Santo Elias, Profeta

É bem verdade que os grandes feitos tornam notórios muitos homens. Entretanto, o que dizer de quem obteve fogo do céu, fez cessar a chuva, e invectivou, ademais, rei, coorte e sacerdotes? O Antigo Testamento viu passar diante de si um ardoroso profeta:  Elias o “ígneo”.

 

A vida do Profeta Elias pode ser dividida em etapas: o enfrentamento com o Rei Acab e o arrebatamento num carro de fogo.

O homem do Deus de Israel

Na primeira delas, vemos Elias colocado diante do povo de Israel, bem amado de Deus, mas governado pelo Rei Acab, que por sua vez era dominado por sua esposa Jezabel, uma mulher ímpia. Esta havia introduzido o culto do deus imoral, impudico(1), Baal, entre o povo eleito.

Diante disso, Elias pregava contra Baal e fazia todo o possível para que o rei e a rainha se convertessem, dando assim o bom exemplo, e os judeus voltassem ao culto do verdadeiro Deus. Mas na realidade as palavras dele não tiveram resultado. Os soberanos continuaram na idolatria.

Compreende-se que dentro dessa situação de tal maneira péssima, a cólera de um homem altamente virtuoso como Elias atingisse limites extraordinários, pois não havia outro caminho. Começa ele, então, a dar o grande de sua vida.

“Quem sabe vosso deus está dormindo?”

Com efeito, naturalmente por ordem de Deus, ele trancou o céu e não choveu durante três anos. E aquele povo, que vivia da agricultura e da criação de gado, não conseguia mais se manter: as ervas definhavam, o gado não tinha o que comer; a fome, a desolação e a miséria se instalavam por todos os lados.

Passados três anos, por ordem de Deus, Elias foi ao encontro do monarca,  desafiando os sacerdotes de Baal a uma confrontação no alto do Monte Carmelo.

Elias, com majestade, obteve a sua vitória sobre os baalitas: “Escolham um novilho para o sacrifício e façam o altar! Depois iniciem vocês por pedir ao seu deus que envie fogo e consuma a vítima em holocausto. Eu farei depois o mesmo. O deus que ouvir será o verdadeiro”.

Eles começam a implorar, a chamar e a executar danças religiosas, provavelmente impúdicas, pois Baal era o deus da imoralidade e da imundície; nada acontecia. Elias debicava deles: “Quem sabe se seu deus está dormindo! Gritem mais alto!” E eles gritavam, dançavam com mais frenesi e começaram então a se cobrir de sangue, cortando-se, para que Baal ouvisse.

Mas, quando o sol chegou a pino, o prazo designado por Elias cessou. Ele então, abstraindo da presença daquela gente, construiu um altar, molhou-o com abundância, para impedir qualquer dúvida de que houvesse algum artifício ou fraude, e depois invocou a Deus a fim de que fizesse descer o fogo do céu.

Imaginemos a grandeza da cena! O povo de Israel e diante dele um altarzinho singelo, mas enormemente respeitável, com um boi esquartejado em cima, tudo molhado e também cercado por um valo cheio de água; todos atentos.

Consideremos a majestade da hora da invocação de Elias. Homem venerável, já com a barba branca, provavelmente com uma túnica alva que lhe ia até os pés, ele reza ao Senhor, pedindo que afinal viesse o fogo do céu para provar ser Ele o verdadeiro Deus.

Elias, com uma prece simples, cheia de beleza, obteve a vinda do fogo. Podemos imaginar um fogo lindíssimo, com labaredas entre azul e vermelho, que desciam do céu e penetravam na carne daquele boi; um fogo de tal maneira devorador que consumiu as pedras do altar e fez evaporar toda a água colocada em torno dele. À medida que o fogo descia, Elias se tornava mais majestoso e grandioso, e, quando tudo estava queimado, o povo reconheceu: “Tu és verdadeiramente o homem do Deus de Israel”, prosternou-se por terra e adorou a Deus.

Exaltabit caput suum

A segunda fase da vida de Elias é misteriosa. Num carro de fogo, puxado por cavalos de fogo, ele é arrebatado num redemoinho.

Sua vida nos abre perspectivas certamente deslumbrantes. Porque para ser glorificado assim é preciso ter passado por humilhações sem conta. Só fundam as instituições muito seguras os homens que passaram por todas as inseguranças! Só fundam as nações muito intrépidas os homens que se expuseram a todos os riscos! Só abrem grandes sulcos de glória na História os homens que sofreram toda espécie de humilhações! “De torrente in via bibet, propterea exaltabit caput suum — Beberá da torrente no caminho; por isso, erguerá a sua fronte”(2). Quer dizer, trata-se de parcelas de gelo que se derretem e descem ao longo dos morros; e um viajante pobre e desamparado de recursos se põe de quatro para beber no chão, como um animal. Esse está no último da humilhação. Ele bebeu da torrente. Por isso, sua cabeça, sua fronte, será exaltada!

E sua glória se manifestou a eles

Devemos nos lembrar também de outro fato grandioso: Elias no monte Tabor, no dia da Transfiguração. Que predileção extraordinária! Nosso Senhor Jesus Cristo vai Se transfigurando e sua glória interna vai se manifestando aos Apóstolos que não cabem em si de deslumbramento. Ao lado d’Ele duas figuras aparecem. Nosso Senhor, não contente de manifestar a sua grande glória, quis mostrá‑la em dois servos eminentes, por Ele especialmente amados: Moisés e Elias.

Imaginemos todas as glórias que houve na História: os generais que obtiveram as vitórias mais brilhantes; os demagogos aclamados pelas multidões mais estrepitosas; os monarcas que receberam as homenagens mais reverentes; os sábios que tenham sido objeto de veneração dos homens mais ilustres e mais admirativos; os Santos diante dos quais se tenham dobrado as maiores multidões. O que tudo isso representa em comparação com a glória de Elias ao lado de Nosso Senhor no Tabor?

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 20/7/1991, 24/11/1990 e 20/7/1983)

 

1) Palavra grafada como o autor a pronunciava, procurando dar-lhe melhor sonoridade.

2) Sl 109, 7.

Santo Elias

Pelas narrações da Escritura e pelas imagens que o representam, Santo Elias nos aparece como um perfeito modelo de varão temente a Deus, sério, digno, majestoso, com o  coração imbuído de zelo no serviço do Altíssimo. A fisionomia possante, a barba espessa e farta, o fulgor do olhar de quem transmite os ditames divinos para o mundo, os  gestos, as atitudes, tudo nele reflete a ênfase — quase diria a pompa — dos profetas do Antigo Testamento.

E se não bastasse ser um espírito incendiado de amor ao Messias que viria, Elias teve por um de seus mais valiosos galardões a devoção à Santíssima Virgem, séculos antes  de Ela nascer.

Foi, com justiça, o precursor das gerações e gerações de filhos que louvariam e aclamariam Nossa Senhora como Bem-aventurada até o fim dos tempos.

Plinio Corrêa de Oliveira (“Santo Elias enfrenta o Rei Acab” — Igreja de São José, Madri)

Santa Macrina, modelo de educadora

Ao contrário do corre-corre e da dilaceração da existência nos dias de hoje, Santa Macrina cuidava dos afazeres domésticos, levando uma vida recolhida, calma e distendida, com muito espírito de oração. Dentro de sua casa, ela educou seus irmãos menores, que depois se tornaram grandes santos.

 

Tenho em mãos uma síntese biográfica de Santa Macrina, virgem, tirada da obra “Vidas dos Santos”, do Padre Rohrbacher(1).

Quatro irmãos santos

Nascida em Cesareia no ano de 327, Macrina, a Jovem, era filha de Emélia e Basílio, o Antigo, e irmã de Basílio, Bispo de Cesareia, de Gregório, Bispo de Nissa, de Pedro, Bispo de Sebaste.

Macrina era a mais velha, a “mãezinha”, a protetora, a incansável, da qual São Basílio, com emoção, fala que foi educadora perfeita.

A mãe inspirou-se na Escritura santa para formar a filha, buscando na Sabedoria de Salomão luzes para educá-la, ao passo que o Saltério foi o preceptor da jovenzinha.

Aos doze anos, ficou noiva, mas morrendo o pretendente não pensou noutra coisa mais, senão em se consagrar à educação dos irmãos.

Em 373, Emélia faleceu. Os filhos, já formados, de vez em vez vinham visitar a “Grande Macrina”, como a chamavam nos tempos da longínqua infância.

Quando doente, já perto da morte que a levou em 379, Gregório encontrou-a sobre uma tábua, com o cilício. Tomou-a carinhosamente e pô-la no leito, onde a moribunda, evocando o passado, pôs-se a render graças a Deus por tudo aquilo que, bondosamente, dignou-se conceder-lhe:

“Senhor, Tu acabaste com o medo da morte. Por Ti, a verdadeira vida começa quando se acaba a vida atual. Dormimos por uns tempos, depois nos ressuscitarás ao som da trombeta”. Depois: “Tu nos salvaste da maldição e do pecado, vindo por nossos pecados e nossa maldição”.

Com o Crucifixo de ferro, que encerrava uma relíquia da Cruz do Salvador, que sempre trouxera consigo, morreu em paz, sendo enterrada perto do pai e da mãe.

Vemos aqui o que é uma alta genealogia; os pais tiveram quatro filhos santos: São Basílio Magno, que superou o pai; São Gregório de Nissa, também grande santo e Padre da Igreja; São Pedro de Sebaste e Santa Macrina.

Pedagogia inspirada no Livro da Sabedoria e dos Salmos

A mãe inspirou-se na Escritura santa para formar a filha, buscando na Sabedoria de Salomão luzes para educá-la, ao passo que o Saltério foi o preceptor da jovenzinha.

Bons tempos aqueles em que a mãe abria o Livro da Sabedoria para aprender como deveria educar os filhos. Hoje, a maioria das mães não se lembra disso. E se puserem esse Livro nas mãos de algumas delas, não entendem ou não concordam.

Em 373, Emélia faleceu. Os filhos, já formados, de vez em vez vinham visitar a “Grande Macrina”, como a chamavam nos tempos da longínqua infância.

Portanto, eles souberam agradecer a educação que receberam desta irmã.

A ficha colhida parece ser um pouco vazia porque, afinal de contas, narra quem são os pais e os irmãos dela, conta que ela ajudou sua mãe a educar seus irmãos e, depois, diz que ela morreu, e nada mais.

Esse vazio pode ser preenchido com algumas considerações a respeito da vida feminina naquele tempo. Creio que daí virá algo de útil para nós.

O papel da mulher é ser o centro natural da família

Uma verdade elementar, acessível a qualquer pessoa, é que sendo a mulher e o homem pertencentes ao gênero humano, são, contudo, muito diferentes, devendo também caber, a cada um, tarefas diversas nesta vida. E se é próprio ao homem velar pela manutenção da família, é próprio à mulher permanecer dentro de casa e proporcionar ao homem um verdadeiro tesouro: uma casa habitada.

Quer dizer, a mulher deve ter seus filhos e educá-los. Depois de terem completado a sua educação, os filhos se casam. O papel da mulher é de ser o centro natural da família. De maneira que sua residência é o ponto de encontro dos filhos, dos netos. E o normal é que ela passe a maior parte de sua vida dentro de casa. Não quero dizer que a mulher deva sempre ficar em sua residência; mas o sair todos os dias de casa não é próprio a uma mulher com espírito feminino completamente bem formado.

A distração, o entretenimento da mulher, o ambiente onde ela completa a sua personalidade é dentro de sua própria casa e das residências dos parentes muito próximos, os quais ela deve visitar com uma relativa assiduidade, de acordo com as circunstâncias. Mas precisa encontrar a sua satisfação em estar dentro de sua própria casa.

Fazendo o que dentro de casa? Recebendo os seus, tomando conta do lar, rezando, e rezando bastante, e levando uma vida recolhida, calma e distendida. É o que a natureza da mulher pede.

Enquanto a natureza do homem requer que ele saia, exerça alguma atividade, lute, a natureza da mulher pede esse tipo de vida especial, que lhe proporciona as circunstâncias dentro das quais ela verdadeiramente se salva, e pode se santificar.

Eu conheci senhoras para as quais o normal era não sair de casa. Quando saíam, era aos domingos para ir à Missa, e uma vez ou outra a fim de fazer compras ou alguma visita. No período em que as filhas deviam contrair matrimônio, elas tinham que sair um pouco mais. Fora disso estavam dentro de casa, onde levavam sua vida habitual.

Essa vida impregnada de calma, de piedade, podia conduzir, conforme fosse o espírito da mulher, a um alto grau de santidade, ou a uma virtude comum. Mas na maior parte das vezes, era uma virtude sólida que dava um eixo, um sustentáculo moral à vida de família.

Esta foi, sem dúvida, a vida de Santa Macrina.

Cuidar dos afazeres domésticos com espírito sobrenatural

Depois de ter cumprido a sua missão na Terra, educando três santos para a Igreja, e transmitindo-lhes a educação que recebera, ela não entrou para um convento. Poderíamos esperar que, sendo uma santa, tivesse resolvido entrar para um convento, ou então ir para uma Tebaida, um lugar remoto. Não. Ela ficou em sua residência e ali levou a vida de uma dona de casa. Fez o menu, cuidou que as coisas não se deteriorassem, dirigiu as criadas, manteve um certo número de relações que era natural que mantivesse, e consagrou o principal de seu tempo à oração. Fez tudo isto com espírito sobrenatural, tornando-se uma grande santa.

É um modo de santificar-se nas condições normais de uma existência sadia, razoável, e não o corre-corre e a dilaceração da vida nos dias de hoje, tão contrária à natureza da mulher e mesmo do homem. Normalmente, uma mulher virtuosa, vivendo aquela vida e impregnando-a intensamente do sobrenatural, se salva. Compreende-se que, não tendo recebido de Deus uma vocação especial, Santa Macrina permanecesse em casa com seus pais.

E essa sua vida foi coroada, em primeiro lugar, pela presença de um tão grande santo, irmão dela, para assistir à sua morte. Foi coroada também pelas lindas palavras que ela proferiu antes de morrer. Palavras de Fé, de quem sabia que não ia terminar, mas ressuscitaria depois, confiante de que a misericórdia divina a receberia no Céu.

Ela levou até o fim da vida uma cruz de ferro, dentro da qual estava embutido um fragmento da verdadeira Cruz. Podemos notar, através desses dados, que ela morreu como tinha vivido, quer dizer, santamente, e foi objeto da veneração dos três santos por ela formados e que a chamavam a “Grande Macrina”.

O que essa “Grande Macrina” fez? Aparentemente nada. Ela educou três crianças, que depois se tornaram grandes santos. E o que mais? Educou-os em sua casa, magnificamente, rezando e vivendo piedosamente uma existência normal. Com isso ela se santificou, adquiriu uma virtude heroica e está no Céu. A Igreja a canonizou. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 24/7/1971)

 

1) Cf. ROHRBACHER, René François. Vidas dos Santos. Vol. XIII. São Paulo: Editora das Américas, 1959. p. 178-179.

 

Santo Elias

Santo Elias constituiu a primeira ordem religiosa que houve na História, antes mesmo do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo. Seus membros, que moravam nas encostas e no alto do Monte Carmelo, foram os precursores da Ordem do Carmo.

Foi ele um príncipe entre profetas, verdadeiro condutor do povo de Deus. Lutou contra os erros do seu tempo, num momento em que a nação eleita estava muito deteriorada, e salvou-a da ruína.

Escolhido para dirigir o povo de Deus num momento de hecatombe, ele concentrou em si todo o espírito que o Criador queria dar à nação judia a ser ressurgida. Nesse espírito derivado da Providência Divina foi formada uma rede de eleitos, sendo o mais famoso deles Eliseu, que pediu o duplo espírito de Elias, e o obteve.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 20-7-67)

O esplêndido palácio da coerência

Movida por seu ódio a Deus e à Igreja, a Revolução Francesa supliciou grande número de eclesiásticos e religiosos, além de uma quantidade incontável de leigos. Entre suas vítimas, encontram-se as carmelitas de Compiègne que foram guilhotinadas, única e exclusivamente, porque amavam ardorosamente a Religião Católica.

 

Em 17 de julho comemora-se o martírio das 16 carmelitas de Compiègne(1), guilhotinadas nesse dia, em 1794. Com frequência, a Igreja celebra a festa dos mártires no dia de sua morte, porque foi o mais glorioso dia de suas vidas, e também porque nasceram para a vida eterna.

Firmeza heroica diante do tribunal revolucionário

A respeito de uma delas, Irmã Marie Henriette de la Providence, que contava com 34 anos por ocasião do martírio, escreveu a Irmã Marie de L’Incarnation, biógrafa das santas mártires:

Quando as religiosas entraram no tribunal, Irmã Henriette distinguiu-se sem pretensão por uma atitude de firmeza verdadeiramente heroica; tendo ouvido o acusador público tratá-las de fanáticas, interpelou-o deliberadamente:

 “Queira, cidadão, dizer-nos: o que entende por essa palavra ‘fanática’?”

O juiz, irritado, respondeu-lhe com uma torrente de injúrias que vomitou contra ela e suas companheiras.

Nossa Santa, nem um pouco desconcertada, disse-lhe com um tom de dignidade e firmeza:

— Cidadão, vosso dever é honrar o direito a uma pergunta de uma condenada. Eu vos peço, portanto, que nos responda e nos diga o que entendeis pela palavra “fanática”.

— Eu entendo — respondeu Fouquier-Tinville — o vosso apego por vossas tolas práticas de religião.

Irmã Henriette, depois de haver agradecido, voltou-se para a Madre Priora e disse:

“Minha querida Madre, minhas irmãs, vós acabais de ouvir o acusador declarar que é por nosso apego a nossa santa Religião que vamos ser mortas. Todas nós desejávamos esse testemunho e nós o veneramos. Graças imortais sejam dadas Àquele que, em primeiro lugar, nos abriu o caminho do Calvário. Oh! que felicidade morrer por nosso Deus!”

Segundo outra versão, Fouquier-Tinville teria respondido:

— Pelo que quereis conhecer, saibais que é por vosso apego à vossa religião e ao rei.

Ao que Irmã Hentiette teria dito:

— Agradeço, cidadão, essa feliz explicação.

 E, voltando-se para as companheiras, teria declarado:

“Minha querida Madre, minhas irmãs, exultemos e regozijemo-nos na alegria do Senhor, porque morremos por causa de nossa santa Religião, nossa Fé, nossa confiança na Santa Igreja Católica, Romana”.

Irmã Henriette foi a última a morrer, antes da Priora, e até o fim exortou suas companheiras à coragem.

Quando uma pessoa caridosa ofereceu água a uma das religiosas, como esta ia aceitar, Irmã Henriette impediu-a, dizendo: “No Céu, no Céu, minha irmã, nós tomaremos longos tragos”.

Caracterizado o martírio

Para que ficasse constando, “ad perpetuam rei memoriam”(2), serem elas mártires, era preciso que o acusador público declarasse o motivo da condenação. Ficava, assim, caracterizado o martírio. Isso foi um consolo na resistência delas. Eis a razão da pergunta, à qual se seguiu a resposta. De fato, elas eram mártires porque estavam sendo condenadas por causa da Igreja Católica.

Como vimos, há duas versões desse fato. Uma diz que Fouquier-Tinville não teria falado do rei, mas somente de religião. A outra afirma que ele declarou estarem elas morrendo por causa do rei também. Esta segunda versão parece-me muito mais provável porque, uma vez que ele matava todo mundo por causa da fidelidade a Deus e ao rei, o normal é que ele tenha se referido também ao monarca.

Mas o essencial era Deus, Nosso Senhor. E quando souberam disso, todas se alegraram, e a Irmã Henriette acompanhou-as até à morte.

Depois, veio o belo episódio do copo d’água. Por certo, era uma religiosa que estava com muita sede, abalada, naturalmente, do ponto de vista emocional, pelo trauma de quem está se sentindo às portas da morte, e uma morte trágica, violenta. Essa religiosa quis aceitar um copo d’água que alguém lhe oferecia.

A Irmã Henriette pensou: “Esse pequeno sacrifício vai ser uma pérola a mais para a glória de Deus. Para que beber água? Para que ter esse pequeno consolo na hora em que se pode oferecer mais um pouco de sacrifício?”

Então ela teve essa expressão magnífica: “No Céu, no Céu, minha irmã, nós beberemos grandes tragos”.

É claro, porque ali estão as fontes de água viva, Nosso Senhor Jesus Cristo, a contemplação de Deus face a face e, portanto, a felicidade perpétua.

A outra religiosa atendeu e, ao receber a coroa do martírio, tinha uma estrela a mais nessa coroa, por toda a eternidade, por causa desse pequeno sacrifício.

Diversidade das escolas de vida espiritual

Podemos estabelecer um contraste entre essa narração da Irmã Marie de L’Incarnation e aquela famosa figura da peça teatral(3) de Bernanos, Irmã Blanche de la Force, carmelita que, pelo simples fato de ouvir falar da morte, ficava apavorada, e, dominada por uma espécie de complexo, acabou fugindo do convento. Ao saber que suas irmãs do Carmelo estavam indo para o patíbulo, quis assistir à execução.

Quando as últimas religiosas, que subiam ao cadafalso entoando o Veni Creator Spiritus, se encaminhavam à guilhotina, a Irmã Blanche saiu do meio da multidão e, cantando também, entrou na fila, galgou o patíbulo e morreu.

Outra comparação caberia também entre esta personagem e sua Superiora, que representava uma escola espiritual oposta à psicologia da Irmã Blanche.

La Force é o nome da família francesa dos Duques de la Force, e significa “a força”. Ela chamava-se, portanto, Branca da Força. Ora, essa Blanche de la Force, segundo o “Diálogo das Carmelitas”, era uma pessoa com uma espécie de psicose de medo, possuindo verdadeiro pavor de morrer.

A Superiora, ao contrário, era como a mulher forte da Escritura: coerente, varonil, de grande personalidade, dessas que veem aproximar-se a morte de longe, e que vão de encontro a ela, passo a passo, em holocausto. E, no momento da dor e da imolação, cumprem um ato de vontade ponderado e maturado antes, profundamente, durante anos inteiros. Portanto, o esplendor da coerência e da grande escola clássica de vida espiritual.

Essa Superiora poderia morrer tendo nos lábios aquelas palavras de São Paulo: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a Fé. Desde já me está reservada a coroa da justiça que me dará o Senhor, justo Juiz…”(4)

Em contraposição a ela está a Irmã Blanche de la Force: fraca, frágil, suscetível a pânicos, muito desejosa de ser fiel, mas tendo até a miséria de, por psicose, fugir do convento para escapar da guilhotina. Mas, depois — triunfo da fidelidade dos fracos —, subindo ao cadafalso, na última hora, e deixando-se matar juntamente com as outras.

A oposição das duas escolas insinua a possibilidade — que existe mesmo — de uma alma ter essa estrutura e, entretanto, ser muito bem intencionada e fiel.

O perigo está no fato de isso poder ser legítimo, mas ao mesmo tempo muito parecido com o contrário da virtude, com a covardia, a incongruência. E, por essa razão, a divulgação de uma coisa dessas, muito legítima, tanto pode fazer muito bem, em alguns casos, como muito mal em outros, pois de um lado contribui para animar as pessoas fracas chamadas a uma grande santidade, mas pode também servir de pretexto à fraqueza de almas sem generosidade.

O caso dessas carmelitas de Compiègne é bem o contrário disso.

Pulcritudes da Santa Igreja

Li o parecer de um Delegado Apostólico que esteve com elas, alguns anos antes da Revolução Francesa, e que dizia ter feito uma visita longa, pormenorizada, severa, e as achou, em tudo e por tudo, de tal maneira perfeitas que ele nem sequer sabia como lhes aconselhar para melhorarem.

Não se pode fazer um elogio mais magnífico do que este. Percebe-se que a visita, para ele, redundou em embaraçosa porque, provavelmente, elas diziam: “Padre, nós estamos descontentes conosco, queremos melhorar, indique-nos novas virtudes!” E elas estavam num tal ápice, que ele não sabia o que lhes aconselhar para terem uma virtude ainda maior.

Então elas foram colhidas como fruto maduro, quer dizer, a virtude nelas tinha alcançado seu apogeu, quando chegou a Revolução, a qual foi de encontro a elas, o que significava também a morte. Mas com a morte, era o Esposo que vinha de encontro às virgens. E elas eram as virgens fiéis, cujas lâmpadas se encontravam repletas de azeite, e cujas chamas cintilavam com o maior brilho. De maneira que, chegando o Esposo, realmente elas estavam prontas para o martírio.

Foi lindíssima a morte dessas religiosas! Todas elas, antes de subirem ao patíbulo, passavam diante da Superiora e pediam licença para morrer; a Superiora concedia, dava-lhes a bênção, e elas iam para a guilhotina. Saíam, assim, diretamente das mãos do carrasco para as mãos imaculadas de Nossa Senhora.

Essas coisas são de uma beleza angélica, supra terrena!

É uma trajetória em linha reta, toda feita de força, de coerência, que consola, anima e estimula a quem, como em nossa época, é obrigado aos zigue-zagues das incoerências, das exceções, dos conformes.

Ali, não! É como o voo da águia; não tem incoerências nem transigências. Vai direto da torre ao mais alto rochedo, olhando para o Sol numa linha reta que verdadeiramente nos entusiasma!

O que devemos deduzir disso?

Há almas fracas a quem esses exemplos enregelam e paralisam. Entretanto, não os recordo para causar-lhes terror, mas a fim de que compreendam e amem todas as vias dentro da Igreja Católica. Há moradas para todos; e cada um deve amar sua morada e também as moradas dos outros. Porque é o conjunto dessas moradas que constitui, na Terra, a Igreja militante, e no Céu formará a Igreja triunfante.

E reconheçamos que a morada dessas carmelitas é esplêndida, um verdadeiro palácio. É o palácio da coerência, da previsão e do grande estilo da vida espiritual.

São as vias diferentes da Providência Divina para as almas, e as várias maravilhas que Deus opera nas pessoas que Ele escolhe. A algumas, por exemplo, Ele chama por meio desse ato da Irmã Henriette, que é o contrário da Irmã Blanche de la Force. Vê a morte de longe, encara-a, enfrenta com alegria o acusador, fá-lo declarar o martírio para todas, ajuda-as a aceitar a morte, e só não morre depois da Priora porque a ordem hierárquica pedia que esta morresse por último.

É um caminho de Deus, um modo de guiar as almas e de modelá-las. Mas Ele é infinitamente belo na unidade e na variedade desse caminho. Exatamente por serem os santos tão diversos e haver escolas espirituais distintas dentro da Santa Igreja Católica, cada uma delas refletindo uma beleza de Deus, compreendemos algo da pulcritude da Igreja.

Assim, temos uma ideia do que pode ser a beleza no Céu, onde não só vemos Deus face a face, mas O contemplamos pela formosura incomensurável de cada uma das almas que ali se encontram; cada Anjo, cada Santo e, sobretudo, Aquela que compendia em Si e supera indizivelmente a beleza espiritual de todos os Anjos e todos os Santos: Maria Santíssima.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências  de 23/6/1965, 23/7/1969 e 1/8/1972)

 

1) Cidade próxima a Paris.

2) Do latim: para a perpétua memória do fato.

3) “Diálogo das Carmelitas” (título original: Dialogue des Carmelites), de Georges Bernanos (*1888 – †1948).

4) 2Tm 4, 7-8.

Bem-aventurado Inácio de Azevedo

Com as aventuras além-mar empreendidas pelos portugueses e espanhóis, a Fé Católica expandia-se dia a dia. Entusiasmado pela conquista de novas almas, Inácio de Azevedo empenhou-se na conversão dos indígenas brasileiros. Porém, mais do que seu labor de evangelização, Deus queria dele um sacrifício total: o derramamento de seu sangue em favor da nação que viria a ter a maior população católica da Terra.

 

Baseando-me no livro “Inácio de Azevedo, o homem e sua época”, de Gonçalves Costa(1), farei comentários sobre alguns aspectos puramente sociológicos, e outros hagiográficos, que dizem respeito ao Bem-aventurado Inácio de Azevedo.

Nome tão belo quanto a prataria portuguesa

Ele era membro de uma família muito distinta. E, em todos os lugares onde há certa estratificação social, os nomes das famílias mais tradicionais acabam tomando uma certa sonoridade, em que se tem a impressão de ver a pessoa portadora de um desses nomes, com o estilo da nação a que pertence.

Este é o caso do Bem-aventurado Inácio. Ele se chamava Inácio de Azevedo de Atayde de Abreu e Malafaia. É um nome tradicional, bonito e muito português; sua sonoridade é linda, e dá a impressão da prataria portuguesa, cujos objetos são tendentes ao nobremente bojudo e seguro de si. De fato, esse nome é um pouco de prataria.

Sociedade impregnada pela Igreja

Ingressou na Companhia de Jesus em 1548, sendo anotado a seu respeito no livro da Ordem os seguintes dizeres: “Tem pais vivos. O pai possui benefícios eclesiásticos e suficiência de bens. A mãe é freira num convento do Porto”.

Estamos no século XVI; a Renascença já arrebentou, a Revolução está em curso. Mas como a Igreja ainda estava entranhada na sociedade! É uma família nobre, não de grande nobreza: o pai vivia de rendas eclesiásticas e tinha dado licença à sua esposa para ser freira, e o filho fez-se membro da Companhia de Jesus, a qual, naquele tempo, era a ponta de lança da Contra-Revolução; e tornou-se Bem-aventurado, hoje um dos padroeiros do Brasil.

Como é bonito ver a impregnação da vida eclesiástica na sociedade dessa época.

Desejo de ser herói

O Bem-aventurado Inácio de Azevedo havia sido pajem do Rei D. João III; e, pelo lado materno, descendia de Santa Isabel, Rainha de Portugal.

É bonito haver nele a descendência de Santa Isabel, Rainha de Portugal. Sendo pajem do Rei, ele frequentou o que a corte tinha de melhor.

Em carta ao Padre Geral, Inácio pediu para ser enviado a pontos remotos, pois não queria ficar no mesmo ambiente onde viviam seus pais.

Esse homem foi mandado da corte do Rei de Portugal – naquele tempo marcadamente um potentado, pelo tamanho do império colonial português – para o Brasil, onde havia índios com argolas atravessadas no nariz, canibais, com hálito cheirando a álcool mascado de cana fermentada, uma coisa horrorosa. Podemos imaginar a diferença! Era o que ele queria. Vemos o heroísmo que está presente em seu pedido.

Zelo da Companhia de Jesus pelos novos missionários

Do Brasil chegavam cartas dos Padres Nóbrega e Anchieta, relatando as esperanças e as dificuldades das missões. Dois noviços jesuítas haviam sido repatriados para Portugal, por não se adaptarem às novas terras.

Vê-se como era duro aguentar…

São Francisco de Borja, recém-eleito Geral da Companhia, conhecia as especiais virtudes do Padre Inácio e o indicou para visitador apostólico nas terras do Brasil.

Quão cuidadosa era a Companhia de Jesus. Mesmo sendo poucos os jesuítas no Brasil, mandava-se um visitador apostólico incumbido de visitar a nascente Igreja daquelas terras. Percebemos o rigor da ortodoxia, da disciplina e do método.

Por outro lado, vemos como os santos se encontram nessa história: São Francisco de Borja – Geral da Companhia de Jesus, portanto, o homem que tem nas mãos o leme da Contra-Revolução – escolhe um futuro mártir para vir ao Brasil, o qual, por sua vez, descende da Rainha Santa Isabel. Que beleza! 

Ao percorrer o litoral do País, acompanhou a expulsão dos calvinistas do Rio de Janeiro

Em julho de 1566, o colégio jesuíta de Salvador na Bahia, tendo à frente o Padre José de Anchieta e o Padre Manoel da Nóbrega, recebeu festivamente o emissário de São Francisco de Borja, numa visita que se estenderia por dois anos, e ao longo da qual o Bem-aventurado Inácio de Azevedo percorreria as principais vilas nascentes do litoral brasileiro.

Dois anos visitando o Brasil! É preciso dizer que as distâncias enormes se percorriam devagar.

Em 1567, acompanhou no Rio de Janeiro a expulsão dos calvinistas.

Que bonita nota deveria ser acrescentada nas narrações dessas nossas Histórias do Brasil, nesses manuaizinhos, quando tratam da expulsão dos franceses: Nesta verdadeira vitória de Cruzada, esteve presente, com seu ardor, um futuro mártir, o Bem-aventurado Inácio de Azevedo. Daria outro conteúdo à narração.

Pelas mãos dos jesuítas o Brasil vai sendo modelado

Em carta que dirigiu de Salvador ao Geral da Companhia, ele pondera: “Também servirão, além dos padres solicitados, os irmãos oficiais, como pedreiros e todos os demais, porque há na terra muita falta deles, e custa muito fazer as coisas. Por esse motivo, em todas as partes onde residem os homens, ouço dizer que há falta de edifícios e abundância de materiais com que se pode construí-los.”

É dessas frases do Português antigo que tem um especial sabor: “há falta de edifícios, mas abundância de material”. Quase dá para ver as pequeninas cidades implorando que as florestas e as pedras sejam utilizadas para serem transformadas em edifícios. É uma coisa épica.

“Muito me consolo nestas partes, e consolar-me-ia nelas toda a minha vida, ainda que importasse ir a Portugal para ajudá-la mais, trazendo gente e oficiais”.

Ir a Portugal buscar gente e oficiais, eis o plano do Padre Inácio de Azevedo.

Quer dizer, ele esteve no Brasil e viu que era preciso trazer para cá padres, irmãos coadjutores, pedreiros, carpinteiros, etc.

É muito bonito ver a Igreja Católica, por mãos dos jesuítas, tomando a primeira argamassa da sociedade temporal e modelando-a. Quase como Deus que fez primeiro o boneco de barro, para depois criar o homem.

Assim, para poder fundar aqui uma realidade eclesiástica grande, a Igreja ia modelando a realidade civil na qual ela deveria ser insuflada. Ou seja, cuidando das construções e do progresso temporal, a Igreja empreenderia também o progresso espiritual.

O Bem-aventurado Inácio de Azevedo não sabia disso, mas trabalhava com ânimo.

A fim de recrutar novos missionários, o Bem-aventurado Inácio de Azevedo volta a Portugal

Ele então viajou para Portugal a fim de pedir, pessoalmente, que fossem mandados jesuítas para o Brasil.

Compreende-se bem sua atitude. Certamente todos tinham medo de vir ao Brasil, tão distante, remoto, vago e ameaçador. Afinal, deixar o aconchegado, bonito e saboroso Portugal, a duras penas conquistado aos árabes, e vir para o Brasil misterioso… Que diferença!

Ademais, sabe-se como o temperamento português é cauto. Ele é capaz de dar passos arriscados, mas depois de saber bem como são as coisas. Por isso eles queriam conversar com a pessoa que vinha do lugar, para depois resolver se viajariam ou não.

Então se entende o passo do Padre Inácio de Azevedo, chegando a Portugal e procurando pessoas a fim de convidá-las para vir ao Brasil.

O encontro com o Rei

De volta a Portugal, em 1568, Padre Inácio dirigiu-se para Almeirim, a fim de encontrar-se com o Rei D. Sebastião. Este ouviu com interesse as notícias que o missionário trazia do Brasil, dando todo o apoio à campanha de recrutamento proposta.

Vemos que ele ia direto ao ponto fundamental. Foi falar com o Rei porque de um impulso do monarca dependia o andamento das coisas.

Por sua vez, os reis eram muito desejosos de receberem notícias diretas das pessoas que tinham estado nas terras recém-descobertas, porque não havia os meios de comunicação que existem hoje.

O Padre Inácio deu logo início à empresa, através de sermões e visitas, exímio como era na arte de conversar.

Aqui fica consignado um traço curioso. Eu o imagino procurando as pessoas e dizendo:

– Homem, fui eu que estive lá, é assim…

– Mas deveras, estivestes lá? Contai-me…

Padre Inácio fazia a narração e pegava a ganchos os que deveriam vir. Parece-me que tudo isso faz sentir a respiração da antiga História do Brasil, de um modo pitoresco e muito honroso para a Igreja.

Dois personagens tecem a grandeza de Portugal

Seu contemporâneo, Padre Maurício Cerpe, contou a esse respeito: “Tanto que chegou a este reino, foi coisa para dar graças a Deus ver quanta gente se mover para ir ao Brasil. Não falo já de nós da Companhia, porque esses todos queriam ir com ele, mas os de fora. Onde quer que chegasse, logo se moviam de maneira que se alvoroçava a terra e uns se moviam a ir com ele, outros falavam isso como grande novidade muito para ser desejada”.

Quer dizer, ele produzia um alvoroço geral. Vejamos o que custa a grandeza de um povo. Dom Sebastião e o Bem-aventurado Inácio de Azevedo conversam; o futuro de um era morrer no mistério e na tragédia da África, e do outro, morrer na tragédia e no martírio em pleno mar. Conversando, os dois estão tecendo a grandeza de Portugal.

Mas com que homens essa grandeza se tece! Eles tinham conhecimento dos riscos que a vida quotidiana traz. Eram membros de uma nação que estava no seu apogeu.

São Pio V abençoa o apostolado no Brasil

De Portugal seguiu para Roma, a fim de pedir ao Papa São Pio V sua bênção para a empresa do Brasil. O Pontífice quis ouvir uma descrição minuciosa desse novo mundo, onde a Fé cristã começava a iluminar a noite indefinida do paganismo. E, além dos privilégios pontifícios para o Brasil, e mão livre para arregimentar pessoal seleto, o santo Pontífice concedeu indulgência plenária a todos os que acompanhassem, e muitas relíquias, terços, Agnus Dei, e outros objetos devotos.

Não consta que ele tenha ido visitar banqueiros; visitou o Pontífice e o Rei. Não consta que tenha trazido dinheiro; trouxe Agnus Dei, bênçãos, relíquias, e com isso esperava fazer o seu caminho.

Trajetória de preparativos para a viagem

São Francisco de Borja, entrementes, desejava agradecer a Dona Catarina, Rainha de Portugal, a valiosa ajuda que ela concedera ao Colégio Romano, e quis enviar-lhe uma reprodução da célebre imagem de Nossa Senhora, conhecida como pintada por São Lucas, venerada na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma, e incumbiu o Padre Inácio de ser o portador do quadro.

Como Geral da Companhia, São Francisco de Borja morava em Roma. Sabendo que o Bem-aventurado Inácio ia para Portugal, quis que este fosse portador do quadro.

A partir de então, a devoção ao quadro de Nossa Senhora, de São Lucas, ficaria intimamente associada ao missionário.

Em julho de 1569, o Padre Inácio partiu para Portugal, passando por Madri. Em Madri, João de Mayorca foi um dos primeiros espanhóis a aderir. E, como era pintor, esse novo missionário aproveitou para fazer várias reproduções do quadro da Virgem, destinando um deles ao Colégio da Bahia.

Quer dizer, esse pintor tirou várias cópias do quadro que era para a Rainha. E uma dessas cópias vai ter importante papel na vida do Bem-aventurado Inácio de Azevedo.

Afonso Fernandes Cançado associou-se à empresa em Portugal, e fez questão de substituir o sobrenome, pois, segundo explicava, para tal tarefa o nome Cançado não lhe caía bem.

Francisco Perez de Godói, canonista formado em Salamanca, também se juntou ao Padre Inácio. Perez de Godói era primo de Santa Teresa de Jesus que, ao tomar conhecimento de sua adesão, ficou muito alegre.

Santa Teresa, a Grande, soube, portanto, que havia um Brasil! E que um primo dela vinha para esse país, tendo ficado muito alegre com isso. Veremos daqui a pouco o papel de Santa Teresa nessa história.

Ferreiros, marceneiros, pedreiros e tecelões também acertavam detalhes para sua viagem ao Brasil. No total, entre religiosos e artesãos, haviam sido reunidos noventa elementos, que foram conduzidos para uma chácara da Companhia no Vale do Rosal a fim de aguardar a partida dos navios para a América. Porém, foram cinco meses de espera.

É preciso recordar que não havia ainda companhia de navegação regular para o Brasil. Isso apareceu apenas no século XIX. De vez em quando havia um navio que vinha para o Brasil: o Rei, a Companhia das Índias mandavam levar alguma coisa; mas era raro. Por isso transcorreram cinco meses de espera.

Durante esse período, é claro que foi feito um vasto simpósio, à la Companhia de Jesus, preparando a ida para o Brasil: direção espiritual, trabalhos, enfim, uma adaptação completa, muito bem feita!

Tendo sido o navio assaltado por calvinistas, o Bem-aventurado Inácio cai no mar agarrado ao quadro de Nossa Senhora

Em maio de 1570, partiram os religiosos na esquadra do Governador Geral, D. Luiz de Vasconcelos. O Bem-aventurado Inácio de Azevedo, com mais 39 companheiros, viajava na nau Santiago. Fizeram escala na Ilha da Madeira, onde o Governador, muito vagaroso, quis prolongar a estadia, enquanto o Comandante da nau Santiago trazia a bordo mercadorias, cuja entrega nas ilhas de Las Palmas era urgente.

Esse homem tem responsabilidade no martírio que se seguiu, porque foi por causa desse atraso que eles cruzaram no caminho com a nau calvinista francesa, que agrediu o navio português e causou as mortes.

Sujeitando-se ao risco de ficar à mercê dos ataques dos piratas, esta nau poderia partir sozinha até Las Palmas, aguardando ali o restante da esquadra. A proposta foi levada a D. Luiz, tendo a ela dado seu assentimento o Padre Inácio de Azevedo.

A nau Santiago seguia avante. Em 15 de julho, já próxima da ilha de Las Palmas, defrontou-se com navio dos terríveis calvinistas franceses.

Efetivamente, esses abalroaram a nau Santiago com forte impacto. Os atacantes atingem a corveia, há tinir de espadas, brados de fidelidade a Cristo e à Igreja, mesclados aos berros e blasfêmias dos hereges; as primeiras gotas de sangue começam a tingir o chão.

O Bem-aventurado Inácio de Azevedo, que se encontrava junto ao mastro central, segurando nas mãos o quadro da Virgem de São Lucas, recebeu na cabeça o primeiro golpe, sendo jogado no mar, agonizante e segurando o quadro que ninguém lhe conseguira tirar das mãos.

Por isso ele é representado, habitualmente, flutuando já meio agonizante nas águas, mas segurando o quadro. É muito digno de nota que, estando agonizante e com a gesticulação de quem naufraga e procura mover os braços para não afundar, já não tendo provavelmente consciência de si, apesar disso ele segurasse o quadro.

É claro que a quem de tal maneira segura uma imagem de Maria Santíssima, Nossa Senhora, do Céu, está segurando a alma dele.

O sangue dos mártires foi derramado para que o Brasil viesse a ser católico

O olhar marcado dos tripulantes portugueses continuava a fixar-se nos vultos, e eles foram em seguida jogados também ao mar, entre os quais, sobressaía a figura imóvel de Azevedo.

Na Espanha, Santa Teresa de Jesus teve revelação do fato, e afirmou que vira os quarenta mártires, de coroas na cabeça, subindo triunfantes ao Céu.

Vemos que lindo fato da História do Brasil. É evidente que esse sangue foi derramado para que o Brasil fosse católico; era a razão pela qual eles estavam dando as suas vidas.

Somente o irmão João Sanchez não foi morto pelos piratas. Era cozinheiro, e esses resolveram tirar proveito de seus serviços. Foi ele que, retornando depois à Espanha, contou com pormenores todo o ocorrido. Infelizmente, abandonou a Companhia de Jesus.

Essa é a criatura humana! Esse homem tinha obrigação de ser bem-aventurado também. Depois se desligou da Companhia de Jesus e voltou ao estado original.

O culto dos quarenta mártires foi autorizado em 1854, pelo Papa Pio IX.

Na atual Catedral de Salvador, na Bahia, conserva-se um quadro pintado, que se diz ter sido do Beato Inácio.

Não há nenhuma prova de que o quadro tenha escapado das mãos do Bem-aventurado Inácio de Azevedo e chegado à Bahia. Se houvesse, eu piamente creria, e teria um gosto enorme de que isto tivesse ocorrido.

Mas o não ter sido assim, não tolda em nada o verdadeiramente essencial. Na previsão do muito batalhar a favor da ortodoxia, que haveria numa nação a qual, em certo momento da História da Igreja, seria a de maior população católica do mundo, logo no início, para irrigar isso, a Providência dispôs que houvesse quarenta mártires que nem conseguiram chegar até o Brasil – Inácio de Azevedo esteve durante dois anos aqui. O sangue deles não foi vertido no Brasil, o mar dispersou; mas foi derramado com a intenção de servir à causa católica no Brasil.

Esse sangue subiu ao Céu como suave odor, e eles rezam continuamente por nós. No Brasil ficava o Bem-aventurado Anchieta, esperando, rezando e realizando seus feitos para que algum dia o Brasil fosse uma grande nação católica.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/4/1981)

 

1) Costa, Manuel Gonçalvez da. Inácio de Azevedo, o homem e sua época. Braga: Livraria Cruz, 1957.

 

O Carmo: do Antigo Testamento ao triunfo do Imaculado Coração de Maria

Ao entrar certo dia na Basílica do Carmo, Dr. Plinio pousou acidentalmente o olhar sobre uma parede na qual nunca antes tinha prestado atenção. E ali, inscritas, se lhe depararam estas palavras do Profeta Elias: “Zelo zelatus sum pro Domino Deo exercituum” (“Eu me consumo de um zelo incendiado pelo senhor Deus dos exércitos” — III Reis 19,10).

Sentindo de imediato consonância com essa fogosa declaração, Dr. Plinio refletiu: “Eis aí! Quem se torne zeloso, mas de um zelo ardente, por Aquele que é o Senhor Deus  dos exércitos, este preencherá por inteiro as exigências do amor de Deus”. E cresceu-lhe no espírito sua afinidade de longa data com a Ordem do Carmo, que pode ser  considerada a Ordem profética por excelência, da qual Santo Elias é aclamado como Fundador. Dela, aliás, Dr. Plinio fazia parte efetivamente, pois era membro de sua Ordem Terceira — o ramo dos leigos vinculados ao Carmo. Foi, inclusive, diversas vezes o Prior e Mestre de noviços do Sodalício Virgo Flos Carmeli. Além disso, Dr. Plinio  exerceu, por 20 anos, a função de advogado da Província Carmelitana Fluminense, que englobava São Paulo. Todos esses são dados significativos a se ter em vista, na leitura  de seus comentários abaixo transcritos, sobre Aquela que é a “Flos Carmeli”, a Flor do Carmelo, cuja festa se celebra em 16 de julho.

 

Na sua última aparição em Fátima, durante o chamado milagre do sol, a Santíssima Virgem fez ver à multidão ali reunida uma seqüência de quadros representando os  Mistérios do Rosário. A cada nova cena desenrolada no céu, mostrava-se Ela sob algum título com que os fiéis habitualmente A invocam. E foi assim que, na visão dos  Mistérios Gloriosos, Ela surgiu como Nossa Senhora do Carmo, cuja festa a Igreja celebra no dia 16 de julho.

Como tudo o que Maria Santíssima realiza tem sua razão de ser, haverá sem dúvida um nexo entre essa manifestação de Nossa Senhora do Carmo, os Mistérios Gloriosos e a mensagem de Fátima que Ela, naquela ocasião, revelava. Parece-me de grande interesse, portanto, procurarmos aprofundar essa relação, considerando também a especial beleza que ela encerra.

O termo Carmo corresponde ao Monte Carmelo, no Oriente. Ali, segundo uma tradição muito respeitável — e há todos os motivos para admiti-la como verdadeira —, o  Profeta Elias reuniu um grupo de discípulos e com eles constituiu a Ordem do Carmo, em louvor da Virgem Mãe que deveria vir, e na espera d’Ela.

Portanto, o primeiro filão de devoção a Nossa Senhora, séculos antes de Ela nascer, foi formado pelos filhos do Profeta Elias que A aguardavam. E Santo Elias representa o  extremo dessa devoção, porque, como é doutrina comum na Igreja, ele deverá lutar no fim do mundo contra o Anticristo, o último inimigo de Nosso Senhor e de sua Mãe Santíssima. Elias constitui, portanto, uma espécie de ponte entre o início e o fim da devoção a Nossa Senhora na história da humanidade.

É de se supor que, nos seus primórdios, essa devoção se desenvolveu e perseverou em meio a toda espécie de dificuldades e objeções. Pois surgiu no tempo em que o povo eleito cada vez mais se fechava à sua própria missão, ao seu próprio espírito, e, por isso, haveria de ter repulsa a esse veio carmelita que prenunciava a Virgem Mãe, assim como depois os hereges de todos os tempos tiveram ódio à devoção a Nossa Senhora.

Provavelmente, os eremitas do Monte Carmelo, representantes das primícias do amor à Santa Mãe de Deus, foram perseguidos, malvistos, caluniados e silenciados. Apesar disso, e na humildade de sua situação, previam o advento de Nossa Senhora.

E eles tinham razão, pois Ela veio. E não só veio, mas recebeu a maior glorificação que poderia ser tributada a uma mera criatura: tornou-se a Esposa do Divino Espírito Santo, encarnando-se n’Ela o Verbo, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade.

Ao término de sua sublime existência terrena, Maria teve uma morte extremamente suave: uma separação da alma e do corpo efetiva e completa, mas de tal maneira delicada que a Igreja, na sua linguagem incomparável, dá ao passamento de Nossa Senhora o nome de “dormição”.

Pouco depois, por desígnio e obra de Nosso Senhor Jesus Cristo, a Santíssima Virgem ressuscitou e foi levada aos Céus em corpo e alma. Assim recebeu Nossa Senhora outra  glorificação: uma ressurreição à maneira da de Jesus, e uma Assunção também comparável à Ascensão d’Ele. Aliás, na linguagem de outrora, Nossa Senhora da Assunção é igualmente chamada de Nossa Senhora da Glória, para significar o incomparável brilho de que se revestiu o seu ingresso no Paraíso celeste.

Esse desfecho da vida terrena de Nossa Senhora pode ser tomado como o término da história do Carmo do Antigo Testamento (embora já se estivesse, rigorosamente falando, no Novo Testamento). Aqueles carmelitas tiveram a alegria e a insigne honra de cultuar a Santíssima Virgem em carne e osso, e não através de imagens.

Nada impede presumirmos que Nossa Senhora subiu ao Monte Carmelo e ali se colocou à frente de seus filhos e devotos, em horas de inefável convívio. As hipóteses  piedosas, inteiramente razoáveis, que a esse respeito se podem fazer, são inúmeras.

Com a Assunção de Nossa Senhora e sua glorificação no Céu, essa etapa da existência da Ordem carmelitana findou-se de modo magnífico, esplendoroso. Fica estabelecida uma relação entre o Carmo e a glória: a devoção perseguida, fiel, profética, luta até o momento em que é confirmada por Deus, e passa a reluzir no mais alto do Céu, na  pessoa da Virgem Mãe.

Depois, recomeça a história do Carmo. A Ordem, existente apenas no Oriente Próximo, desenvolveu-se um tanto, mas tem-se a impressão de que os cristãos daquela região, nos primeiros séculos, não lhe deram grande importância, privando-se dos benefícios que ela poderia lhes trazer. Esta atitude para com o Carmo foi uma entre tantas infidelidades da Cristandade oriental, que terminou castigada pelas invasões sarracenas, as quais, entre outras calamidades, provocaram a fuga dos carmelitas para o Ocidente.

A Europa, toda católica, cheia de fé, empreendia as Cruzadas para a libertação dos Lugares Santos. Nesse continente os frades do Carmo começaram a vaguear, como membros de uma Ordem quase desconhecida, mal-admirada e à beira do desaparecimento. A família religiosa de Elias parecia um tronco seco e velho, fadado a se  desmanchar em pó.

Era o instante esperado por Nossa Senhora para fazer florescer, no alto da ressecada vara, uma flor: São Simão Stock. Esse inglês de reconhecida virtude havia sido eleito para o cargo de Geral da Ordem. Todavia, não exercia uma autoridade efetiva sobre seus súditos, pois o Carmo ainda não possuía uma estrutura jurídica coesa e uniforme, capaz de conservar um espírito, promovê-lo e transmiti-lo à posteridade. [Situação que se prolongava depois de o Papa Inocêncio IV ter aprovado a regra dos “Irmãos de  Nossa Senhora do Monte Carmelo”, em 1245.]

A virtude compensava, porém, a falta de autoridade.

Rezando a Nossa Senhora com muito fervor, São Simão implorou-Lhe não permitisse o desaparecimento da Ordem do Carmo. Em meio a essa aflitiva situação, a Virgem Santíssima apareceu a seu bom servo [em 1251] e lhe entregou o escapulário, para se usar sobre a roupa.

Naquela época os servos usavam uma túnica como traje civil. Sobre ela punham uma túnica menor, que indicava, pela cor e por características peculiares, a identidade de seu senhor. O escapulário do Carmo era semelhante a essa pequena túnica. Nossa Senhora, portanto, entregava a São Simão Stock uma libré própria aos servos d’Ela, para ser usada por todos os carmelitas, e prometia: “Aqueles que morrerem revestidos dele, não sofrerão o fogo do inferno”. Quem usa piedosamente o escapulário do Carmo, receberá a graça da perseverança final e será libertado do purgatório no primeiro sábado após a morte. [Esta promessa abrange também os fiéis que usarem o pequeno  escapulário, recebido em singela cerimônia das mãos de um padre carmelita ou de outro sacerdote que tenha a faculdade de o impor. Para se beneficiar do privilégio  sabatino, o fiel deve cumprir uma condição — como a recitação diária de um terço —, a critério do sacerdote.]

A partir dessa misericordiosa intervenção da Mãe de Deus, a Ordem carmelitana refloresceu e conheceu outros períodos de glórias, acentuando por toda a Igreja Católica a devoção à Santíssima Virgem. No suceder de esplendores iniciado então, nasceram três sóis, para não citar senão eles, que hão de reluzir por todo o sempre no firmamento da Igreja: Santa Teresa, a Grande, São João da Cruz e Santa Teresinha do Menino Jesus.

Retenhamos, então, a grandiosidade da história do Carmo: uma alternância de glórias e infortúnios conducentes a um adelgaçamento que faz prever o desaparecimento. Mas contece uma intervenção de Nossa Senhora, que salva e dá incomparavelmente mais do que se tinha antes. A prosperidade no Ocidente será muito maior do que a verificada na Ásia.

A par de sua insondável bondade, Nossa Senhora, ao intervir, mostrava também a confiança que se deve ter n’Ela, bem como seu papel central na obras que ama de modo especial. Ainda que estas cheguem ao ponto de tudo parecer perdido, devem esperar o momento que Ela se reserva para agir. Como dizia certo pensador católico, as grandes intervenções da Providência são precedidas de situações dramáticas, de modo a tornar clara a inutilidade de qualquer socorro humano. Uma vez provado o fracasso dos homens, e na própria hora da desolação e do caos, Deus intervém, e Nossa Senhora se faz presente.

Lição de confiança ainda mais necessária em vista do que ocorreu depois: enquanto a Ordem fundada por Santo Elias conhecia novos brilhos e novas glórias, a Cristandade que a acolhera tornava-se presa de um inexorável processo de ruína, que se acelerava no decorrer dos séculos. Até que, em 1917, numa colina de Fátima, Nossa Senhora  censurou a decadência, recriminou o mundo pela torrente de pecados em que estava imerso, e anunciou os castigos que haveriam de cair sobre a humanidade, caso esta não se arrependesse e se emendasse de suas faltas. Depois, exprimindo-se com as famosas palavras que guardamos em nossas almas, fez a promessa do Reinado d’Ela: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará!”

E aqui voltamos à consideração daquele vínculo ao qual nos referíamos no início deste artigo: no ápice das aparições em que Nossa Senhora proclama a efetivação de sua  realeza, sob a forma do triunfo do seu Coração Imaculado, Ela aparece revestida do traje de sua mais antiga devoção — a do Carmo. E, desse modo, realiza uma síntese entre o historicamente mais remoto, o mais recente — o culto ao Imaculado Coração de Maria — e o futuro glorioso, que é a vitória e o reinado desse mesmo Coração.

Eis várias das razões pelas quais a festa de Nossa Senhora do Carmo nos é muito grata a todos os filhos e devotos da Santíssima Virgem.

Plinio Corrêa de Oliveira

Santo Henrique, Imperador

Comentando Santo Henrique, Dr. Plinio procura mostrar o contraste entre a figura deturpada que se formou da santidade,  e a personalidade varonil, sagaz, guerreira, humilde e combativa deste santo imperador.

 

Em geral, as pessoas têm a respeito da santidade uma ideia unilateral. Pensam que a santidade consiste apenas em sorrir, em estar de acordo com tudo e a tudo perdoar. Porém, muitos não têm ideia do vulto completo e da fisionomia geral da santidade.

Isso se deve, em parte, às imagens que se produziram nos últimos vinte anos, ou nos últimos trinta anos, em que apresentam os santos com umas carinhas lisinhas e um olharzinho meigo, quando, na realidade, se trata de santos que tiveram uma extraordinária personalidade, a ponto de marcar a sua época.

A verdadeira face da santidade

Quando eu estive na Itália, em Pádua, há alguns anos atrás, fui visitar o famoso santuário de Santo Antônio, onde se encontra o corpo do santo. Lá eu vi uma obra de um grande pintor, quase contemporâneo deste santo, chamado Giotto.

É a imagem mais próxima da fisionomia de Santo Antônio que se conhece: homem alto, possante, com fisionomia severa e com uma atitude hercúlea.

Eu comprei uma fotografia desse quadro e depois fui para a sacristia. Na sacristia vendiam ao povo santinhos representando Santo Antônio: um rapaz sem nada de varonil, imberbe, coradinho, dando a impressão que tinha usado carmim, sua fisionomia era a de quem diz: “Eu estou com medo”…

Quer dizer, apresenta-se o santo sem personalidade, um ente sem arrojo e privado do conjunto das virtudes, sem as quais ninguém é santo. O santo é declarado herói nas três virtudes teologais e nas quatro virtudes cardeais. Virtudes teologais: fé, esperança, caridade. Virtudes cardeais: justiça, fortaleza, temperança, prudência. Uma das virtudes sem a qual ninguém é santo é, portanto, a virtude da fortaleza.

No que consiste a virtude da fortaleza? Consiste em ser capaz de empregar toda a força necessária nas lutas que neste mundo devemos travar contra nós mesmos, contra os inimigos da fé e contra os inimigos da Igreja.

É preciso restaurar, aos olhos das pessoas, a verdadeira fisionomia da santidade, que inclui exatamente essa coragem. E por essa razão escolhi, para comentar na reunião de hoje, um modelo de coragem masculina: Santo Henrique, Imperador do Sacro Império Romano Alemão.

Vida repleta de fatos memoráveis

Santo Henrique colocou seu exército sob as bênçãos especiais de Deus, valendo-se da proteção dos grandes santos preferidos do seu povo. Elegeu dentre eles Santo Adriano, oficial mártir, cuja espada se guardava ciosamente, como relíquia, desde antigos tempos, em Valbach.

 Assim armado, organizou um exército para reprimir as invasões bárbaras dos povos do Norte, vencendo-os na Polônia e na Boêmia. Quando defrontaram os eslavônios, muito superiores em força, Santo Henrique determinou preces coletivas e a comunhão geral do exército. Ao se apresentarem as primeiras tropas para o combate, verificou-se pânico súbito entre os inimigos que, desorganizados, fugiam em debandada. Os anjos combateram e derrotaram os eslavônios. Os inimigos se submeteram, ficando Boêmia, Morávia e Polônia tributárias do Sacro Império.

Promoveu, a seguir, uma reunião de bispos em Frankfurt, com o objetivo de fomentar a disciplina eclesiástica nos seus estados.

Por duas vezes teve que subjugar os lombardos, que ameaçavam os Estados Pontifícios. Na primeira vez, após submetê-los, foi coroado, em Pavia, Rei da Lombardia, cingindo a célebre coroa de ferro desse reino. Numa segunda vez, sua atuação foi além da pacificação dos lombardos, pois graves problemas afligiam a Igreja: o antipapa Gregório movia disputa contra o legítimo Papa Bento VIII. Por esses dias do ano de 1014, em plena Idade Média, portanto, recebeu ele e a Imperatriz uma das maiores homenagens de suas vidas: visitando o Papa, foram solenemente coroados Imperadores dos Romanos.

O Pontífice presenteou o santo com um globo de ouro cravejado de pérolas, encimado de uma cruz, emblema de dignidade imperial. O monarca, dignificado por tantas honras e para perpetuar a lembrança dessas homenagens, transferiu o globo e a coroa às mãos de Santo Odilon para dotar o célebre mosteiro de Cluny, do qual este era abade.

Outra oportunidade teve ainda o monarca de concorrer para o bem da Cristandade. Aproximou-se de Estevão, Rei da Hungria, príncipe ainda pagão e que carecia vir com seu povo ao grêmio das nações cristãs. Santo Henrique ofereceu-lhe aliança e sua piedosa irmã, Gisela, por esposa. Ganhou ele um Santo Estêvão, cuja conversão foi maravilhosa, um grande rei para a Igreja e um santo para o Céu.

Teve de empenhar-se novamente em campanhas na Itália. Enquanto consolidava os estados no interior, e assegurava a paz com os vizinhos de Leste, os lombardos, associados aos gregos e normandos, assolavam as províncias da Itália. O monarca preparou-se para castigá-los. Derrotou-os em várias batalhas, repelindo uns e subjugando outros. Reintegrou a Igreja na posse das terras invadidas, ocupou Nápoles, Salerno e Benevento e restabeleceu a paz na península.

Ao voltar para a Alemanha, teve com Ricardo, o Bom, Rei dos franceses, a célebre entrevista do rio Mosa na qual se entenderam amistosamente os dois príncipes acerca dos grandes problemas cristãos e políticos da Europa. Dispunha o cerimonial que o encontro se desse no meio do rio, cada um em seu barco. Santo Henrique, em atenção às virtudes do príncipe francês, resolveu quebrar os rigores do protocolo: atravessou o Mosa com seu séquito e foi saudar o Rei da França na margem oposta(1).

Invasão dos bárbaros e início da Idade Média

A ficha é um pouco longa, pois a vida desse santo é tão cheia de atos memoráveis, que dela não se poderia ter uma ideia sem que vários elementos de sua biografia fossem mencionados. Para compreendermos bem o conjunto desses fatos, é preciso situá-los em seu contexto histórico: plena Idade Média, no ano de 1014.

Como é sabido, a Idade Média se iniciou com a queda do Império Romano do Ocidente. O Império Romano foi invadido por uma quantidade incalculável de bárbaros, completamente selvagens, os quais, estabelecendo-se no território do Império, sujeitaram os romanos ao seu domínio.

Aos poucos, toda a antiga população romana foi caindo na barbárie também. Então, as estradas não tinham mais quem delas cuidasse; os aquedutos que levavam água às cidades se rompiam; as cidades afundavam na sujeira; os palácios eram agora habitados por bárbaros selvagens que se degradavam completamente; as obras de arte eram quebradas nas ruas. Em suma, tudo o que pudesse representar civilização e cultura era miseravelmente liquidado.

Aos poucos, sob o bafejo da Igreja — a única organização que continuou a existir depois que tudo se dissolveu —, a Europa foi sendo reconduzida ao estado de civilização. Os bárbaros se converteram e, então, foram progredindo, à semelhança de uma tribo selvagem aonde chega um missionário.

Desta maneira — por mais que ainda estivesse abaixo do que ela estaria duzentos ou trezentos anos depois —, por volta do ano 1000 a civilização já se encontrava bastante adiantada no que diz respeito ao estado originário dos bárbaros. Ou seja, trata-se de um estado semibárbaro.

Ademais, alguns povos eram mais civilizados do que outros, havendo, portanto, dentro do continente europeu, ilhas de Cristandade, ilhas de Civilização Católica incipiente no meio de conglomerados de povos que, sendo bárbaros pagãos, estavam sempre atacando e lutando de maneira a tornar a vida dos católicos dificílima.

Formação do Sacro Império Romano Alemão

O povo germânico, que ocupava mais ou menos o território onde hoje se situa a Alemanha, a Áustria, parte da Checoslováquia e a Suíça, foi um dos primeiros a se converter. Após se civilizarem, os germanos constituíram uma entidade política chamada o Sacro Império Romano Alemão.

No fundo, tratava-se de uma liga dos povos cristãos contra a barbárie. E, como essa liga abrangia uma extensão grande de território, chamavam-na Império; Romano, por ser uma reminiscência do antigo Império Romano, que tinha abrangido toda a Terra; e, por fim, Alemão, pois o núcleo do Império eram as nações alemãs. Porém, acima de tudo, era um Sacro Império, pois sua principal finalidade consistia em defender a Religião Católica contra a agressão dos pagãos.

Deus é quem dá a vitória

Santo Henrique foi eleito Imperador do Sacro Império Romano Alemão, sendo colocado numa situação onde nem sempre a hagiografia popular mostra os santos. Ele estava à testa de toda a organização política da Europa de seu tempo, era o homem mais poderoso do continente. Mas, ao mesmo tempo, ele tinha a obrigação de ser o melhor político e o melhor filho da Igreja.

Ele era, por excelência, o filho da Igreja, aquele que devia protegê-la em suas necessidades contra a barbárie. E como acontece sempre com os santos, ele desempenhou magnificamente suas funções.

Havendo hordas bárbaras que continuamente agrediam o seu povo, o santo monarca armou-se de força, constituiu um exército e o conduziu à guerra. Porém, por ser um herói católico, um homem de fé, ele sabia que não bastava lutar fazendo uso das forças humanas e naturais, mas era preciso contar com os recursos sobrenaturais. Por isso, ele pedia a Deus que lhe desse a força necessária para vencer.

Então, para mostrar ao santo quanto suas orações Lhe eram gratas, em certa ocasião, Deus fez um grande milagre: no momento em que as tropas dos eslavônios, mais numerosas do que as germânicas, estavam prontas para o combate e os exércitos postos frente a frente, vê-se que os pagãos começam a fugir em debandada: os anjos haviam lhes aparecido, incutindo-lhes terror.

Desse modo, Deus dava a entender como Ele considerava a oração: pela prece de Santo Henrique, Deus dispensou seus heróis do combate. Assim, a pressão pagã foi quebrada e uma das garras do paganismo, contra os católicos, liquidada.

Reconhecimento pontifício dos serviços prestados

Entre os inimigos da fé, havia também os lombardos, os quais tinham sua capital na cidade de Milão, hoje Itália, onde formavam um reino de hereges. Eles não eram propriamente pagãos, mas sim hereges arianos.

Santo Henrique desceu, então, pela Lombardia, atacou os lombardos, quebrou-lhes o poder e foi depois até Roma, a fim de visitar o Papa. Foi nessa ocasião que o Romano Pontífice coroou-o, junto com sua esposa, Imperador do Sacro Império Romano Alemão, numa cerimônia realizada com grande esplendor. Deu-lhe também de presente uma esfera de ouro, cravejada de pérolas, representando seu poder sobre toda a Terra.

Mas, para provar seu amor à Igreja, Santo Henrique não ficou com o tesouro: deu-o a Santo Odilon, Abade de Cluny, chefe da maior Ordem Religiosa da Europa naquele tempo.

Voltando para a Alemanha, Santo Henrique derrotou novamente os lombardos, quebrando definitivamente seu poder.

Insigne ato de apostolado e esplêndida manobra política

Sendo um tão grande batalhador, Santo Henrique mostrou-se também um hábil político.

Na Hungria, havia um rei que, apesar de ser pagão, era famoso por sua virtude. Compreendendo que, por demonstrar ser virtuoso, tal rei poderia ser atraído para a Religião Católica, ao invés de atacá-lo, Santo Henrique mandou pedir uma entrevista com ele, e ofereceu em casamento sua irmã, Gisela, de grande formosura e muito virtuosa.

O Rei da Hungria, chamado Estêvão, aceitou. Gisela cumpriu a tal ponto sua missão de converter o rei que este se tornou um santo da Igreja Católica, o qual converteu toda a Hungria.

Com isso, por uma manobra diplomática inteligente e muito bem sucedida, o Imperador estendeu os limites da Cristandade até além do Danúbio, conquistando um amigo onde ele tinha anteriormente apenas inimigos.

Grande por ser católico

Já naquele tempo havia uma secular rivalidade entre alemães e franceses: povos com índole e temperamento diferentes, e com questões de fronteira complicadas de resolver.

Mas, nesse tempo, a França era governada por um muito bom rei, e o Sacro Império Romano Alemão por um santo imperador. Pelo que, um acordo entre ambos não foi difícil. Santo Henrique, muito bom diplomata, quis ter um encontro com esse rei para ajustarem todos os problemas políticos da Europa, porque os dois principais países da Europa cristã eram a Alemanha e a França. Então, foram encontrar-se junto ao rio Mosa.

O protocolo mandava que, por serem dois soberanos importantes, nenhum fosse à terra do outro, pois aquele que fosse à terra do outro, por assim dizer, prestava homenagem à importância do outro. Então, deveria ser feito um encontro no meio do rio, em duas barcas. Trata-se de um rio de curso de água tranquilo, onde esse encontro comodamente podia ser feito. Preparou-se a barca do Imperador, assim como a do Rei da França.

O Imperador, sendo mais importante que o Rei da França, embora esse fosse muito importante também, podia pretender que o rei fosse ao seu território. Mas sendo um homem cheio de espírito católico, e bom diplomata, Santo Henrique fez o contrário: entrou na barca e preparou uma surpresa ao Rei da França, atravessou o rio e desembarcou. Quer dizer, o que era mais foi prestar homenagem ao que era menos, fazendo sentir pela sua atitude cordial que ele estava cheio de boas disposições, de boas intenções. De fato, realizaram-se então conversações muito cordiais, que concorreram para a paz dos dois países e para regular todos os problemas da Europa daquele tempo.

Essa é a história de Santo Henrique: Um grande católico e um grande santo, que por ser católico, foi grande rei, grande militar, grande guerreiro, grande diplomata, grande político, morrendo aureolado de toda espécie de êxitos e sucessos.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/1/1970)

 

1) Não possuímos referência da ficha comentada por Dr. Plinio nessa ocasião.

Errata: Por um erro na transcrição da conferência feita por Dr. Plinio em 25/6/1976, no artigo desta seção do mês passado (junho), registrou-se, nas páginas 10 e 11, o termo “hermetismo” ao invés de “eremismo”, o qual representa um neologismo criado por Dr. Plinio para significar a vida enclausurada, religiosa, eremítica.

 

São Francisco Solano, um apóstolo exímio!

Para agradar o povo, São Francisco Solano costumava andar pela cidade tocando violino e cantando canções populares. Vendo-o, as crianças se interessavam e logo o seguiam. Ele, então, parava e ministrava-lhes um curso de Religião.

Ora, como acorriam inúmeras crianças para esse gracioso catecismo, os mais velhos ficavam curiosos e também passavam a comparecer.

Quando percebia que também os pais estavam bastante empenhados em assistir ao curso ministrado para os filhos, ele transformava a aula em sermão e increpava os maus hábitos renascentistas que se espalhavam em seu tempo, incutindo naquelas pessoas o desejo de praticar a virtude.

Ou seja, pela candura dos inocentes ele formava uma roda de pessoas e fazia um apostolado exímio.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/8/1974)

A mais nobre e elevada das alegrias

Estamos numa época em que existe apenas contentamento pelas coisas do mundo. Quase ninguém tem a alegria da virtude. São Francisco Solano foi chamado por Deus para comunicar essa alegria, que não consiste em contar piadas, fazer brincadeiras, ser palhaço, mas em ter seriedade e procurar em tudo servir a Nosso Senhor Jesus Cristo.

A ficha que vamos comentar refere-se à biografia de um Santo espanhol, São Francisco Solano, que foi apóstolo da América do Sul. Os dados dessa ficha são tirados de um livro escrito por um franciscano do Peru(1).

Nobreza de sangue e de virtude

São Francisco Solano foi uma figura suscitada pela Providência para fazer parte da Contra-Reforma espanhola. Ele nasceu em Montilla, na Andaluzia, em 1549, de família nobre. Seu pai foi duas vezes governador de Montilla, capital do marquesado de Priemo. Sua mãe, tanto pela nobreza do sangue quanto pela nobreza da virtude, era conhecida como “a nobre” no lugar.

Esta conjugação da nobreza de sangue e da nobreza de virtude nos leva a evocar certo tipo de senhoras extraordinariamente virtuosas e dignas ao mesmo tempo, que houve no passado, em quem havia uma aliança maravilhosa entre a elevação de alma e a de maneiras. De forma que a elevação de maneiras não aparecia simplesmente como um adorno externo quase mecânico dos gestos e das atitudes, mas era a própria expressão da nobreza de alma da pessoa. E é grato ao homem encontrar formas exteriores elevadas que correspondam às interiores.

Vemos, assim, a mãe de São Francisco Solano ser chamada “a nobre” por excelência, pela nobreza conjugada da virtude, do sangue e das maneiras. Esta era aquela a quem a Providência deu a missão de formar quem? O missionário dos índios mais botocudos da América do Sul.

Esses são os contrastes dos desígnios da Providência. Quantas vezes ele teria se lembrado da “nobre”, atravessando as ruas da capital do pequeno marquesado de Priemo? Tudo isso tem a sua beleza e o seu sentido, e vale a pena registrar de passagem.

Quando ela esperava o futuro Santo, o consagrou a São Francisco de Assis, donde o seu nome. São Francisco Solano recebeu uma formação sumamente cristã dos pais e a completou no colégio dos padres jesuítas de sua cidade. Ele mesmo era uma pessoa de bom porte, agradável conversação, bela voz e um raro senso musical.

Como veremos, esses dotes foram todos previstos pela Providência para o esplendor de seu apostolado.

Comunicar a alegria pelas coisas santas 

Por influência do rei católico, para compensar o dano que a Religião sofria pela apostasia de muitos povos, houve um verdadeiro renascimento religioso na Espanha. Pelo seu zelo, brilhava entre as figuras desse renascimento religioso, na Ordem de São Francisco de Assis, o grande São Pedro de Alcântara. São Francisco Solano, atraído pelo exemplo e pelo prestígio de São Pedro de Alcântara e da Ordem Franciscana, saiu do colégio dos jesuítas e tomou o burel franciscano. Pelas suas virtudes e capacidades foi ele sendo designado logo para cargos diretivos. Caracterizou-se a virtude dele por uma nota: não tolerar que ninguém manifestasse em torno dele tristeza por estar servindo a Deus.

Nada de caras compridas, aborrecidas, porque é dura a vida, pensando como sofre um pobre religioso… Quando a pessoa começa a ter pena de si mesma e ficar com cara comprida, entra num caminho em cujo fim está a apostasia. Então, é preciso dar a alegria do serviço de Deus, comunicar o júbilo das coisas santas.

São Francisco Solano recebeu essa graça, quão rara e quão preciosa em nossos dias, de comunicar o gosto, a alegria pelas coisas santas. Hoje estamos numa época em que existe apenas contentamento pelas coisas do mundo. Quase ninguém tem a alegria da virtude, de estar servindo a Nosso Senhor. São Francisco Solano foi chamado por Deus para comunicar essa alegria. Não se trata de uma alegria tonta, de piada, de brincadeira, própria de um palhaço.

Trata-se de ter a alegria da seriedade, que é a mais nobre e elevada das alegrias. Veremos São Francisco Solano dar o exemplo disso por toda parte, e fazer este apostolado da alegria na luta, na seriedade, no sofrimento.

Movimento rítmico de grande candura, nobreza, elevação e pureza

Ele tomou o hábito de, quando viajasse, incluir em sua minúscula bagagem, junto com o cilício e disciplinas, um violino, que era o seu grande instrumento de apostolado.

Exatamente essa justaposição me parece querer dizer bem tudo: o violino sem o cilício é o caminho aberto para a apostasia. O cilício sem o violino perde algumas de suas expressões; porque o normal do cilício bem usado é dar alegria. Mais ou menos como o soldado que vai para a luta, ele parte alegre. Um soldado que vai chorando e pensando: “Ó pátria, como me dói deixar-te… Ó família querida, que mágoa… Ó pobres membros que as balas podem estraçalhar…” Ele recua, não vale dois caracóis.

O bonito é o soldado que avança por cima do perigo e até da morte, alegre no sacrifício e na dor. Assim também o religioso. É a alegria de carregar as obrigações, de arcar eventualmente com os votos, de pertencer inteiramente a Nossa Senhora, de não ter nada de próprio e de, por causa disso, ter tudo. Violino e cilícios. A fórmula parece-me tão magnífica que se poderia fazer dela um motivo de decoração, numa capela, lembrando esse apóstolo do continente onde existe o Brasil.

A alegria de São Francisco Solano era tão singular que quando ele estava diante do Santíssimo Sacramento, ou via uma imagem do Menino Jesus nos braços de Nossa Senhora, tinha tanta alegria que muitas vezes ia para o interior do convento e chamava os padres: “Padre venha ver, o senhor não se alegrou ainda? Olhe aqui como o Menino Jesus está tão bem aqui com Nossa Senhora nessa imagem! Assim vivamos na Terra; vamos nos alegrar!” E quando ele se tomava de muito entusiasmo, puxava o violino, tocava, cantava e dançava diante da imagem ou do Santíssimo Sacramento.

Era um movimento rítmico de grande candura, nobreza, elevação e pureza, evidentemente. Os sentimentos da alma podem se exprimir pelos ritmos da música e também pelos do corpo.

Aliás, antigamente havia danças diante do Santíssimo Sacramento. Eu acho isso um encanto. Imaginem qual seria nossa sensação entrando numa igreja e encontrando um Santo em êxtase, tocando violino diante do Santíssimo Sacramento ou de uma imagem de Nossa Senhora, cantando e dançando. Ficaríamos extasiadíssimos!

São Francisco Solano era muito zeloso da sagrada Liturgia. Por isso tinha um empenho enorme em que os frades aprendessem bem as rubricas e o cantochão, para dar todo o esplendor possível aos santos mistérios.

Exprobava os maus hábitos renascentistas 

Esses contrastes harmônicos me maravilham. Ele cantava e tocava canções religiosas populares para agradar ao povo, mas era um espírito elevadíssimo que compreendia a superior beleza da Liturgia, com todo o pensamento teológico, toda a piedade, todo o sobrenatural que há na Liturgia, portanto, também na arte, na música litúrgica, e que exigem esse esplendor. Quer dizer, o esplendor enorme abarca os dois extremos. Eu gosto de ver almas assim: largas, abertas, capazes de se entusiasmar pelos opostos, não contraditórios, mas extremos. Isso é categoria; assim era São Francisco Solano.

Muitas vezes acontecia que ele andava pelas ruas da Espanha tocando o violino e a criançada saía correndo atrás dele para ver, porque se interessava. Aí ele parava e dava um cursinho de Religião para os meninos.

Pode-se imaginar que curso gracioso, interessante. Como o curso atraía muitas crianças, os mais velhos iam assistir também. Quando percebia que os mais velhos estavam bem empenhados, ele transformava o curso de catecismo em sermão, e exprobava, increpava nos mais velhos os maus costumes e incutia a virtude. Os mais velhos estavam cativados pela candura dos inocentes e formavam uma roda. O menino ia ver o frade, o adulto ia olhar o menino, o frade falava para o adulto. Era um circuito perfeito. E aí ele caía em cima dos maus hábitos renascentistas espalhados em seu tempo. Um apóstolo exímio.

Como São Francisco Solano estava se tornando muito célebre na Espanha, seus superiores resolveram mandá-lo, a pedido dele, para a América. Então ele começou a percorrer a América espanhola a pé, estando no Panamá, Colômbia, Paraguai e Bolívia. Imaginem percorrer tudo isso a pé, nas estradas daquele tempo – quando as havia –, numa topografia torturada pelos Andes, subindo e descendo, escorregando… Depois, navegar por aqueles rios nas embarcações daquele tempo! Pois bem, ele foi até o Paraguai, chegou a descer à Argentina e fazer apostolado em Tucumán. O trajeto Panamá-Tucumán é próprio de um bandeirante!

Se fosse um bandeirante leigo, com certeza se falaria muito dele. Aqui está um que fez isso por amor a Nosso Senhor; provavelmente se fala menos dele do que dos bandeirantes…

Música acompanhando o gorjeio dos passarinhos e o murmúrio das águas

Ele se fixou uma boa parte da vida dele em Lima, então chamada Cidade dos Santos Reis, onde florescia a Ordem Franciscana, com 180 membros, naquele tempo tão ilustres pela sua virtude, que tornavam Lima famosa nos ambientes franciscanos da Europa, por causa da santidade que florescia lá. No tempo em que ele morou naquela cidade, era Arcebispo de Lima São Turíbio de Mongrovejo, e começava a sua carreira de santidade Santa Rosa de Lima.

Vemos, por esses dados, o que a América do Sul poderia ter sido. Porque quando esse é o ponto de partida, qual deveria ser o ponto de chegada?!

Depois de uma estadia em Lima, onde suas virtudes foram granjeando estima e cargos, ele mais uma vez fugiu.

São Bernardo dizia que a glória é como a sombra: quando fugimos dela, ela corre atrás; quando corremos atrás dela, ela foge.

Na região de Tucumán, ele procurou aproximação com os índios mais temíveis. Certo dia, ele estava já cansado, andando em plena floresta e sentindo-se vigiado de longe.

Os índios faziam muito isso: quando desconfiavam de uma pessoa, seguiam-na de longe, vigiando-a para ver onde ia; em certo momento, matavam-na.

Embora se sentisse observado, como estava muito cansado de andar e com sede, parou perto de uma fonte e curvou-se para beber.

A cena é linda, daria para uma iluminura medieval. Uma floresta virgem, um frade franciscano com aquele burel, que para junto a uma fonte borbulhante, se persigna e bebe aquela água. Depois sentou-se e descansou um pouco. Enquanto ele descansava, ouviu o cântico dos passarinhos, em grande número na floresta, e o murmúrio da água. E como ele tinha um gênio altamente musical, resolveu acompanhar com o violino o murmúrio das águas e o cântico dos passarinhos. Quer dizer, ele compôs. Notem a tranquilidade de consciência! Ele sabia que podia morrer durante aquela composição. Mas compreendia também que iria para o Céu tocando música, e os Anjos se encantariam com isso.

Quem de nós não teria um empenho enorme em conhecer a música com que ele acompanhou o gorjeio dos passarinhos e o murmúrio das águas?

Enquanto tocava, São Francisco sentiu uma seta passar perto de sua orelha e cravar-se numa árvore. Ele continuou. De repente, viu um carão emergir do meio da vegetação: era o cacique da tribo de índios ferozes que o Santo procurava. Ele deixou o violino e, todo irradiante de amor de Deus, dirigiu-se ao índio para o abraçar.

O cacique se comoveu, deixou-se tocar, levou-o para a tribo, e São Francisco Solano começou a evangelização dessa nação índia.

São Francisco de Assis, com que termos cantaria o irmão Francisco como ele, que converteu assim uma nação infiel!

Mas restava conversar. Como falar com aqueles índios? Ele começou a falar castelhano e se deu conta de que o dom das línguas tinha entrado nele, e os índios entendiam o castelhano com toda a simplicidade. Assim se faz apostolado!

Castidade: a única virtude que não se esconde

Durante treze anos ele esteve nessa região, empregando todos os recursos para apaziguar brancos e índios, resolver dissensões, cativar uns e outros para a Religião. São Francisco Solano, êmulo de São Francisco Xavier, ressuscitou mortos, curou doenças mortais, amansou feras bravias, fez surgir fontes em lugares áridos, de tal maneira que era veneradíssimo pelos brancos e índios com quem tinha contato.

É um fundador de uma nação! Homem que ressuscita mortos, fala em sua própria língua e os outros entendem nos seus respectivos idiomas! Assim se funda uma nação. Quantas coisas bonitas haveria para contar de Anchieta também, nesse sentido, o fundador do Brasil!

Certa vez, quando uma nuvem de gafanhotos devastava uma plantação dos índios, o Santo ordenou-lhes que se dirigissem para uma floresta vizinha.

Assim com essa facilidade: “Vão embora para a floresta!” E eles foram.

Então os colonos perguntaram por que ele de uma vez não exterminava os gafanhotos. E ele deu duas razões: primeira, porque gafanhotos daquela espécie tinham servido de alimento a São João Batista, no deserto.

Portanto, por amor a São João Batista, ele não mandava exterminar os gafanhotos.

Em segundo lugar, porque também os índios comiam gafanhotos e era bom que os irmãos índios não ficassem privados de sua alimentação.

Acho isso um encanto!

Esse homem tão extraordinariamente suave era imensamente austero.

Eu falei dos violinos, deixem-me dizer algo sobre os cilícios.

Ele não só era casto, mas era a única virtude que ele timbrava que o vissem possuir.

O que é altamente bem pensado, porque é a única virtude que não se esconde. Tem-se que mostrar.

E, por causa disso, ele nunca permitiu que mulher alguma chegasse a cem passos de distância de sua moradia, em todo o círculo em volta.

Será que compreendemos a responsabilidade individual de cada um de nós? De que história somos a continuação? Que promessas estão nas nossas mãos? E também que desilusões podem cair sob nossa responsabilidade, se não correspondermos à graça?

Aqui é uma tarefa individual, porque do bom procedimento e da dedicação de cada um de nós pode decorrer uma notável melhora ou piora em todo o conjunto.

Entregou sua alma a Deus, enquanto se cantava o Credo

Quando podia, mandava construir uma choupana ao lado do coro, na igreja, para ter sempre a presença do Santíssimo. Quando não conseguia, levava ao coro uma esteira e deitava-se no próprio coro, onde, depois de alguns momentos de descanso, inflamava-se de amor de Deus que traduzia nos famosos cantos e danças, acompanhados de violino.

Estando para morrer, no último momento, para traduzir seu amor e reconhecimento para com a Santíssima Virgem, pediu que lhe cantassem o Magnificat.

É sempre a alegria.

Lembrando-se em seguida de que era missionário, isto é, propagador da Fé, pediu que lhe cantassem também o Credo. E às palavras “Et incarnatus est de Spiritu Sancto ex Maria Virgine”, expirou precisamente naquele instante, quando os sinos do convento anunciavam o momento da elevação na Missa conventual.

Tudo ao mesmo tempo. Não pode ser mais bonito. Quer dizer, no convento, quando havia a elevação do cálice durante a Missa, se tocava o sino. Na cela dele, cantavam o Credo. Ao entoarem as palavras que acabo de citar, por coincidência fazia-se a elevação, os sinos tocavam e a santa alma de São Francisco Solano subiu ao Céu.

Isso é morrer! Ou, por outra, isso é nascer.

Depois de morto, tendo procurado certificar-se do rejuvenescimento que apresentava seu corpo, tão maltratado durante a vida pelos jejuns e penitências, um médico primeiro apalpou-lhe os pés e as mãos. Quando tentou apalpar-lhe uma das pernas, o Santo encolheu-a, dobrando o joelho. E é assim que é representado no retrato que foi feito dele no dia seguinte ao de seu enterro.

Quer dizer foi mais um milagre que ele fez. Para mostrar a presença de Deus pela sua graça, ele encolheu a perna a fim de manifestar quanto a Providência o tinha amado em vida e dava-lhe a possibilidade de fazer esse prodígio. Ele não se auto ressuscitou, mas o cadáver se moveu. Aquele que tinha ressuscitado tanta gente dava essa manifestação de vida.

O Vice-Rei, estando ausente da cidade, mandou que se adiasse o enterro para poder estar presente. E tanto o Arcebispo quanto o Vice-Rei entraram no cortejo para oscular humildemente os pés do Santo. Tendo o Vice-Rei visto que a almofada que sustentava a cabeça do Santo, no caixão, era de um tecido muito ordinário, ou pelo menos alegando isso, fê-la trocar pela de veludo bordado a ouro que tinha consigo. A outra, levou-a como relíquia.

São Francisco Solano foi beatificado em 1675 e canonizado em 1726. Mesmo antes de sua beatificação, já fora escolhido como patrono pelas cidades de Lima, Buenos Aires, Cartagena da Colômbia, Panamá e Santiago do Chile.

Com isto está apresentada a vida de São Francisco Solano.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/8/1974)

 

1) Não dispomos dos dados bibliográficos.