retirou-se para outro canto da gruta e ali se pôs em oração. Narra Ana Catarina Emmerich que uma luz muito brilhante começou a espargir de Nossa Senhora e a envolver todo o ambiente. À medida que esse fulgor ganhava intensidade, a Virgem Maria ia se elevando do solo, e já se achava a boa distância deste quando São José finalmente deixou seu lugar para ver o que se passava. Nossa Senhora, então num êxtase maravilhoso, comunicou-lhe: o Menino nasceu!

São José volta seus olhos para o chão e vê o Menino Jesus, uma criança — no dizer de Ana Catarina — bela como o relâmpago, isto é, mais luminosa e esplêndida que a própria luz que clareava a gruta naquele momento. Era o “lumen Christi”, perto do qual se eclipsam todas as outras luzes.

Em seguida, dá-se esta cena: Nossa Senhora sai do êxtase, desce de novo para o chão e permanece uma hora inteira contemplando o Menino que tinha nascido sobre um pano estendido por Ela. Portanto, o Homem-Deus havia nascido na maior penúria material possível. Passado esse período de adoração, Maria Santíssima se levanta, toma o Menino belo como o relâmpago e o coloca nos braços de São José. Imagine quem possa a felicidade do esposo virginal de Nossa Senhora ao sentir aquele frágil corpo do Deus humanado! Ele também adora o Filho do Altíssimo reclinado nesse primeiro presépio que foram seus próprios braços. Em seguida, O deposita na manjedoura, ao lado da qual se ajoelham a Virgem e ele, permanecendo os dois em oração, num silêncio angélico e celestial.

Primeira adoração noturna da História…

Entretanto, todo o ambiente, até as próprias pedras da gruta, fremia de esplendor e de alegria, notando-se um como que regozijo, inclusive nos seres inanimados, porque o Menino Jesus tinha nascido. Na verdade, esse gáudio da gruta era o de toda a natureza, transformada por aquele acontecimento indescritível. As flores desabrochavam e exalavam perfumes magníficos; os aromas das folhagens eram estupendos, e uma luz cada vez mais intensa começou a brilhar sobre a gruta, e foi este fulgor que chamou a atenção dos pastores acampados nas redondezas.

Vemos, por essas descrições, o tato com que Ana Catarina apresenta o nascimento do Menino Deus, com seus delicados aspectos, a conduta de São José, a atitude de Nossa Senhora, o parto misterioso, enfim, tudo perfeito, como poderia ter acontecido.

Narra ainda a vidente que, após algum tempo, estando o Menino na manjedoura, São José se preocupa com Nossa Senhora, e embora Esta não demonstrasse cansaço algum, ele leva para junto do presépio uma cadeira e o leito da Santíssima Virgem, caso Ela quisesse repousar. Os dois continuaram recolhidos em elevada prece, e assim começava a primeira adoração noturna da História. Se pensarmos no Menino belo como um relâmpago e na Mãe formosa como a lua, compreenderemos um pouco mais da maravilhosa fragrância do Natal.

Inusitada alegria sentida em toda a Terra

Como acima notamos, Ana Catarina diz que a luz brilhando sobre a gruta serviu de aviso aos pastores de Belém, os quais tomavam assim conhecimento do nascimento de Jesus. Ela descreve esse aspecto do Natal de um modo muito edificante, atraente e piedoso, próprio a incutir devoção e fervor às nossas almas. Ao lê-la, entendemos que seria lógico e razoável que as coisas tivessem se passado assim. Palavras dela:

Vi em muitos lugares, até nos mais distantes, uma inusitada alegria, um extraordinário movimento nessa noite. Vi o coração de muitos homens de boa vontade reanimados por uma ânsia repassada de felicidade; e em troca, os corações dos perversos, roídos de temores.

Essa descrição nos faz pensar nos dias melhores que a Providência reserva para a Cristandade, quando Nossa Senhora exercer de fato sua realeza sobre o mundo, e então tudo quanto é bom, nobre e belo florescerá na humanidade: os homens desejarão o bem com alegria, o sacrifício, a dedicação e a renúncia no entusiasmo de sua alma.

A natureza festeja o Nascimento do Salvador

Até nos animais eu vi manifestar-se a alegria nos seus movimentos, e como que brincarem.

Imaginemos uma magnífica noite do Oriente, a bela natureza banhada por um luar soberbo e envolta numa temperatura amena. Carneiros, cabritos e outros animais começam então a saltar e a brincar, pássaros esvoaçam e cantam, as flores deitam seu melhor perfume. É a festa da natureza pelo nascimento do Salvador.

Faço notar o quanto é razoável que isso se tenha dado. De fato, é de acordo com a ordem natural das coisas que, vindo ao mundo o Menino Jesus, ao qual está sujeita toda a natureza, esta se alegrasse com a presença de seu divino Benfeitor e externasse tal contentamento manifestando um colorido melhor, uma beleza maior, etc.

As flores levantavam suas corolas, as plantas e as árvores tomavam novo vigor e verdor, espargindo suas fragrâncias e perfumes. Eu vi brotar fontes de água da terra.

Esse brotar das fontes de água da terra parece-me altamente simbólico. O manancial que jorra, a vida que aflora no solo, representa as graças que se espalham sobre os homens. A água significa vida e vigor para a terra; a graça é fator vivificante para a alma humana.

O céu era de um vermelho escuro sobre Belém, enquanto se via um vapor tênue e brilhante sobre a gruta do presépio e no vale dos pastores.

Outra bela descrição. Já ouvimos falar de auroras róseas, conhecemos crepúsculos avermelhados, mas um céu noturno com esse tom de vermelho profundo deve ter tido um esplendor especial. E sobre a gruta, uma névoa iluminada, atraente, repleta de mistérios.

A torre dos pastores, símbolo da Igreja

A certa distância da gruta do presépio se encontrava o que chamavam a Torre dos Pastores: um grande conjunto de andaimes, feitos de madeira, tendo por base imensos blocos do próprio rochedo. Estava rodeada de árvores verdes e se alçava sobre uma colina isolada, no meio da planície. Cercada de escadas, tinha galerias e pequenas torres, todas cobertas de esteiras.

Ana Catarina explica que este era o ponto de observação para onde convergiam todos os pastores da região, e ali permaneciam durante a noite vigiando seus rebanhos.

Penso que essa torre dos pastores é um belo símbolo da Igreja Católica: os Bispos, com seus rebanhos, se achegando à única torre existente na Igreja, no sentido estrutural da palavra, que é a Cátedra de São Pedro. Do alto desta, o Pastor dos pastores deita seu olhar vigilante para defender o redil contra os lobos e ladrões.

Diz ainda a vidente que essa torre emergia do meio de árvores, no alto de uma colina inteiramente isolada. O resto era planície. Mais uma vez, algo que lembra o Papado, pois em confronto com este tudo é planície. Ele é a suprema autoridade, o mais augusto hierarca da Igreja e, como tal, o maior hierarca do universo, porque nenhum homem poderoso na ordem temporal pode se comparar com o Romano Pontífice.

Desde longe [a torre] produzia a impressão de um grande barco cheio de mastros e de velas. A partir dela desfrutava-se de esplêndida vista de toda a região, vendo-se até Jerusalém. As famílias dos pastores habitavam nesses lugares, num raio de duas léguas. Possuíam granjas isoladas, com jardins, e se reuniam junto da torre em cujos depósitos guardavam os utensílios de uso comum.

É interessante imaginarmos essas casas das famílias dos pastores esparramadas em volta da torre, com seus jardins e granjas. Sobre tudo isso cai a noite, tornando-se misteriosa, magnificamente purpúrea, e, ao longe, uma névoa branca, iluminada, que começa a nascer. Como terá sido o deslumbramento dos vigias diante desse espetáculo?

O anúncio dos anjos aos pastores

No nascimento de Jesus Cristo, vi três pastores muito impressionados com o aspecto daquela noite tão maravilhosa. Então, tomados de admiração, perceberam a luz extraordinária sobre a gruta do presépio. Subiram ao mirante, dirigindo sua vista até a gruta. E enquanto olhavam, desceu sobre eles uma nuvem luminosa, dentro da qual notei um movimento à medida que se acercava.

Entende-se que se trata do anúncio dos anjos, os quais não aparecem de repente, mas são precedidos de uma nuvem luminosa que prepara o coração dos pastores para a boa nova. Cada vez mais brilhante e bela à medida que se aproxima, essa nuvem eleva gradualmente o espírito daqueles homens simples, que vão se tomando de encanto e admiração com tudo o que viam.

Aos poucos, dentro da nuvem foram se delineando formas vagas, depois rostos e, finalmente, ouviram-se cânticos muito harmoniosos, alegres, cada vez mais claros. Apareceu um anjo que lhes disse: “Nasceu-vos hoje, na cidade de David, um Salvador, que é Cristo Senhor. Por sinal eu vos dou isso: encontrareis o Menino envolto em panos, deitado sobre um presépio”. Enquanto o anjo dizia essas palavras, o resplendor se fazia cada vez mais intenso ao redor dele. Vi cinco ou sete grandes figuras de anjos, muito belos e luminosos, que levavam nas mãos uma espécie de bandeirolas largas, onde se viam letras do tamanho de um palmo, e ouvi que louvavam a Deus cantando: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade”.

A bonita frase do Evangelho se reveste de uma cadência única, e nos exprime essa maravilhosa verdade: a paz desce do Céu aos corações de boa vontade, como fruto da glória que eles tributam a Deus nas alturas.

Acontecimento cercado de magnificências

Mais tarde tiveram a mesma aparição os pastores que estavam junto à torre; anjos também apareceram a outro grupo de pastores, perto de uma fonte, a leste da torre, a três léguas de Belém. Não vi que os pastores fossem em seguida à gruta do presépio, porque uns se encontravam a légua e meia de distância e outros, a três. Eu os vi consultando-se uns aos outros acerca do que levariam ao recém-nascido, e preparando os presentes com toda pressa. Chegaram à gruta do presépio ao raiar da alva.

Procuremos imaginar a invulgar beleza da aurora que se seguiu a uma noite tão magnífica. E como se reveste de particular atração a cena em que esses pastores, homens simples e de boa vontade para os quais era prometida a paz, no meio de todo o esplendor da natureza em festa, sob uma aurora magnífica, aproximando-se da gruta do presépio a fim de adorar o Salvador!

Percebemos, assim, de quantas magnificências foi cercado por Deus o Natal de seu Filho, dado ao mundo por Maria Santíssima, sob o paternal e maravilhado desvelo de São José.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 22 e 23/12/1975)

Nasceu-nos um Menino

“Puer natus est nobis, et filius datus est nobis: cujus imperium super humerum ejus: et vocabitur nomen ejus, magni consilii Angelus” — Nasceu-nos um Menino e um Filho nos foi dado; o império repousa sobre seus ombros e será chamado Anjo do Grande Conselho.

Sob o sopro do Espírito Santo, a Igreja canta o dom que Deus lhe fez. É a voz dela, o puro sol sem atravessar vitral algum. Música composta para ser entoada por todos os povos, de norte a sul, de leste a oeste da face da Terra. Em todas as latitudes e longitudes, eis a alma católica universal, serena, simples, repassada de significado e substância, exprimindo a alegria que se eleva diretamente  ao Céu, o recolhimento desprendido dos valores terrenos, o caráter profundamente religioso do nascimento de Cristo Jesus.

Plinio Corrêa de Oliveira

União de alma com o Divino Infante

Na noite de Natal o Menino Jesus possuía o pleno uso de sua inteligência. E já no seu pobre berço, sofria ao prever a incredulidade e a impiedade se espalhando em tantos lugares da terra. Mas, por outro lado, contemplou também todas as almas zelosas da glória e do serviço de Deus, vivendo e batalhando para o triunfo da virtude, sofrendo com os pecados e as ofensas que os homens cometem contra Ele, reparando-as com penitências e espírito de ascese.

Desse modo, a mente e o coração sagrados do divino Recém-nascido voltavam-se para os católicos fervorosos enquanto implorava ao Pai Eterno as forças necessárias para eles perseverarem no bom combate pelo bem.

Acerquemo-nos então do Presépio, e peçamos a Jesus, por meio de Nossa Senhora, de São José, dos Anjos, dos pastores e dos Reis Magos, que aceite nosso desejo de sermos conforme aos seus divinos desígnios. Ofereçamos-Lhe o nosso anelo de nos unirmos às cogitações, meditações e considerações proféticas que Ele fez na manjedoura, a fim de vivermos o Natal em uníssono com Ele.

Imploremos uma inteira união de alma com o Divino Infante, de maneira a que tudo quanto existe no coração d’Ele esteja no nosso, tudo quanto palpite no Imaculado Coração de Maria lateje também no nosso, e que o Natal celebrado por nós reflita exatamente o sentido de tudo quanto Jesus e Maria experimentaram naquela noite mil vezes bendita nas montanhas de Belém.

Plinio Corrêa de Oliveira

Em cada coração, um presépio

Natal é o tempo da celebração da inocência. Não apenas nos remete para aquela gruta bendita na qual há pouco mais de dois mil anos, numa fria noite invernal, Deus veio estar conosco – o Emmanuel –, mas também exorta cada qual, sem palavras explícitas, à conservação, proteção ou recuperação da própria inocência.

Todos podem, diante de algum presépio, encontrar essa mensagem, que ressoa fortalecida pela ação da graça divina. Há não muito tempo ainda, neste período, a atmosfera geral era perfumada por algo de angélico, tocando o fundo das almas. Isso é mais evidente nas crianças, ainda não maculadas pelas faltas leves ou graves que o homem carrega durante a vida. Muitas vezes atinge também os corações adultos, inundando-os de saudades de um tempo maravilhoso no qual pareciam poder tocar o Céu.

Dr. Plinio entendia e vivia tudo isso profundamente. Para ele, a defesa e a recuperação da inocência são tarefas fundamentais para a nossa salvação.

Na época da infância de Dr. Plinio, a comemoração do nascimento do Menino Deus tomava conta de toda a cidade, pervadindo a todos de uma paz sobrenatural, prelibação da bem-aventurança eterna. E aqueles poucos que não deixavam se tomar pelas graças, ao menos respeitavam os sentimentos da imensa maioria. Era, pois, para quase todos uma renovação da inocência, um reverdejar das melhores disposições de alma, um propósito de ser melhor para com Deus, para consigo e para com os seus semelhantes. E assim se produzia uma expansão de benquerença geral.

Nos nossos dias em que as festas verdadeiramente natalinas vão se esvaziando cada vez mais, reduzidas quase tão só a uma expressão consumista, ainda a graça bate à porta de incontáveis corações, convidando cada um a permitir que Jesus faça nele seu presépio, e que venha ali habitar com Nossa Senhora e São José. E assim, bem dentro de nós, nos conceda graças especiais de inocência.

A leitura dos comentários de Dr. Plinio sobre o tempo do Natal nos ajudam a impostar nossas almas para nos preparar para esses abençoados dias. Ele traça em grandes pinceladas o ambiente natalino de sua infância, que tanto marcou sua alma a ponto de, décadas mais tarde, continuar a constituir para ele o objeto de profundas saudades. Quem de nós também não ficou marcado por graças semelhantes? Quem, pondo de lado por uns instantes os ruídos estridentes da modernidade – a televisão, o DVD, o celular, o “tablet”, o carro e quanta coisa mais – e deixando seu espírito se povoar por reminiscências dos natais de criança, também não sentirá saudades?

São saudades da inocência, daquele tempo em que Jesus podia fazer seu presépio em nosso coração. Que as graças deste Santo Natal nos ajudem a todos a sermos melhores!