São João Bosco Austeridade e ação intelectual na vida de um insigne educador

Com profunda admiração pela obra salesiana, Dr. Plinio evoca o grande segredo da educação que Dom Bosco dispensava a seus “birichini”, os meninos pobres dos bairros de Turim: freqüência dos sacramentos e uma assídua assistência à Missa; e para sua congregação sobreviver às investidas do laicismo, a destemida e ágil astúcia dos santos…

No dia 31 de janeiro celebra-se a memória de São João Bosco, fundador dos Salesianos e extraordinário apóstolo da juventude. A fim de nos unirmos a essa comemoração, será oportuno considerarmos algumas notas a respeito de sua obra evangelizadora e de suas idéias pedagógicas.

Influência da “Mamma” Margarida

É indiscutível que a personalidade da mãe de Dom Bosco influiu em sua formação. Essa mulher, viúva aos 29 anos, marcou profundamente a alma de seus três filhos. Era puco instruída, mas dotada de raro bom senso. A retidão de seu julgamento, uma grande piedade e não menos devotamento, aliados a uma firmeza viril, dela fizeram a educadora exemplar.

O trabalho era obrigação constante em sua casa. Margarida sujeitava seus filhos a todas as atividades domésticas e dos campos. Desde a aurora, no verão, e ainda antes, no inverno, as crianças iniciavam o dia pela oração. “A vida é muito curta, dizia a mãe, para dela perdermos a melhor parte”. A fadiga não era considerada, as refeições permaneceram sempre de uma extrema frugalidade. À noite dormia-se no chão. Quando mais tarde João for para o seminário, levará o cobertor prescrito. Mas nas férias a mãe o fará guardar cuidadosamente, considerando essa doçura inútil e prejudicial.

 

Convém frisar que a família de São João Bosco vivia numa fria região do norte da Itália, e essa mãe exemplar não hesitava em acostumar suas crianças aos rigores do clima adverso. Preparava, assim, seus filhos, para a vida, de acordo com o que afirmava: “Somos soldados de Cristo sempre em armas, sempre em presença do inimigo, e é preciso vencer”.

Temos aqui a descrição da mulher forte do Evangelho — que levanta cedo para iniciar seus afazeres domésticos, cumprindo-os com exatidão — cujo preço é tão valioso que se faz necessário ir até os confins do universo para encontrar algo comparável a ela.

Mentalidade oposta à de certo ideal contemporâneo

Vemos, por outro lado, uma mentalidade profundamente diferente daquela que propugnam certos espíritos contemporâneos, para os quais a pessoa que padece fome e frio não é capaz de cultivar a vida espiritual. Segundo tal concepção, importa primeiro dar comida, cama e boa coberta, para só depois se falar em espiritualidade. Portanto, o começo da atividade apostólica é necessariamente uma ação de caráter material; portanto, para converter o mundo moderno importa, antes de tudo, eliminar o subdesenvolvimento. E por causa disso, em última análise, a luta contra o subdesenvolvimento deve ser uma finalidade específica da Igreja…

Ora, o exemplo da Mamma Margherita nos mostra o contrário. Ela e sua família residem numa casa tão pobre que as pessoas não têm cama: dormem no chão, sem cobertores suficientes, nem mesmo para os piores dias de inverno. Como vimos, Dom Bosco levou uma coberta para o seminário, pois o regulamento o exigia. Mas, quando retornava para passar as férias em casa, sua mãe o mandava guardar, considerando uma “doçura” supérflua.

Refeições frugais, trabalhos constantes. Propriamente uma vida pobre, porém santificada pelo espírito de renúncia e de sacrifício, pelas práticas de piedade e pela oração, considerada a “melhor parte” daquela sua penosa existência. Foi nesse árduo quotidiano, ungido pela virtude, que se formou um homem de físico forte e resistente para toda espécie de labuta, como foi Dom Bosco.

Esse aspecto da formação do Santo nos faz compreender como é quase um embuste pensar que as condições cômodas da vida são indispensáveis para o êxito do apostolado. Não são. E dir-se-ia mais: uma certa austeridade, sim, é necessária para educar as almas na virtude e na piedade. E essa formação deveria ser dada a toda juventude, de todas as classes e condições sociais.

Aliás, conservou-se por longo tempo na Europa, especialmente nas famílias de alta graduação, essa forma de educar os filhos numa vida rude. Lembro-me, por exemplo, de ter lido a biografia de um nobre francês que morava em Londres, num castelo junto ao rio Tamisa. Ora, o despertar matutino desse príncipe e de seus irmãos não era outro senão este: acordavam e se jogavam pela janela do quarto nas águas frias do rio que corria embaixo…

Somos levados a crer que, se a civilização hodierna não tivesse abandonado essa formativa austeridade, muita decadência teria sido evitada, e talvez o mundo conhecesse muitos outros santos como Dom Bosco.

Ação intelectual, mais valiosa que a assistencial

Prossegue a nota biográfica:
Apesar de muito trabalho, o estabelecimento das duas congregações religiosas, a ereção de igrejas, a fundação de numerosos patronatos e a preparação de missões longínquas, Dom Bosco consagrava boa parte de seus dias e de suas noites a escrever. Com a pena, tanto quanto com a palavra, ele sabia servir a Igreja, combater o erro e reconfortar as almas. Homem de seu tempo, observou a importância desse novo gigante moderno, a imprensa. Sua pena agiu durante quarenta e cinco anos, produzindo obras de acordo com as necessidades de sua época.

O Protestantismo lançava rudes assaltos à Igreja no norte da Itália. À propaganda protestante pela brochura, D. Bosco opôs as “Leituras Católicas”. Em 1883 respondeu ao “Amigo do Lar”, que os protestantes distribuíam a granel, com o primeiro almanaque da Europa.

Aparece-nos aqui o senso da atualidade no espírito de Dom Bosco. Não era um santo que vivia nas nuvens, pois nestas não vivem os santos. Na realidade, Dom Bosco era um homem ciente dos problemas de seu tempo, conhecia os adversários da Igreja na sua época e os combatia, tanto através dos seus escritos quanto por suas realizações apostólicas. E nisso ele nos deu outro exemplo.

Com efeito, fala-se muito da necessidade de se promover obras católicas e pouco a respeito de se escrever livros católicos. Por quê? Porque se dá mais importância ao econômico do que ao espiritual. Ora, o livro se dirige ao espiritual, enquanto a obra se destina ao econômico.

Não houve homem mais compenetrado da necessidade de obras católicas do que Dom Bosco. Entretanto, quando se examina melhor sua atuação, percebe-se ter sido mais escritor do que um empreendedor de obras. É a prova de que no pensamento desse imenso paladino da Igreja, a formação moral valia mais do que a assistencial.

Admirável continuidade de uma ordem religiosa

São João Bosco enfrentou incríveis dificuldades para levar a cabo seus intentos. O ano de 1876 foi um dos mais dolorosos para ele. Os ministros piemonteses, já em guerra contra o Papa, procuravam pegar em falta o santo fundador, a quem acusavam de manter uma correspondência secreta com Pio IX e os bispos. Multiplicavam as buscas em sua casa e queriam a qualquer preço encontrar sinais de uma conspiração.

Um dia, Dom Bosco procurou o Conde de Cavour, então primeiro-ministro, que várias vezes lhe testemunhara simpatia, e declarou-lhe sua intenção de descarregar em suas mãos o cuidado de todos os órfãos de sua instituição. Essa solução inesperada fez o ministro, se não terminar as perseguições, pelo menos fazê-las mais encobertas.

Ou seja, passaram a incomodar tanto a Dom Bosco que este procurou o ministro e lhe disse: “Vou soltar os meninos todos na rua. É o que você quer?”O ministro recuou.

Esse fato me traz à lembrança outro episódio, bem mais recente, ocorrido numa instituição salesiana em São Paulo, e que nos mostra a admirável continuidade existente nas ordens religiosas. Deu-se num período de nossa história em que se estabeleciam leis a granel, muitas das quais nem sequer passavam pela aprovação parlamentar. Por essa época, certo dia se apresentou no Liceu Coração de Jesus — o colégio salesiano que funciona ao lado da igreja de mesmo nome — um desses inspetores pedantes, enviado para examinar possíveis irregularidades. Durante a inspeção, encontrou no canto da grande cozinha uma calça que o cozinheiro havia lavado e ali deixara para secar. Ele chamou o padre responsável pelo estabelecimento e disse:
— Bem, lavar roupa em cozinha configura uma infração ao parágrafo tanto do artigo tanto da lei tal. De acordo com o regulamento, o colégio que o infringe deve ser fechado. Portanto, decretarei o fechamento do Liceu Coração de Jesus.

O padre respondeu:
— Ah, o senhor quer fechar? Pois não. Dê-nos um documento por escrito, e eu imediatamente solto todas as crianças na rua. Depois o senhor explica à cidade de São Paulo que essas crianças estão na imoralidade, morrendo debaixo de ônibus e automóveis, passando fome e vergonha, simplesmente porque havia um par de calças secando no canto de uma cozinha. É isto que o senhor quer?
O inspetor que, não é juízo temerário supor, esperava um generoso “argumento” para não fechar o colégio, ficou desarmado e sem graça. Desconversou, fez algumas observações de estilo e logo se despedia…

O segredo da disciplina de São João Bosco

Continua a biografia:
O fato seguinte é relatado como um dos mais característicos dos resultados dos métodos do grande santo.

Um ministro da rainha da Inglaterra, visitando o Oratório de São Francisco de Sales, em Turim, foi introduzido numa grande sala onde estudavam quinhentos jovens. Ele não pôde deixar de se admirar dessa multidão de escolares observando um rigoroso silêncio, embora ninguém os vigiasse. Sua admiração foi ainda maior quando soube que durante o ano inteiro não se havia a lamentar uma única palavra de dissipação, nem mesmo uma única ocasião de punir ou de ameaçar punição.

— Como é possível obter um tal silêncio, uma disciplina assim perfeita? — indagou ele. E voltando-se para seu secretário, ordenou que anotasse a resposta dada.
— Senhor — respondeu o superior do estabelecimento —, os meios que usamos não podem ser empregados em vosso país.
— Por quê? — pergunta o ministro.
— Porque são segredos revelados somente aos católicos.

Esplêndida resposta.
— E quais são esses segredos?
— A confissão e a comunhão freqüentes. Missa todos os dias e bem assistida.
— Tendes razão — disse o ministro. Faltam-nos tais meios de educação. Mas não há outros?
— Se não nos servimos desses elementos que a religião nos fornece, é preciso recorrer à ameaça e ao castigo.

Calou-se o ministro inglês, embora garantindo que iria repetir o que aprendera.

Devemos imaginar a cena, passada numa época em que a Inglaterra se encontrava no auge de sua irradiação política e cultural, e quando os ministros ingleses eram sempre “gentlemen” pertencentes à aristocracia britânica, trajados com o requinte da moda vigente, pois a opinião pública exigia dos ministros da coroa que fossem verdadeiros modelos de imponência, distinção e elegância.

Acontece, porém, que muitos ingleses ainda nutriam certo preconceito contra o mundo latino, julgando-o inferior e distante da perfeita limpeza, puritana e protestante, do reino britânico.

E esse ministro inglês visita o oratório de São João Bosco na Itália daquele tempo, encontrando ali meninos que seriam ótimas pessoas, mas talvez menos asseados do que o lorde gostaria.

Imaginemos esse aristocrata que se apresenta com ar enfatuado, amabilidade superficial, ruminando prevenções contra o clero católico e é recebido por um padre de Dom Bosco. Sacerdote naturalmente digno, composto, nem um pouco intimidado, porque um homem de verdadeira vida interior não se intimida com valores materiais: libra esterlina, limpeza, bonita gravata, tais coisas não impressionam o varão de autêntica virtude. Além disso, sutil como costuma ser um italiano.

Aparece o ministro com pouco caso e, de repente, o religioso salesiano lhe arma uma “cilada”, na qual o dignitário britânico cai por inteiro, com todos os seus requintes e suas elegâncias. Calou-se e garantiu que levaria o ensinamento para seu país…

Era mais um triunfo do grande São João Bosco. Que este interceda por nós, junto ao trono de Maria Auxiliadora, da qual foi um modelar devoto.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 30/1/1967)

São João Bosco

Grande arauto de Nossa Senhora como Auxiliadora dos Cristãos, São João Bosco realizou magnificamente a obra pedagógica e santificadora à qual fora chamado pela Providência. Instrumento de educação e virtuosa influência sobre os jovens que formava, por assim dizer, manuseava a graça divina para favorecer a atuação dela na alma de seus pupilos.

Risonho, afável, com uma vocação toda especial, brilhante e radiante na doçura salesiana, sabia ao mesmo tempo combater nos seus fundamentos os vícios e defeitos morais, alegrando-se ao ver o progresso espiritual dos meninos.

Talvez em diversos casos, foi ele um santo que educava outros santos…

Um grande epistológrafo

O Bem-aventurado Sebastião Valfré escreveu alguns livros e muitas cartas, tratando de temas teológicos. A propósito do seu talento epistolográfico, Dr. Plinio faz uma meditação, mostrando a decadência dos modos de comunicar o pensamento humano e como esse mal atingiu também a causa contrarrevolucionária. Entretanto, sempre que Deus permite a sua invencível Igreja ser batida, açoitada pelos ventos, o mal é para o gênero humano, não para ela.

 

Comentaremos a biografia do Bem-aventurado Sebastião Valfré, com base numa ficha tirada da obra do Padre Rohrbacher, Vida dos Santos(1).

Variedade de cartas sobre assuntos de Teologia

Sebastião Valfré, nascido na Saboia, em 1629, morreu em Turim, em 1710. Sacerdote oratoriano, grande apóstolo da caridade, virtude em que se distinguiu durante toda a sua vida. Famoso pela santidade de vida, amor à oração e ciência, manteve enorme correspondência com bispos, sacerdotes e grandes personalidades da corte sobre assuntos de Teologia, ou dando numerosos conselhos sobre questões várias. Apesar de ter todo o seu tempo ocupado, deixou obras realmente úteis: “Curta instrução às pessoas simples”, que obteve grande sucesso, “Exercícios cristãos” e “Meio de santificar a guerra”, esta última destinada aos que abraçavam a carreira das armas.

Especialmente devoto da Santíssima Virgem, quando começava a ensinar Teologia, uma das primeiras verdades sobre a qual chamava a atenção dos alunos era a da Imaculada Conceição. Durante seis meses explicava a Ave-Maria, palavra por palavra, pois cada uma delas lhe servia de tema para as aulas. Além disso, recomendava especialmente a devoção aos Anjos da Guarda. Dizia que em todas as suas necessidades e aflições jamais deixava de invocar seu Santo Anjo e por ele nunca fora abandonado. Além disso, seu zelo era voltado às almas do Purgatório, pelas quais nunca deixava de rezar todos os dias.

Idade Média: época das grandes sumas

A dificuldade em comentar essa biografia encontra-se no fato de que ela contém os grandes traços do sacerdote santo desse período. Ora, como houve muitos sacerdotes santos nessa época, acontece que esses traços todos mais ou menos já estão estudados. Contudo, há alguns pequenos esclarecimentos que podem ser dados.

Talvez cause certa surpresa ver que a correspondência ocupava na vida dele um papel importante. Mas precisamos tomar em consideração que ele viveu exatamente no tempo de Luís XIV, ou seja, no auge do “Ancien Régime”, em que as condições de comunicação do pensamento eram muito diferentes das hodiernas, mas de algum modo já as prenunciavam.

É uma coisa curiosa na história dos descobrimentos, das invenções e das modificações da vida social, como vem nascendo no espírito das nações, com longas antecedências, apetências para as coisas que mais tarde os descobrimentos inesperados vão fazer surgir.

Ao analisarmos as obras escritas na Idade Média, notamos aquelas grandes coleções. É a era do pensamento sério, das sumas; livros escritos em pergaminho, em material volumoso, bibliotecas com aquelas coleções enormes. Quando aparece a imprensa, começam a surgir os livros menores. O material vai se tornando mais leve, mas também, simultaneamente, começam a desaparecer as grandes sumas e as grandes obras de conjunto.

O espírito humano torna-se fragmentário: os livros especializados e as cartas

O espírito humano, perdendo aquela unidade medieval, vai se tornando fragmentário, produzindo obras menores sobre pontos específicos e perdendo apetência para as grandes universalidades, os grandes conjuntos do pensamento. De onde as coleções de livros ainda continuarem a existir, mas com uma tendência a desaparecer e darem origem ao ensaio, ao livro especializado.

Mas já no tempo de Luís XIV e, portanto, da Madame de Sevigné, começam as cartas a tomarem um papel paralelo ao dos livros. As estradas se tornaram muito mais seguras, o transporte por mensageiros a cavalo e a carruagem começou também a se tornar mais fácil, mais seguro e, com isso, a correspondência postal, sem ter adquirido a institucionalização que obteve no século XIX, foi, entretanto, se tornando também mais metódica. Assim, começou a aparecer um estilo novo de comunicação de pensamento mais delgado do que o livro, que é a carta.

Havia cartas de duas espécies: uma tratando de um assunto doutrinário, e outra dando notícias. As que tratavam de assuntos doutrinários eram grandes cartas escritas por personagens eminentes.

Anteriormente a esse nosso Santo, o infame Erasmo, por exemplo, um pouco posteriormente a ele o infamíssimo Voltaire, fizeram uma obra revolucionária enorme através de cartas que eram, muitas vezes, doutrinárias ou de análise de fatos, que eles mandavam a vários outros homens célebres do tempo. Célebres por sua cultura, por seu talento, pela alta posição política, pela ligação que tinham com os acontecimentos da época, ou pela categoria eclesiástica ou nobiliárquica que ocupavam.

Essas cartas, depois, eram copiadas. Por exemplo, um sujeito qualquer que recebesse uma carta de Erasmo ou de Voltaire, tomava a missiva recebida mais a resposta dele e publicava. Aquilo era impresso e distribuído. Ele mesmo mandava para seus relacionamentos, a fim de verem que ele escreveu uma coisa tão importante que o grande Erasmo, o grande Voltaire se dignou responder. Então, as duas cartas constituíam quase que um tratadinho a respeito de algum tema.

Coisa muito apreciada era a carta sobre uma controvérsia entre dois personagens sumos a respeito de determinado assunto. Uma troca de correspondência entre o Cardeal Caetano e Lutero, por exemplo, constituía um fino alimento para os espíritos eruditos.

Surgem os artigos de revista e de jornal

Vemos, assim, como vai nascendo, de longe, o artigo de revista e de jornal. Antes mesmo de haver a revista e o jornal, o espírito humano ia engendrando algo que preparava as condições para esses meios de comunicação.

Concomitantemente, havia os noticiários que circulavam largamente. Antes de a imprensa chegar ao desenvolvimento que ela atingiu no século XIX, existiam nas capitais dos países agências que mandavam as notícias manuscritas para o interior, mediante assinatura. Já eram, portanto, “jornais” manuscritos, antes de haver propriamente os jornais, de tal maneira o espírito humano vai adiante da descoberta. Depois é que vem a descoberta e alcança celebridade. Mas é porque havia condições no espírito humano para notar aquele progresso e aproveitá-lo. Do contrário, aquilo passava desapercebido e ninguém se incomodava.

É bonito notar como a Igreja vai engendrando, para cada nova forma de comunicação, formas novas de talento. De maneira que a epistolografia, a qual desde os tempos dos romanos havia decaído, tomou exatamente a partir do século XVI um realce muito grande. Assim, vemos surgir grandes Santos epistológrafos.

O apogeu do gênero epistolar

O Bem-aventurado Sebastião Valfré, grande teólogo e filósofo, escreveu três livros e uma multidão de cartas que, com certeza, circularam amplamente no tempo dele e fizeram muito bem, pois este era um estilo clássico de se comunicar.

Hoje a carta decaiu enormemente de importância e de qualidade, pois foi substituída pelos modernos meios de comunicação: jornal, rádio, televisão, telefone, etc. Quando estes não existiam, a tendência de quem escrevia cartas, sabendo que as notícias seriam tão bem aproveitadas, era de aprimorar o estilo, arranjar um bonito papel e elaborar uma linda caligrafia. Quer dizer, tudo quanto cerca uma carta chegou ao seu apogeu nesse período. Temos então, nesse tempo, um grande Santo que é também um grande epistológrafo.

No século XIX tivemos o grande jornalismo católico, cujo rei foi Louis Veuillot. Ele se tornou o jornalista católico perfeito, realizando uma coisa que poderia parecer impossível: num estilo definidamente baixa de nível, fazer coisas de alto nível. A forma do jornalismo de Louis Veuillot era a seguinte: ele tinha uma visão penetrante e clara dos “flashes” da realidade. Ele não era nem um pouco um espírito capaz de fazer uma suma. Um ou outro livro de grande porte que ele escreveu não foi bem sucedido. Mas ele tinha uns “flashes” a respeito da realidade, uns “aperçus”, em que ele pegava a coisa com muita clareza. E tinha um francês ligeiro e insolente que exprimia aquilo sucintamente. Em três gotas de tinta ele construía ou destruía uma pessoa, uma argumentação ou uma refutação. Dessa maneira ele teve a forma de talento própria ao estilo jornalístico para defender a causa contrarrevolucionária.

Devemos ver os desígnios de Deus nos castigos que Ele impõe

Notamos aqui os desígnios secretos da Providência. E como são insondáveis as coisas de Deus. É bonito que Deus Nosso Senhor tenha constituído talentos que se adaptassem a essas várias formas que foram aparecendo. Nós não vemos um talento que tenha dado um brado de alarme contra as sucessivas baixas que essas formas representavam. Por quê? Evidentemente, castigo de Deus para a humanidade. Deus, descontente, permitia que a casa fosse caindo em ruínas, e ia dando engenheiros para colocarem escoras nela. Mas não deu engenheiros capazes de deterem a ruína e reconstruírem a casa. Porque havia pecados no mundo que provocavam a cólera d’Ele. Por causa disso, chegamos ao momento em que a casa está a ponto de ruir.

Alguém dirá: “Mas Dr. Plinio, com isso não foi derrotada a Igreja? Ora, se Deus ama a Igreja, não seria razoável que Ele evitasse para ela essa humilhação?”

Cada vez que a Igreja é aparentemente vencida, a derrotada não é ela, mas sim a humanidade. Porque a Igreja existe para beneficio dos homens. Portanto, sempre que Deus permite a sua invencível Igreja ser batida, açoitada pelos ventos, o mal é para o gênero humano, não para ela. Devemos ver os desígnios d’Ele nos castigos que Ele impõe.

Nós temos, com isso, uma meditação a respeito do talento epistolográfico desse Bem-aventurado.

 

(Extraído de conferência de 30/12/1969)

 

1) Cf. ROHRBACHER, René-François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. v. XXII, p. 211-216.

 

Santa Inês

No momento de seu martírio, oprimida pelas dores, Santa Inês recompôs suas vestes por amor à pureza.

Ter essa preocupação naquela hora significa tão grande elevação de espírito, tão intenso amor à virtude, que não se pode simplesmente incluir o fato nos fioretti, como se fosse mais um tocante episódio de vida de santo.

Essa atitude da mártir é como que o brilho de uma gota do preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo; é um ato admirável de sabedoria, uma manifestação arrebatadora de apreço pela castidade, sua e do próximo.

Plinio Corrêa de Oliveira

Bondade régia da Virgem do Miracolo

Segundo afirma Dr. Plinio, um estupendo milagre ocorrido no século XIX prefigura os prodígios de conversão que a Santíssima Virgem deverá operar em nossos dias, tornando-se Ela a Rainha de todos os corações.

Entre as centenas de igrejas que a piedade católica edificou na Cidade Eterna está a de Santo Andrea delle Fratte (Santo André dos Frades), onde se venera uma linda imagem de Nossa Senhora, sob a invocação de Madonna del Miracolo, ou Nossa Senhora do Milagre.

Como facilmente se intui, esse título se refere a um grande milagre realizado pela Mãe de Deus, no mesmo lugar onde hoje é cultuada por seus inúmeros devotos: A conversão do judeu Ratisbonne.

Era 20 de janeiro de 1842. Que se passou naquela ocasião?

Para a maioria dos que então se encontravam em Roma, era apenas mais um dia frio e corriqueiro de inverno. Não o seria, porém, para um turista de passagem pela capital da Cristandade.

Afonso Tobias Ratisbonne, francês aparentado com a influente família dos Rotschild, era judeu de raça e religião. Mais dado ao ceticismo, alimentava uma não pequena animosidade contra a fé católica. Naquele dia, porém, cedendo aos rogos do Barão de Bussières (que desejava a conversão dele), e um tanto por bravata, concordou em colocar ao pescoço a Medalha Milagrosa, muito difundida no período imediato às aparições de Nossa Senhora a Santa Catarina Labouré, em 1830, na capela das Filhas da Caridade, na rue du Bac, em Paris.

Além disso, a convite do mesmo amigo, dirigiram-se à igreja de Santo Andrea delle Fratte, onde o Barão devia encomendar uma missa de sétimo dia pela alma de um conhecido. Chegados ali, o amigo foi até a sacristia, enquanto Ratisbonne, por um interesse artístico, mas com ar meio de mofa, começou a percorrer o recinto sagrado, detendo-se aqui e ali, diante dos altares laterais.

Quando o Barão retorna, depara com esta cena surpreendente: o judeu ajoelhado, completamente em êxtase, transfigurado, rezando com inusitado fervor em frente de uma das capelas  secundárias.

O Barão de Bussières apressou-se em lhe perguntar o que acontecera, e Ratisbonne comovidíssimo abraçou-o dizendo:
— Eu vi a Mãe de Jesus Cristo! Ela me apareceu…. aqui!

E descreveu a aparição de Nossa Senhora, cuja celestial figura correspondia em tudo à que vira Santa Catarina Labouré, alguns anos antes, em Paris. Segundo ele, a Santíssima Virgem cingia uma coroa de Rainha e vestia uma bela túnica comprida, presa à cintura por uma faixa preciosa; pousava os pés virginais sobre a toalha de linho do altar, e lhe sorria maternalmente, com os braços estendidos e as mãos abertas. Como se vê, a mesma silhueta da imagem esculpida na medalha que ele então trazia.

Ante essa extraordinária visão, Ratisbonne compreendeu que se encontrava na presença da Mãe de Deus: caiu de joelhos e se converteu no mesmo instante. Poucos anos depois tornar-se-ia o Padre Afonso Maria Ratisbonne, secundando seu irmão na fundação da Congregação do Sion, voltada de modo particular para o apostolado católico com os israelitas.

Estratégia da Providência contra a impiedade

A notícia dessa conversão logo se difundiu, revestindo-se de profundo significado no contexto psicológico e doutrinário da época. No século XIX, a impiedade insistia no sofisma de que o homem racional, procurando julgar as coisas de acordo com a razão, não encontra fundamentos suficientes para afirmar a veracidade da Igreja Católica. Não tem meios de provar que Deus existe, que  Jesus Cristo é Deus, que a Igreja tenha sido fundada por Ele. Portanto, todo o edifício das doutrinas e da Fé no catolicismo não passa de um arcabouço inaceitável e ilegitimável pela razão humana.

É um mito, como qualquer outro da antiguidade romana ou grega, como os da religião hindu ou das crenças africanas. Não poucas almas estavam perdendo a Fé, cedendo culposamente ao dilúvio de objeções — a maior parte das quais constituída por chicanas e sofismas, além de alguns argumentos capciosos contra a Igreja Católica. A fim de combater essa investida diabólica, a Providência  fez milagres em diversos lugares, e o ocorrido na Igreja de Santo Andrea delle Fratte foi um dos mais insignes a comover a Cristandade.

Qual fato poderia causar maior estupor do que um filho do judaísmo, aparentado com uma das famílias mais ricas do mundo, sem a menor necessidade de agradar a Igreja Católica, declarar-se de repente convertido por ter visto Nossa Senhora? E que, como prova de sua sinceridade, abandona a vida mundana e abraça para sempre uma existência de renúncia e sacrifício. Ainda por cima, ajuda a fundar uma Congregação religiosa destinada a trabalhar pela conversão de seu povo. Maior manifestação de autenticidade, ele não poderia dar.

Para a humanidade daquele tempo, sacudida pela multidão de argumentos dos inimigos da Religião Católica, esse evidente milagre caía como uma refrescante gota d’água num deserto.

Nossa Senhora desferia um golpe sumamente estratégico e bem calculado, pisando na cabeça da serpente infernal. Pelo testemunho de um ex-adversário, Ela demonstrava de modo maravilhoso quanto a Igreja Católica é verdadeira.

Pouco depois, como num requinte desse “plano de ataque ”, Ela daria início aos milagres de Lourdes, que viriam a constituir a mais acentuada série de celestiais prodígios na história da Igreja.

Diante da imagem, uma contínua “aparição”

Logo depois da aparição a Ratisbonne, foi pintada a imagem da Madonna del Miracolo, de acordo com as indicações do vidente. Como sói acontecer, o símbolo ficou devendo à Simbolizada, pois, por mais bela que seja a figura retratada por mãos humanas, a formosura de Nossa Senhora excede a qualquer esplendor. Ela não é pintável, assim como não é descritível.

Trata-se de uma imagem romântica, bem no estilo do século XIX, bastante comunicativa, e que deve ser vista com certo recuo. Ou seja, contemplada com olhos que sejam capazes de ver muito mais e além do que os próprios olhos possam apreender. Há nela um sorriso, uma express ão de fisionomia, uma afabilidade no gesto, que transcendem a cor do vestido e outros pormenores dos adornos.

Considerando-a, certas almas chegam mesmo a sentir algo do autêntico sorriso de Nossa Senhora. Ela cria em torno de si uma atmosfera sumamente benfazeja. As pessoas que rezam diante do quadro, na Igreja de Santo Andrea delle Fratte, mantêm-se em geral recolhidas, deixando perceber em suas faces o quanto se sentem penetradas pelas graças efundidas pela Santíssima Virgem.

Envolve-as uma impressão de paz e calma, de céus abertos, e de que Nossa Senhora, exorável, dispõe-Se a atender a todos os pedidos. Uma sensação de que o tempo não se encontra apartado da eterna bem-aventurança, e de que a benignidade de Nossa Senhora transpõe distâncias incomensuráveis para se nos tornar acessível e acolhedora. Experimenta-se uma verdadeira consolação, uma verdadeira confiança, uma verdadeira resignação, uma certeza de que, em última análise, tudo dará certo.

Lembro-me, emocionado, de que venerei essa imagem em dias de muitas e penosas preocupações. Nesse período, o sorriso dela era a grande esperança que me iluminava e guiava, beneficiando-me da unção característica que ela comunica em torno de si.

Em diversos momentos, era tomado pela impressão singular de que a pintura continuava a aparição, adquirindo uma luminosidade cambiante, uma luz que me sorria mais ou menos conforme o dia e conforme o modo de Nossa Senhora olhar-me. Isso trazia uma espécie de garantia de graça concedida, de bondade dada, de favor outorgado, a sensação de que o sorriso de Nossa Senhora cicatrizava todas as dores e sofrimentos do dia, e me armava de alento para a jornada seguinte.

Nesse tempo que passei em Roma, cheio de momentos aprazíveis, mas também de graves apreensões, essa imagem me animou numerosas vezes com uma contínua efusão de graças. Consolou-me, fazendo-me sentir que Ela estava mais próxima de mim, a espargir seu incansável amor materno. Pedir e esperar grandes milagres que renovem o mundo Uma consideração final.

A Virgem do Miracolo é, portanto, a Virgem que praticou um grande milagre. Ela converteu, de um momento para outro, um homem mundano, com toda espécie de preconceitos contra a Religião Católica. Passando por cima dessas tremendas barreiras, Nossa Senhora fez o milagre de o converter, maior até que o de lhe aparecer. Por assim dizer, Ela entrou na alma dele e o transformou completamente.

É o milagre moral, mais estupendo que qualquer milagre material.

Cumpre observar que, em virtude de uma lei superior da Providência, milagres assim tornam-se mais freqüentes nas épocas em que são mais necessários. Desse modo, sempre que a situação no mundo vai se apresentando mais precária, que a impiedade vai crescendo — como vemos em nossos dias —, o número de milagres deverá aumentar. Poderão demorar mais ou menos tempo para começar, mas virão na hora certa e farão sua obra.

E nós, católicos, devemos contar com eles para abrirmos caminho no meio de tantas provações, confusões e decadências. Deus tem desígnios e mistérios que não nos cabe alcançar. Apenas  devemos confiar e esperar que Ele, a rogos de Maria Santíssima, intervenha de modo miraculoso para tocar o coração da humanidade contemporânea.

Por ocasião da festa de Nossa Senhora do Miracolo, nada mais oportuno do que pedirmos com fervor e empenho que Ela, como fez com Ratisbonne, entre triunfalmente em nossas almas e nas de todos os homens, vencendo nossos vícios, nossos pecados, nossas misérias e quaisquer outros obstáculos que pudéssemos Lhe opor. De maneira que Ela se torne verdadeiramente Rainha de  nossos corações, e opere um maravilhoso milagre moral que transmude e renove a face do mundo.

Plinio Corrêa de Oliveira

Miliciano de Nossa Senhora e de Nosso Senhor Jesus Cristo

Podemos imaginar São Sebastião na força da idade, na glória do uniforme romano, no esplendor do capitaneio da coorte imperial, que se esgueira e, sem encontrar resistência da parte das sentinelas das prisões, por ser ele quem era, vai entrando pelos cárceres, pelas enxovias e alimentando, com a sua coragem, os anciãos, os jovens de ambos sexos, as pessoas de todas as condições que ali estavam para serem martirizadas.

São Sebastião sabe que sua atitude vai acarretar para ele também o martírio, mas caminha rumo ao suplício com aquela serenidade, deliberação e superior entrega de si mesmo à Cruz de Cristo, Nosso Senhor, que faz com que ele não estremeça, mas permaneça, durante todos esses riscos, sempre heroico e senhor de si, até entregar a sua alma a Deus, com uma tranquilidade diante da morte própria a um militar miliciano de Nossa Senhora e de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/1/1967)

Papa São Fabiano “O homem da rua sobre quem a Pomba pousou”

Em artigo estampado na Folha de São Paulo de 3/12/1976, Dr. Plinio procura conceder a si mesmo algo de refrigério diante da crescente agitação que tomava o mundo moderno. Como? Tecendo um hino de amor à santidade do Papado, a propósito da eleição providencial de São Fabiano ao Trono de Pedro.

 

A poluição em todas as suas formas, continua problema atual. Mais especialmente tenho em vista aqui a poluição moral inerente à vertiginosa decadência dos costumes, e a poluição mental provocada pela trepidação da vida hodierna. (…)

Uma excursão ao passado

O meio de fugir disso? Uma excursão, por exemplo, ou a audição de alguns belos discursos, a leitura de um romance, contentam a vários. Há os que se satisfazem com menos, isto é, com a ingestão de qualquer comprimido que favoreça a evasão para as profundidades de sonos insondáveis. Entre tantos recursos despoluentes, há também a excursão às extensas regiões do passado, ou seja, a leitura de narrações históricas. No píncaro destas, existe a legenda, com o encanto de sua leveza, de seu simbolismo, de seu esplendor.

Para a decepção da maioria e o possível contentamento de uns poucos, é uma viagem ao passado que proponho neste fim de semana. Não ao passado histórico, mas ao passado legendário, tão lato, tão belo, que por alguns lados parece tocar na própria eternidade. Acabo de ler um conto tomado mais ou menos a esmo na Légende Dorée, de Jacques de Voragine. Queres viajar comigo nas regiões etéreas deste conto, leitor?

De um simples passeio para a maior das dignidades

Fabiano era um simples romano como outro qualquer. Um “homem da rua”, como hoje se diria. E sequioso de notícias como são em todos os tempos os seus congêneres.

Ora, havia em Roma, ainda recente uma grossa novidade: morrera o Papa. E estava em gestão uma novidade ainda maior: ia ser escolhido pelo povo o novo Pontífice. Nosso “homem da rua”, segundo o costume, saiu de casa e se misturou na multidão, reunida para a augusta escolha(1). Fabiano julgava chegar atrasado, isto é, a tempo somente de conhecer o resultado.

E este veio, bem diverso do que Fabiano podia imaginar. Do alto do Céu baixou uma pomba de esplendorosa alvura, e pousou sobre a sua cabeça. Por esse fato simbólico, o Espírito Santo deixava claro que designava Fabiano. A multidão, piedosamente entusiasmada, escolheu-o Papa. E Fabiano, que saíra à rua para passear, se viu alçado assim à dignidade inigualável de sucessor daquele de quem o Salvador disse: Tu és Pedra, e sobre essa pedra edificarei a minha Igreja. E as portas do inferno não prevalecerão contra ela (Mt 16, 18). E a partir daquele momento a “solicitude de todas as igrejas” (2 Cor 11, 28) passou a ser a única preocupação e a única atividade de sua vida.

Suma veneração pelos mártires

Aqueles remotos tempos se assemelhavam de algum modo aos nossos. A Igreja tinha adversários poderosos e implacáveis. O sangue dos mártires corria às torrentes em toda a vastidão do Império Romano. Também hoje a Igreja tem inimigos poderosos. E, por toda parte, também os católicos são perseguidos. É certo que os adversários de hoje (…) não são brutais como os de outrora.

Perseguem com o sorriso hipócrita nos lábios, e a mão estendida para a colaboração dolosa. (…) Hipocrisia ou brutalidade são acidentes. Em substância, o ódio é o mesmo.

Fabiano, cheio de veneração pelos mártires, começou seu Pontificado enviando por todo o Império sete diáconos e sete subdiáconos, para que recolhessem por toda a parte as atas dos martírios. Homem previdente, queria ele legar assim para toda a posteridade, estas narrações de uma heroicidade sem igual, escritas pelo sangue dos homens por amor ao Sangue de Cristo. De sorte que até a consumação dos séculos servissem de adorno à Igreja.

Vencedor de feras

Mas Fabiano não recebera em vão a visita da Pomba. O “homem da rua”, presumivelmente pacato e mediano, transformou-se em herói, e não apenas em colecionador e compilador de feitos heróicos de outros.

O imperador Filipe levava uma vida cheia de pecados. Sem embargo, quis assistir às vigílias da Páscoa e participar dos Santos Mistérios.

Fabiano, (…) em lugar de aceitar a presença escandalosa do pecador, (…) impediu que Filipe transpusesse os umbrais sagrados enquanto não confessasse seus pecados e não aceitasse de se colocar no lugar reservado então aos pecadores penitentes dentro da Igreja. Filipe cedeu.

E Fabiano, pela graça da Pomba [isto é, do Espírito Santo], venceu assim a fera. Feliz da Igreja quando é governada por varões que, fortalecidos pela Pomba, não teme as feras!

Bem entendido, as feras não gostam deste trato. No 13º ano de seu Pontificado, o Imperador Décio mandou decapitar Fabiano. Este é o fim sinistro do “homem da rua” visitado pela Pomba, e transformado por Ela em um vencedor de feras.

Na glória celeste, aos pés de Maria

Fim sinistro?

Consideremos o desfecho da história, tão e tão elevado, que a legenda áurea apenas o deixa discretamente subentendido. No momento em que a cabeça venerável de Fabiano foi cortada, uma corte rutilante de Anjos, provindo das alturas excelsas onde reinam o Padre, o Filho e o Espírito Santo, baixou para receber a alma santíssima do novo mártir. Fabiano subiu, subiu, levado pelos Príncipes celestes. Mas, por mais que ele subisse, a Santíssima Trindade parecia irremediavelmente inacessível. Depois de um glorioso itinerário através das Hierarquias infindáveis dos Anjos que o aclamavam e o elevavam com o cântico de seu afeto, Fabiano, extasiado de felicidade e de glória, foi deposto pelos Anjos aos pés de Nossa Senhora. E assim como através de um telescópio os astros mais distantes parecem aproximar-se de nós, assim também junto ao Coração de Maria, Fabiano se sentia inteiramente saciado pela presença de Deus. Como é doce e glorioso contemplar Deus face a face, aos pés do trono de Maria!

Rogai por nós e pela Igreja!

Nessas alturas celestes terminou o passeio do “homem da rua”, que fora pacatamente à procura de notícias sobre quem tinha sido eleito Papa. E até o fim do mundo haverá homens que digam: “São Fabiano, rogai por nós”. Eu, por exemplo. E tu também leitor.

“Rogai por nós”. Só isto? Rogai, São Fabiano, pela Santa Igreja Católica Apostólica Romana. (…)

Ó, rogai pela Igreja, São Fabiano!

 

1) Nos primórdios do Cristianismo os papas eram eleitos pela aclamação do clero e do povo congregados nas ruas de Roma para esta finalidade. A partir de 769 ficou estabelecido que o Sumo Pontífice seria escolhido apenas pelo clero romano, mantendo-se a aclamação popular como mera formalidade. Em 1059, o Sínodo de Latrão reservou aos cardeais o direito de eleger o novo sucessor de Pedro (cf. Legenda Áurea, Cia. das Letras, São Paulo).

Plinio Corrêa de Oliveira

Madonna del Miracolo – O triunfo da Mãe de Deus em nossas almas

Num período particularmente significativo de sua gesta apostólica, Dr. Plinio se viu objeto de grandes consolações e favores celestiais, ao venerar a imagem de Maria Santissima del Miracolo, em Roma, na igreja de Sant’Andrea delle Fratte. Ao evocar o célebre milagre que resultou na conversão do judeu Ratisbonne — em 20 de janeiro de 1842 —, recorda-se ele uma vez mais daquela efusão de graças recebidas junto ao tocante quadro da excelsa Mãe de Deus.

Há em Roma uma igreja chamada Sant’Andrea delle Fratte(1), pertencente aos frades menores de São Francisco de Paula. Devido à nossa estada na Cidade Eterna durante a primeira fase do Concílio Vaticano II, de outubro a dezembro de 1962, íamos quase todos os dias nessa igreja. Além de se situar próximo ao local onde nos hospedávamos, esse templo nos atraía por uma de suas imagens, a da Madonna del Miracolo, à qual tributávamos particular devoção.

Miracolo é uma palavra italiana que significa milagre. De fato, naquele lugar se realizou um milagre insigne cujo teor já tivemos ocasião de comentar(2), pelo que o relembro apenas de modo sucinto.

Rothschild e Ratisbonne

No século XIX, a família dos Rothschild iniciou sua ascensão na França, no período em que o regime napoleônico se encontrava no auge de seu poder. Os membros dessa família possuíam imensa riqueza, e a celebridade da estirpe baseava-se preponderantemente no fator financeiro.

Como sói acontecer, as famílias abastadas constituíam seu círculo próprio, onde se frequentavam umas às outras, casavam seus filhos, etc. E sucedeu que uma Rothschild uniu-se em matrimônio a um membro da família Ratisbonne, também de origem hebreia. Como se sabe, não raro os israelitas adotam sobrenomes de cidades, e o desse personagem é a tradução do latim para o francês do nome da pitoresca cidade bávara de Regensburg.

O casal recém-formado, herdando o prestígio granjeado pelo importante patrimônio dos Rothschild, introduziu-se na alta nobreza da Europa, a qual ainda gozava de muita fartura e ocupava a primeira categoria social do Velho Continente. Assim, viviam no luxo, ostentavam roupas de célebres estilistas, equipagens magníficas e tudo quanto havia de melhor.

Conversão espetacular

No grêmio dessa nova linhagem surgiria Afonso Tobias Ratisbonne, francês, bastante inclinado ao ceticismo. Tornou-se influente banqueiro, afeito à vida mundana e apreciador de viagens pela Europa. Quando realizava uma dessas excursões, em 1842, passou por Roma e, por obrigações familiares, teve de visitar o Barão Teodoro de Bussières, secretário e amigo íntimo do embaixador da França em Roma. Esta não era ainda a capital da Itália, uma vez que a Península não se encontrava unificada, mas dividida em diversos reinos. Um deles, os Estados Pontifícios, dos quais o Papa era o soberano e a Cidade Eterna, a sua metrópole.

O barão se interessou pela pessoa de Afonso e pediu que este lhe contasse sobre seus passeios no centro da Cristandade. Durante a conversa, esforçou-se por incutir na alma do Ratisbonne sentimentos que o levassem a se converter e a aceitar a Fé católica. Não obtendo sucesso, insistiu que o visitante ao menos concordasse em portar uma Medalha Milagrosa, oferecida como presente. Um tanto relutante, Afonso condescendeu, e os dois se despediram, quites a se verem de novo nos próximos dias.

Ora, tendo falecido de modo inesperado o embaixador francês, o Barão de Bussières combinou com Ratisbonne um encontro na Igreja de Sant’Andrea delle Fratte, onde providenciaria as exéquias para o defunto.

Na hora aprazada, Afonso compareceu, e enquanto o barão se achava na sacristia para tratar dos detalhes da Missa, começou a percorrer o interior do templo, detendo-se aqui e ali na consideração das imagens, dos ornamentos, dos belos mármores, etc. Terminadas as tratativas, o Barão de Bussières retornou à igreja e, surpreso, avistou o seu amigo judeu ajoelhado diante de um altar próximo à entrada. Ratisbonne, transfigurado, rezava.

Com intensa emoção, Afonso revelou-lhe:
— Você não sabe o que aconteceu! A Mãe de Jesus Cristo me apareceu aqui!

E passou a descrever Nossa Senhora, tal qual o fizera Santa Catarina Labouré, a quem a Rainha do Céu aparecera 12 anos antes na Capela da Rue du Bac, em Paris. Claro, alheio às coisas da religião Católica, Ratisbonne não sabia daquele acontecimento nem conhecia as narrações feitas por Santa Catarina. Circunstância que conferia ainda maior autenticidade à revelação de que fora objeto.

Segundo suas indicações, pintou-se um quadro com a imagem de Nossa Senhora, a qual passou a ser venerada como Maria Santissima del Miracolo.

Após este prodigioso episódio, tocado no fundo da alma pela graça divina, Afonso Tobias Ratisbonne se converteu, tornou-se padre e, ao lado de seu irmão (fundador da Congregação de Nossa Senhora de Sion), também convertido e ordenado sacerdote, dedicou-se ao apostolado junto aos judeus.

Sorriso que cura todas as dores

Embora sem renomado valor artístico, essa pintura é muito bonita e expressiva, e grande é o afluxo de fiéis a venerá-la, posto que o movimento de piedade na igreja é também intenso, com diversas missas celebradas ao longo do dia.

Como já disse, lá estive várias vezes para assistir a Missa, comungar e rezar diante do quadro. Eu ficava verdadeiramente maravilhado diante da pintura. No meu espírito vincava-se a impressão de que o sorriso de Nossa Senhora aliviava todas as dificuldades daquele dia e me concedia alento para o seguinte.

Pedir a entrada triunfal de Maria em nossas almas

Ao considerar esse lindo episódio da conversão do Ratisbonne, alguém poderia pensar não haver nada de extraordinário nessa mudança de vida: pois se a própria Mãe de Deus apareceu ao homem, tornou-se patente para ele a veracidade da Religião Católica. Outra coisa não lhe restava senão se consagrar inteiramente a esse credo.

Ora, as coisas não se verificam assim tão simplesmente com a miséria humana. Elas se passam de um modo bem diverso. O homem poderia ter sido beneficiado pelo milagre e, apesar disso, manifestar um fervor muito fraco e pequeno.

No caso de Ratisbonne, vê-se que Nossa Senhora venceu imensas e difíceis barreiras: tratava-se de uma pessoa mundana, imbuída de toda espécie de preconceitos contra a Religião Católica. Porém, a Santíssima Virgem conseguiu tocar sua alma, e o maior milagre não foi o de ter aparecido a ele, e sim o de tê-lo convertido.

Por assim dizer, Nossa Senhora penetrou na alma dele e a mudou, transformou-a completamente. E Afonso correspondeu a essa graça, fez-se católico ardoroso e padre exemplar.

Percebe-se por esse fato o quanto vale a entrada triunfal de Nossa Senhora nas almas. E, portanto, na festa da Madonna del Miracolo, devemos pedir a Ela que penetre em nossas almas e faça ali o seu reino, vencendo os obstáculos que possamos Lhe opor. De maneira tal que Ela seja verdadeiramente a Senhora nossa, e nós, seus verdadeiros escravos.

 

1) Santo André delle Fratte: Fratte, plural no italiano de fratta, porção de campo geralmente utilizada como pasto para rebanhos de ovelhas.
2) Cf. “Dr. Plinio” número 46, janeiro de 2000.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Fidelidade à estrela

Segundo uma bela tradição, baseada na exegese de algumas passagens da Escritura Sagrada(1), os Magos guiados pela estrela até Belém eram reis, possivelmente provenientes de pequenos e longínquos reinos.

Para Dr. Plinio(2), os três Reis Magos tinham como missão predispor seus respectivos reinos para a aceitação da Boa-Nova levada pelos Apóstolos ou por seus sucessores, cuja pregação encontraria receptividade da parte da população previamente preparada por seus monarcas.

Para isso — dizia Dr. Plinio —, o Menino-Deus deve ter tornado presente aos Reis Magos, por meio de graças místicas, algo de tudo quanto a Igreja e a Cristandade trariam de belo para a humanidade no decorrer dos séculos, com a promessa de que nas regiões por eles governadas isso se realizaria, se aqueles povos fossem fiéis.

Baltasar, Gaspar e Melchior eram, por certo, almas escolhidas e muito propensas ao maravilhoso, a ponto de se deixarem conduzir por uma estrela. Por isso suas pessoas aparecem nimbadas de uma atmosfera extraordinária, irradiando esse maravilhoso para o qual devem ter preparado seus pequenos reinos.

Sem dúvida, os Reis Magos foram objeto das orações de Nossa Senhora e de São José junto ao Divino Infante para o cumprimento de sua bela missão que, na opinião de Dr. Plinio(3), ultrapassou os limites do tempo e do espaço, estendendo-se a toda a História.

Procedentes de diversas raças, prefiguravam eles todos os povos que viriam adorar o Salvador. Por essa razão, os episódios históricos por eles vividos — a visão da estrela no Oriente; o encontro com Herodes; a insegurança deste rei iníquo e, com ele, de toda a cidade de Jerusalém; a alegria ao reavistarem a estrela; a adoração feita ao Menino, junto a Maria, sua Mãe; a oferenda de ouro, incenso e mirra; o aviso recebido, em sonho, para voltarem por outro caminho(4) — estavam envoltos em aspectos simbólicos que indicavam terem os Magos recebido de Deus uma autêntica e misteriosa delegação: representar as nações que, no futuro, se abririam à influência da Santa Igreja Católica.

Delegação semelhante encontramos junto à Cruz, onde Nossa Senhora, São João e Santa Maria Madalena representavam todos os católicos que ao longo da História permaneceriam fiéis aos pés do Crucificado.

Essa ideia deve dar muito alento àqueles que, nas horas difíceis da Igreja ou da Civilização Cristã, padecem incompreensões, humilhações, perseguições, e que, embora pouco numerosos, procuram representar em seus respectivos ambientes, a pureza, a ortodoxia, a intrepidez, o espírito de iniciativa, no momento em que tudo pareceria falar em recuo, em transigência, em fuga. Esses, por sua fidelidade, além de alegrar o Menino Jesus em sua pobre manjedoura ou consolar o Redentor em seus padecimentos no alto da Cruz, representam de algum modo os católicos fiéis do passado e os que o serão no futuro.

Há, portanto, uma espécie de reversibilidade por cima do tempo e do espaço, por onde essas várias ações se fundem numa cena única e grandiosa.

Peçamos aos Reis Magos que orem por nós para que tenhamos uma das muitas formas de coragem que poderão nos ser pedidas: a de estarmos sós como eles estavam no mundo pagão, à espera da estrela, isto é, da hora de Deus para cumprir com toda retidão, constância e pontualidade a vontade divina.

Para eles, a hora consoladora foi aquela em que contemplaram o Divino Infante nos braços de Maria Santíssima.

Também para nós chegará um momento muito preciso em que uma estrela nos dirá que a hora esperada chegou!

Não será, provavelmente, uma estrela exterior, mas uma voz interior, à qual devemos estar atentos e dóceis, a fim de nos prepararmos para, nessa hora, sermos modelos de exatidão e fidelidade como os Reis Magos.

 

1) Cf. Sl 72, 10-11; Is 60, 3.

2) Cf. Conferência de 22/12/1989.

3) Cf. Conferência de 5/1/1964.

4) Cf. Mt 2, 1-12.

Alta vocação dos Reis Magos

Todos os sacerdotes, reunidos no Templo, deveriam ter comunicado ao povo que os tempos haviam chegado à sua maturidade e, conforme as profecias, afinal o Messias iria nascer. Contudo, foi preciso que viessem de longe os Reis Magos para anunciar em Jerusalém o seu nascimento. Isso mostra o cúmulo da degradação a que essa cidade, ainda não deicida, havia chegado.

Dom Guéranger faz os seguintes comentários a respeito  da vocação e dignidade dos Magos.

Os Reis Magos professam o desejo firme de adorar o Messias.

Tendo a estrela anunciada por Balaão se levantado sobre o Oriente, os três Magos, cujo coração se tinham aberto à espera do Messias Libertador, sentiram antes de tudo a impressão de amor que os levava a Ele. Eles receberam a nova da alegre vinda do Rei dos Judeus de um modo místico e silencioso, diferente dos pastores de Belém aos quais a voz de um Anjo convidou para irem ao Presépio. Mas a linguagem muda da estrela é explicada em seus corações pela ação do Pai Celeste que lhes revelava seu Filho.

Nisto sua vocação foi mais alta em dignidade do que a dos pastores, os quais, segundo as disposições divinas na antiga Lei, nada conheceram a não ser pelo ministério dos Anjos, mas se a graça divina se dirigiu imediatamente a todos os corações pode-se também dizer que ela os encontra fiéis.

Os Magos, falando a Herodes, exprimiram a simplicidade de sua empresa: “Nós vimos sua estrela e viemos para adorá-Lo”. Esses reis dóceis deixam, portanto, de um momento para outro, sua pátria, suas riquezas, seu repouso para caminharem em seguimento de uma estrela de que eles ignoravam o termo.

O poder de Deus que os tinha chamado os reunia em uma mesma viagem em uma mesma fé. Os perigos da viagem, os cansaços, o temor de se levantarem contra si as suspeitas do Império Romano, nada os fez recuar. Seu primeiro passo, seu primeiro repouso foi em Jerusalém. É, pois, nesta cidade sagrada que em pouco tempo será maldita que eles chegam, eles gentios, para anunciar Jesus Cristo e declarar que Cristo veio. Com toda a segurança, toda a calma dos apóstolos e dos mártires, eles professam seu desejo firme de adorar o Messias. Eles obrigam a Israel, depositária dos oráculos divinos, a confessar um dos principais caracteres do Messias: seu nascimento em Belém.

Herodes se agita em seu leito e medita o projeto de carnificina, mas é tempo para os Magos deixarem a cidade infiel, que já recebeu por sua  presença o anúncio de seu repúdio. A estrela aparece no céu e os reis decidem tomar novamente seu caminho. Mais alguns passos eles estarão em Belém, aos pés do Rei que eles vieram procurar.

A vocação dos Magos foi mais alta do que a dos pastores

Esses comentários são borbulhantes de ideias profundas, das quais cada uma mereceria verdadeiramente uma conferência.

A primeira ideia é uma comparação entre os Magos que foram procurar o Menino Jesus, guiados pela estrela, e os pastores. Mas é uma comparação que procura o valor de procedimento de uns e de outros perante o Natal, pelo modo através do qual foi noticiada a uns e outros o advento de Jesus Cristo.

Então ele diz que a chegada de Jesus Cristo foi anunciada aos pastores pelos Anjos. E aos Magos certamente por uma estrela que estava no céu, mas eles souberam que ela significava a vinda do Messias. Como? Em virtude de comunicações internas de caráter místico e silencioso operadas pela graça de Deus na alma de cada um, fazendo com que, quando a estrela chegasse, eles soubessem tratar-se do anúncio do Messias que vinha. Então, tocados por um movimento que era uma fidelidade à voz interna do Padre Eterno na alma deles, os Magos acreditaram na estrela, e como esta se movia  eles a seguiram.

Temos, assim, dois processos. Um é o anúncio de fora para dentro: os pastores, por um fato externo a eles, altamente miraculoso e extraordinário, ficam sabendo que o Messias nasceu. Pelo contrário, os Magos tomam conhecimento de que o Messias nasceu por meio de um fato interior, o qual a estrela apenas esclarece um pouco mais.

Voz interior provocada pela graça

O que tem mais mérito: seguir os Anjos ou a voz interior? Segundo a “heresia branca”

seria os Anjos porque, para esse tipo de mentalidade, a aparição de um Anjo é a prova da santidade; mais ainda, se uma pessoa tem a emoção santificante de ver o Anjo, naquela sensação ela fica santa de uma vez. É uma espécie de suspiro santificante. De maneira que o mais importante é ter recebido o anúncio de um Anjo e corresponder.

Além disso, é mais espetacular ver o Anjo, porque voz interior, quantos têm? Depois, sabe-se lá se é voz interior ou não? Pode haver dúvidas. Com um Anjo não, é uma coisa provada, garantida e, ademais, importante: Deus mandou um Anjo para falar com aquele; oh, não é pouca coisa! Voz interior é a vida de todos os dias, uma coisa apagada, sem graça, desbotada. Então, muito mais vale receber um anúncio pelos Anjos, e é mais fiel quem o segue.

Entretanto, Dom Guéranger, um grande teólogo e especialista na consideração destes temas, mostra que a operação interna da graça numa alma vale mais do que qualquer fato externo, e que a fidelidade à voz interior é mais  preciosa do que a fidelidade a um anúncio exterior; e por causa disto aqueles que não viram o Anjo, mas creram nessa voz interior, tiveram maior mérito. Evidentemente, a voz interior não é um cochicho, mas um jogo de espírito provocado pela graça, por onde a alma percebe, discerne, pondera e, iluminada pela graça, chega às conclusões impregnadas de espírito de fé.

Esse é diretamente um fruto do Espírito Santo, e a fidelidade a isso é mais árdua, mas ao mesmo tempo mais meritória, do que a fidelidade dos pastores ouvindo a voz dos Anjos.

Poder-se-ia objetar: “Mas essas vozes interiores às vezes enganam”.

É bem verdade, mas qual é a consequência?

É que Deus faz mal em nos falar por meio da voz interior? Quem ousaria censurar o Onipotente? E se Deus não faz mal, deveríamos não ouvir, como quem dissesse: “Deixa-O ir falando…”?

Há uma frase na Escritura que diz: “Se hoje ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos corações” (Sl 94, 8). Portanto, não podemos fazer ouvido mouco à ação interna da graça na alma, mas devemos saber discernir, com o auxílio que o próprio Deus nos dá para isso.

Aqui se aplica bem a palavra de Nosso Senhor a São Tomé: “Tu creste porque me viste. Bem-aventurados os que não viram e creram” (Jo 20, 29).

É fecundíssimo este pensamento.

Jesus no berço já estava dividindo, causando polêmica

Outro aspecto que o texto ressalta é a degradação do povo eleito. Nascido o Messias, esse povo deveria receber o aviso de seu nascimento.

Ora, esse aviso precisaria ser dado em Jerusalém e no Templo. O normal seria que todos os sacerdotes reunidos no Templo, num momento em que uma nuvem áurea entrasse no recinto sagrado e um cântico angélico se deixasse sentir, tivessem a confirmação daquilo do que suas almas já lhes estavam dizendo, ou seja, que os tempos haviam chegado à sua maturidade, que os fatos conferiam com a descrição das profecias e que, afinal, o Messias ia nascer. Contudo, foi preciso que viessem de longe os Reis Magos – gentios, pagãos, alheios à nação, filhos, portanto, de povos reprovados e condenados – para anunciar em Jerusalém que o Messias tinha nascido.

Quer dizer, é o cúmulo da degradação para Jerusalém ainda não deicida, mas que nada faltava para ser deicida. É interessante notar a reação dos sacerdotes. Eles confirmaram que o Messias deveria nascer em Belém e, com isso, indicaram uma das características de que de fato aquele era o Messias. Portanto, sem quererem, prestaram um testemunho de que aquele nascimento se operava nas  condições previstas pelas profecias.

Assim, involuntariamente, eles serviram à causa de Jesus Cristo. O resto é só miséria. Herodes ordenou a matança, quis eliminar o Menino.

Não consta que ninguém na Sinagoga tenha se revoltado contra isto. Nem creio que a Sinagoga, já tão pacifista, se incomodasse com derramamento de sangue dos inocentes…

O resultado é que começou a luta da Sinagoga contra Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele encontrava-Se no berço e já estava dividindo, causando polêmica; não era a causa, mas o motivo de um morticínio. O primeiro sangue derramado por Ele foi vertido quando ainda era Menino.

Pedra de escândalo para que se revelassem as cogitações de muitas almas, para construção e edificação e para a perdição de muitos, como disse bem depois o Profeta Simeão (cf. Lc 2, 35).

Essas são as considerações que me parece a propósito fazer a respeito do dia de Reis.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/1/1966)