22 de fevereiro – O mundo aos pés do Trono da Verdade

O mundo aos pés do Trono da Verdade

Já tivemos ocasião de publicar numerosos artigos nos quais Dr. Plinio manifesta seu amor ao Papado. E muitos outros ainda se seguirão, pois este era um de seus temas prediletos. Transcrevemos aqui um artigo para o “Legionário” em 1946.

As notícias provenientes da Cidade do Vaticano informam que o Corpo Diplomático junto à Santa Sé fez uma démarche coletiva para obter da Secretaria do Estado o privilégio de participar de Consistório em que vão ser concedidos os chapéus vermelhos aos Cardeais recentemente nomeados. A atitude dos diplomatas não terá sido tomada sem o consentimento, pelo menos tácito, dos  respectivos governos. 

Assim, pode-se considerar que quase todas as nações do mundo  quiseram expressamente estar presentes àquele ato, manifestando de modo delicado e nobre, seu agradecimento pela honra que o Papa Pio XII lhes concedeu, com a internacionalização ainda mais ampla do Sacro Colégio.

Por sua vez, este gesto vem demonstrar o alto grau de importância moral e política que todos os governos do mundo reconhecem ao Papado. 

Em toda a longa e gloriosa história do Vaticano, durante a qual tantas cerimônias brilhantes se desenrolaram sob o teto de Pedro, em nenhuma talvez, a universalidade da Igreja se tenha patenteado de modo mais evidente. Aos pés do Trono da Verdade, estarão os embaixadores de quase todas as nações do mundo. E, nos lugares reservados ao Sacro Colégio, figurarão lado a lado Cardeais europeus, americanos, asiáticos e africanos. 

Nunca se viu na História da Igreja, que a Púrpura cardinalícia cobrisse uma tão grande porção da terra. Dir-se-ia que a sombra do báculo de Pedro cresceu, que entre suas extremidades que vão de mar a mar, de monte a monte, dos Alpes ao Himalaia, fica o mundo inteiro. O quadro é de uma grandeza apocalíptica. É impossível não pensar nas lágrimas, no suor e no sangue, nas  fortificações, nas preces, na paciência e no heroísmo por meio do qual a Igreja ajudada por Deus chegou a tamanha glória. Quando se pensa nos primórdios do Catolicismo, comparado por seu Divino Fundador com o pequenino grão de mostarda, e se vê hoje que a copa da árvore é maior que os mais extensos desertos e as mais vastas nações, são todas as fibras católicas que vibram e se dilatam nos nossos
corações. 

Do esplendor desta magnifica realidade se desprende uma voz, porque os fatos falam. E esta voz, eco de outra Voz, nos diz com firmeza mais do que nunca: “non praevalebunt”! Do que adiantou a [tantos inimigos] investir contra a Igreja com uma fúria desabrida e ferina? Do que adiantou […] procurar infiltrar-se como um cupim silencioso e cheio de lepra, nas próprias fileiras dos católicos? “Non praevalebunt”. Não prevaleceram.

Está dito, porém, que as alegrias neste vale de lágrimas nunca serão completas. Uma sombra passa diante de nossos olhos. Se é tal, tão universal, tão incontrastável o prestígio da Igreja, como explicar que ela esteja à margem da Organização das Nações Unidas? Como explicar que, precisamente neste fastígio de sua universalidade, ela seja mantida à margem da universal organização dos povos? Se a circunda uma auréola de prestígio, é impossível não reconhecer que é no exílio, é fora de seu trono natural, que é a presidência das nações cristãs, é fora  de tudo isto, que nasce em torno dela este arrebol de glória. Extraordinária expressão de sua força, que brilha até mesmo no isolamento. Mas motivo não menos extraordinário para que temamos por esta humanidade que vê a Luz, mas que não se utiliza dela para “iluminar a casa inteira”, para iluminar e dirigir a sociedade universal das nações. […] 

Como de direito, o máximo de nosso filial afeto voa aos pés do Santo Padre. “Ubi Christus ibi Deus; ubi Ecclésia ibi Christus; ubi Petrus ibi Ecclésia” (Onde está Cristo, aí está Deus; onde esta a Igreja, aí está Cristo; onde está Pedro, aí está a Igreja). E só nos unimos a Deus em Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Homem e verdadeiro Deus. Só nos unimos a Jesus Cristo na Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana que é o próprio Corpo Místico do Senhor. E só estaremos unidos a Nosso Senhor Jesus Cristo, mediante uma união sobrenaturalmente forte, união de vida e de morte, à Cátedra de São Pedro. Onde está Pedro, aí está a Igreja de Deus. Dizem as notícias telegráficas que o Santo Padre pronunciará nesta ocasião um discurso de grande importância, seguido poucos dias depois de mais outro, igualmente importante. Aguardamos sua palavra com amor e confiança. Amor e confiança que, como de costume, se traduzem num inabalável propósito de adesão e submissão. 

Não há melhor meio de testemunhar amor ao Papa, senão obedecendo- lhe. E obedecer significa fazer aquilo com que estamos de acordo, e aquilo que por nossa própria vontade faríamos; significa aceitar como verdadeiro o que ele ensina e nós vemos que é verdadeiro, e o que ele ensina e a nossos olhos mortais pareceria fraco e errôneo. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Excertos de artigo publicado no “Legionário”, nº 706, de 17/2/1946. Título nosso.)

20 de fevereiro – Os pastorinhos de Fátima e o Segredo de Maria

Os pastorinhos de Fátima e o Segredo de Maria

Que maravilhas da graça se operaram nos corações de Jacinta e Francisco por ocasião de seus encontros com a Santíssima Virgem? Que virtudes a ação da celeste Senhora fez desabrochar naquelas humildes crianças? No presente artigo Dr. Plinio nos dá a resposta desvendando algo do Segredo de Maria ao constatar a vitória do Imaculado Coração de Maria nas almas dos dois videntes de Fátima.

 

Há uma ficha para nós comentarmos aqui: “Última aparição de Nossa Senhora em Fátima”, do Pe. João M. de Marchi, IMC, no livro: “Era uma Senhora mais brilhante que o sol”(1).

A verdadeira diretora espiritual das crianças foi, todavia, essencialmente Nossa Senhora. Falo das crianças: Jacinta, Francisco e Lúcia.

A bondosa Senhora da Cova da Iria tomou à sua conta a realização desta obra-prima. E como não podia deixar de ser, levou a cabo com pleno êxito. Das suas mãos prodigiosas saíram três anjos revestidos de carne, mas que ao mesmo tempo eram três autênticos heróis. A matéria-prima era de uma plasticidade admirável. E da Artista, que mais dizer?

Na sua escola, os três serranitos deram, em breve tempo, passadas de gigante no caminho da perfeição. Neles se verificou, à letra, as palavras de um grande devoto de Maria, o Beato Grignion de Montfort: “Na escola da Virgem a alma progride mais numa semana do que em um ano fora dela”. A pedagogia da Mãe de Deus não sofre confrontos. Em dois anos, a Virgem Santíssima conseguiu erguer os dois irmãozitos, Francisco e Jacinta, até os cumes mais elevados da santidade cristã.

O retrato que a mão segura de Lúcia nos traça sobre Jacinta é revelador: “A Jacinta tinha um porte sempre sério, modesto e amável que parecia traduzir a presença de Deus em todos os seus atos. Próprio das pessoas já avançadas em idade e de grande virtude. Não lhe vi nunca aquela demasiada leviandade e o entusiasmo próprio das crianças pelos enfeites e brincadeiras isto depois das aparições). Não posso dizer, que as outras crianças corressem para junto dela, como faziam para junto de mim. E isto talvez porque ela não sabia tanta cantiga e historieta para lhes ensinar e as entreter, ou então porque a seriedade de seu porte era demasiado superior à sua idade. Se na sua presença alguma criança, ou mesmo pessoas grandes, diziam alguma coisa ou faziam qualquer ação menos conveniente, repreendia-as dizendo: “Não façam isso, que ofendem a Deus Nosso Senhor. E Ele já está tão ofendido!” (…)

Francisco sentia-se atraído por uma vida de asceta e de contemplativo. Frequentemente desaparecia da vista das duas meninas, mantendo-se em lugares ermos e ficava a pensar.

— Que estavas aqui a fazer há tanto tempo? Perguntou-lhe Lúcia.

— Estava a pensar em Deus que está tão triste por causa dos muitos pecados!  Se eu pudesse O consolar! Jesus está tão triste e eu quero confortá-lo com oração e penitência.

Em outra ocasião dizia: “Gosto muito de Deus. Mas Ele está tão triste por causa de tantos pecados. Nós não devemos fazer nem o mais pequeno pecado!”

Um dia em que a Lúcia cedeu às instâncias das amiguinhas para tomar parte em divertimentos próprios da idade, Francisco chamou-a de lado e disse-lhe muito sério:

— Então tu voltas a essas brincadeiras depois de Nossa Senhora nos ter aparecido?

— Então, pediram-me tanto!…  — escusava-se a Lúcia.

Mas o Francisco lógico e severo lhe retorquia:

— Toda a gente sabe que Nossa Senhora te apareceu, então não devem estranhar que tu já não queiras bailar!…

Trata-se aqui daquele bailado português em que as pessoas se tocam com as mãos. São aquelas figuras de bailado camponês.

As crianças aproveitavam as entradas e as saídas das escolas para irem visitar Nosso Senhor, passando longas horas ao pé do Tabernáculo.

A Jacinta e o Francisco, sobretudo, que tinham a promessa da Virgem de os vir buscar, em breve, para o Céu e que, portanto, se julgavam dispensados das lições, recolhiam-se mais vezes na igreja a falar a sós com “o Jesus escondido”.

Jesus escondido é o nome com o que chamavam a Eucaristia.

Jacinta dizia a Lúcia:

— Já fizestes hoje muitos sacrifícios? Eu fiz muitos. Rezei também muitas jaculatórias. Gosto tanto de Nosso Senhor e de Nossa Senhora que nunca me canso de Lhes dizer que Os amo. Quando eu Lhes o digo muitas vezes, parece que tenho lume no peito, mas não me queima.

Outras vezes:

— Olha Lúcia, Nossa Senhora veio nos ver esses dias. E veio dizer que vem buscar o Francisco muito breve para o Céu. E a mim, perguntou-me se ainda queria converter mais pecadores. Disse-lhe que sim. Ela disse-me então que quer que eu vá para dois hospitais, mas não é para me curar. É para sofrer mais por amor de Deus, pela conversão dos pecadores, em desagravo das ofensas cometidas contra o Coração Imaculado de Maria. Disse-me que tu não irias, que iria lá minha mãe levar-me e que depois ficaria sozinha.

Tempos depois, Francisco para Lúcia:

— Estou muito mal, falta-me pouco para ir para o Céu.

Lúcia:

— Então vê lá, não te esqueças de lá pedir muito pelos pecadores, pelo Santo Padre, por mim, e pela Jacinta.

Francisco:

— Sim, eu peço. Mas que essas coisas peças antes à Jacinta, que eu tenho medo de me esquecer, quando vir a Nosso Senhor. E depois, antes O quero consolar.

Na obra de Nossa Senhora com os videntes de Fátima, um começo do triunfo do Imaculado Coração de Maria nas almas.

Esta ficha tem uma graça marcante, porque ela nos indica uma porção de aspectos grandes e pequenos da obra de Nossa Senhora com estas três crianças.

Mas nós devemos, antes de tudo, considerar o valor simbólico da obra de Nossa Senhora nas crianças. Enganam-se aqueles que imaginam ser apenas uma obra sobre três crianças. É uma obra que transformou suavemente essas crianças de um momento para outro, pelo simples fato das reiteradas aparições de Nossa Senhora.

Com uma dessas crianças até, Nossa Senhora disse estar aborrecida. E esta criança era o Francisco, que não ouviu Nossa Senhora por causa disso. E, portanto, pode ser considerado um convertido. As três mudaram extraordinariamente em consequência das revelações. 

Nós temos aqui algo de parecido com o Segredo de Maria. Quer dizer, uma dessas ações profundas da graça na alma, ações que se desenvolvem sem a pessoa dar-se conta. Ela vai sentindo-se cada vez mais livre, cada vez mais desembaraçada para praticar o bem, e os defeitos que a tolhem e a prendem no mal vão se dissolvendo. E a pessoa cresce em amor de Deus, cresce em vontade de se dedicar, cresce em oposição ao pecado, mas tudo isso se dá maravilhosamente dentro da alma.

De maneira que a alma não trava as grandes e metódicas batalhas da ascensão admirável ao Céu, à virtude, à santidade, daqueles que lutam de acordo com o sistema clássico da vida espiritual; mas Nossa Senhora as transforma de um momento para o outro. E se a obra de Nossa Senhora em Fátima — especialmente com essas duas crianças chamadas para o Céu — foi assim, nós podemos bem nos perguntar se isto não tem um valor simbólico, e se não indica qual vai ser a ação de Nossa Senhora sobre toda a Humanidade quando Ela cumprir as promessas feitas em Fátima, e se não é lícito prever o cumprimento das promessas de Fátima executado à maneira do ocorrido com Jacinta e Francisco, mais notadamente, como cogita esta nossa ficha.

E, portanto, se nós não devemos ver aí um começo, podemos ver um dos múltiplos começos — porque as coisas enormes têm muitos começos — do Reino de Maria, enquanto sendo o triunfo do Imaculado Coração sobre duas almas pregoeiras da grande revelação de Nossa Senhora; as quais, pelos seus sacrifícios e orações na Terra e, depois, as orações no Céu, ajudaram e ainda ajudam enormemente as almas a aceitarem a mensagem de Fátima.

Quer dizer, nós devemos ver nessa transformação, creio eu, ao menos de um modo muito provável, um símbolo dessas transformações profundas que marcarão o Reino de Maria.

Jacinta e Francisco: intercessores apropriados para obter de Nossa Senhora o início de seu Reino em nossos corações

Esta primeira observação me parece conduzir diretamente ao seguinte: se isto é assim, então Francisco e Jacinta são os intercessores naturais para se pedir e obter de Nossa Senhora que comece o Reino de Maria em nós desde logo, por essa transformação misteriosa que é o Segredo de Maria.

E, então, nós devemos suplicar instantemente, tanto à menina quanto a ele, que comecem a nos transformar, comecem a nos dar os dons que eles receberam. E que eles velem especialmente sobre aqueles cuja missão é a de pregar a mensagem de Fátima, viver da mensagem de Fátima, como acontece conosco.

Isto é uma razão a mais para nós termos uma marcante devoção a eles.

Efeitos da ação de Maria sobre os videntes

É interessante notar, também, o efeito do Segredo de Maria sobre essas crianças. Elas mudaram, está bem. Mas quais os sintomas externos dessa mudança? Quais foram as manifestações externas dessa transformação? São apontadas aqui três coisas: grande seriedade, espírito de oração e espírito de sacrifício. Por cima de tudo isso, uma convicção muito grande da missão deles e o desejo de viver para essa missão, de onde vinham essas três consequências.

Espírito de seriedade

Espírito de seriedade. Os senhores viram o Francisco censurar a Lúcia por esta não ser bastante séria e aceitar de bailar, ou seja, fazer aquela dançazinha portuguesa com crianças. E a razão dada por Francisco para repreender a Lúcia foi essa:

— Você, que viu Nossa Senhora aparecer, não deveria participar desses brinquedos.

A Lúcia respondeu:

— Mas, afinal de contas, pediram tanto!

Disse o Francisco:

— Mas como eles sabem que a você Nossa Senhora apareceu, a você eles não deviam pedir.

Como quem diz: “Eles compreenderão a sua recusa ou, ao menos, têm todos os dados para compreender. Se eles não compreendessem, seria por culpa deles, mas você deveria ter recusado”.

É a ideia de que para agradar Nossa Senhora precisa ser muito sério. Não se agrada Nossa Senhora sem ser muito sério.

E de Francisco, a ficha diz que ele era lógico, raciocinava muito, com muita firmeza no tocante a seus deveres. O autor emprega até uma palavra muitas vezes utilizada hoje em sentido pejorativo: que ele era “severo”. Ele possuía uma lógica completa e deduzia de sua missão que era preciso ser daquele jeito: sério, não dizer nada inconveniente, agir corretamente. Por isso ele não perdia ocasião de dar o exemplo e de proceder segundo a lógica.

Mais ainda, esta seriedade, nas condições insignificantes de crianças, levava-as à combatividade. A Jacinta não via uma pessoa dizer ou fazer algo errado, sem que ela a repreendesse: “Isto aqui não está bom!” E dava a razão religiosa: “Deus não deve ser ofendido! Já está tão ofendido em nossa época, você ainda quer ofendê-lo mais? Quer acrescentar algo a esta montanha de pecados que se cometem?”

Então, os senhores percebem como a seriedade e a lógica são o fruto do Segredo de Maria. E se nós quisermos corresponder às graças de Nossa Senhora, devemos agir de maneira a sermos sérios e lógicos. E, pelo menos, quando virmos pessoas sérias e lógicas, tratarmos de admirá-las, de nos acercarmos delas, conversar com elas, e nos deixarmos penetrar pelo espírito delas.

Espírito de sacrifício

De outro lado, o espírito de sacrifício. As duas crianças recebem de Nossa Senhora a notícia de que morrerão dentro de um breve prazo. E a Francisco a notícia podia apavorar porque estava dito que ele morreria logo. Ora, a morte é um castigo imposto ao homem, e sua proximidade, em geral, apavora. Quando a pessoa não tem uma graça especial, diante da proximidade da morte fica aterrorizada. Francisco viu, alegre, a morte aproximar-se. Ele ia fazer o sacrifício pedido por Nossa Senhora. Não tinha saudades de nenhum dos bens deste mundo. Queria ir para o Céu e deixar esta Terra com a imolação de sua vida para a vitória da causa católica.

De Jacinta Nossa Senhora pediu algo que, por um aspecto, apavorava menos. Pediu que ela vivesse por mais algum tempo. É o espectro colocado um pouco mais longe. Entretanto, disse-lhe que viveria mais para sofrer. Quem não tem medo de uma vida de sofrimentos? E revelou-lhe um dos sofrimentos que mais apavoram as crianças: ficar doente e longe dos pais. Nossa Senhora disse: “Tu serás levada a Lisboa e tua mãe vai deixar-te”. Portanto, “tu adoecerás e morrerás sem a assistência dos teus”. E ela morreu, de fato, sem o socorro materno. Ela aceitou também. Eu creio ser o mais pesado sacrifício que se pode pedir a uma criança. O Segredo de Maria levou-a a esse sacrifício.

Espírito de oração

Depois, espírito de oração. Rezavam continuamente. E para que rezavam? Pela causa católica. Porque rezavam para Deus não ser ofendido, Deus ser glorificado, o que é a própria essência da causa católica. Tudo, em última análise, consiste nisso: que Deus seja glorificado e não seja ofendido. E isto eles tinham em mente sempre e rezavam muito.

Mas qual era a fonte que ininterruptamente estava dando-lhes este alimento espiritual? Era a crença na própria missão. A crença em que se cumpriria sobre eles a palavra de Nossa Senhora.

Virtudes a serem pedidas a Nossa Senhora por intercessão dos videntes de Fátima

Nós podemos fazer dessas considerações uma aplicação para nós? Eu creio que facilmente. Porque essas são as virtudes às quais nossa vocação nos convida. A nossa vocação contém uma espécie de raiz do Segredo de Maria. Sem dúvida, quem entra para nosso Movimento com as disposições normais experimenta desde logo várias melhoras em sua alma. E depois tem de passar pelo embate das provas que todos nós, infelizmente, conhecemos. Mas, de si, há algo de parecido — parecido não quer dizer idêntico — com o Segredo de Maria. E todo novato tem um grande impulso para a frente que consiste numa certa transformação. Essa transformação opera com o caráter rápido, célere, fácil, atraente com que age a graça do Segredo de Maria. Além disso, nossa vocação é ordenada aos fatos anunciados por Nossa Senhora em Fátima. Isto estabelece mais uma relação entre nossa vocação e a deles.

E eu creio que quem peça a Nossa Senhora de Fátima, por intercessão deles, auxílio para sermos fiéis a essa nossa vocação, fará a Ela uma oração especialmente grata. E poderá receber favores enormes para ser fiel à vocação, mesmo em circunstâncias dificílimas, graças precisamente ao Segredo de Maria.

E nossa vocação necessita das quatro virtudes que eles praticaram: a virtude básica, crermos em nossa vocação como eles creram na deles; e, em consequência: seriedade, espírito de sacrifício e espírito de oração.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/10/1971)

 

1) Cf. DE MARCHI, I. M. C., Pe. João. Era uma Senhora mais brilhante do que o Sol… Fátima: Edições Consolata. Na 7a edição (1978) o trecho resumido para Dr. Plinio encontra-se nas páginas 251-267.

20 de fevereiro – Pastorinhos de Fátima

Pastorinhos de Fátima

Aos pastorinhos Jacinta e Francisco, Nossa Senhora destinou a missão de sofrer pela salvação dos pecadores. O exemplo de suas vidas nos faz compreender como o apostolado do sofrimento é verdadeiramente insubstituível.

Todas as grandes obras de Deus, máxime as que tratam da salvação das almas, em geral se fazem com a participação de outras almas que lutaram, sofreram e rezaram para que essas obras de fato se realizassem. Sempre é preciso a participação do sofrimento humano. Sem ele, nada de grande se faz.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 19/2/1965)

20 de fevereiro – Santos Pastorinhos

Santos Pastorinhos

Nossa Senhora quis que Jacinta e Francisco morressem em circunstâncias tão difíceis e sofrendo tanto, por serem necessárias vítimas que associassem suas dores e o sacrifício de suas vidas ao mistério de Fátima, bem como à fecundidade desejada pela Santíssima Virgem, na ordem sobrenatural, para os fatos anunciados na Cova da Iria.

Apesar de ter havido ali uma intervenção direta da Mãe de Deus, atestada por milagres estupendos como, por exemplo, a movimentação do Sol, Ela quis que duas almas oferecessem as suas vidas e se imolassem para que aquele plano da Providência tivesse a fecundidade necessária.

Isso nos faz compreender bem como o apostolado do sofrimento é insubstituível e abre os caminhos para a Igreja.

Peçamos a Jacinta e Francisco que nos obtenham o senso do sofrimento, indispensável para qualquer católico ser verdadeiramente generoso e dedicado.

Plino Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/2/1965)

20 de fevereiro – BEATOS JACINTA E FRANCISCO, modelos de aceitação do sofrimento

BEATOS JACINTA E FRANCISCO, modelos de aceitação do sofrimento

Vinte de fevereiro, dia da morte de Jacinta Marto, foi a data escolhida pelo Papa João Paulo II para que a Igreja celebrasse a festa da jovem pastora de Fátima e do seu irmão, Francisco, aos quais  Nossa Senhora apareceu em 1917. Ao recordar essa piedosíssima morte, Dr. Plinio teceu valiosos comentários sobre o papel do sofrimento na existência humana.

Como se sabe, dos três videntes, dois morreram pouco depois das aparições, conforme a promessa da Santíssima Virgem: Francisco e Jacinta. Ambos deviam ir para o Céu. Antes disso, porém,  haveriam de cumprir nesta Terra duas missões diferentes. A de Jacinta era rezar e sofrer pela conversão dos pecadores, enquanto a de Francisco consistia numa reparação ante a tristeza de Nosso  Senhor e de Nossa Senhora pelos pecados do mundo, que tinham motivado a mensagem de Fátima.

A importância do sofrimento humano nas grandes obras de Deus

A missão de Jacinta nos revela a necessidade de vítimas expiatórias que contribuíssem com a sua dor e o sacrifício de sua vida — as duas crianças morreram em circunstâncias extraordinariamente difíceis e dolorosas — para que as palavras de Nossa Senhora encontrassem terreno fértil nos corações dos homens, dando todos os frutos por Ela desejados.

Compreende-se, pois, como esse apostolado do sofrimento é verdadeiramente insubstituível, e como abre os caminhos para a Igreja. Todas as grandes obras de Deus, máxime as que tratam da  salvação das almas, em geral se fazem com a participação de outras almas que lutaram, sofreram e rezaram para que essas obras de fato se realizassem. Sempre é preciso a participação do sofrimento humano.

Sem ele, nada de grande se faz.

Certa vez, um talentoso pintor expôs um de seus quadros que retratava Nosso Senhor como Bom Pastor batendo à porta de uma choupana. A pintura, tocante e piedosa, atraía muitas atenções. Em  eterminado momento, um visitante julgou notar um defeito no quadro, e disse ao artista: “O senhor cometeu um erro de execução, pois a porta dessa cabana não tem fechadura”. Sorrindo, o  pintor lhe respondeu: “É verdade. Isto, porém, não foi um erro.

Esta porta simboliza a porta do coração humano, onde Nosso Senhor vem bater. Ela não possui fechadura no lado de fora, mas somente no de dentro, para significar que há certos tipos de  abertura de alma onde ninguém consegue intervir: ou a alma toma a iniciativa de se abrir, ou permanecerá fechada”.

Ora, o modo de se obter que as almas fechadas se abram é exatamente por meio da oração, dos sacrifícios e das dores que a Providência dispõe em nossas vidas. É por meio do carregar  amorosamente a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, compreendendo que assim se cumpre a superior vontade divina. Essas são as almas decisivas na História, e que levam a cabo as grandes obras
de Deus.

Claro está que não se trata de um sofrer meramente passivo, mas também de um sofrer ativo. O que significa muitas vezes tomar a iniciativa da luta, rompendo com aqueles que prejudicam nossa  alma.

Significa arrostar a opinião dos outros, aceitando ser posto em situações difíceis e contrafeitas. Significa, enfim, todo o sofrimento da batalha mais intrépida, mais ousada e mais repleta de  determinação. Tudo isso é sofrer, e até sofrer por excelência. O contrário do mito do happy end Não nos esqueçamos, porém, de que, se todas as formas de sacrifícios são agradáveis a Nossa  Senhora, o que mais deseja Ela receber dos homens é virtude. Acima dos sofrimentos, Lhe compraz oferecermos a Ela a retidão e a pureza de nossa alma. Se quisermos de fato pesar nas deliberações da Providência, devemos apresentar a Ela almas contritas e humilhadas, almas que se tornem pequenas diante de Deus, renunciando a toda forma de orgulho, vanglória e vaidade, para se mostrarem diante d’Ele como realmente são. Reconhecendo a sua própria impotência, pelas vias naturais, para corrigir os seus defeitos; e, portanto, implorando o auxílio de Maria, para  que Ela por nós interceda e nos alcance a tão esperada conversão.

E isto exatamente nos é dito pelo sacrifício de Jacinta. Devemos, portanto, pedir a ela que nos obtenha de Nossa Senhora esse senso de sofrimento, indispensável para que qualquer católico seja  verdadeiramente um fiel generoso e dedicado.

Essa aceitação da cruz é contrária ao mito do homem moderno, que se reflete na mentalidade do happy end, segundo a qual tudo é alegria, tudo é luz, e o padecimento é uma espécie de bicho de  sete cabeças irrompendo estouvadamente na vida das pessoas.

A verdade é outra: uma existência sem cruzes, pouco vale. São Luís Grignion de Montfort chega mesmo a afirmar que, vendo-se alguém poupado pelos sofrimentos, deve — após judiciosa  orientação de seu diretor espiritual — pedi-los a Deus, fazer romarias e rezar com empenho nessa intenção, pois sua salvação eterna pode estar correndo um risco não pequeno.

Mais do que nunca, a necessidade de sacrifícios

Análogas considerações poderiam ser feitas a propósito da missão de Francisco, isto é, a de reparar os Sacratíssimos Corações de Jesus e de Maria pelos pecados e ofensas contra Eles cometidos na  face da Terra.

Ora, de 1917 até nossos dias, a maré montante dos pecados não fez senão crescer de modo incomensurável: pecados individuais, pecados públicos, pecados das nações, pecados das instituições,  etc. Tal constatação nos obriga a concluir que, se a ofensa cresceu, a reparação também se faz mais necessária e mais intensa no que ela tem de mais excelente, ou seja, alimentar em nossas almas a indignação pelos ultrajes que são feitos ao Coração Imaculado de Maria; acrisolar nosso desejo de sermos instrumentos de Nossa Senhora para a implantação de seu Reino sobre a Terra.

Devemos pedir ao Francisco que nos obtenha esse espírito, esse ardoroso anelo de assim reparar o Coração Imaculado de Maria e, por meio d’Ele, o Coração Sagrado de Jesus.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 71 (Fevereiro de 2004)

20 de fevereiro – Intercessores para obter o Reino de Maria em nós

Intercessores para obter o Reino de Maria em nós

Devemos considerar o valor simbólico da obra de Nossa Senhora que transformou suavemente essas crianças pelo simples fato de lhes aparecer reiteradas vezes em Fátima. As três mudaram extraordinariamente em consequência das revelações. Com uma delas, inclusive, a Santíssima Virgem disse estar aborrecida. Era Francisco, que não A viu por causa disso. Portanto, ele pode ser considerado um convertido.

Temos aqui algo de parecido com o Segredo de Maria, ou seja, uma dessas ações profundas da graça na alma, que se desenvolvem sem a pessoa dar-se conta. Ela cresce em amor de Deus, em vontade de se dedicar, em oposição ao pecado, mas tudo isso se dá maravilhosamente dentro da alma.

Se a obra de Nossa Senhora em Fátima foi assim, especialmente com essas duas crianças chamadas para o Céu, Jacinta e Francisco, podemos nos perguntar se isso não tem um valor simbólico e se não indica qual será a ação d’Ela sobre toda a humanidade, quando Ela cumprir as promessas que fez na Cova da Iria.

Seria, portanto, um começo do Reino de Maria, enquanto sendo o triunfo do Imaculado Coração sobre duas almas pregoeiras da grande revelação de Nossa Senhora, e que, por seus sacrifícios e preces na Terra e por suas orações no Céu, ajudaram e ainda ajudam enormemente as almas a aceitarem a mensagem de Fátima.

Assim sendo, Francisco e Jacinta são os intercessores naturais para se pedir e se obter de Maria Santíssima que comece o seu Reino em nós, desde logo, por essa transformação misteriosa que é o Segredo de Maria.

Peçamos que eles velem especialmente sobre aqueles que têm a missão de pregar e viver a mensagem de Fátima.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/10/1971)

Revista Dr Plinio 251 (Fevereiro de 2019)

20 de fevereiro – Apostolado e sacrifício, ações inseparáveis

Apostolado e sacrifício, ações inseparáveis

Por que razão Nossa Senhora quis a morte precoce de Jacinta e Francisco, videntes de  Fátima?

Em geral, quando se trata da salvação dos homens, é necessário haver vítimas que se associem à intervenção de Deus com o sacrifício de suas vidas.

Isto é especialmente frisante no que diz respeito às aparições de Fátima: trata-se de uma intervenção direta da Santíssima Virgem — atestada por milagres estupendos como, por exemplo, a rotação do Sol — com a transmissão de uma das mais importantes mensagens de Nossa Senhora aos homens ao longo de toda a História.

Pois bem, nesta ocasião Maria Santíssima quis a imolação de duas almas, as quais se ofereceram na intenção do pleno cumprimento dos planos da Providência.

Este oferecimento nos atesta como o sofrimento é insubstituível e como ele abre, verdadeiramente, os caminhos para a Igreja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/2/1965)

18 de fevereiro – Beato Fra Angélico, o São Tomás da pintura

Beato Fra Angélico, o São Tomás da pintura

Minha maior glória foi pintar a ti, ó Cristo!” — Assim reza um dos epitáfios do Bem-aventurado Frei Angélico, cujo incomparável talento logrou estampar, em luminosos afrescos, as maravilhas celestes. Neste mês de fevereiro, Dr. Plinio nos convida a conhecer a vida e a arte deste filho de São Domingos.

 

Uma das mais altas expressões da piedade e do bom espírito na pintura e iconografia católica, retratista exímio de Nossa Senhora e dos santos, o bem-aventurado João de Fiesole, chamado Beato Angélico, é festejado pela Igreja no dia 18 deste mês. Dele possuímos alguns traços biográficos, que compõem de forma tocante sua figura de artista e varão virtuoso.

 

Um santo de genialidade inimitável

Guidorino di Pietro nasceu por volta de 1387, em Florença. Aos 20 anos, tendo ouvido numa noite de Natal um sermão do grande dominicano Fra Giovanni, decidiu ingressar na Ordem dos Pregadores, tendo sido admitido como noviço no convento de São Domenico, de Fiesole, e mudado seu nome também para Giovanni.

O jovem já demonstrava grande aptidão artística, mas julgou dever sacrificá-la a Deus. Seus irmãos de hábito dissuadiram-no da ideia, encorajando-o a desenvolver seus dons. Para isso, o prior ordenou logo que ele ornasse os livros de horas da biblioteca conventual.

Sua vida, inicialmente tranquila, foi alterada cerca de três vezes por mudanças de mosteiro. Na primeira ocasião por motivo do Cisma do Ocidente, pois o superior de Fiesole, o beato Jean Dominici não aceitava o Papa que a república de Florença admitira. Essas mudanças, contudo, contribuíram para o enriquecimento espiritual e artístico de Fra Giovanni, principalmente o período passado em Foligno, perto de Assis, que o santo frade visitava com freqüência.

Como bom dominicano, tinha um grande entusiasmo pela obra de São Tomás de Aquino. Conhecia-a perfeitamente, com ela nutria sua piedade e sobre a mesma, inconscientemente, lançava os fundamentos de sua própria obra futura. A “Suma Teológica” o levara a descobrir sua nova razão de viver e seu ideal estético.

É preciso três qualidades para se ter a beleza, dizia São Tomás. Em primeiro lugar, a integridade, pois as coisas inacabadas, como tais, são deformadas. Depois, a proporção de harmonias entre as partes. Enfim, a claridade, posto considerarmos como belas as coisas de cores claras e brilhantes.

E Fra Giovanni fez desta lei sua regra de ouro. Em 1418, os dominicanos de Fiesole voltaram ao seu convento e o santo frade entregava-se agora, cheio de satisfação, à sua arte. Sua primeira grande obra foi um quadro destinado à cartuxa de Florença. Seguem-se outras, cada vez mais numerosas. Os monges estão cheios de admiração. “Fra Giovanni não pinta, ele reza”, diz um deles. Sua arte com efeito era cântico, prece. Jamais tomava seus pincéis sem invocar o Todo-Poderoso, e é em estado de graça que ele colocava seus anjos nos jardins floridos do Céu. Seu anjos, tão belos e puros, dir-se-ia executarem uma música que se difundia em notas cristalinas sobre as arcadas do convento, enquanto ele lhes dava vida.

De tempos em tempos, um velho frade abria a porta da cela do pintor, olhava maravilhado e voltava sem rui­do, escondido em seu capuz. Foi esse admirador secreto e esquecido que lhe deu o nome de glória: o de Angélico. Um único religioso, antes dele, fora digno de usá-lo: São Tomás, seu guia e mestre. A partir desse dia, Fra Angélico só teve um cuidado na Terra: merecer o epíteto divino e tornar-se o São Tomás da pintura.

Em 1435, Fra Angélico foi encarregado de pintar os afrescos do velho convento de São Marcos, em Florença. Entregou-se de corpo e alma ao trabalho e, todos os dias, antes da aurora, um espetáculo tornou-se familiar aos monges de São Marcos. De pé, sobre o andaime que o fazia tocar no teto da estreita cela, um especial penitente recitava seu rosário: Fra Angélico rezava antes de começar a pintura. Ajoelhados no solo, dois jovens monges oravam também. Três pobres lâmpadas a óleo iluminavam a casa, fazendo tremer as sombras e brilhar as tonsuras. Depois, o pincel do Angélico, que se diria feito com cabelos de anjos, começava a correr e a colorir. Seu azul era inigualável. “Pinto como o céu do Paraíso”, costumava dizer sorrindo.

Fra Giovanni obteve em Roma a estima e a amizade do Santo Padre. Um dia, este o julgou digno do arcebispado de Florença, que estava vago. Mas o Angélico suplicou ao Pontífice que designasse em seu lugar um dos irmãos de sua Ordem, seu amigo, religioso cheio de ciência e humildade. E foi assim que Fra Angélico nomeou um arcebispo que seria canonizado cem anos mais tarde, Santo Antonino.

O humilde religioso, que se tornara um dos artistas mais célebres de seu tempo, ainda estava em Roma quando a doença veio surpreendê-lo no convento dos frades pregadores de Santa Maria Sopra Minerva. À tarde do dia 18 de fevereiro de 1455, o mosteiro estava envolto por um silêncio cortante. Cada religioso esperava, seja em sua cela, seja no coro, o instante em que o sino soaria para anunciar o último suspiro de Fra Angélico. Às 8 horas da noite, o breve e doloroso sinal tocou. Em alguns minutos, a cela e o corredor encheram-se de monges ajoelhados. A melodia da Salve Regina elevou-se no silêncio, enquanto o rosto de Fra Giovanni se iluminava com um calmo sorriso.

A lenda conta que, neste momento, uma lágrima deslizou sobre a face de todos os anjos dos quadros pintados por ele, sem saber que trariam a auréola de seu inimitável gênio e de sua santidade.

Uma civilização de “Angélicos”…

Trata-se de uma linda ficha biográfica, pois se refere a uma belíssima vida, tornando-se difícil até selecionar algum aspecto dela a ser comentado.

Antes de tudo, é bonito notar um dos princípios da civilização católica que aqui se afirma: o da reversibilidade dos planos.

Com efeito, toda forma de ordem, beleza e virtude que existe num plano é suscetível de ser revertida num outro. Assim, se houve um Tomás de Aquino no âmbito da filosofia, da metafísica, devem existir outros no campo da pintura, da música e demais artes.

O resumo biográfico observa muito bem que São Tomás de Aquino e o Beato Giovanni de Fiesole foram chamados, respectivamente, o Doutor e o pintor Angélicos. Seja nos dado considerar que, não fosse a Idade Média interrompida prematuramente em sua caminhada rumo a um esplendor de realizações católicas, teríamos tido “Angélicos” em vários terrenos. Pois houve guerreiros angélicos como São Luís IX e São Fernando de Castela, assim como estadistas angélicos, etc. Surgiria, então, uma ordem Angélica no mundo, sobrenatural, luminosa, coerente, profundamente lógica, que seria a da Civilização Cristã e da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Uma ordem mais própria para anjos do que para homens, conduzindo estes ao Paraíso.

Sabedoria e desejo das coisas harmônicas

Por trás de tudo isso existe algo que cumpre mencionar, embora não diga respeito diretamente à obra de Fra Angélico, mas do qual esta é uma fulguração. Quer a produção de Fra Angélico, quer a de São Tomás de Aquino são manifestações da virtude da sabedoria, por onde o homem apetece a coerência e a profunda harmonia interior das coisas, muito mais do que as trivialidades ou bens menores do existir humano. Primeiro, porque sua natureza encontra plena expansão nessa harmonia. Porém, há outra razão, mais alta: essa consonância exprime algo de inefável, total, que é a melhor representação de Deus.

O Criador é simbolizado nessa harmonia de todas as coisas. E quem a ama, ama o símbolo e, portanto, o próprio Deus, predispondo assim sua alma para o Céu.

Convém ressaltar que essa harmonia não é igualitária, mas hierárquica, tendo seu cume no sublime, no ponto supremo da ordem criada, do qual todas as harmonias derivam.

Nosso Senhor e Nossa Senhora, ápices da harmonia

Assim, na ordem meramente criada, essa harmonia se revelou de forma mais perfeita em Nossa Senhora. Ela é a mais excelente entre as simples criaturas, pois, segundo essa concepção, o expoente é aquele que contém em si as qualidades de todos os outros inferiores, por ele capituladas, compendiadas e contidas. Nossa Senhora, portanto, reunia em si todas as formas e graus de perfeição de todas as meras criaturas, n’Ela elevadas a um grau de sublimidade sem paralelo.

Quer dizer, entra a Virgem Maria e nós não há somente um abismo insondável, mas uma série deles, de tal maneira Ela sobrepuja o resto dos homens.

Claro está, Nosso Senhor Jesus Cristo, em sua humanidade santíssima, é o único acima de sua Mãe. Aliás, algumas revelações de Sóror Maria de Ágreda a respeito de ambos, nos dão a conhecer aspectos tocantes. Segundo a vidente, o Divino Redentor era sumamente parecido com Nossa Senhora, cujo rosto seria a transposição para um semblante feminino do semblante masculino de Jesus. Então, a perfeição de todas as perfeições tinha de ser, forçosamente, a Sagrada Face de nosso Salvador.

Por quê? Pelo olhar e fisionomia, Ele espelhava todas as formas e graus de excelência de alma possíveis no homem, além de sua natureza divina inefável. Por outro lado, sendo perfeito, o que Nosso Senhor deveria ter de mais sublime era a face, pois esta é a condensação de todas as riquezas do corpo.

Certo estou de que se alguém conseguisse conhecer essa Face em seu estado normal (não, portanto, desfigurada pelas torturas da Paixão), na sua integridade, compreenderia que as proporções de seus traços tinha de conter as regras de harmonias do universo, cuja beleza nos seria dado decifrar, em se estudando o mesmo sagrado semblante.

Uma preparação para a visão beatífica

Assim como entenderíamos outra coisa, tão raramente encontrada unida à beleza: a graça, o charme, o encanto. Freqüentemente se acham modalidades de encanto, mas separadas da verdadeira beleza. Ora, em Nosso Senhor essas qualidades se uniam na sua plenitude. E como Ele era atraente! Era a majestade mais empolgante e arrebatadora aliada à graciosidade mais meiga, afável, acessível, capaz de se fazer pequena e nos acariciar; era o charme incomparável por trás da beleza perfeita, somado à expressão de uma inteligência infinita e uma santidade transcendente. Tudo isso nos faria ter a ideia da esplendorosa fisionomia d’Ele.

No fundo, o que São Tomás entendeu e escreveu, o que o Beato Angélico discerniu e pintou, é o que no Reino de Maria se verá. Contemplar-se-á através de todas essas harmonias, algo que nos faça pensar no semblante imaculado, sacratíssimo, régio, maternal e meiguíssimo de Nossa Senhora. E naquilo para o qual não há palavras, cessam os adjetivos, tudo é silêncio e adoração reverente: a Face de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Compreendendo essas harmonias nos preparamos para entender a Sagrada Face e para a visão beatífica, por toda a eternidade.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

18 de fevereiro – O Pintor do Sobrenatural

O Pintor do Sobrenatural

Ao longo de sua História, a Igreja tem engendrado inúmeros talentos artísticos, com estilos e realizações tão diversos quanto belos e enriquecedores para a piedade cristã. Nessa constelação de talentos, porém, uma estrela sobressai pelo seu brilho mais intenso e atraente: o bem-aventurado Fra Angélico, com toda a justiça considerado o pintor católico por excelência.

Segundo se conta, Nossa Senhora lhe aparecia no momento de retratá-La, donde o caráter celeste das pinturas nas quais Ela está presente. São  obras de um frescor sacral incomparável; nelas os personagens de certo modo transcendem as fraquezas da nossa natureza decaída e — não por  defeito do artista, mas pela elevação  de seu estro — se nos afiguram quase sem a marca do pecado original.

Rei da arte pictórica, ele é também o mestre do feérico, conferindo esplendor inexcedível aos mínimos detalhes de seus quadros, a ponto de nos deixar desnorteados de encanto e admiração. De acordo com os estudiosos de seus métodos, ele mesmo fabricava suas magníficas tintas, muitas vezes triturando pedras semi-preciosas, cujo pó, misturado a outros elementos, forneciam-lhe as melhores cores de sua extraordinária palheta. Se ele sabia utilizar, assim, uma safira, um topázio dourado ou um rubi, com efeitos tão prodigiosos, que matizes não seria capaz de criar se pudesse fazê-lo com matérias-primas do Paraíso?!

E como seria no Paraíso um quadro de Fra Angélico? É algo de simplesmente inimaginável. Embora já vivesse na Renascença, pelo seu espírito foi um artista caracteristicamente medieval. Seus afrescos e retábulos são um reflexo fiel das almas que fizeram da Idade Média a época áurea da Cristandade. Retratam homens para os quais esta vida terrena é antecâmara da celestial. Ele  reproduz em suas pinturas pessoas imbuídas de uma luz, claridade e leveza inexistentes no cotidiano real, expressão de uma ordem superior e transcendente.

Numa palavra, o sobrenatural está representado em todas as suas obras. Inspirado sem dúvida pela graça divina, ele logrou pintar seus santos, “Madonnas” e Cristos irradiantes de um certo brilho que parece desprender-se da própria carnatura dos personagens. Essa luminosidade está presente, de modo muito particular, nas virgens perpetuadas em maravilhosas composições por seu magistral pincel.

A virtude da pureza, quando bem guardada, proporciona as condições excelentes para o triunfo do espírito sobre a matéria. A castidade perfeita nimba quem a pratica de uma glória especial: a da criatura humana vitoriosa em seu elemento mais nobre, prevalecendo sobre o menos nobre.

Na pessoa pura se estabelece uma ordem pela qual as apetências desregradas da carne estão dominadas; ela é toda espírito, toda alma, toda transparente de luz.

Assim Fra Angélico pinta suas virgens reluzentes, como dotadas de um fulgor vindo de dentro para fora e que ilumina todo o seu ser. Porque o espírito é claro, enquanto a matéria é opaca. A intenção do artista é exatamente representar essa irradiação do espírito. É o pintor das virgens.

E dos anjos. Os célebres anjos de Fra Angélico têm uma expressão tão límpida, tão honesta, que estão prontos para qualquer espécie de vassalagem. Tão fortes e conscientes de si, que estão  prontos para toda espécie de suserania. Tão pacíficos, que são anjos da paz. Tão guerreiros, que são anjos do combate contra o mal. Todos os contrastes extremos e harmônicos se encontram neles, numa síntese magnífica, fruto de uma forma de temperança extraordinária e perfeita.

Tomem-se, por exemplo, os anjos representados com instrumentos musicais. Todos refletem um movimento de alma para o alto, pronta a voar. Como anjos, não sujeitos à ação da gravidade, enlevados, fazendo ecoar suas melodias e anunciando a quem os contempla uma mensagem simples, clara, singela, cujo significado entretanto vai muito além da sensação deliciosa passada pelo quadro. No fundo, remetem nossos pensamentos para Deus. Diante da trombeta de um deles, vem-nos a pergunta subconsciente: “Que música será esta?”, e nossa atenção se volta para o alto, para o olhar divino fitado pelo anjo, para o qual a sua música parece se dirigir.

São assim os anjos, são assim os santos e as virgens de Fra Angélico: neles se nota sempre algo de diáfano, representação do sobrenatural, como acima dizíamos. Mas, insistimos, esse diáfano não transpareceria do mesmo modo se os personagens representados não fossem muito temperantes, possuidores de um senso das harmonias prévio a tudo. A virgem é meiga e delicada, mas traz  consigo uma roda de martírio, símbolo de sua fortaleza heroica. O santo é plácido e feliz, mas está aos pés do Crucificado, meditando na crudelíssima Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. O anjo está fazendo algo de grandioso, mas mantém-se sereno e inteiramente entregue à proclamação dele.

Ora, só alguém com igual temperança, com o mesmo senso das harmonias, dos imponderáveis e do sobrenatural poderia retratar seres assim. Daí podermos vislumbrar como era a maravilhosa alma de Fra Angélico.

18 de fevereiro – Beato Angélico

Beato Angélico

O Beato Angélico, cuja festa é celebrada no dia 18 de fevereiro, soube transmitir às suas obras certas fulgurações que, na verdade, são manifestações da virtude da sabedoria, pela qual o homem apetece a coerência e a profunda harmonia interior das coisas, mais do que os bens menores do existir humano.

Essa harmonia exprime algo de inefável, total, que é a melhor representação de Deus. E quem a ama, ama o simbolizado por ela, portanto, o próprio Deus, predispondo assim sua alma para o Céu.

Plinio Corrêa de Oliveira