Confiança na prova e na borrasca

Quanto é doce, Senhora, vossa afabilidade! E quão imperscrutáveis vossos desígnios! Vós nos fazeis sentir de mil modos — nos dias de penumbra, como nos de luz — as delicadezas radiosamente sábias de vossas vias. E, ao mesmo tempo, as minúcias de vossas misericórdias. É o conjunto de luzes que acendeis ao longo de nossos passos.

Luz necessária, porque desejais que caminhemos,  o mais das vezes, cercados de sombras, encontrando mil pedras pelo caminho e, não raro, atrás das pedras, emboscadas inesperadas.

Quereis que confiemos na  prova e na borrasca. Mandais uma e outra para que sejamos abnegados. E mandais vossas carícias para que avancemos na Fé. Essa é a majestade régia de vossa via. Ajudai-nos ao longo dela, ó Senhora de Sabedoria e Mãe de Misericórdia. Amém.

(Oração composta por Dr. Plinio)

Uma meditação para o homem de hoje

Numa conferência para jovens, no tempo de Natal, Dr. Plinio fez duas meditações, de tipos diferentes, a fim de verificar qual delas mais tocava o coração de seus ouvintes. A primeira, seguindo o método de Santo Inácio de Loyola, com pouco apelo ao sentimento. Improvisou em seguida a outra, com pensamentos formulados mais de acordo com as novas gerações. Transcrevemos aqui o cerne da segunda meditação.

A bordo agora o tema por um prisma inteiramente diferente do da escola de Santo Inácio de Loyola. Isso servirá para verificar que tipo de meditação mais toca a geração dos que estão aqui.

Fundo de quadro

Imaginem-se vendo chegar os Reis Magos com suas caravanas, os animais carregados de tesouros, a estrela, etc., e esses Reis oferecendo ao Menino Jesus, em atitude de adoração, ouro, incenso e mirra.

Retendo na imaginação tal fundo de quadro, qual das cenas que vou descrever causaria a cada um dos que aqui estão mais alegria de alma? Por qual delas sentir-se-iam mais próximos do Menino Jesus?

N’Ele poderíamos considerar, entre outros aspectos, a infinita grandeza, de um lado; a infinita acessibilidade, de outro lado; e também sua infinita compaixão.

Grandeza do Menino Jesus e de Nossa Senhora

Ao considerar a infinita grandeza, podemos imaginar uma gruta alta, grande quase como uma catedral, que não tivesse evidentemente uma arquitetura definida, mas onde o movimento das pedras nos fizesse pressentir vagamente as ogivas de uma catedral da futura Idade Média.

Podemos imaginar ainda a lapa onde ficava o berço do Menino colocada num ponto majestoso da encruzilhada dessas várias naves laterais naturais, com uma luz celeste, toda de ouro, pairando  sobre Ele naquele momento.

O Menino Jesus, com majestade de verdadeiro rei, embora deitado em seu presépio e sendo ainda uma criança. Ele, rei de toda majestade e de toda glória. O criador do Céu e da terra, Deus  encarnado feito homem. Ele, desde o primeiro instante de seu ser — portanto já no claustro materno de Nossa Senhora —, tendo mais majestade, mais grandeza, mais manifestações de força e de  poder que todos os homens que existiram e existirão na terra.

Ele, incomparavelmente mais inteligente do que São Tomás de Aquino, mais poderoso do que Carlos Magno, Napoleão ou Alexandre. Ele, conhecedor de todas as coisas, sabendo  incomparavelmente mais do que qualquer cientista moderno. Ele, manifestando na fisionomia sempre variável essa majestade feita de sabedoria, de santidade, de ciência e de poder.

Imaginem-se, portanto, encontrando isso misteriosamente expresso na fisionomia desse Menino. Ele às vezes movendo-se, e no movimento aparecendo o seu lado de Rei. Abrindo os olhos, e no olhar aparecendo um fulgor de tal profundidade que fizesse ver n’Ele um grande sábio.

Estando rodeado por uma atmosfera tal que nimbasse de santidade todos os que d’Ele se acercassem. Uma atmosfera de pureza tal que as pessoas não se aproximassem sem antes pedir perdão por seus pecados, mas ao mesmo tempo se sentissem atraídas a se corrigirem, pela santidade que emanava do local.

Imaginem ali, ainda, Nossa Senhora aos pés do Menino Jesus, também Ela como verdadeira Rainha, com uma dignidade e imponência tais, que não precisava nem de roupas nobres nem de  tecidos de qualidade para se fazer valer.

Conta-se de Santa Teresinha que ela era tão imponente, que o pai a chamava “minha pequena rainha”. O jardineiro do carmelo contou, no processo de canonização, que viu certa vez uma freira, de costas, fazer alguma coisa, e essa freira era Santa Teresinha. O “advogado do diabo” então perguntou: “Como é que, vendo-a de costas, o senhor sabia que ela era Santa Teresinha?” Ele respondeu: “Pela majestade dela. Ninguém tinha a mesma majestade”.

Se assim foi Santa Teresinha, o que seria Nossa Senhora? Imaginem, portanto, Nossa Senhora majestosíssima, transcendente, puríssima, rezando ao Menino Jesus. E os anjos, invisíveis, cantando hinos de glorificação, com toda a atmosfera reinante saturada de valores tais que se diria haver naquela pobreza e naquela miséria uma atmosfera de corte.

Imaginem-se aproximando e sentindo a grandeza do Menino-Deus, e adorando-O pelos seus aspectos nobres, belos, santos, intransigentes e combativos. Adorando esse Menino que atrai para junto de si todas as formas de grandeza, todas as formas de pureza, todas as formas de santidade que d’Ele dimanam, e que não são senão participação  da santidade d’Ele; e que, ao mesmo tempo, rechaçando para longe de si o pecado, o erro, a desordem, o caos, a Revolução¹, deixa-os no chão, de longe, sem nem sequer ousar levantar os olhos para aquela cena magnífica em que a ordem, a hierarquia, a pompa e o esplendor dominam completamente.

Enorme acessibilidade

Imaginemos, agora, o Menino Jesus imensamente acessível. Esse Rei tão cheio de majestade em certo momento abre para nós os olhos. Notamos que seu olhar puríssimo, inteligentíssimo, lucidíssimo, penetra em nossos olhos até o mais fundo. Vê o mais fundo de nossos defeitos, como também o melhor de nossas qualidades, e toca nesse momento a nossa alma, como tocou, 33 anos depois, a de São Pedro.

Conta-nos o Evangelho que o olhar de Nosso Senhor para São Pedro foi tal que este saiu e chorou amargamente. Chorou a vida inteira. E esse olhar provoca em nós uma tristeza profunda por  nossos pecados. Dá-nos horror aos nossos defeitos.

Mas também, penetrando em nós, mostra-nos seu amor não só às nossas qualidades, mas também à condição de criaturas feitas por Ele. Um amor a nós, apesar de nossos defeitos, por sermos destinados a um grau de santidade e de perfeição que Ele conhece e ama enquanto podendo existir em nós.

E, quando o pecador menos espera, por um rogo amável de Nossa Senhora, o Menino sorri. E com esse sorriso, apesar de toda a sua majestade, sentimos as distâncias desaparecerem, o perdão  invadir nossa alma, uma qualquer coisa nos atrair. E, assim atraídos, caminhamos para junto d’Ele. Ele afetuosamente nos abraça e pronuncia nosso nome. — Fulano! Eu te quis tanto e te quero tanto! Desejo para ti tantas coisas e perdoo-te tantas outras. Não penses mais nos teus pecados! Pensa apenas, daqui por diante, em servir-Me. E em todas as ocasiões de tua vida, quando tiveres alguma dúvida, lembra-te desta condescendência, desta amabilidade, deste beneplácito que agora te faço, e recorre a Mim por meio de minha Mãe, que atender-te-ei. Serei teu amparo e tua força,  e esse amparo e essa força hão de te levar ao Céu para ali reinar ao meu lado por toda a Eternidade.

Essa seria, portanto, a meditação enfocada pelo prisma da acessibilidade do Menino Jesus.

Infinita compaixão para com todos os homens

Imaginem, agora, a misericórdia do Menino Jesus, não só enquanto visando ao nosso bem e ao que há em nós de bom e de mau, mas olhando para a condição miserável de todo homem na terra.

Olhando, portanto, para nossa tristeza, para o sofrimento que cada um traz em si, passado, presente e futuro, que Ele já conhece porque é Deus. Olhando, inclusive, para o risco que nossa alma corre de ir para o Inferno. Pois o homem, enquanto está  na terra, arrisca-se a se condenar.

Imaginem, ainda, o Menino Jesus olhando o Purgatório e os tormentos que ali nos aguardam se não formos inteiramente fiéis. Brota n’Ele, então, um olhar de pena, de participação profunda na nossa dor, um desejo de remover esta dor em toda a medida que for possível para nossa santificação um desejo de nos dar forças para suportar essa dor na medida em que ela for necessária para nos santificarmos.

Notamos n’Ele, então, aquilo que tanto consola o homem, e que Ele não encontrou quando chegou sua hora de sofrer: a compaixão perfeita. Está na natureza humana — e é uma coisa reta — de se consolar na hora do sofrimento pelo fato de ter alguém que nos tenha pena. A pena divide o sofrimento. O homem é feito de tal maneira que, quando ele está alegre e comunica sua alegria, ele dobra essa alegria; quando está triste e comunica sua tristeza, divide essa tristeza. “A fortiori” somos nós assim em relação ao Menino Jesus, ao encontrarmos n’Ele a compaixão perfeita.

Em todos os sofrimentos de nossa vida, portanto, quando a taça a beber for muito amarga, devemos repetir por meio de Nossa Senhora a oração d’Ele: “Meu Pai, se for possível, afaste-se de mim este cálice; mas faça-se a vossa vontade e não a minha”. Quer dizer, em todos os momentos pediríamos que a dor passasse; mas se fosse da vontade d’Ele que ela viesse sobre nós, teríamos certeza de que durante a dor encontraríamos a dor compassível d’Ele: “Meu filho, Eu sofro contigo! Soframos juntos, porque Eu sofri por ti. Há de chegar o momento em que tu participarás eternamente  de minha alegria”. E nós podemos ter a certeza de que o olhar compassível de Jesus não nos abandonará um momento sequer de nossa existência.

Ao longo das vicissitudes da existência quotidiana deveríamos reter esta tríplice lembrança: a da majestade infinita, a da acessibilidade infinita, e a da compaixão sem limites do Menino Jesus em  relação a nós. E esta deveria ser uma lembrança sensível, pois procuraríamos compor em nossa imaginação o quadro tal qual ele nos toca.

Uma objeção

Uma objeção que se poderia fazer é que o presépio não pode conter ao mesmo tempo esses três aspectos. Não é verdade. Em Nosso Senhor, enquanto natureza humana, as perfeições, os estados de alma, também todos eles perfeitos, existiam em graus diversos ao mesmo tempo, conforme as circunstâncias de sua vida. Existiam, e Ele foi cheio de majestade, de acessibilidade, de exorabilidade, de compaixão para com os homens desde o momento em que veio à terra. É natural que, apesar de Menino, conforme as almas que d’Ele se acercassem, ora aparecesse um aspecto, ora outro.

Escola de pintura especializada nos olhares

Seria muito bonito se numa igreja, em vez de um só, houvesse três presépios em três altares diferentes, nos quais as figuras e toda a ambientação representassem cada um desses aspectos,  facilitando assim a cada alma a meditação que mais lhe tocasse.

Como eu gostaria de ter entre nós pintores ou desenhistas que soubessem, por exemplo, pintar três presépios de acordo com essa concepção! Ou seja, presépio ostentando toda a grandeza, ou toda a acessibilidade, ou toda a compaixão de Nosso Senhor. Como Seria bonito!

O difícil seria pintar aquilo que é o centro do presépio: um Menino recém-nascido que, sem perder as características  de Menino, tivesse tudo isso. E tivesse sobretudo um olhar. Como pintar um olhar infantil capaz de exprimir  tais coisas? Antes de pintor, esse artista deveria ser psicólogo, para primeiro imaginar esse olhar, e depois  pintá-lo.

Se alguém se sente propenso a pintar olhares, esse seria o pintor que iniciaria a nossa escola. Tenho a impressão de que, no pintar expressão de olhar, nossa escola estaria largamente  representada.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 57 – Dezembro de 2002

O COLÓQUIO DE ÓSTIA

Como, no decorrer dos séculos, a maneira de raciocinar dos vários povos vai enriquecendo com traços peculiares a fisionomia da Igreja – eis a tese exposta por Dr. Plinio na conferência que vimos reproduzindo em partes nesta seção. Para encerrá-la, comenta ele um texto célebre, repassado de beleza sobrenatural e literária, que bem exemplifica o pensamento latino: é o colóquio de Óstia, entre Santa Mônica e Santo Agostinho

 

Durante a extraordinária conversa que manteve com seu filho, Santa Mônica externou seu desejo de partir o quanto antes para o Céu, pois já não via razão para permanecer por mais tempo nesta Terra. A Providência Divina não demorou em atender aos santos anseios dela, e pouco depois a levou para a eterna bem-aventurança. O próprio Santo Agostinho narra de modo esplêndido a morte e os funerais de sua mãe, e como continuou a existência dele, após o último adeus àquela que lhe alcançara a conversão.

Numa janela, junto ao porto de Óstia

Hoje, porém, gostaria de comentar apenas o trecho em que Santo Agostinho descreve o seu diálogo com Santa Mônica, em Óstia. Ao lê-lo, tem-se  a impressão de que em certos momentos o texto se transforma em fita magnética, e como que se percebe a voz de Santo Agostinho ecoando através dessas páginas, de tal maneira são eloquentes os movimentos de alma dele expressos nessas palavras que ele dirige a Deus. Vejamos.

“Próximo já o dia em que ela ia sair desta vida – dia que Vós conhecíeis e nós ignorávamos – sucedeu, segundo creio, por disposição de vossos secretos desígnios, que nos encontrássemos sozinhos, ela e eu, apoiados a uma janela cuja vista dava para o jardim interior da casa onde morávamos. Era em Óstia, na foz do Tibre, onde, apartados da multidão, após o cansaço duma longa viagem, retemperávamos as forças para embarcarmos”.

Creio não ser difícil sentir a cadência e a força de evocação extraordinária do texto. Temos a impressão de ver o pequeno jardim para o qual dava a janela dessa casa, que devia ser uma hospedaria, e de ver Santo Agostinho e Santa Mônica olhando meio maquinalmente para as plantas e flores, sem prestar maior atenção nelas nem em outras coisas. E eles que começam a dialogar, numa conversa que logo se eleva a altos píncaros. Mas, já aqui vemos que ele não registra nenhum por- menor inútil. Nessa narração tudo está calculado como num mosaico ou num “puzzle”. Não há palavra supérflua. Ao mesmo tempo, porém, nota- se uma vida e um calor intensos na descrição dele. Por exemplo, este som: “Próximo já o dia em que ela ia sair desta vida”… É um modo fenomenal de iniciar o relato.

Cumpre dizer que a ótima tradução portuguesa contribui para se aquilatar a beleza do texto. Veja-se o cantante da formulação, que não fala da tristeza da morte, mas toma antes o lado bonito da existência que findou: “sair desta vida”. É o aspecto luminoso da morte. Em seguida ele se volta para Deus e diz: “Dia que Vós conhecíeis e nós ignorávamos”. Esse dirigir-se ao Senhor parece uma oração, e que Deus está perto dele. Então, de repente nós sentimos a proximidade de Deus com ele e da nossa alma com Deus, através das palavras de Santo Agostinho.

Ele termina o parêntese e continua: “Sucedeu, segundo creio, por disposição de vossos secretos desígnios…”

Santo Agostinho já está se perguntando por que aconteceu de ele estar junto com a mãe, na janela. E dá a resposta: provavelmente foi Deus quem quis. Percebe-se o raciocínio latino nesse modo de conjecturar, indagando e estabelecendo os motivos para o que ocorreu. Continua: “… que nos encontrássemos sozinhos, ela e eu, apoia- dos a uma janela”. A situação é linda, porque as janelas romanas não eram muito grandes, e naquela onde os dois se encontravam, não havia lugar para um terceiro. A moldura da janela quase que os isola do resto do mundo, e não cabe ninguém perto.

“…cuja vista dava para o jardim interior da casa onde estávamos”. Devia ser uma casa romana antiga, com pá- tio interno, ajardinado, e onde não havia quase movimento. Esse detalhe indica como estavam sós, e nos faz compreender a intimidade da cena. Mais uma vez, tudo tem sua razão de ser, nada é supérfluo.

“Era em Óstia, na foz do Tibre”…, ou seja, o lugar augusto em que o Tibre evanesce dentro do mar, outro aspecto muito bonito da narrativa. “…onde, apartados da multidão” – sempre a ideia dos dois inteiramente sós, na intimida- de – após o cansaço duma longa viagem, retemperávamos as forças para embarcarmos”. Quer dizer, a mãe e o filho estão propriamente na vida comezinha, na hospedaria, sem ter o que fazer e repousando. Mas o espírito, em altos vôos. Apoiam-se a uma janela e, nessa intimidade, para  onde  sobem  as  almas?

Um diálogo filosófico- teológico à maneira latina

“Falávamos a sós”. Repare-se na insistência dele a respeito do isolamento em que se encontravam. O que ele faz de maneira literária, e não como um registro policial: “Estávamos sozinhos e ponto. Tome nota disso”. Não. Ele insiste várias vezes e aquilo vai penetrando no espírito de quem o lê.

“Falávamos a sós, muito docemente, esquecendo o passado e ocupando-nos do futuro. Na presença da Verdade, que sois Vós, alvitrávamos qual seria a vida eterna dos santos, que nunca os olhos viram, nunca o ouvido ouviu, nem o coração do homem imaginou”.

Eles, de fato, estão fazendo filosofia e teologia. Mãe e filho tratavam do futuro e se perguntavam como seria a vida dos santos na eternidade, na presença do Altíssimo, a Quem os olhos nunca viram, nunca os ouvidos ouviram e nunca o coração do homem imaginou como é. Eles se põem, então, um problema teológico-filosófico.

“Sim, os lábios do nosso coração abriam-se ansiosos para a corrente celeste da vossa fonte, a fonte da Vida, que está em Vós, para que (ajudados) segundo a nossa capacidade, pudéssemos de algum modo pensar num assunto tão transcendente.”

Faço notar a beleza da expressão: “os lábios do nosso coração”, para indicar a vontade afetuosa do homem. Nesse diálogo, eles vão raciocinar e se elevar a subidas considerações, com verdadeiros vôos de Anjo. Eles percebem que o assunto é alto e mobilizam a capacidade de raciocínio deles, enfrentando juntos o tema. É a mãe, na despedida da vida, e o filho, num colóquio ultra-íntimo e amoroso. O que eles estão fazendo? Filosofia.

“Encaminhamos a conversa até à conclusão de que as delícias dos sentidos do corpo, por maiores que sejam e por mais brilhante que seja o resplendor sensível que as cerca, não são dignas de comparar-se à felicidade daquela vida, nem merecem que delas se faça menção.”

Quer dizer, tudo que existe neste mundo não é nada. E ele, na sua descrição, já deixou a Terra aqui embaixo e está pensando pura e exclusivamente no Céu. Santo Agostinho agora começa a voar. Faço notar como isto é um tratado: mãe e filho estão na janela, da qual o espírito deles se eleva a um píncaro acima de tudo quanto é terreno, considerando como as coisas temporais não têm nenhum valor em comparação com as da beatitude eterna. Iniciam, então, a outra parte de sua viagem filosófico-teológica. É um itinerário racionalmente calculado. Mas, com que sabor! Ele continua:

“Elevando-nos em afetos mais ardentes por essa felicidade, divagamos gradualmente por todas as coisas corporais, até ao próprio céu, donde o sol, a lua e as estrelas iluminam a terra. Subimos ainda mais em espírito, meditando, falando e admirando as vossas obras.”

Podemos imaginar a cena em que os dois faziam juntos essa contemplação: “Olha como o sol, a lua e as estrelas são bonitos, porém não nos satisfazem”. É propriamente uma meditação escolástica a respeito das criaturas que refletem a Deus, mas de modo insuficiente, sem darem inteira satisfação à alma. Esse é um discurso filosófico-teológico, feito de mãe para filho e de filho para mãe, numa janela de um albergue, diante de um acanhado jardim, no momento em que os dias dela já estavam contados e muito próxima a sua partida para o Céu. É maravilhoso!

“Chegamos às nossas almas e passamos por elas para atingir essa região de inesgotável abundância, onde apascentais eternamente Israel com o nutrimento da verdade. Ali a vida é a própria Sabedoria, por quem tudo foi criado, tudo o que existiu e o que há de existir, sem que Ela própria se crie a si mesma, pois existe como sempre foi e sempre será.”

Eles analisaram todas as criaturas terrenas e concluíram: não nos bastam. Depois analisaram a alma humana e disseram: também não basta. A partir daí ascenderam até o lugar que eles não conheciam, mas que era a pradaria onde as almas imortais “Israel” simboliza isso as eleitas, as preferidas são apascentadas pelo Eterno Pastor. Então eles ficaram contentes. Uma vez mais, importa considerar como é metódico esse itinerário de raciocínio, um autêntico curso de filosofia pré-São Tomás de Aquino, no voo das doçuras e da genialidade. Tudo é bem ordenado, numa atmosfera diferente daquela de São Charbel Makhlouf, do catolicismo, dos ritos litúrgicos e da hieraticidade dos santos do Oriente. É um outro estilo, outra forma de beleza da Igreja luzindo através dos vitrais da alma do povo latino.

Mãe e filho vivem seu primeiro instante de Céu

O colóquio de Óstia chega ao seu termo, e Santo Agostinho, mais à frente, prossegue sua narrativa:

“Enquanto assim falávamos, anelantes pela Sabedoria, atingimo-la momentaneamente num ímpeto completo do nosso coração.”

É um modo discreto de dizer que Deus apareceu a eles. No momento em que conversavam e subiam de indagação em indagação, naquele instante em que eles estavam com a meditação racional inteiramente feita, cai sobre a flor ordenada, perfumada e aberta da alma de cada um deles a gota de orvalho do Céu: é Deus que  se mostra a eles. Percebe-se como Nosso Senhor se comprouve com o raciocínio deles, auxiliou-os a atingir esse auge de meditação e, quando aí chegaram, mostrou-Se a eles. Compreende-se, por outro lado, como Deus ama a quem raciocina de maneira virtuosa e a quem procura metodicamente a verdade.

“Suspiramos e deixamos lá agarradas as primícias de nosso espírito.”

Quer dizer, eram os primeiros frutos de suas almas e de suas inocências, um primeiro presente que recebiam de Deus, e um primeiro instante de Céu que viveram juntos, e ali deixaram presos seus espíritos. Mãe e filho nunca mais se esqueceriam daquela hora, sendo que Santa Mônica em breve passaria a desfrutar eternamente das maravilhas que anteviram. “Voltamos ao vão ruído dos nossos lábios, onde a palavra começa e acaba. Como poderá esta, meu Deus, comparar-se ao vosso Verbo que subsiste por si mesmo, nunca envelhece e tudo renova?”

É uma referência a Nosso Senhor Jesus Cristo, Verbo de Deus Encarnado. Ele é a a palavra eterna que Deus diz a respeito de si próprio. Enquanto a palavra do homem é “um ruído vão”, porque começa e acaba, sai do silêncio e volta ao silêncio, o Verbo de Deus existe e existirá por toda a eternidade. Que diferença entre essa palavra de Deus que eles perceberam num êxtase e essas palavras vazias que nós pronunciamos! As nossas passam, a de Deus permanece. É eterna e renova tudo quanto existe. Santo Agostinho e Santa Mônica o compreenderam, numa visão.

“Ainda que isso dizíamos, não pelo mesmo modo e por essas palavras, contudo bem sabeis, Senhor, quanto o mundo e seus prazeres nos pareciam vis naquele dia, quando assim conversávamos.” 

Os desejos de Santa Mônica postos na eternidade

Em seguida, Santa Mônica faz entender que ela vai morrer:

“Minha mãe então me disse: Meu filho, quanto a mim, já nenhuma coisa me dá gosto nesta vida. Não sei o que faço ainda aqui, nem por que cá esteja, evanescidas já as esperanças deste mundo.” Depois do que ela  contemplou, não tinha mais razão nenhuma para estar no mundo. Nem Santo Agostinho. Ou seja, ela viu tão alto em Deus que nem a companhia do filho, santo, por cuja conversão ela tinha chorado trinta anos, não a retinha mais nesta Terra. E ela queria ir para o Céu.

Alguém poderia indagar: “Não é um pouco duro esse desejo de partir?”

Não me parece, uma vez que ela, no Céu, estaria mais próxima de Santo Agostinho do que na Terra, porque se acharia perto de Deus, que é, por assim dizer, a “raiz” de Santo Agostinho. De fato, todos os que vão para a eterna bem-aventurança se encontram mais próximos dos que estão neste mundo do que se aqui ainda vivessem. Esta é uma verdade lindíssima, da qual

não podemos nos esquecer. Santa Mônica continua:

“Por um só motivo desejava prolongar um pouco mais a vida: para ver-te católico antes de morrer. Deus concedeu-me esta graça super abundantemente, pois vejo que já desprezas a felicidade terrena para servirdes ao Senhor. Que faço eu, pois, aqui?”

Note-se como ela punha a fé católica acima de tudo. O pensamento dela era este: “Meu filho se converteu e tornou-se um bom católico. Portanto, posso morrer em paz. O resto não me interessa”. Dias depois ela morreu…

E aqui também termina a nossa exposição.

Plinio Corrêa de Oliveira