Na celeste sinfonia entoada pelos santos da Ordem do Carmo, sobressai a voz de Santo Eliseu, Profeta, discípulo e sucessor de Santo Elias. É a voz da fidelidade, da continuidade, da incondicionalidade; é a voz da união completa com aquele que Deus lhe concedeu por guia, senhor e mestre, e do qual herdou, como seu mais precioso legado, uma fervorosa devoção à futura Mãe do Verbo Encarnado, Maria Santíssima.
Santa Edeltrude Vigor e beleza da alma medieval
Como nos mostra Dr. Plinio, a rainha Santa Edeltrude e suas irmãs — também canonizadas — são luminoso exemplo do que foi outrora a “Ilha dos Santos” (o atual Reino Unido), no alvorecer de uma era onde a virtude heróica se fazia freqüente até nos mais altos degraus da sociedade, a partir dos quais se estendia às outras camadas sociais, dando forma àquele conjunto chamado de Cristandade.
No dia 23 de junho a Igreja lembra Santa Edeltrude, Rainha e virgem do século VII. Filha de um monarca do Leste Inglês — um dos sete reinos que constituíam a Inglaterra de então — teve ela três irmãs santas: Saxburga, Edilburga e Virtburga. Como sói acontecer naquela época povoada de heróis da Fé, a virtude resplandecia no seio das famílias, e muitos parentes possuíam em comum, não apenas o sangue, mas também a santidade. Neste caso, poder-se-ia construir um esplêndido templo católico no qual houvesse quatro belos altares em honra dessas irmãs bem-aventuradas.
Ousadia e fundação de mosteiro
A respeito de Santa Edeltrude, alguns autores nos apresentam os seguintes dados biográficos:
Nasceu provavelmente por volta de 630 e morreu em Ely, a 23 de junho de 679. Quando ainda muito jovem, foi dada em casamento por seu pai, Anna, Rei de East Anglia, a um certo Tonbert, príncipe a ele subordinado. Deste primeiro marido, Edeltrude recebeu como dote algumas terras na localidade conhecida como a Ilha de Ely.
A santa viveu cinco anos com Tonbert em perfeita continência. Após a morte prematura do príncipe, viveu um período de paz com sua vocação religiosa. Seu pai, entretanto, quis que ela se casasse novamente e lhe arranjou a união com Egfrido, filho e herdeiro de Oswy, Rei da Nortúmbria.
De seu segundo esposo, que consta ter então apenas 14 anos de idade, recebeu mais terras, desta feita em Hexham. Por meio de São Wilfrido (634-709), monge beneditino e Bispo de York, cedeu ditas propriedades para a fundação do mosteiro de Santo André. São Wilfrido tornou-se amigo e guia espiritual de Santa Edeltrude, aprovando e lhe incentivando a guarda da virgindade. Porém, foi a ele que Egfrido recorreu, quando sucedeu seu pai, para fazer valer seus direitos maritais contra a vocação religiosa de Edeltrude.
Primeiramente, o bispo conseguiu persuadir Egfrido a deixá-la viver por certo tempo em sossego, como freira no convento de Coldingham, fundado pela tia dela, Santa Ebba. Mas ante o perigo iminente de ser levada à força pelo rei, Edeltrude fugiu em direção ao sul do país, com apenas duas companheiras, buscando suas terras em Ely. Ali, favorecida por milagres e misericordiosas intervenções divinas, num lugar cercado de pântanos, areias movediças e pelas águas do rio Ouse, iniciou a fundação do mosteiro de Ely.
Como o lugar ficava na região onde Edeltrude nascera, seus parentes de sangue real lhe forneceram os meios necessários para a execução de seus planos. São Wilfrido ainda não havia retornado de Roma, onde lograra obter do Papa Bento II privilégios extraordinários para aquela fundação, quando Edeltrude morreu vítima de uma epidemia a qual ela mesma havia predito.
Por muitos séculos, o corpo da santa foi objeto de devota veneração na famosa catedral de Ely, construída precisamente no local do antigo mosteiro fundado por ela. O atual edifício católico é considerado uma magnífica mostra dos vários estilos góticos, acrescentados durante diversas renovações desde o século IX, sendo que a última parte — o famoso octógono — foi adicionada em 1400.
Uma das mãos da santa é atualmente venerada na igreja católica de Santa Edeltrude, na Ely Place, em Londres. Trata-se do mais antigo templo católico da capital britânica, e durante a Idade Média era considerado uma espécie de feudo dos bispos de Ely, herdeiros daquelas terras de Santa Edeltrude.
Na Idade Média, ao lado da rudeza, autêntica virtude
Percebemos aqui um flash(1) da Inglaterra primitiva, bem como da aurora da Idade Média que contém algo de selvagem e, ao mesmo tempo, de extraordinariamente sobrenatural. Este contraste encerra, a meu ver, uma intensa beleza.
Após a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, os povos que surgem têm príncipes e princesas evidentemente com resquícios de barbárie. Quanto ao aspecto, ao porte, ao estilo, não podermos imaginar Santa Edeltrude e suas três irmãs semelhantes às filhas de Luís XV, pintadas por Nattier, sobre um fundo azul claro: Madames Henriette e Adélaïde, frágeis, como se fossem de porcelana, quase evanescentes, vestidas com sedas vaporosas. Devemos figurá-las como damas vigorosas, cujas mãos estavam afeitas a árduos trabalhos domésticos, embora fossem orgânica e autenticamente princesas de grande valor nos países onde surgiam.
Cumpre salientar, aliás, que elas eram por assim dizer os berços de posteriores dinastias, e seus povos, os pontos de partida de futuras civilizações. Como lembrei acima, habitava ali certa grandeza e a semente de uma alta santidade. Haja vista a confluência de muitos bem-aventurados: somente na corte da nossa biografada encontravam-se ao mesmo tempo quatro santas, ademais de um diretor espiritual igualmente santo! Além disso, uma disseminação tal da virtude que foi possível a Santa Edeltrude convencer aos seus dois sucessivos maridos — um príncipe e um rei — de guardarem a continência na vida conjugal.
Admirável perseverança
Juntamente com tais virtudes, não se pode ignorar algumas manifestações de primitivismo. Por exemplo, uma princesa que deixa seu esposo por este querer romper o voto de castidade, refugia-se num convento e o marido não ousa ir atrás dela nem invadir o recinto sagrado, o que, naquele tempo, era julgado um fato explicável. Hoje seria considerado um escândalo, com notícias espalhafatosas nos jornais, etc.
Seja como for, é admirável a perseverança de Santa Edeltrude na prática da castidade perfeita. O abandono da vida da corte, com todas as suas glórias, para adotar o estado religioso, a sabedoria com que ela governou seu mosteiro (num país então pequeno, isso representava algo muito importante para a própria vida da nação), encaminhando as religiosas para o Céu, tudo isso forma um conjunto de traços fisionômicos iluminados pela santidade, e justifica plenamente a devoção que os fiéis possam ter para com ela.
Assim, nada mais aconselhável e rico em benefícios para nossa alma do que nos recomendarmos às orações de Santa Edeltrude, Rainha e virgem, no dia de sua festa. v
1) Sobre o termo flash, cf. Dr. Plinio número 55.
Sagrado Coração de Jesus
Salve Maria!
Junho é o mês escolhido pela Igreja para reparar o Sagrado Coração de Jesus e retribuir o amor que Ele tem por nós.
Isso teve início quando Jesus apareceu a Santa Margarida e mostrou o Seu Sagrado Coração coroado de espinhos, dizendo:
“Eis o coração que tanto amou os homens e foi tão desprezado por eles”
A partir daí, quem abraçou com fervor essa devoção recebeu torrentes de graças. E milagres estupendos aconteceram.
Ainda mais beneficiados foram aqueles que passaram a usar o Escudo do Sagrado Coração, fazendo um ato concreto de reparação às ofensas contra esse amor misericordioso.
Eu sempre tive desejo de que a Campanha lhe pudesse oferecer a possibilidade de praticar essa devoção para que você também pudesse receber essas graças. Hoje, esse dia chegou.
Pelos anos de 1673/1675 Santa Margarida Maria Alacoque teve visões e revelações do Sagrado Coração.
Durante anos, Jesus mostrou a Margarida o amor que tem pelos homens e seu ardente desejo de salvar os pecadores.
Mas lamentou-se também de que esse Coração que tudo fez para salvar os homens, é esquecido e desprezado por eles.
E fez magníficas promessas a quem consolasse o Seu Coração e reparasse as ofensas cometidas contra o seu amor:
- Estabelecerei e conservarei a paz em suas famílias.
- Eu os consolarei em todas as suas aflições.
- Serei seu refúgio seguro na vida e principalmente na hora da morte.
- Darei bênçãos abundantes sobre todos os seus trabalhos e empreendimentos.
- Os pecadores encontrarão em meu Coração fonte inesgotável de misericórdia.
- Minha bênção permanecerá sobre as casas em que se achar exposta e venerada a imagem de meu Coração.
- As pessoas que propagarem essa devoção terão seus nomes inscritos para sempre no meu Coração.
E nós precisamos da graça de Deus! Muitos riscos nos esperam todos os dias: assaltos, seqüestros, acidentes de automóvel, sem contar os perigos morais, não é verdade?
Por essa razão, neste mês de junho, seguindo o conselho de Jesus, vamos rezar uns pelos outros.
Além disso, o Secretariado da Campanha lhe dará um presente especial. Mandaremos celebrar em todos os dias de junho uma missa especial por você e sua família.
Mais ainda, você poderá dar as suas próprias intenções para serem incluídas nessas santas missas.
De minha parte, prometo incluir o seu nome nas intenções das missas que mandarei celebrar durante todo o mês de junho pelos participantes da nossa campanha.
Certo de que o Sagrado Coração de Jesus e o Imaculado Coração de Maria derramarão tesouros de graça e misericórdia sobre você e toda a sua família, despeço-me com muita estima.
Em Jesus e Maria
João Sérgio Guimarães
coordenador de campanhas
Acesse este PDF e conheça um pouco da mensagem de Jesus a Santa Margarida Maria e o que é o Detem-te: Clique aqui
Novena do Sagrado Coração de Jesus: Clique aqui
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Escreva seu nome no Coração de Jesus, e receba o Poster em sua casa: Clique aqui
Coração de Maria: Imaculado e Sapiencial
Maria Santíssima é verdadeiramente Mãe de uma bondade incomensurável. Seu desvelo para conosco excede a todo amor conhecido, pois não apenas é generoso, terno, envolvente e até heroico, mas parece ultrapassar todos os limites.
Em Fátima, mesmo quando se referiu às punições reservadas para o mundo impenitente, a Mãe de Deus revestiu suas admoestações de profunda tristeza, demonstrando também, por seu modo de se expressar, uma grande pena dos “pobres pecadores”.
Apesar do anúncio da salutar punição, Nossa Senhora encontra-se pronta a nos obter de seu Divino Filho o perdão.
A condição é que utilizemos os meios por Ela indicados: o aumento na devoção a Ela, a oração e a penitência.
Não há por que estranhar o caráter condicional dessa promessa de perdão, vinda de Mãe tão bondosa e misericordiosa. Pois, uma vez que alguém está ameaçado de castigo por causa de seus pecados, o modo de ser poupado é deixar de cometê-los.
Devoção ao Imaculado Coração de Maria
Para salvar as almas “dos pobres pecadores, Deus quer estabelecer no mundo a devoção ao meu Imaculado Coração” – dizia a Santíssima Virgem na aparição de 13 de julho de 1917, ao tratar do cerne de sua mensagem.
Porém, não foi esta a única ocasião em que Nossa Senhora se referiu à importância dessa devoção. Mencionou-a diversas outras vezes nas suas mensagens, e tal insistência não pode deixar de ser seriamente considerada.
Quem se tomar de verdadeiro e sincero amor por essa boa Mãe, puríssima e inigualável, e pôr em prática a devoção ao seu Imaculado Coração, será favorecido por seu contínuo amparo.
Por maiores que tenham sido os pecados cometidos, Nossa Senhora intercederá pelo fiel devoto junto a seu Divino Filho, obtendo-lhe todas as graças de emenda de vida e perseverança no bom caminho.
A devoção ao Imaculado Coração de Maria é, portanto, um dos principais remédios para a ruína contemporânea.
Coração Imaculado, cheio de Sabedoria
O Coração de Maria Santíssima, ou seja, sua alma, é soberanamente elevado, soberanamente grande, soberanamente sério, soberanamente profundo, porque é sapiencial.
Ela é o vaso de eleição no qual pousou o Espírito Santo, para nele gerar a Nosso Senhor Jesus Cristo. E o único hino que conhecemos como proferido por Nossa Senhora em sua vida terrena, é uma verdadeira maravilha de sabedoria: o “Magnificat”.
O “Magnificat”
“Minha alma engrandece o Senhor; e o meu espírito exulta em Deus meu Criador; porque considerou a humildade de sua serva, por isso todas as gerações me chamarão bem-aventurada”. (Lc. I, 47-48)
Quanto é possível a uma mente criada, Nossa Senhora mediu, por sua sabedoria, toda a grandeza de Deus, e nisto se alegrou. De outro lado, considerou sua pequenez, e então disse:
“Eu me alegro em Deus meu Salvador, porque Ele olhou para a baixeza de sua escrava”.
Isto é um poema! É a escrava que se encanta de ser escrava, de ser pequena, de ver como Deus é infinitamente superior a Ela, e do fundo de seu nada glorifica o Senhor. É o pequeno que reconhece, com agrado, a sua posição.
O escravo não tem direitos, e está colocado abaixo da condição comum dos homens. Pois bem, Nossa Senhora se proclama escrava de Nosso Senhor Jesus Cristo, precursora de todos os escravos que Ela iria ter ao longo dos séculos.
E foi sobre a humildade desta criatura escrava que aprouve ao Senhor deitar os olhos, e por isso Ela exulta: porque a grandeza amou a pequenez.
Eis a verdadeira humildade que ama seu lugar inferior, adorando a grandeza que a eleva. Eis Imaculado Coração de Maria, que também é Sapiencial.
Conferência de 21/8/1968 de Plinio Corrêa de Oliveira
Imaculado Coração de Maria: lições de santidade
Refletindo a respeito de uma piedosa invocação da Ladainha do Imaculado Coração de Maria, Dr. Plinio não se prende aos esquemas devotos tradicionais, mas tira conclusões inesperadas a respeito do materialismo que pode nos escravizar…
Como em geral acontece com as ladainhas compostas ao longo dos tempos pela piedade católica, as jaculatórias da Ladainha do Imaculado Coração de Maria sugerem, cada uma, desdobramentos e considerações que muito enriquecem nossa vida espiritual e nossa devoção à Santíssima Virgem.
Procuremos analisar, por exemplo, a invocação “Cor Mariae, in quo Jesus sibi bene complacuit”, que em português poderíamos traduzir assim: Coração de Maria, no qual o Coração de Jesus bem se compraz.
Plenitude de satisfação
Devemos começar por observar que este “bem” salienta a ideia do inteiro e perfeito comprazimento de que nos fala a jaculatória. Ou seja, o Coração de Maria possui uma tal excelência que, tanto quanto é possível à natureza criada, nada lhe falta, e por isso nele Nosso Senhor encontra uma satisfação completa, que não conhece névoa, que não tem limites nem máculas. Excetuando o fato de que o contentamento infinito de Jesus é e só pode ser com o próprio Deus, em tudo o mais Ele acha total alegria no coração e na pessoa de sua Mãe Santíssima.
Quer dizer, Nosso Senhor fita a Santíssima Virgem, olha-A, e ao vê-La, ao contemplá-La, ao analisá-La, experimenta o maior dos prazeres, um deleite indizível, que sobrepuja todas as outras delícias que Lhe proporciona a consideração de suas demais criaturas.
Não poderia ser diferente, em se tratando d’Aquela que foi escolhida, desde toda a eternidade, para engendrar em suas entranhas virginais o Filho de Deus; d’Aquela, portanto, em que tudo haveria de ser absolutamente puro e perfeitamente magnífico. Em todos os momentos de sua vida terrena, Ela não deixou de crescer em santidade, de um modo inimaginável. Cada graça que Deus lhe concedeu para se adiantar na virtude era correspondida com tal excelência que todo o progresso feito por Ela é insondável para a mente humana.
Assim, em todos os instantes da existência de Nossa Senhora neste mundo, Jesus teve com Ela um contentamento completo.
Mesmo nas ocasiões mais difíceis como, por exemplo, quando Ela se viu chamada a consentir na morte de seu Divino Filho, e através de uma anuência inteira, heroica, da qual não sobrasse nenhum resíduo, mesmo em situações como essa o procedimento de Maria foi perfeito, no sentido mais exato da palavra. Porque Ela era, enquanto mera criatura, absolutamente exímia. E, como reza a Ladainha, Nosso Senhor encontrou n’Ela a sua complacência.
Uma lição da sabedoria divina
Do fato desse comprazimento podemos tirar uma bela lição que Deus dá aos homens.
Com efeito, criou Ele magnificências materiais extraordinárias. Quantos mistérios haverá por todas as galáxias do universo? E quando nos detemos na análise dos micro-organismos, dos seres pequenos, quantas novidades imensas se descobrem ao nosso maravilhamento! Todo esse fabuloso conjunto, incluindo os homens e os Anjos, constitui para Deus o objeto de uma eterna contemplação.
Ora, tendo Ele tanto a apreciar, todavia coloca acima de tudo, como fonte do supremo gáudio que pode tirar de suas criaturas, a consideração de Nossa Senhora. Ela que, enquanto ser criado, não é o mais alto pois na ordem da natureza o homem vem abaixo do espírito angélico, porém, do ponto de vista graça, virtude e santidade, não só está acima de todos os Anjos, como é deles Rainha. É essa incomparável santidade, portanto, que Deus se compraz em considerar, e em auferir dela uma especial e completa felicidade.
Qual a lição que daí devemos colher?
É um ensinamento que combate o nosso fundamental materialismo. Infelizmente, a grande maioria dos homens está imbuída da ideia de que o verdadeiro prazer nesta vida consiste na posse de bens materiais, de qualquer natureza que seja: dinheiro, saúde e uma série de outras coisas que estão fora das vias da verdadeira felicidade do homem nesta terra.
Com efeito, sem engano podemos dizer que, nesta vida, encontra a felicidade autêntica quem é capaz de seguir o exemplo de Deus e fazer a sua alegria da consideração das outras almas e da virtude que nelas exista. O homem que passa pelo mundo procurando a virtude e a santidade para admirá-las, amá-las e servi-las, onde ele as encontra, aí se detém e põe seu prazer e seu júbilo. De maneira tal que ele tenha mais satisfação em estar numa choupana ou num leprosário conversando com um verdadeiro santo, do que no local mais magnífico em meio a pecadores.
Por quê? Porque o santo representa um particular reflexo, uma transparente manifestação de Deus. A alma de um santo possui uma perfeição que nenhuma beleza criada tem, e, por causa disso, aquele que sabe procurar os verdadeiros valores da vida, vai atrás da santidade, da perfeição moral dos seus semelhantes.
E quando a encontra, ele dá graças a Deus, eleva sua alma a Nossa Senhora e agradece também a Ela, porque é pelo seu maternal auxílio e intercessão que aquela santidade existe numa alma, e foi por meio d’Ela que ele, homem humilde e admirativo, teve a alegria e a honra de encontrar essa alma virtuosa. Ele teve a glória de experimentar um antegozo do céu, que é o conhecer, nesta vida, um verdadeiro santo.
Sigamos o exemplo de Nosso Senhor
Tratemos, então, de imitar a Deus, que se compraz na alma perfeitíssima de Maria.
Devemos procurar, em nossa existência terrena, as almas honestas, conhecê-las, amá-las e saber discernir nelas o esplendor do bem. Devemos nos alegrar com essa bondade, até mesmo comparando-a e contrastando-a com o que há de mal em torno dela. Devemos ter genuíno comprazimento ao ver que Nosso Senhor recompensa a virtude dessas almas que Lhe são tão diletas, assim como importa que compreendamos e aceitemos a reprovação que Ele, em sua infinita justiça, reserva à maldade impenitente. É o Deus três vezes santo, absolutamente puro e superior, que condena o que é errado, porque não é conforme a Ele.
Quantos ensinamentos a se tirar de apenas uma das mencionadas invocações! Essa é a beleza inexcedível de tudo o que é de Deus, é a insondável formosura de Nossa Senhora, é o maravilhoso tesouro dos princípios da doutrina católica!
Embora muito houvesse ainda por se aprender com as preciosas verdades contidas nessa jaculatória, creio não poder deixar de ressaltar o seguinte e importante aspecto: o enlevo de Jesus em relação à sua Mãe Santíssima, infinitamente inferior a Ele e por Ele amada com amor inexprimível, mostra-nos bem como devemos procurar ver a santidade até naqueles que são inferiores a nós. Amar essa perfeição, enlevar-se com ela, é, mais uma vez, imitar o exemplo de Deus olhando para Nossa Senhora.
E no fim dessas breves considerações, só nos resta elevarmos uma prece filial e confiante ao objeto da inteira complacência de Jesus:
“Ó Coração Imaculado de Maria, fazei o meu coração sem mancha, cheio de fé, de força, de heroísmo e santidade, como o vosso!”
Novena irresistível ao Sagrado Coração de Jesus
Esta novena merece este título por ser uma oração na qual a pessoa se dirige ao Sagrado Coração de Jesus apresentando-Lhe as razões mais fortes para alcançar as graças temporais e, sobretudo, espirituais desejadas.
Assim como o melhor dos pais atende com maior solicitude a um filho, de acordo com o pedido e o modo de pedir, também o Sagrado Coração de Jesus é mais propenso a nos conceder o que precisamos quando, por meio do Imaculado Coração de Maria, alegamos altas razões em nosso favor.
E as alegações indicadas nesta novena tornam-na irresistível.
Passo a comentá-la:
Ó meu Jesus, que dissestes: “Em verdade vos digo: pedi e recebereis, procurai e achareis, batei e ser-vos-á aberto”. Eis que eu bato, procuro e peço… (fazer o pedido).
É um pedido admirável e inteiramente racional. Tomando as palavras do Sagrado Coração de Jesus, que jamais mente, invoca esta promessa de misericórdia diante d’Ele. Então, quando tivermos problemas espirituais, sobretudo, dizer isto a Ele, na Comunhão ou em outras ocasiões, é soberanamente eficiente.
Ó meu Jesus, que dissestes: “Em verdade vos digo: qualquer coisa que peçais a meu Pai em meu nome, Ele vo-lo concederá!” Eis que a vosso Pai, no vosso nome, eu Vos peço… (fazer o pedido).
Realmente, é outra promessa d’Ele que se deve invocar. Quem pedir ao Pai Eterno algo em nome de Jesus e, consequentemente, quem pedir a Nosso Senhor em nome de Nossa Senhora, obterá.
Ó meu Jesus, que dissestes: “Em verdade vos digo: passarão o céu e a terra, mas as minhas palavras jamais!” Eis que, apoiado na infalibilidade de vossas santas palavras, eu Vos peço… (fazer o pedido).
Primeiro vêm duas palavras d’Ele, em seguida, lembramos-Lhe que essas palavras são infalíveis.
É um modo de rezar altamente piedoso e benfazejo, próprio de uma piedade raciocinada e clara, que realmente arrasta o Sagrado Coração de Jesus: “Vós dissestes isto e aquilo, garantindo-me que serei atendido. Ora, Vós nunca mentis, e eu Vos peço, portanto, que realmente me atendais”.
Depois vem a parte final que é muito bonita:
Ó Sagrado Coração de Jesus, a quem uma única coisa é impossível, isto é, não ter compaixão dos infelizes, tende piedade de nós, míseros pecadores, e concedei-nos as graças que Vos pedimos, por intermédio do Coração Imaculado de vossa e nossa terna Mãe.
Sobretudo é impossível ao Sagrado Coração de Jesus, quando solicitado por Nossa Senhora, não ter compaixão daqueles que sofrem as dificuldades, as agruras, as tentações e, diríamos até, as misérias da vida espiritual.
São José de Anchieta: dedicação heroica aos índios
Grande taumaturgo, de esmerada cultura europeia e requintados dotes naturais, São José de Anchieta colocou-se inteiramente à disposição da Divina Providência, servindo de instrumento eficaz da graça para a conversão dos indígenas.
Há muitos anos, li uma biografia do Padre José de Anchieta que me agradou bastante, mas depois me esqueci dos fatos, e a figura dele me saiu algum tanto do espírito. E agora chegou às minhas mãos um “santinho” que traz uma síntese biográfica dele, com alguns detalhes curiosos e uma beleza própria, que me parece adequada para um comentário. O “santinho” diz o seguinte:
Recebeu o título de ”novo Adão”
O Padre José de Anchieta nasceu em São Cristóvão da Laguna, na ilha de Tenerife, no ano de 1534.
Depois de mencionar os vários lugares onde ele estudou, continua:
Exerceu poder tão extraordinário sobre os animais que mereceu o nome de “novo Adão”.
É lindo o título. Sabemos, pelo Gênesis, que quando Adão foi criado todos os bichos do Paraíso desfilaram diante dele. E Adão foi dando a cada um o nome, de acordo com a sua natureza, quer dizer, uma espécie de definição, classificação científica dos animais. E ele tinha sobre os animais um domínio absoluto.
Notem bem a lógica interna desses dons que o Padre José de Anchieta recebeu. Ele era um missionário mandado ao Brasil para dominar uma natureza ingrata e rebelde ao homem, a fim de permitir que os católicos pudessem implantar aqui o seu domínio, e abrir caminho para a civilização cristã.
Havia nele, portanto, em primeiro lugar na ordem da execução, o aspecto de um lutador contra uma natureza bravia, ainda não dominada, não batizada, por assim dizer, como a natureza europeia.
Mas, depois, ele era também o fundador de uma cidade que haveria de ter um papel enorme na vida de um país e da Contra-Revolução. Quer dizer, ele está na origem de uma série de fundações.
Então, enquanto batalhador contra a natureza agreste, ele foi dotado de um domínio especial sobre os bichos, que eram os maiores inimigos do homem, na ordem da natureza selvagem. Enquanto fundador, foi dotado do dom de profecia. Ele era um profeta, e pode-se ver isto no encanto e na beleza dos fatos da sua vida contados aqui.
Domínio sobre as aves…
Da janela do quarto em que residia, chamava as aves que vinham ter com ele.
Vejam que coisa bonita! No Pátio do Colégio, de manhã cedinho, o Padre Anchieta acorda e vê um belo pássaro. Chama-o para junto de si, a ave pousa, ele passa um pouquinho a mão em suas penas. O pássaro, sentindo o carisma do santo e todo agradado com esta manifestação dele, voa de novo. E as pessoas ali presentes pasmam com este novo Adão, que por esta forma domina a natureza.
Notem também a variedade dos dons da Providência. Para um São Francisco Solano, no Paraguai, Ela dá um violino que, ao ser tocado, aquieta os índios. Aqui, ao Padre Anchieta, que esteve preso entre os índios como refém, a Providência não deu o dom de tocar violino. Ele escreveu com um pau qualquer, sobre a areia, seu famoso poema a Nossa Senhora, em latim, mas não aquietou os indígenas; esteve no meio deles, correndo gravíssimo perigo de vida, e não foi morto. Entretanto, foi-lhe dado o dom de aplacar os bichos.
Podemos imaginar como esse dom impressionava os índios. Porque a cidade era muito frequentada por indígenas mansos, os quais, por sua vez, tinham contato com os índios agressivos. E a fama se espalhava, então, de que o “grão-pajé branco” dominava completamente a natureza. Sem dúvida, isso auxiliava muito a conversão dos indígenas.
Vemos assim, sob uma forma muito poética, elevada e nobre, aquele homem de ferro, um filho de Santo Inácio dos grandes tempos, que subia a pé a Serra do Mar. Pois bem, um homem assim abre a janelinha de seu quarto, numa São Paulo cheia de neblina, de garoa, frente a uma praça com árvores, onde se encontram índios, escravos negros, portugueses, chama dois, três pássaros, dá-lhes alguma coisa para comerem e despede-os. É o primeiro momento de distração de um santo, antes de um dia cheio de trabalho.
…as feras e as cobras
Aqui são narrados outros fatos interessantes: Mesmo as feras e as serpentes venenosas abrandavam ante ele a sua ferocidade, e perdiam o natural veneno. Muitas vezes, bastou a invocação de seu nome para livrar seus devotos das mordeduras venenosas.
As cobras eram o terror do Brasil daquele tempo. Era uma ameaça constante para os bandeirantes e para todo mundo que vinha morar aqui, inclusive para os índios. E além do perigo das serpentes, havia também os outros animais selvagens: a onça, por exemplo. Então ele, quando atacado, ou via alguém agredido por uma fera, mandava esta recuar e era obedecido, ou, se fosse uma cobra, a mesma perdia o seu veneno.
Alguém uma vez definiu que cobra sem veneno é minhoca. Ele, portanto, “aminhocava” as cobras, reduzindo-as a nada.
Considerem que coisa bonita: numa estrada de mato, aparece uma serpente, que está para armar um bote contra uma criancinha. Padre Anchieta ordena: “Para!” A cobra fica imóvel e se deixa capturar. Vão examinar, não tem mais veneno. Ele sorri e os pais do indiozinho pedem para ser batizados. É um dos feitos do Padre Anchieta dentro da mata.
Coisas destas deveriam se contar nos cursos de História do Brasil. Isso não daria um outro perfume à nossa História?
Ressuscitou mortos e teve o dom de profecia
Nos processos de beatificação que ainda se conservam, juraram os contemporâneos numerosíssimos prodígios do grande taumaturgo, tais como ressurreições operadas na Bahia…
Quer dizer, este homem ressuscitou mortos na Bahia!
…e muitas profecias, como a do desastre de Alcácer Quibir, em que pereceu o Rei Dom Sebastião de Portugal.
Foi a famosa batalha em que o Rei Dom Sebastião atacou os mouros, e ele, com a flor da nobreza portuguesa, foram dizimados. O trono de Portugal tornou-se vacante e, pouco depois, passou para a Casa d’Áustria que governava a Espanha. Mas isso representava, durante algumas décadas, o fim de Portugal.
O Padre Anchieta previu também o dia de sua morte, e, aproximando-se a data de seu falecimento, fez todas as visitas de despedidas, como para uma viagem. Entrava nas casas das pessoas por ele conhecidas — mais ou menos toda a aldeia —, sentava-se e dizia: “Queria agradecer as atenções, as gentilezas, e prometo rezar por vós no Céu. Vou morrer no dia tal, de maneira que eu vim aqui me despedir”.
Imaginem a sensação dos membros de uma família, ao receberem a visita de um homem que eles viram deter as onças, chamar os pássaros, profetizar a queda de Portugal e agora prevê a data da própria morte! Depois, ele levanta-se, cumprimenta e pergunta:
— Não quer nada do Céu?
— Ah! me recomende a Santana, a Nossa Senhora da Assunção, Padroeira de São Paulo, reze por mim, arranje tal caso…
— Pois não, vou providenciar.
Anchieta morreu no dia exato previsto por ele.
É tão bonito, de tal maneira um encanto, que vale a pena comentar isso numa reunião nossa.
O encontro com um velho índio que esperava conhecer a verdadeira Religião
Naquelas andanças do Padre José de Anchieta, mato adentro, não à procura de esmeraldas, mas de almas, a certa altura ele encontrou sentado num tronco de árvore um índio muito velho. Conhecedor dos vários dialetos indígenas, Padre Anchieta se dirigiu afavelmente ao homem, perguntando-lhe se precisava de alguma coisa.
O indígena explicou que estava esperando ali a hora da morte.
— Mas como a hora de sua morte?! — perguntou o Padre Anchieta.
O índio respondeu:
— Sonhei que, quando estivesse velho, viria um homem vestido com esse traje preto com que o senhor está, e me ensinaria a Religião verdadeira, a qual a vida inteira eu quis conhecer. Há tempos me sento neste tronco à espera desse homem. Hoje o senhor veio; queira me ensinar a verdadeira Religião.
Podemos imaginar a comoção do Padre Anchieta! Ensinou-lhe as verdades essenciais da Fé, batizou-o, e depois o homem morreu na paz de Deus.
O pobre índio tinha um tal desejo que, se não fosse a Providência ter pena dele e abrir essa exceção, ele morreria tendo recebido o Batismo de desejo.
Mas, como vale a pena ser batizado com água! Vale tanto, que esse velho indígena — que poderia ter o Batismo de desejo — recebeu da Providência o benefício de ficar esperando, até vir o homem que pudesse pronunciar a fórmula e derramar sobre ele a água mil vezes querida e respeitável.
Imaginemos o lugar em que se deu essa cena:
Naquela época, o que era uma franja de civilização portuguesa no Brasil, levada pelo Padre José de Anchieta no meio de matos que nunca um ente civilizado tinha pisado? Portanto, todo mundo ignorava esse fato, que se passava sem publicidade.
Na selva, com algum sabiá cantando, algumas borboletas azuis esvoaçando de um lado para outro, um raio de sol que entra no meio da vegetação, o índio encantadíssimo, e Anchieta, derramando sobre ele a água de um Tocantins qualquer, dizendo com a voz serena, harmoniosa: “Eu te batizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Amém.”
Nessa hora, o índio entra para a Igreja Católica sem que outrem na Terra, a não ser ele e o Padre Anchieta, saiba que a Esposa de Cristo tem ali um novo filho. Fato ignorado, que não é nem sequer suburbano, mas do último extremo, da última franja, da franja mais ousada da civilização.
E assim nasce para a Igreja um filho procurado dentro da gentilidade, e trazido com amor — depois de uma revelação em sonho — para junto de um tronco, onde ele encontrou a salvação.
Após adquirir grande cultura na Europa, é enviado ao Brasil para tratar com índios
No mundo civilizado da época do Padre Anchieta havia um alto grau de cultura. Ele se beneficiou das circunstâncias que aumentaram a categoria de sua personalidade. E quando entrou em liça para lutar por Nossa Senhora, levava todos os elementos positivos que cercaram sua formação, e estava pronto para essa grande obra, porque procurara continuamente aproveitar tudo de bom que havia em torno dele: a virtude ensinada no Seminário e toda a cultura existente nos meios religiosos e no ambiente daquele tempo.
Isso representa um esforço considerável. Ninguém fica um homem muito culto sem ter empregado um grande vigor, pois sem esforço não há cultura.
Agricultura o que é? É o trabalho que o homem faz para tornar a terra útil ao plantio e, depois, a plantação que se faz no solo trabalhado. “Agri” vem de “ager”, campo; cultura é exatamente esse esforço de preparar a terra, de pôr a semente e de cultivá-la para que dê o resultado esperado.
Assim é a cultura do homem, entretanto muito mais nobre do que a cultura do campo, porque o homem é um ser incomparavelmente superior à terra. Por causa disso, a cultura do homem é muito mais exigente do que a agricultura, ou qualquer outra forma de cultura.
Anchieta precisou, portanto, trabalhar, esforçar-se, aprender, decorar, polir-se e adaptar-se de todos os modos possíveis. E, de repente, recebe do Geral da Companhia de Jesus — que decidia o destino de todos os jesuítas, pelo voto de obediência — a ordem de vir para o Brasil.
Depois de todo esse esforço de civilização e de cultura, ele é mandado para cá, a fim de ter contato com os botocudos, os guaianazes, os tupiniquins, com quanta espécie de índios mais ou menos bárbaros e selvagens que havia aqui. Dir-se-ia que todo aquele esforço intelectual anterior estava liquidado. Para tratar com os índios, do que adiantava isso?
Há uma espécie de desilusão nesse primeiro lance: se faz todo um esforço, o homem se torna primoroso; de repente, recebe a ordem: “Vá lá para o mato tratar com os tupiniquins!”
Utilizando seus dotes naturais como instrumento da graça divina
Anchieta tomou todos os recursos intelectuais que havia preparado e aplicou-os para o estudo do seguinte problema: Como são essas almas que Deus me manda evangelizar? Qual é a psicologia delas? Como entendem as coisas? Para começar, qual é a língua desses indígenas? Eles têm uma gramática? Falar-lhes na sua própria língua é um primeiro passo para ter influência junto a eles e abrir-lhes os corações, porque ficam contentes ao ver que um homem branco, civilizado, aprendeu e fala o idioma deles.
Então, o Padre Anchieta estuda a língua tupi, faz uma gramática, uma espécie de dicionário. Desse material tosco, ele recolhe, com jeito, todos os conhecimentos necessários para entender a alma dos índios, a fim de saber como tratar com eles, para compreender sua instabilidade, como mudam continuamente de atitude e disposição em relação a alguém.
Que coisa difícil é lidar com um selvagem, de maneira que, aos poucos, ele se civilize! É mais árduo elevar um tupiniquim à condição de um católico do que um homem, nas mais altas cortes da Europa, encantar os reis e as rainhas pela sua própria cultura.
Anchieta tomou os recursos que ele tinha e os aproveitou, na aparência, para uma obra inferior, isto é, tratar com “sub-homens”; mas na realidade era uma obra dificílima, uma super-obra, precisamente porque se tratava de tomar os pobres índios, filhos amados de Deus, cuja salvação Ele quer, e elevá-los à condição de homens civilizados.
De que maneira a Providência agiu?
Antes de tudo, mandou graças extraordinárias para esses índios a fim de que, em contato com o Padre Anchieta, seus corações ficassem tocados. A graça fazia com que eles possuíssem admiração pelo santo missionário, se sentissem adoçados em companhia dele, tivessem grande desejo de estar, para falar — um pouquinho que fosse — com ele. Era efeito da graça vinda do alto, que dispunha seus corações para receber aqueles bens naturais que Anchieta pusera na sua própria alma e transmitia a eles. A graça baixava sobre esses dons naturais, dando-lhes um brilho sobrenatural, e ele os apresentava para os índios, que ficavam encantados.
Além disso, havia os milagres realizados por Deus para prestigiar o Padre Anchieta diante dos índios. Vê-se como a Providência ama os indígenas, quer o bem deles, e faz todo o possível para que correspondam à graça.
Salvo por um milagre, contribuiu para salvar inúmeras almas
Dou mais um exemplo. Anchieta estava escrevendo aquele poema a Nossa Senhora — ao qual me referi —, que é um poema lindo, composto em um latim muito puro, nas areias ainda virgens do litoral brasileiro. Escrever um poema em latim! Podemos imaginar o que isso representa de contraste com todo o ambiente que o rodeava.
Como não possuía tinta nem papel, ele escrevia com a ponta de uma vara na areia e decorava. Depois de ter decorado — ele tinha boa memória —, compunha mais um tanto. Evidentemente, uma coisa movediça, porque a noite chega, a maré sobe e apaga tudo; do que ele havia escrito não ficava nada. Portanto, ou guardava na memória, ou não adiantava.
Houve um tratado entre os portugueses e os índios, pelo qual os primeiros se comprometiam a determinadas obrigações para com os indígenas. Mas estes ficaram desconfiados que os portugueses não cumprissem sua parte. Então, o chefe dos portugueses entregou o Padre Anchieta como refém e disse: “Se nós não cumprirmos, matem-no”. E ele, como ainda não sabia falar a língua dos índios, tinha muito tempo livre, e aproveitou-o para escrever esse poema, enquanto aguardava o desfecho do caso.
Estava ele redigindo de costas para o mar — com certeza por causa da posição do sol, de um jogo de luz —, e não percebeu o que estava se dando atrás dele. A maré estava subindo, subindo… Os índios, vendo o que estava acontecendo, começaram a se refugiar em algumas elevações próximas. Eles percebiam que haveria um momento em que o mar deglutiria o Padre José de Anchieta. Então, gritavam frases que o santo missionário não entendia, mas que queriam dizer, mais ou menos, o seguinte: “Preste atenção! Tome cuidado! A água vem chegando!”
Mas, impressionado com a beleza do que estava compondo e, mais ainda, com a incomparável pulcritude moral d’Aquela em honra de Quem ele escrevia, o Padre Anchieta não se incomodou.
Em certo momento, por gestos dos indígenas, o santo missionário percebeu que estavam apontando para alguma coisa atrás dele. O Padre Anchieta olhou, e era o mar que formara uma parede, mas não o cobria porque Deus não permitia. E os índios, por serem muito emotivos e gostarem dele, começaram a berrar, pois não queriam que Padre Anchieta morresse. Só então ele percebeu a situação e saiu correndo. O mar o foi acompanhando, sem degluti-lo, até uma distância onde se espraiou naturalmente na linha do litoral.
Ele estava salvo por um milagre, e foram salvas inúmeras almas de índios que, encantados com aquilo e percebendo haver algo de sobrenatural, começaram a acreditar no que ele dizia.
Vemos em tudo isso o papel da graça, este dom de Deus, recebido no Batismo, que nos faz participar da própria vida divina, e nos confere uma energia, uma clareza de vistas, uma superioridade maiores do que aquelas que nos são próprias segundo a natureza. E começamos a entender, a falar, a fazer coisas maiores do que seríamos capazes naturalmente. É o mais alto dom que uma criatura pode receber.
Quando chegarem horas difíceis, talvez haja momentos em que julgaremos estar tudo perdido. Lembremo-nos de que essas são as horas de ganhar tudo; não duvidemos de nossa vitória, pois é Nossa Senhora Quem combate por nós. Se rezarmos a Deus por meio d’Ela, confiando em Maria Santíssima contra toda aparência, as águas se levantarão em torno de nós e não nos deglutirão, como aconteceu com o Padre José de Anchieta.
(Extraído de conferências de 11/10/1971, 7/6/1981 e 27/2/1993)
Rei e centro de todos os corações
Era a festa do Sagrado Coração de Jesus. No auditório Nossa Senhora Auxiliadora(1), sob o comprazido olhar de Dr. Plinio, um grupo de jovens discípulos entra em cortejo portando uma bela imagem de Nosso Senhor, enquanto entoava-se a ladainha com invocações a Ele dirigidas. Ao final do cântico, pronunciou Dr. Plinio as palavras aqui recordadas.
A celebração de hoje possui tantos aspectos quantas as invocações desta ladainha, tão ricas que sobre cada uma delas se poderia fazer uma conferência.
Com efeito, todo católico que permanece fiel aos mandamentos da Lei de Deus precisa admirar as virtudes suplicadas nessa prece, pois são essenciais para a vida espiritual. Em sua existência terrena, Nosso Senhor deu exemplos salientes, flagrantes e belíssimos dessas virtudes; exemplos indeléveis que iluminarão o mundo durante toda a História da humanidade na Terra, e os bem-aventurados no Céu, por toda a eternidade.
Mais do que reinar sobre pessoas
Há, porém, uma invocação especialmente digna de nota e sobre a qual tecerei alguns comentários: Coração de Jesus, Rei e centro de todos os corações.
Na Igreja, todas as coisas, por mais que toquem no sentimento — e isso é bom —, têm razão de ser profunda, porque baseadas na Teologia e, portanto, numa doutrina muito sólida e segura.
Devemos nos perguntar, então, qual a diferença entre ser Rei e centro de todos os corações.
Sendo Nosso Senhor verdadeiro Deus e verdadeiro homem, é Rei de todas as coisas e, por conseguinte, dos homens. Mas, há diferenças entre governar um povo e reinar nos corações dos súditos.
Um monarca é capaz de exercer efetivamente o poder por direito, entretanto se não manifestar as virtudes e qualidades próprias à realeza, poderá ser malquisto e até detestado pelo seu povo. Donde, reinar nos corações é muito superior a imperar apenas sobre as pessoas.
Senhor da nossa vontade
Estendamos a análise. Segundo antiga simbologia, o coração representa a afetividade do homem. Assim, a mencionada invocação significa que Jesus tem o direito e, de fato, o poder de atrair o afeto e o carinho de todos os homens.
Porém, tais sentimentos fazem parte de um todo, a vontade humana, maior do que as partes, da qual Nosso Senhor é, pois, o Rei e o centro. Assim, cumpre que essa vontade reconheça o dever de amá-Lo, e cabe a nós praticar o ato volitivo ordenado a esse amor, embora às vezes nos encontremos na aridez e numa completa falta de sensibilidade de carinho e afeição (provação, aliás, freqüente na vida espiritual). Seja como for, importa termos a vontade firme, de têmpera, séria, a qual se acha convicta de que Jesus tem o direito de ser este seu Rei, centro de todos os corações.
Na prática, uma realeza não reconhecida
Tal verdade, considerada e compreendida desse modo, é realmente irretorquível e bela. Mas, poder-se-ia perguntar, na prática, no quotidiano dos homens, será efetiva?
Recordemos as cenas da Paixão do Redentor. No Horto das Oliveiras, Jesus se queixou dos Apóstolos que O acompanhavam, porque não vigiaram com Ele durante uma hora. Enquanto isso, Judas se apressava em traí-Lo. Por duas vezes veio ao encontro dos discípulos, banhado em sangue que transudara por causa do seu estado de aflição e pavor, e que deveria incutir neles compaixão pelo Mestre. Porém, suas sensibilidades não se moveram. Apenas despertaram, viram-No e continuaram a dormir…
Mas, o pior consistiu em que eles não tinham firme vontade e resolução de Lhe fazer companhia, de consolá-Lo e depois segui-Lo até o alto do Calvário. Os episódios subsequentes o demonstram de forma dolorosamente clara.
Ora, como acima entendemos, Nosso Senhor tinha o direito de ser Rei daqueles corações. Entretanto, não o era de fato, porque aquelas vontades não reconheciam a sua realeza, não era desejado nem querido como deveria sê-lo.
Toda a falta de responsabilidade dos Apóstolos nos acontecimentos culminantes da Paixão mostram do que é capaz o homem, quando tem para com o Redentor apenas um carinho sensível, e não a força de vontade a qual, na aridez e até na desolação, o torna fiel.
Reino de Maria, Reino do Coração de Jesus
Então, nos indagamos: quando o reinado do Sagrado Coração de Jesus será efetivo na Terra?
Respondemos com o grande São Luís Grignion de Montfort: no Reino de Maria.
Compreende-se. Nossa Senhora está sempre voltada para Cristo. Estabelecer o reino d’Ela é instaurar o do Sagrado Coração de Jesus.
Pelas preces insistentes da Santíssima Virgem, já agora e, sobretudo, no seu reino, será concedido aos homens, não apenas os maiores graus de sensibilidade para com o Coração de Jesus, mas uma extraordinária firmeza de vontade em relação aos seus régios desígnios. Quer dizer, sendo Ele nosso Rei por direito, auxiliados pela graça tomaremos sempre a atitude de súditos diante de seu monarca, não recuando sequer face à necessidade de dar a vida em defesa de seu reinado, batalhando nos degraus do trono.
O papel das firmes convicções
É necessário acrescentar que ninguém terá vontade firme se não possuir igualmente convicções sólidas. Quem não estiver persuadido, por uma fé inabalável, da divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo e da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, será incapaz de grandes resoluções. Chegada a hora do sacrifício e do holocausto, haverá um choque. O instinto de conservação da vida ou dos bens que lhe convêm — como a riqueza, a reputação, a posição social, a saúde, etc. — estando ameaçados, a tendência será poupá-los em benefício do interessado. O egoísmo é a hipertrofia desse instinto.
Nesse momento, surgirá uma pergunta soprada pelo próprio instinto: “O motivo pelo qual me vou sacrificar a Ele, resistirá verdadeiramente ao raciocínio?”
Tal indagação será um jeito que a covardia humana encontrará para fugir do dever, sem ter a sensação de o estar violando: “Afinal, eu me examinei naquela circunstância, e me dei conta de que minhas razões não eram suficientemente definidas e vigorosas; portanto, não tenho obrigação de me sacrificar. Não estou persuadido da necessidade de semelhante atitude”.
Compreendemos, então, como a persuasão é um elemento fundamental desse conjunto de fatores por onde Nosso Senhor Jesus Cristo é aceito como autêntico Rei dos corações.
Assim, nossas certezas precisam ser tão firmes ou mais quanto nossas resoluções. O católico deve dizer para si mesmo: “Tenho uma fé inabalável, a qual exclui qualquer dúvida de que Jesus Cristo é meu Deus e Redentor, esteve na Terra, realizou todas as ações narradas no Evangelho, entre outras a de fundar a Igreja, ensinou a doutrina e fez os milagres ali descritos; provou por meio de sua Ressurreição e Ascensão, a veracidade de tudo quanto Ele é e disse. Convicto dessas razões, estou disposto a morrer por Nosso Senhor”.
Corações feitos à imagem do de Jesus
Ora, não raramente observamos o contrário dessa certeza: o relativismo. “Jesus Cristo foi tão bom e santo, uma figura extraordinária que, provavelmente, tenha existido. Certeza disso não tenho, porque não estou habituado a ter certezas. Meu espírito vagabundo, relaxado e cínico, que não diferencia claramente a verdade do erro, mas baila num terreno pantanoso, não possui convicções. E, por mais que estudasse a questão — não o farei, porque não costumo estudar nada — sou incapaz de formar uma certeza, a qual supõe um coração firme”.
Percebemos, portanto, que na raiz da convicção encontra-se uma vontade segura e séria: “Verdade, eu te quero. Por causa disso, meu espírito à tua procura deve ser como um gládio que corta em duas partes as trevas e obtém a luz!”
Estes são os corações feitos segundo o Coração de Jesus. Ele nos deu todas as provas possíveis de ser o nosso arqui modelo, tendo feito seu sacrifício a ponto de bradar no alto da Cruz: “Meu Pai, meu Pai, por que me abandonaste?”, e, em seguida, expirar. Vale recordar que tal brado é o início de um salmo profético (cf. Sl 21, 2). Além disso, a frase de Nosso Senhor para o bom ladrão — “Hoje estarás comigo no Paraíso” — manifesta sua certeza e determinação de ir até o fim, através dos piores escolhos e das maiores dificuldades. O Coração de Jesus é, pois, nosso exemplo arqui perfeito da fé, da vontade e das convicções inabaláveis.
Manancial de graças e misericórdias
Mais ainda. É a própria fonte de onde irradiam as graças pelas quais somos capazes de adquirir essa certeza e a força de vontade que o homem, por si mesmo, é incapaz de possuir quando tem em vista fins sobrenaturais. Somente o consegue mediante o auxílio das graças do Céu.
Compreendamos então o aspecto sensível do símbolo: o Coração de Jesus é o receptáculo repleto de misericórdia e afeto para quem Lhe rogue essas graças. Ele deseja concedê-las e está à espera, na infinidade de suas riquezas, de alguém que Lhe peça uma parte ou a plenitude delas — conforme caiba na alma de cada pessoa — para atender com inimaginável abundância.
Acredito serem tais considerações extremamente propícias a nos secundar em nosso progresso na vida espiritual, pois nos apresentam os elementos necessários para vencermos a tibieza e a indolência que eventualmente nos assaltem nas vias de piedade que devemos trilhar.
Observados esses princípios que acabamos de analisar, Nosso Senhor, Rei de direito, torna-se Rei de fato. Se os homens forem assim — e não importa que o sejam todos numericamente falando, mas a parte de maior influência e irradiação na sociedade, aquela capaz de conduzir as vontades conforme o Sagrado Coração de Jesus — o Reino de Maria estará implantado.
Multiplicidade de aspectos da devoção ao Sagrado Coração de Jesus
Enquanto a Revolução quer que as pessoas não tenham amor autêntico umas às outras, mas sejam completamente egoístas, a Contra-Revolução promove um relacionamento humano fundamentado no verdadeiro amor, o qual converge para o Sagrado Coração de Jesus, que é o centro de tudo. Portanto, Ele é o centro da Contra-Revolução.
O fenômeno revolucionário, examinado como ele está descrito em meu livro Revolução e Contra-Revolução, é antes de tudo um problema espiritual. O resto é secundário, colateral, por maior importância que tenha.
Portanto, o aspecto mais importante é a atitude que o fiel toma em relação a Nosso Senhor Jesus Cristo, e mais especialmente ao Sagrado Coração d’Ele, que é a quintessência de tudo quanto há n’Ele de perfeição e de amor.
Por que esse é um ponto fundamental?
A relação dos homens com o Sagrado Coração de Jesus é o centro do relacionamento humano
O centro das relações humanas é o amor que as pessoas tenham entre si. É uma coisa evidente.
Se nas relações de duas pessoas o centro é a simpatia e a antipatia existente entre elas, tomando em consideração uma qualidade muito maior do que essas meras disposições humanas, a observação é válida do mesmo modo, ou até vale mais acentuadamente.
É por esta razão que uma senhora, por exemplo, afeita a considerar a devoção como centro da vida espiritual, e o Coração de Jesus centro dessa devoção, pode ser o ponto de partida e o centro de toda a Contra-Revolução.
Assim, em última análise, aquele dito de Dona Lucilia “viver é estar juntos, olhar-se e querer-se bem” indica o centro da vida do homem na Terra.
De fato, na medida em que um homem tem pessoas a quem ame, com as quais conviva, às quais queira bem e das quais é, por seu turno, bem-querido, ele pode ser o centro de um entrelaçamento enorme de relações, em que tudo corre retamente, porque esta é a própria definição da retidão das relações dos seres humanos entre si.
E para que tudo corra bem e retamente nessas inter-relações, é preciso compreender que se deve ter como ponto de partida o próprio homem, e tudo aquilo que ele faz. Por causa disso, a relação dos homens com o Sagrado Coração de Jesus é o centro de tudo. Logo, o centro da Contra-Revolução.
No caso concreto, a Revolução quer, sobretudo, que as pessoas não tenham amor autêntico umas às outras, amor a nada nem a ninguém, mas sejam completamente frias, egoístas.
Por outro lado, ela quer que esse enregelamento de volições e de apetências seja durável e perpétuo. Então nós temos todo um relacionamento humano errado, enquanto que se considerarmos o relacionamento humano voltado inteiramente para o bem, veremos como a situação muda completamente de aspecto.
Então, o ponto principal é saber por que os homens devem amar especialmente o Sagrado Coração de Jesus e se, de fato, O amam. Se não amam, como devem fazer para adquirir esse amor? Esse é o centro da espiritualidade católica.
Uma das formas de retidão do Reino de Maria
Essa devoção marcou a vida inteira de Dona Lucilia e foi certamente neste ponto que ela mais atuou sobre mim. Quer dizer, as relações de mamãe com as pessoas a quem ela quis bem eram desenvolvimentos desse relacionamento com o Sagrado Coração de Jesus.
Quando eu era pequeno, tinha o defeito de ser muito volúvel em minhas relações de amizade. Fazia relações boas e, de repente, aquilo me cansava, eu metia um “pontapé” naquele amigo como se nunca tivesse existido e pegava outro. E Dona Lucilia não gostava nada disso.
— Onde é que está tal amigo seu? — perguntava ela.
— Mamãe, ele está por aí — eu já tinha dado o “pontapé” nele e não queria saber.
— Mas por aí aonde? Ele saiu da Terra?
— Não, meu bem, quer dizer, ele…
— Olha, Plinio, eu já estou vendo o que aconteceu. Você já se enfarou dele e já lhe meteu um “pontapé”. É uma pessoa que lhe queria bem e a quem você não podia fazer uma coisa dessas.
— Mamãe, ele é muito sem graça…
— Você lá sabe se outras pessoas não acham você sem graça e, entretanto, devem querer bem a você? Queira bem aos outros…
Vê-se que para ela as relações afetuosas, bem centradas sobre os temas em que deviam ser, era uma coisa inestimável. É compreensível que Dona Lucilia queira nos obter isto de Nossa Senhora e fazer disto uma das formas da retidão no próprio Reino de Maria na Terra.
De fato, nas revelações a Santa Margarida Maria Alacoque, o Sagrado Coração de Jesus dava a entender que a devoção a Ele traria ao mundo uma era que os devotos do Sagrado Coração de Jesus chamaram de “o reinado social de Nosso Senhor Jesus Cristo”, o qual corresponde ao Reino de Maria.
Em determinado momento virá, sem dúvida, uma graça excepcional de devoção ao Sagrado Coração de Jesus, e tem-se a impressão de que surgirão almas privilegiadas que deverão espelhar, cada uma a seu modo, a multiplicidade de aspectos da devoção ao Sagrado Coração, e por esta forma dar a Ele uma glória especial.
Erros que avançavam à maneira da lava que escorre das montanhas
Por outro lado, quando vemos Nosso Senhor falar a respeito da consagração ao seu Sagrado Coração, tem-se a impressão de que Ele considera a batalha entre a piedade e a impiedade, o bem e o mal, a verdade e o erro, um combate que se porá sempre, em termos gerais, na linha em que ele estava posto já no tempo de Santa Margarida Maria Alacoque.
Sem que esta visão deixe de ser exata, é preciso considerar, entretanto, que um aspecto dessa batalha foi mudando com o passar dos séculos, a ponto de merecer ser analisado separadamente. É o modo pelo qual o erro começou a combater a verdade, disfarçando-se de tal maneira, primeiro no modernismo, e depois, cortado o modernismo por São Pio X, em erros congêneres até nossos dias.
Dir-se-ia que o erro passou a ser tão envolvente, penetrante e dominador, dentro da própria Igreja, que o curso das coisas mudou na perspectiva do Sagrado Coração de Jesus — o que seria um absurdo —, e que se inaugurou um clima de luta onde nem a devoção ao Sagrado Coração de Jesus tinha muita coisa a fazer, porque já não é mais o erro contra a verdade, mas a pseudo verdade contra a verdade, o pseudo bem contra o bem.
De tal maneira que a luta principal passou a ser interna e produziu na Igreja movimentos tão desastrados, que devoções como a do Sagrado Coração de Jesus e a do Imaculado Coração de Maria saíram da ordem do dia na piedade corrente.
Sempre me chamou muito a atenção, na devoção ao Sagrado Coração de Jesus, a noção de que Ele estava sendo ofendido, traído, abandonado de um modo horrível pelo ateísmo, pelas formas expressas de combate contra a Igreja, mas também por uma espécie de moleza dos católicos em reagirem contra todas essas ações anticatólicas.
Parecia-me que o conjunto da luta da impiedade declarada e o relaxamento, a moleza e a indiferença de pessoas que se diziam católicas — e o eram, mas católicos relaxados na miserável força do termo — constituía um pecado, uma ofensa enorme a Nosso Senhor Jesus Cristo.
Tanto quanto eu percebia, esse movimento vinha de muito antes, avançando à maneira da lava que escorre das montanhas: um líquido espesso, viscoso que vai indo com um jeito meio pesadão, cobrindo e dominando tudo. Nosso Senhor Jesus Cristo, portanto, nessa perspectiva era ofendido.
Ademais, eu notava outra coisa que também me chocava muito: falava-se, certamente, da devoção reparadora à apostasia social em relação a Nosso Senhor Jesus Cristo e ao reinado de seu Sagrado Coração. Contudo, não era o ponto sensível das cogitações sobre o Sagrado Coração de Jesus.
O ponto sensível — aliás, ponto adorável, admirável que, se bem orientado, faz prever a vitória d’Ele de um modo muito assinalado — era a ideia de que Nosso Senhor Jesus Cristo era a personificação da misericórdia.
Na simbologia do tempo, a devoção ao Sagrado Coração de Jesus era a devoção do pecador ao qual pesa andar mal, mas não tem coragem nem força para tomar a resolução de passar a andar bem e que, portanto, só teria razões para se desesperar.
Entretanto, esse pecador nessas condições, tomando em consideração a misericórdia infinita do Sagrado Coração de Jesus, se implorasse essa misericórdia e recebesse graças intensas e fortes, se realizariam nele as palavras do Salmo: “Asperges me hyssopo, et mundabor; lavabis me, et super nivem dealbabor” (Sl 50, 9) — aspergi-me e ficarei puro; lavai-me e me tornarei mais branco do que a neve.
Devoção que cessava na emoção e não gerava frutos de verdadeira conversão
Tudo isso é verdadeiro. Entretanto, o desvio estava na difusão da ideia de que essa transformação se dava sem esforço do pecador, por um movimento concebido como partindo do Sagrado Coração de Jesus e mais nada, e trazendo automaticamente uma correção, uma retificação da posição moral do pecador, quase por encanto, e muitas vezes consistindo em uma graça recebida na hora da morte.
Quer dizer, pessoas que se consideravam tão más que sabiam não adiantar vir com correções durante a vida, mas, na hora da morte, receberiam uma graça assim. E a pessoa, nesse último instante, ganhava o Céu.
Essa concepção dava a inúmeros católicos um desejo de acabar se salvando, mas não um desejo muito ardente de correção moral nesta vida. É uma espécie de loteria para, nas vésperas ou no dia da morte, ser ganha e ir para o Céu. O resto do tempo, a pessoa levou vida gostosa na Terra.
No modo de tratarem da devoção ao Sagrado Coração de Jesus e de falarem dela ao pecador, poucas coisas estimulavam o desejo de uma retificação e de um bom andamento espiritual diante de Jesus ofendidíssimo querendo uma reparação.
Estimulava-se um movimento emotivo diante de tanta misericórdia. Mas esse movimento emotivo cessava na emoção, a qual não era geradora de penitência, em grande número de casos, mas apenas de uma piedosa tristeza que não dava em nada, conservando-se inteiramente estéril.
Então, essa devoção, insinuada assim, com essas supressões de determinados aspectos inerentes a ela, acabaria sendo uma forma de piedade que era a melhor possível para o pecador, considerados os interesses meramente terrenos dele.
Porque, em última análise, ele recebia graças inefáveis, e não era obrigado, e nem sequer estimulado, a uma contrapartida, mas simplesmente a chorar: “Ah! como eu tenho pena de estar nessa vida de pecado, ofendendo a Deus… Que pena! Mas afinal, continuarei nessa vida… Posso até usar um escapulário do Coração de Jesus, conservar um detente, com a efígie de Jesus mostrando seu Sagrado Coração, para evitar que tiros possam bater em mim…”
Isso contribuía para dar ao pecador uma presunção temerária de salvar-se sem estar, de fato, tocado por uma autêntica devoção.
Conheci incontáveis pessoas nas quais essa devoção era vivida assim.
Para esse tipo de gente, não havia a preocupação da globalidade da sociedade que está se perdendo, nem da batalha em favor de conservar ou não uma Civilização Cristã no mundo. Tinham a questão da salvação, sobretudo, como uma preocupação individual: para si, a esposa, os filhos, e acabou-se.
Entre essas pessoas não vi um caso de alguém que quisesse converter outro por ser este capaz de converter um grande número de pessoas. Esse horizonte maior, de converter muita gente, se esfumaçava na concepção dessa atitude devocional e isso desaparecia.
Desvio provocado pelo sentimentalismo
Notava-se muito isso nas orações compostas ao Sagrado Coração, que giravam, na imensa maioria dos casos, em torno de problemas pessoais. Eram, em geral, muito sentimentais.
Para os adeptos desse tipo de devoção, a lógica parecia uma coisa dura, inflexível, contrária à bondade. De maneira que até mesmo o uso de argumentos muito lógicos para propagar a devoção não era visto como o melhor meio. O melhor meio era apresentar Nosso Senhor nos fazendo grande bem, sem a preocupação de retribuir-Lhe adequadamente. Porque, afinal, que mal havia em não Lhe retribuir adequadamente? Não existia a noção clara, definida, de um pecado contra a justiça.
O principal era incutir a ideia de que o pranto do Sagrado Coração, em rigor de sentimentalismo, deveria provocar um pranto nosso que fosse o eco do d’Ele, mas o eco afetivo.
Assim, o coração era apresentado como sendo a impressionabilidade sentimental, e não a mentalidade, o propósito, o ânimo, a decisão do homem.
Por causa disso a pessoa, não sendo sentimental, ficava meio exilada desse campo. E, como tal, embora não fosse malvista nem perseguida, também não era promovida; ela ficava no ‘bas-fond’ do mundo das associações religiosas, quer dizer, na parte dos ignorados, dos não influentes dentro dessas associações.
Não quero fazer a mínima censura — porque isso estaria longe da boa doutrina — ao uso largo do sentimento como elemento da piedade. A minha ideia é essa: quantum potes tantum aude — quanto se possa tanto se ouse — utilizar o sentimento como elemento indispensável e complementar da piedade. Mas fazendo entender bem que sem o raciocínio iluminado pela Fé, sem a decisão firme e forte da vontade motivada por razões doutrinárias específicas e adequadas, o resto não está bem. E é exatamente neste ponto em que entramos em desacordo com essa concepção equivocada de devoção.
Cheguei a ouvir críticas a essa devoção no sentido de que o amor amolece, é uma espécie de ópio que anestesia as firmezas, as vitalidades da alma e, portanto, era preciso deixar de lado, para dar lugar ao raciocínio. Contra isto eu protesto com toda a força de minha alma. Mas que esteja ausente, ou fora do lugar que lhe é devido na hierarquia das coisas, a parte intelectiva e a volitiva, com isso não posso concordar de nenhum modo.
Quando Nosso Senhor deseja vencer pela misericórdia e quando pela punição?
Há outro aspecto importante a considerar na devoção ao Sagrado Coração de Jesus.
Quando Nosso Senhor disse a Santa Margarida Maria Alacoque “vencerei”, o tom que está presente objetivamente, não como uma elucubração, é o de que, em muitos casos, a misericórdia d’Ele chegará a tal extremo que vai tocar os mais miseráveis e os mais infames, e alcançará, por esta via, conversões fulgurantes. Portanto, a vitória é sobre os improváveis, os inimagináveis, por meio dessa misericórdia que vai até o fim, por onde Nosso Senhor venceu, por exemplo, o Bom Ladrão.
Uma questão muito bonita seria: quando é que Nosso Senhor deseja vencer pela misericórdia e quando Ele quer vencer pela punição?
Eu tive um manualzinho, um tratadinho de devoção ao Coração de Jesus, que comprei exclusivamente pelo seguinte: folheando, antes de comprar, vi que o título do primeiro capítulo era “As iras do Coração de Jesus”.
O capítulo sustentava a tese de que Nosso Senhor, tendo a natureza humana perfeita, não podia deixar de ter iras também. O livro indicava os episódios da vida de Jesus nos quais Ele manifestou essas iras. E concluía que uma devoção ao Coração irado de Jesus teria todo o cabimento teológico.
Mas eu não ouvi falar de um caso no mundo de devoção ao Coração irado de Jesus, que pedisse aos outros corações a ira santa tão necessária para bem conduzir o bom combate.
Vê-se nisso um combate à combatividade que, por silêncio e ablação, criavam um ambiente devocional falso. Ora, esse silêncio é próprio a despertar as iras do Coração de Jesus.
Como reparação por esses equívocos, poder-se-ia rezar, por exemplo, a seguinte jaculatória: “Ó Coração irado de Jesus, comunicai-me a vossa ira santa, de maneira a fazer de mim um competente batalhador por Vós.”
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 24/4/1994 e 22/1/995)
O citarista do Espírito Santo
Santo Efrém, Padre da Igreja, dos primeiríssimos séculos do Cristianismo, cantava muito bem, fazendo-se acompanhar de uma cítara, e compunha versos maravilhosos a respeito de Nossa Senhora, a ponto de ser tido como um Doutor da Mariologia. Seus versos, apesar de simples e acessíveis a todo o povo, tinham tal densidade de poesia, tal beleza e tal riqueza doutrinária, que ele passou para a História da Igreja como o “citarista do Espírito Santo”.
Dir-se-ia que o Espírito Santo não só falava, mas cantava pelos sons harmoniosos de sua laringe e fazia vibrar a graça divina nas almas, ao diapasão da cítara com que Santo Efrém entoava cânticos.
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/11/1972)