GLÓRIA A DEUS NO CÉU, E PAZ NA TERRA AOS HOMENS DE BOA VONTADE

As reflexões sobre o Natal es-critas em 1936 por Dr. Plinio parecem feitas, de algum modo, mais para os dias de hoje do que para aquela época, tanto no tocante às nuvens negras que toldam o quadro dos acontecimentos, quanto aos raios de esperança que o perpassam.

Enquanto os Anjos de nossos piedosos presépios ostentam dísticos em que se lê: “Glória a Deus nos Céus, e paz na terra aos homens de boa vontade”, a imprensa diária está cheia de notícias  terríveis que destoam tristemente da promessa angélica. […] Por toda parte só encontramos ódio, rancor, perseguição.

E, no entanto, cumpre que não desanimemos. Não seríamos dignos da graça inestimável do Batismo que recebemos, se permitíssemos que o pânico se apoderasse de nós. Nem na ordem natural, nem na ordem sobrenatural, há motivos que justifiquem a inércia e o pessimismo.

Cristo, como único Salvador do mundo: lição do Natal

O que a Igreja espera, hoje em dia, de seus filhos, é a realização de uma tarefa ao mesmo tempo muito grande e muito simples. Ela quer que todos os católicos (os católicos dignos deste nome, e  não a turbamulta dos pagãos que usam rótulo católico), com uma persuasão vigorosa e magnífica, se ergam no tumulto do mundo contemporâneo, proclamando o cristianismo como seu único Salvador.

Único, dissemos. E insistimos sobre esta palavra. Erraria crassamente quem supusesse que o Cristo só veio salvar a humanidade de seu tempo. Em todos os tempos, em todos os países, para todos os povos, em todos os perigos, em todas as dificuldades, apesar de todos os pecados, Cristo é o ÚNICO Salvador.

[Alguns países] pensam que podem atingir a prosperidade e a paz, por meio de pequenas receitas políticas em que misturam, em doses variáveis, a autoridade e a liberdade. Loucura e ilusão. Se  eles não aceitarem as normas sociais e morais da Igreja, se não derem ao catolicismo a influência preponderante a que tem direito, não escaparão à ruína. De reforma em reforma, rolarão para o abismo.

[Outros países] pensam que o braço vigoroso de um ditador lhes pode restituir a felicidade. Loucura, ainda, e ilusão. Porque o maior homem do mundo, dotado da mais lúcida inteligência, da mais alta moralidade, da mais vigorosa energia, do mais formidável poder, não conseguiria organizar convenientemente um povo que vivesse entregue à anarquia intelectual e efetiva que, fora da Igreja, é inevitável. Um povo é um conjunto de homens. Um povo disciplinado não pode ser composto de homens anarquizados no mais íntimo do seu ser, como um copo de água pura não pode constar de um conjunto de gotas de água impuras.

Cristo como base da civilização, e as formas do governo como aspectos secundários e acidentais da vida de um povo, eis aí uma das grandes lições do Natal.

Trabalhar, lutar, sofrer e rezar pela Igreja

Mas, dirá alguém, Cristo é um Salvador ausente. Eternamente mudo, atrás da cortina de nuvens que o escondem no Céu. Ele não se mostra à humanidade aflita. E esta então corre à busca de outros pastores.

É horrível dizê-lo, mas há entre católicos quem fale assim. Há ainda quem não ouse falar, mas pense assim. E há quem não ouse pensar, mas sinta assim! Daí o existirem católicos que têm mais  esperança na ação da política do que na ação do Cristo.

Ah! São esses os corações que recebem a visita eucarística do Cristo, mas não recebem o seu Espírito: “in propria venit, et sui eum non receperunt” (veio para que era seu, e os seus não o receberam).

Ah! São esses os corações que ouvem a palavra do Cristo, vinda do Vaticano, e não conhecem na voz do Papa o timbre da voz de Deus. A palavra do Papa ecoa no mundo, e o mundo não a conhece:  “lux in tenebris lucet, et tenebrae eam non conprehenderunt” (a luz brilha nas trevas, e as trevas não a envolveram).

Cristo, para o bom católico, não está ausente. Na Eucaristia, Ele está tão realmente quanto esteve na Judeia. E do Vaticano fala tão verdadeiramente quanto falou ao povo de Israel. A Igreja é tão  seguramente guiada por Cristo em 1936, quanto o eram os Apóstolos, antes da Ascensão.

O que Cristo quer fazer, fá-lo por meio da Igreja. O que Cristo quer dizer, di-lo por meio do Papa. Logo, a Igreja em certo sentido é onipotente e onisciente porque é instrumento da onipotência e porta-voz da onisciência de Deus.

Se Cristo é o Salvador único, a Salvação virá da Igreja. Trabalhar, lutar, sofrer, rezar, imolar-se ou sacrificar-se alegremente pela Igreja, deve ser o fruto desta meditação de Natal. Porque todas as  causas e todos os ideais devem vir depois da suprema Causa e do supremo ideal da Igreja.

GLÓRIA A DEUS NAS ALTURAS, E PAZ NA TERRA AOS HOMENS DE BOA VONTADE.

Plinio Corrêa de Oliveira (Excertos, com ligeiras adaptações, de artigo do Legionário nº 224, de 27/12/1936. Subtítulos nossos.) 
Revista Dr Plinio 57 – Dezembro de 2002

 

Mais belos que as estrelas

De súbito o manto negro da abóbada celeste se vê coberto por uma feería de luzes, de corpos fulgurantes que, lançados do solo, abrem-se lá no alto em corolas policromadas, desfazem-se em miríades de gotas esplendentes, como se nuvem fabulosa destilasse sobre a terra uma cintilante chuva de topázios, esmeraldas, safiras e rubis…

Junto ao majestoso palácio ou sobre as plácidas águas do grande lago, envolvendo praças, silhuetas de imagens ou lindos chafarizes, a noite está em festa, regozija-se, enquanto magníficos fogos de artifício cruzam os ares, iluminando e engalanando o céu, conforme os mais audaciosos desejos do homem.

Será difícil negar que esse firmamento assim enfeitado pela esplendorosa ordenação artística e visual que o fogo de artifício nele traça efemeramente, representa para a nossa concepção algo mais belo do que o céu pontilhado de estrelas, arquitetado pela onipotência divina.

Haverá, então, um choque entre a obra de Deus e a do homem? Claro que não. Quando o Criador espargiu a mancheias pelas vastidões do espaço os astros siderais como se fossem grãos de brilhantes, guardava em seus maravilhosos desígnios o proporcionar ao homem a delicada oportunidade de superar em alguma medida o que Ele próprio realizou. Sem dúvida, Deus poderia ter feito fogos de artifício incomparáveis, perto dos quais os nossos mais belos seriam ofuscados. Porém, Ele agiu de maneira diversa. E ao criar as estrelas, provavelmente já tinha por intenção sugerir ao homem a ideia do fogo de artifício, dando-lhe assim a possibilidade de traçar nos céus uma ordem — sob o ponto de vista estético — superior em beleza àquela estabelecida por Ele.

No fundo dessa disposição divina há, na verdade, um requinte de delicadeza e de misericórdia paterna, por onde o Senhor, na autêntica infinitude de seu poder, infundiu no homem uma alma capaz de levar à perfeição o “esboço” que Ele delineou. Trata-se, portanto, da ternura do Pai que nos diz: “meu filho, complete o desenho”; e, ao mesmo tempo, da grandeza fabulosa do Onipotente que nos faz compreender tudo o que Ele nos concedeu: “Meu filho, você é pensante e capaz de acrescentar uma nota de harmonia a tudo quanto Eu criei, porque foi feito à minha imagem e  semelhança.

Eu o amei superlativamente quando o criei, quando me encarnei na sua natureza humana e a elevei, unindo-a à minha natureza divina numa só Pessoa. Todas as coisas que você pode  fazer mais belas do que as realizadas por mim, nada valem em confronto com as maravilhas intelectuais, espirituais, morais e sobrenaturais para as quais você foi criado. Quando, um dia, você passear por  essas vastidões, mais pequenino que um micróbio, sentir-se-á entretanto um perfeito rei, porque entenderá que em ter existido, pensado e amado conforme Eu, seu Deus — você se tornou dono de tudo isso e incomparavelmente mais belo do que isso!”

E antes do que para qualquer homem, Ele poderia se voltar para Nossa Senhora e dizer: “Vós sois minha Mãe, o centro e o ápice dessas maravilhas. Em Vós há mais beleza do que em todo o resto,  e quem contempla o vosso olhar, admira o universo inteiro, todas as estrelas do céu, todos os fogos de artifício da Terra, num grau de formosura e perfeição como não se é capaz de imaginar!”

E Maria Santíssima, por sua vez, no alto do Céu, adorando seu Divino Filho, agrada-se mais em considerar o movimento da graça nas almas dos homens pelos quais Ela intercede, do que em  contemplar todas as outras grandezas da criação. Cada um de nós, porque católico, vale aos olhos d’Ela insondavelmente mais do que a imensidão do universo que nos deslumbra, do que os astros reluzindo no firmamento, do que a feería dos fogos multicoloridos que enfeitam e rejubilam as nossas noites de festa…

Plinio Corrêa de Oliveira

A conversa perfeita

Dr. Plinio reitera a seguir sua visão sobre a arte da conversa como excelente meio de apostolado e amor ao próximo, por amor a Deus; além de constituir um ato que, conforme a promessa de Nosso Senhor, assegura a presença d’Ele entre nós, quando realizado em seu nome. Para ilustrar tal pensamento, Dr. Plinio nos descreve uma das mais célebres conversas da História, ocorrida há dois mil anos no caminho de Emaús…

 

Sobre a arte da conversa há um ponto a respeito do qual nunca será demasiado insistir. Quando tratamos, com espírito de Fé, acerca de assuntos da Igreja ou da civilização cristã, através de nossos lábios toma lugar no diálogo um interlocutor infinito: Nosso Senhor Jesus Cristo. Pois esta foi a sua promessa formal: “Quando dois ou mais estiverem reunidos em meu nome, Eu estarei no meio deles” (cf. Mt 18, 20).

A presença divina sentida pela ação da graça

Devemos notar que o Redentor não disse: “Estarei a maior parte das vezes”, mas sim: “Estarei no meio deles”. Quer dizer, o principal atrativo da conversa entre católicos, versando a respeito de um tema não necessariamente religioso, mas visto sob o ângulo da doutrina da Igreja, consiste em que o grande interlocutor é Nosso Senhor Jesus Cristo.

Essa presença se realiza através da ação da graça, que Ele nos obteve derramando seu sangue infinitamente precioso no alto do Calvário. O Salvador no-la concedeu, a rogos de Maria Santíssima, quando fomos batizados, e ela se desenvolve e floresce enquanto conversamos. Sua atuação é tal que posso conhecer, além da graça dada a mim, a recebida pelo outro. E este, conversando comigo, conhece o dom celestial que me foi outorgado.

Por exemplo, nessa exposição, devido a uma particular atração exercida pelo tema, há consonância, consolação, estímulo, verifica-se um entusiasmo e uma comunicação de alma, tendo Nosso Senhor disposto que a graça seja uma em mim e outra em cada um de meus ouvintes. Em todos, ela é uma participação da vida divina, com fervores peculiares.

Imaginemos duzentas lamparinas acesas. Cada chama tem movimentos diferentes, mas é o mesmo fogo brincando com duzentos pavios. Assim é a ação da graça em nós, da qual nos damos conta apenas de modo confuso, e nem seria normal que o sentíssemos plenamente. Porém, o sabemos pelos ensinamentos e doutrina da Igreja.

Um agir deleitável e envolvente

 Às vezes a conversa aumenta de dimensão e não nos lembramos de que Nosso Senhor está falando mais ricamente no fundo das almas. Porém, se ela se interrompe de modo brusco, temos a impressão de haver cessado algo que não deveria parar. Por exemplo, se me chamassem agora para atender um telefonema urgente, obrigando a me ausentar sem maiores palavras, não ficariam os meus ouvintes com uma sensação de inacabado, de quem descia para um terra-a-terra do qual havia saído sem perceber, mas ao qual voltaria sem estranheza?

Tal é o modo de agir da graça. Ela nos vai falando aos poucos, deleitavelmente, não a percebemos e nos habituamos com ela. Quando emudece, dizemos: “Mas que vazio! Como aconteceu isso?!”

Emaús: a conversa perfeita

Normalmente a graça atua com linda sutileza. Os discípulos de Emaús somente reconheceram Nosso Senhor na hora da comunhão, quando partiu o pão e o distribuiu. Com sua linguagem poética e rica em pormenores, o Evangelho descreve o episódio e o colóquio que então se estabeleceu.

Os dois discípulos caminhavam na estrada, rumo ao lugarejo chamado Emaús, comentando os fatos recentes ocorridos em Jerusalém, a perseguição e a morte do Salvador. Enquanto andavam e conversavam, Jesus se aproximou e começou a tomar parte na conversa, sem que eles O reconhecessem de imediato.

Nosso Senhor lhes pergunta sobre o tema que os trazia tão absortos. Assim faz o bom conversador: não muda de assunto conforme o que está na cabeça dele, mas entra na matéria tratada pelos outros.

Eles se espantam, e dizem: “Mas, como?! Tu és o único forasteiro em Jerusalém, e ignoras os fatos que nela aconteceram nestes dias?” (Lc 24, 18)

Jesus se mostra interessado, continua a lhes fazer perguntas e os ouve narrar os principais acontecimentos de sua Paixão e Ressurreição. À medida que conversavam, o ardor dos dois discípulos aumentava, pois o Redentor lhes concedia uma graça especial que preparava a alma deles para ouvi-Lo. Assim, formavam o trio perfeito.

 Quando chegaram em Emaús, percebe-se, pela descrição, que eles estavam embevecidíssimos. Contudo, apenas no instante em que Nosso Senhor partiu o pão — Ele celebrou uma Missa; portanto, realizou a consagração — os discípulos O reconheceram: “Ah! O Mestre está aqui!”

Isso é propriamente a perfeição da conversa: uma revelação progressiva e, no auge, o interlocutor se mostra de corpo inteiro.

Interessante notar que, momentos antes, Nosso Senhor fizera menção de seguir adiante no caminho, separando-se deles. Então os dois discípulos, enlevados, pedem que Ele permaneça, porém não ousando dizer: “Está tão agradável a vossa companhia! Ficai junto a nós”. Não. Eles buscam um pretexto: “Senhor, permanecei conosco porque já é tarde e anoitece”. Cada um procura solucionar uma dificuldade como pode. Ora, Jesus Cristo é Deus. Que diferença representa para Ele a claridade do dia ou as penumbras do anoitecer?

Na realidade, os dois queriam Lhe dizer coisa diversa: “Vede, Senhor, não desejamos nos separar de Vós, porque nenhuma presença é igual à vossa. E vos apresentamos um pretexto, pois somos tão toscos que não sabemos sequer formular o verdadeiro motivo. Aceitai isso, mais como um gemido do que um argumento. Diante de vossa sabedoria, o que é um raciocínio? E face à vossa misericórdia, o que será esse pretexto?”

Contudo, Nosso Senhor desapareceu. Imaginemos a surpresa deles… O Salvador lhes havia dado o necessário para aquela fase da vida espiritual de ambos. Cumpria doravante se lembrarem sempre desse fato.

Os discípulos de Emaús foram logo procurar os Apóstolos em Jerusalém, para contar o ocorrido. Sem querer, transformaram-se em conversadores. Começaram a narrar o colóquio mantido com Nosso Senhor. Em linguagem caseira, diríamos que foi um atraente “jornal-falado”: “Nós O encontramos, e Ele nos disse tais e tais coisas!”

 Pensemos nos ensinamentos que Jesus lhes transmitiu ao longo da estrada! Provavelmente, a propósito de um bicho que atravessou o caminho, de uma ave que esvoaçou perto deles, de um lago junto ao qual passaram, etc., o Divino Mestre fazia comentários, a par das maravilhosas digressões sobre as Escrituras e profecias que d’Ele falavam.

Foi o modelo da conversa, porque embebida pelo amor de Deus, sendo um dos interlocutores o mesmo Jesus. Percebe-se como Deus, amando a si próprio, acendia nos discípulos o amor que os homens devem ter para com Ele. É o circuito perfeito.

Sob a luz do Espírito Santo

É o que a graça realiza entre nós, católicos. Em certos momentos ela age de tal maneira — é Nosso Senhor que atua, porque autor da graça — causando-nos a impressão de que um terceiro está presente, invisível e infinitamente superior a todas as coisas.

Tal sucede nesta exposição. Imaginemos que amanhã sobreviesse um acontecimento em virtude do qual fôssemos obrigados a nos separar e viver isolados nas mais variadas re­giões do mundo. Em determinado momento, um que se acha no Alasca entra em contato telefônico com outro no Pólo Norte, e lhe diz: “Recorda-se da última reunião de nosso movimento? Dos comentários sobre os discípulos de Emaús? Acabo de reler o texto daquela palestra de Dr. Plinio, e me lembrei que você estava ao meu lado…”

E os dois terão o mesmo pensamento: “Ah! O auditório São Miguel1! Ah, aquela convivência! O que é o viver católico! Naqueles sábados à noite, enquanto tantos jovens e adolescentes procuravam outras diversões, nós estávamos reunidos com Dr. Plinio e nos sentindo muito mais felizes do que aqueles. Estávamos sob as vistas de Nossa Senhora, num ambiente sacral, movidos pela Fé católica apostólica romana. Por isso, a graça de Deus chamejava entre nós. Era um só fogo aceso em muitos pavios. E todos nós nos alegrávamos!”

E assim chegamos ao fim dessa explanação, compreendendo não apenas a teoria da conversa, mas também a do convívio: quando conversamos animados pelo amor de Deus e do próximo, o convívio é agradável. Do contrário, o trato será detestável, sem afabilidade, marcado por um cunho revolucionário. Pois imaginemos uma conversa com determinada pessoa em estado habitual de violar, ao mesmo tempo, todos os Mandamentos. Ela mata, rouba, calunia, etc. O estar com essa pessoa se torna insuportável, um pesadelo. Não há o que conversar com ela.

Por outro lado, suponhamos um colóquio entre duas pessoas que se esforçam por cumprir de modo exímio os dez Mandamentos. É um céu. Sublime exemplo foi o célebre diálogo de Santo Agostinho com Santa Mônica, na hospedaria de Óstia2.

Em suma, a ótima conversa é aquela iluminada pelo Divino Espírito Santo, realizada aos pés da Santíssima Virgem, em cujo Coração vive Nosso Senhor Jesus Cristo.

O resto, no fundo, é fraude, vaidade e aflição de espírito…

 

1) Nome dado por Dr. Plinio ao antigo local onde realizava suas exposições plenárias. Situado na Rua Dr. Martinico Prado, 246, em São Paulo.

2) Cf. na “Dr. Plinio” número 34, uma exposição sobre esse tema.

O olhar de Nosso Senhor Jesus Cristo

Se numa noite sem luar contemplarmos com espírito de Fé o céu estrelado, ele produzirá grande efeito sobre nós. E nos fará lembrar algo infinitamente superior: o olhar do Redentor, no qual há galáxias de santidade, de virtudes que pousam sobre nós como uma abóbada protetora.

 

Quando a pessoa se porta ordenadamente face à ordem do universo, pelo fato de seu próprio senso do ser procurar o maravilhoso nas coisas que constituem o universo que ela procura conhecer, tende ela a ver muito mais os aspectos espirituais do que os materiais nas criaturas que a circundam.

O sentido da vida terrena

Então, no exemplo tantas vezes utilizado da criança que busca o maravilhoso na teteia dourada, vermelha, azul, verde, etc., à medida que a criança vai se desenvolvendo, se ela tem, por exemplo, uma boa mãe, quando esta lhe oferece sorrindo a teteia, em certo momento, ela percebe estar querendo mais bem à mãe do que à teteia. Porque tomando contato, ao mesmo tempo, com dois seres excelentes — um relacionado mais diretamente ao corpo, como a teteia; outro dizendo respeito à alma, que é o carinho da mãe —, por aspirar ao mais maravilhoso, a criança deseja o carinho da mãe.

Ai da mãe que não tem com a criança esse carinho, e que não a ajude a sobrepor esse valor moral ao material! Porque essa é a missão de uma mãe, e ela tem obrigação de cumpri-la.

Mas ai também dos familiares que não criam em torno de seus pequenos um ambiente robusto, suculento e benfazejo de manifestação de qualidades do espírito, no qual a criança vá entendendo desde logo que esse convívio de alma é o fundamental da ordem do universo!

Este é um ponto muito importante, porque as criaturas de uma ordem mais elevada têm uma função normativa e orientadora em relação a todas as inferiores. E os espíritos são o que há de mais alto no universo. Conhecendo-os e estando voltados para eles, conhecemos melhor o que está abaixo.

Então, ser sensível às almas e querer encontrar para si uma ambientação, na qual o nosso senso do ser, do maravilhoso, nosso senso católico se sintam como o navio que atracou no cais e ali está na serenidade, longe das tormentas, este é o sentido da vida terrena.

O ambiente da Igreja do Sagrado Coração de Jesus

A alma encontra este sentido superior da existência quando é tocada pela graça a propósito de Nosso Senhor Jesus Cristo, de Nossa Senhora e de toda a ordem celeste propriamente dita. Quer dizer, ela “vê” espíritos — sobretudo um valor de alma —, almas de uma categoria, de uma beleza, de uma maravilha tais que ela fica compreendendo ser este o verdadeiro ponto em torno do qual tudo gravita, longe ou fora do qual tudo gira errado, e que a vida está em compreender e desejar isto, ou seja, mais especificamente, o Sagrado Coração de Jesus e o Imaculado Coração de Maria.

As descrições que tenho feito do Sagrado Coração de Jesus, como deve ser visto, amado, dão inteira e linearmente isto. Ele é divinamente superior a qualquer consideração, por um lado. Por outro lado, na sua superioridade, Ele habita em nós mais do que nós mesmos. Ao mesmo tempo em que está no alto de um Céu inatingível por nós, Ele habita no fundo de cada um de nós e tem a possibilidade de tomar contato conosco, fazendo estremecerem cordas de nossas almas que não sabíamos existirem. Assim é Ele!

Para minha sensibilidade — não digo nem um pouco que seja uma coisa obrigatória —, o ambiente da Igreja do Sagrado Coração de Jesus traz isso. Existem na Europa milhares de igrejas de um valor artístico incomparavelmente maior do que o dela, mas há uma coisa qualquer nessa igreja por onde, estando lá, tenho a impressão de que os seus divinos olhos estão pousando sobre mim naquele momento, e me delicio em sentir-me visto e envolvido pela serenidade afetiva, doce e cheia de sabedoria de Nosso Senhor, mas ao mesmo tempo pelo império d’Ele, segundo o qual Jesus aceita quem for assim e rejeita quem não o for. E o pior que pode haver é ser rejeitado por Ele.

Mais alvos do que a neve

Tudo isso junto, formando um panorama que paira por cima. A sensação de grandeza que se tem, às vezes, quando se olha para o céu muito estrelado não é nada em comparação com essa impressão dos olhos de Nosso Senhor Jesus Cristo — que eu imagino castanhos quase claros — pousando sobre nós, olhando-nos a fundo, e nos fazendo entrar nessas imensidades de serenidade, de força e de tudo o mais que há n’Ele, e que são verdadeiramente incomparáveis!

Para quem não tenha haurido isso tão fundamente na alma que, a bem dizer, quase nem precise ir à Igreja do Coração de Jesus, aconselho irem, e procurarem rezar ali, impregnar-se daquilo, porque há qualquer coisa ali que não é propriamente o olhar de Nosso Senhor para São Pedro, mas é um olhar d’Ele. Nessa igreja, todos os mistérios da devoção ao Sagrado Coração de Jesus e ao Imaculado Coração de Maria vêm à tona.

Por exemplo, quanto nós gostaríamos de nos ver fisicamente olhados por Ele! Tenho a impressão de que “asperges me hyssopo et mundabor, lavabis me et super nivem dealbabor”1; o olhar de Nosso Senhor lavar-me-ia completamente, e eu ficaria mais alvo do que a neve!

Ali, diante do olhar d’Ele, eu diria: “Anima Christi, sanctifica me!” Eu estaria tendo o que desejo, o ideal de minha vida! Aquele olhar meio interrogativo, ligeiramente reprobatório, enormemente amoroso, envolvente e, para dizer mais, encomiástico, no seguinte sentido: não há barreiras, venha; elogio é isto!

E tocando, não o grosso bordão dos sinos de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas o sino leve e alegre de Nossa Senhora, a alegria do perdão. Ela põe junto dessa seriedade infinita de Nosso Senhor Jesus Cristo uma nota qualquer de louçania que fala em perdão, em esperança, em alegria, que a completa admiravelmente. Tudo isso está e tem fundamento n’Ele, mas Nosso Senhor é grande demais para, num olhar só, podermos abarcá-Lo. Então, olha-se para Maria Santíssima, e Ela diz: “Meu filho!” Porque ao cabo de algum tempo aquela imensidade nos faz sentir tão pequenos, tão pequenos, tão pequenos, “petit vermisseau et misérable pécheur”2, que se tem vontade de dizer: “Senhor, não me esmagues de tanto me amar!” Mas entra Ela e dá um repouso, uma distensão, está feito tudo na perfeição.

Portanto, não é que exista n’Ela e não n’Ele; mas é alguma coisa que existe n’Ele e, através d’Ela, se explicita melhor.

Conhecimento por conaturalidade

Esses estados de alma constituem o afeto que devemos procurar na vida. Não tendo esse afeto, não adianta nada, porque nenhuma forma de afeto é autêntica sem isso.

Por exemplo, se alguém me informar: “Fulano de tal quer muito bem a você porque foi educado com você desde pequeno…”, diz-me pouco, porque se nossas almas são diferentes nesse ponto, o que fazer?

Entretanto, alguém que eu tenha conhecido, procedente de Chandernagor, em quem, olhando, percebo esse estado de alma no fundo, minha vontade é de abraçá-lo e dizer:

“Meu irmão ou — conforme a idade — meu filho, há quanto tempo nos esperávamos! Há quanto tempo nos pressentíamos!”

Eu falava há pouco do céu estrelado. Ele produz efeito muito grande, não tem dúvida. Mas se eu, ao contemplar esse céu estrelado, lembrar-me do olhar de Nosso Senhor Jesus Cristo pousando sobre mim, é algo infinitamente superior ao céu estrelado, mas que tem certa analogia, cujo analogado primário é o Céu, a partir do qual, na imensidade de suas virtudes e qualidades, Ele olha para mim. Há n’Ele galáxias de santidade, de virtudes que pousam sobre minha cabeça como uma abóbada protetora!

A partir daí vem o desejo da boa amizade segundo Deus, amar o próximo como a si mesmo por amor de Deus, podendo dar origem a um relacionamento humano que, com tal plenitude, creio eu, talvez não tenha sido tão frequente na própria Idade Média.

Suponho que se a Idade Média tivesse continuado, o Sagrado Coração de Jesus teria revelado essa devoção de qualquer forma. A grande maravilha d’Ele foi perdoar as rupturas da Idade Média e, apesar disso, chamar para essa devoção.

Infelizmente, essa devoção, de modo geral, foi muito rejeitada ou aceita de uma maneira sentimental, completamente errada.

Quando me refiro à sensibilidade em relação ao ambiente da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, às graças, etc., entendo a sensibilidade reta, pela qual o homem tem um conhecimento por conaturalidade.

Em geral, quando se fala de conhecimento, tem-se em vista somente o racional — tão nobre, elevado, digno —, entretanto, julgo necessário frisar o conhecimento adquirido pela sensibilidade para entender que nesse conjunto — razão e sensibilidade — encontra-se a cognição completa. O querer bem é, portanto, ver e entender outrem assim, por conaturalidade. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/2/1986)

Revista Dr Plinio 213 (Dezembro de 2015)

 

1) Do latim: Asperge-me com o hissopo e serei purificado, lava-me e ficarei mais alvo do que a neve.

2) Do francês: vermezinho e miserável pecador.

A hierarquia na criação

Desde um grão de poeira até o mais elevado dos anjos, toda a criação saiu das mãos do Onipotente numa esplêndida harmonia que rege o relacionamento entre as criaturas. Separado desse  conjunto hierárquico, nada é perfeito no universo. Dr. Plinio nos comenta um belo texto de São Tomás de Aquino, o Doutor Angélico.

 

Em anterior exposição tratamos da errônea concepção de um universo como algo fechado, do qual estariam ausentes a intervenção divina e a assistência dos anjos.

Ora, São Tomás condena essa visão, que muitos têm de modo subconsciente, ao discorrer sobre o papel dos espíritos angélicos nos planos de Deus. Pergunta ele se os anjos foram criados antes do  mundo corpóreo, e responde com argumentos tais que deles se espargem centelhas de luz.

O anjo mais elevado se relaciona com a menor coisa na Terra

Assim, afirma: Sobre o assunto, dupla é a opinião dos santos doutores, sendo mais provável a que ensina terem sido os anjos criados simultaneamente com a natureza corpórea. Não  simultaneamente com o homem, porque este foi criado depois da natureza corpórea. A razão:

Pois os anjos fazem parte do universo. Quer dizer, há um só universo e não dois, que nunca se tocam e são alheios um ao outro, como o ensino corrente insinua.

Não constituindo um por si, mas concorrendo, com a criatura corpórea, para a composição do mesmo universo. Portanto, a coisa mais simples na Terra — uma bandeja, por exemplo, como a que  se acha ao meu lado durante esta exposição — constitui um só universo com o mais alto dos anjos que está diante de Deus e O contempla face a face.

Que significa “constituir um só universo”? Os seres existem em cadeia, em inter-relação constante e formam uma única e bela ordem. Por mais admirável que seja o Serafim, a beleza da ordem que há nele é realçada, por exemplo, pela existência da bandeja. Ainda que esta fosse feia, o realce se daria por contraste. Vemos, então, como a idéia da separação dos dois mundos é falsa.

Separado do todo, nada é perfeito no universo

Prossegue São Tomás: O que bem se verá, considerando a ordem de uma criatura em relação à outra, pois a ordem das coisas entre si é o bem do  universo. Portanto, toda criatura se relaciona com outra, e essa correlação entre todas constitui a beleza e o bem do universo. Ora, a bandeja e o anjo são criaturas; logo, a maior beleza não está  nem somente neste, nem apenas naquela, mas na relação anjo-bandeja, que talvez não seja facilmente compreensível por nós, porém o é por Deus, e essa formosura O encanta.

Ora — diz São Tomás — nenhuma parte do universo é perfeita separada do todo.

Há pessoas que consideram o Apolo do Belvedere ou a Vênus de Milo, por exemplo, como tendo rostos perfeitos. Imaginemos o nariz de Apolo ou o de Vênus, esculpido numa parede… Um nariz  absoluto é um monstro absoluto. Ele será bonito por causa de sua harmonia com o conjunto da face. Ninguém dirá de um nariz cortado e lançado no chão: “Que lindo nariz!”, nem de um olho que   foi arrancado de um semblante: “Que linda cor tinha esse olho!”. Isolados, nariz e olho causam horror, enquanto que podem causar admiração quando vistos no todo de uma face.

O pensamento de São Tomás assim se explica: se todas as coisas estão agora nessa relação, o perfeito é que sempre tenham estado, porque a obra de Deus é perfeita.

Logo, Ele criou o mundo angélico e o corpóreo ao mesmo tempo.

A necessária desigualdade entre os seres

Outros argumentos há pelos quais essa sentença se demonstra.

Segundo a opinião de São Tomás de Aquino, a direção dos astros, por exemplo, corresponde aos anjos. E tal fato ocorre por uma necessidade que está na ordem das coisas estabelecida por Deus. Noutra parte, São Tomás explica ser próprio daquele que é mais governar quem é menos. E quando o superior não tem junto de si o inferior, essa ausência lhe é de algum modo prejudicial. Consideremos alguns exemplos.

É próprio de um professor ensinar. Aposentando-se bruscamente, ele sofre por falta de alunos. Não só o mestre é necessário ao discípulo, mas este é necessário àquele. Um músico se apresenta em  oncertos, não apenas por interesse financeiro, pois se fosse rico, ficaria em casa, tocando para si mesmo. Ora, é próprio do homem que sente algo, precisar de alguém a quem comunique seu sentimento. E quem sente mais coisas excelentes, deseja transmiti-las aos que sentem menos e de modo menos perfeito. Essa é a ordem adequada das coisas.

Suponhamos que esse músico fosse o único homem a ouvir, numa humanidade que ficou surda. Só ele apreciaria suas melodias. Resultado: o artista começaria a fenecer e morreria vinte anos mais cedo que o normal, porque ninguém compartilharia com ele os sentimentos e os enlevos pelas suas composições.

Ora, diz São Tomás, os anjos inferiores são espíritos excelentes feitos para mandar nos homens. E o universo angélico seria mal construído se não houvesse pessoas sob a direção dele. Portanto, devemos compreender, com alegria, que somos necessários para nossos anjos da guarda, assim como estes o são para nós. Essa relação se repete entre os seres animados. Os homens precisam dos  animais e dos vegetais para exercer seu mando. E faz parte da natureza animal a necessidade — material, instintiva e não espiritual — de vegetais para se alimentar. Os vegetais, por sua vez,  precisam dos minerais; e estes não necessitam de outros seres para existirem, pois constituem o andar térreo onde o universo se fecha.

Em tudo isso vemos a sabedoria de Deus, cuja obra criadora pode ser comparada a um belíssimo colar: cada um de nós, sendo fiel à graça, é uma pedra preciosa intermediária nessa jóia.

Sentindo a ordem do universo no ato de pisar

Falamos em pedra, e nosso pensamento, por uma natural associação de imagens, evoca a ação do homem de pisar no solo. Recordo-me de que, certa feita, ao visitar a capela de uma fazenda, senti  particular comprazimento em tocar a terra e a vegetação rasteira do campo, o que há tempos não me era possível fazer devido ao desastre de automóvel que me tolheu alguns movimentos.

Naquela  ora, porém, senti esse gosto em pisar no chão, dizendo para mim mesmo: “Como é razoável e de acordo com a ordem do universo esse prazer meio indefinido que sinto”. Eu caminhava  em espírito de meditação, e cada passo que dava me fazia sentir essa ordem, incutindo maior alegria em minha alma ao entrar na capela.

Um hino à boa ordem

Nessa linha, lembro-me ainda de outro fato. Em uma de minhas viagens à Espanha pude acompanhar uma apresentação de sapateado, e admirei de modo especial um artista que dançava e pisava  firme no chão. Pensei: “Curioso, mas esse espanhol faz do solo um instrumento de percussão. Assemelha-se a um passarinho saltitando sobre a membrana de um tambor. O chão é o tambor dos  sapateadores espanhóis.”

A própria castanhola que ele tocava dava a impressão de ser o barulho do piso multiplicado com as mãos. Era um homem magro e de peito largo, e seu estilo de dançar era muito atraente. 

Continuei a elucubrar: “Gosto do sapateado desse artista; ele toca música com os pés. Sinto em mim uma consonância agradável como esse talento. Como pode o contato dos pés com o chão  produzir essa impressão musical, essa coisa borbulhante, cheia de vida?”

Saí do espetáculo levando em minha mente esse problema. Mais tarde, cogitando sobre o assunto, percebi que o ritmo com o qual ele dançava era agradável de se ouvir, e os instrumentos eram os  pés batendo no chão. Se fosse sobre um tambor, não haveria graça. O imprevisto do saltitar era o que conferia aquela sensação de leve, de infatigável, de desafiante: o artista pisa, repisa, salta, com a noção subconsciente de que todas as coisas devem ser ordenadas. Aquela dança, no fundo, é um hino à boa ordem.

Em última análise, como acima consideramos, isso tem uma explicação tomista. Sendo o chão o mais elementar na criação, foi feito para ser calcado. E ao pisá-lo, o homem exerce sua vontade de  governar, próprio de todo ser superior em relação ao inferior, por amor à boa ordem.

A alegria de todo ser está em cumprir seu fim último

Para concluir essas reflexões, voltemos nossa atenção para um outro ponto.

Quando eu estudava no Colégio São Luís, um professor jesuíta levantou a seguinte questão, relacionada com o tema aqui abordado. Dizia ele: “Todo mundo tem alegria em realizar sua própria  finalidade. Ora, a finalidade de certos animais é servir de alimento para o homem ou para outros animais. Pergunta-se: se uma galinha raciocinasse, na hora de ser morta e deglutida, ela se sentiria  eliz?”

Reconheçamos que esse professor apresentava questões sutis… Ele não respondeu, o que, aliás, no bom sentido da palavra, acho muito jesuítico. Parece-me que, às vezes, pode ser pedagógico  fazer perguntas que despertem curiosidade no aluno, com nobre apetite de conhecer a solução, dizendo-Lhe: “Leve essa questão para casa e venha me falar disso daqui a um mês, se quiser.” Seja  como for, o assunto da galinha ficou-me na cabeça e resolvi não perguntar ao padre, mas tentar encontrar a resposta. Cheguei à conclusão de que ele havia construído uma hipótese absurda, porque um ser intelectual não pode querer ser comido. E senti que essa resposta causava bem-estar à minha alma.

Segundo o raciocínio normal, haveria duas soluções: ou a ave teria horror ou gostaria de ser tomada como alimento. À primeira, poder-se-ia objetar: ela não está realizando seu fim? E à segunda: então a galinha está radiante de contentamento…? Percebe-se que qualquer dessas soluções, especialmente a segunda, causa mal-estar. Porém, a partir do absurdo do ente intelectivo ser comido,  compreende-se que, sob certo aspecto, ele poderia gostar.

Por exemplo, o homem não gosta de morrer, porque a morte é um castigo, mas pode falecer contente pela certeza de obter o Céu. Assim, também o chão, se fosse capaz de pensar, ficaria feliz de  ser calcado pelos pés do sapateador espanhol, pois realizaria sua finalidade de ser pisado.

Perguntar-se-ia: o ser intelectivo gosta de ser pisado? Ele foi feito para ser guiado, e isso lhe agrada, não porém para ser pisado, pois seria um domínio com brutalidade, contrário à sua nobreza.  Daí se compreende nossa alegria de termos a Igreja que manda em nós, nossa felicidade por existir uma hierarquia que nos governa.

Consideramos, assim, um importante aspecto da ordem do universo, abordando o papel dos anjos como guias dos homens e de outros seres corpóreos. E quero crer que um conhecimento de  ciências naturais seria incompleto, nem atingira toda sua beleza e pulcritude, se não chegasse ao ponto em que, de algum modo, se percebesse o “sinal digital” do anjo sobre a matéria.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 10/8/1979)

Revista Dr Plinio 117 (Dezembro de 2007)

Mistério de gloria e humildade

Conforme observava Dr. Plinio, o Natal, por sua natureza, “é uma festa diferente das celebrações da Páscoa, pois não exalta a vitória do Homem-Deus sobre o demônio e a morte, mas é o primeiro passo — quão humilde, quão velado, quão discreto — que o Rei glorioso haveria de encetar nos caminhos de sua dor, de sua luta, de seu triunfo”.

“Primeiro passo o mais elementar, pobre e indigente que imaginar se possa.

“Um casal posto em triste situação, considerada a ordem humana dos valores: Nossa Senhora na difícil posição de mãe prestes a dar à luz, montada num burrico, acompanhada por seu esposo, São José, modesto carpinteiro, desconhecido príncipe de uma Casa de David relegada à decadência. Ambos procuram hospedagem em Belém, sem encontrar quem os acolha. Não tendo onde ficar, vão para as montanhas vizinhas, para as grutas que servem de abrigo aos animais. E assim, no interior desse rude refúgio, na mais estrita intimidade, dá-se o fato mais importante da História: o Filho de Deus feito carne no seio puríssimo de Nossa Senhora vem ao mundo.

“Compreende-se, então, como a alegria do Natal é feita de contrastes. Uma grande intimidade, uma grande miséria, mas uma grande elevação. No meio da pobreza extrema, a maior riqueza do universo, o Filho do Onipotente reclinado em tosca manjedoura. O Rei da eterna glória ali está, e ninguém o vê, ninguém lhe dá valor, senão aquele venturoso casal. Glória representada no estado de um Menino débil, frágil, que chora, sente fome e estende seus tenros braços para a Mãe.

“Contraste de esplendor e abatimento! Festejado e adorado nos Céus por toda a coorte de anjos que O louvam num concerto magnífico e O celebram com brilho incomparável, o nascimento do Salvador acontece na Terra de modo tão apagado e despercebido do resto dos homens! Do resto, sim, à exceção da alma que vale mais que todas as almas abaixo da d’Ele, Nossa Senhora, reclinada e rezando ao seu Deus e Filho; à exceção do homem a quem estava reservada a honra de ser o pai adotivo do Unigênito do Altíssimo.

“É, portanto, sob um invólucro de miséria e de pobreza que nasce a maior de todas as glórias. Nasce à meia-noite, num lugar ermo daquelas vastidões do mundo antigo. Ao redor, apenas o silêncio, o abandono, o profundo repouso, tudo imerso nas penumbras noturnas. Dentro daquela gruta, aquele casal único, sob as coruscações de uma pequena fogueira, deitando luz suficiente para se ver o que ali se passava. E havia o Menino que era o Senhor de todos os séculos, o próprio Deus encarnado.

“A contemplação de tal cena nos move ao recolhimento e à quietude, como o Natal se deu na quietude e no recolhimento. Leva-nos a sentir em nosso interior as alegrias do advento de Jesus, mais do que a desejar proclamá-las a grandes sons. Infunde-nos um misto de reverência enternecida de quem toca tão altos mistérios, de quem não sabe agradecer a honra desmedida de partilhar a natureza humana com o Criador, e uma espécie de pena, de comiseração de Deus, porque Deus consentiu em fazer-se tão pequeno…

“Um respeito tão grande que chega ao temor, uma ternura tão profunda que quase nos desmancha a alma. Suma veneração, suma adoração, sumo carinho. Suprema glória, perto da qual não se é nada; suprema humilhação, perto da qual se é tudo.

“É a alegria do Natal, tão delicada que teme se expandir inteiramente, com receio de perder a sua doçura e intimidade. É a luz natalina, tão discreta que aguarda a meia-noite para refulgir dentro dela…”

Onde o "Lumen Christi" ainda cintila…

Distantes já se encontram os séculos que conheceram os esplendores da cristandade européia. Porém, ainda hoje, em determinados palácios, monumentos, igrejas e praças do Velho Continente  pode-se contemplar uma reverberação do espírito católico que os concebeu e realizou. Pode-se discernir neles um prolongamento de certos atos de virtude ali praticados, que marcaram esses  ambientes com qualquer coisa de imponderável que faz deles, no presente, uma espécie de relíquia. São restos e símbolos sagrados de uma época em que a ordem temporal, com seus aspectos  sociais e econômicos, procurou ser em tudo conforme com a Doutrina Católica. São reflexos da alma de gente batizada, que correspondeu aos desígnios da Providência e engendrou maravilhas  segundo a mentalidade da Igreja.

Sim, algo das graças da antiga Civilização Cristã continua ligado a esses lugares, à maneira de vestígios de um requintado aroma aderentes a velhos muros e velhas paredes. E quando algum  peregrino, admirador das grandezas de outrora, passa junto a essas paredes e esses muros, pode ele sentir o evolar-se do perfume, isto é, ter ideia daquelas graças que ainda pairam sobre tantos ambientes e monumentos da Europa.

É o que sucede quando se visita, por exemplo, a pequena cidade de Genazzano, a poucos quilômetros de Roma. Nela se percebe como conceitos de vida, princípios de organização social e de  existência pública, profundamente impregnados de religião católica, marcaram toda a edificação das casas, a disposição das praças, bem como o traçado de ruas e veredas. Sente-se ainda ali  palpitações de coisas do passado, de sociedade orgânica italiana, pervadida de tradições cristãs e de milagres operados pela imagem da Mãe do Bom Conselho.

*
O santuário é uma igreja em estilo renascentista, de tamanho razoável, com mármores muito bonitos e uma ornamentação que, felizmente, não tende para certos exageros disparatados da Renascença. É um templo digno e composto. Na nave à esquerda de quem entra aparece um gradeado, atrás do qual se ergue o altar onde se venera o afresco milagroso de Nossa Senhora de Genazzano. Cercada de toda a veneração que lhe é devida, a imagem exerce indescritível atração sobre o fiel que lhe dirige suas preces. E pode-se dizer que Genazzano é um extraordinário aspirador  e orações: rezando ali, tem-se a impressão de que nossas súplicas vão de fato para o
Céu. É uma verdadeira maravilha.

* * *
Complementando a imagem e o santuário, espraiam-se pela cidade ruas e casinholas prodigiosamente interessantes.

Um pitoresco urbanismo que, concebido para fazer caber Genazzano dentro de suas vetustas muralhas, exprime um estado de alma sadio, com qualquer coisa de inventivo e encantador, que o  situa acima de muitas “belezas” modernas…

O casario, contudo, é construído o mais ao léu que se possa imaginar, com aspectos bastante curiosos. Numa determinada fachada, por exemplo, o visitante pode avistar uma pequena janela com  enquadramento românico. Aquilo é um dedinho de Idade Média, e de Idade Média iniciante, porque o estilo românico ainda não é o gótico, embora já contenha o sabor deste. A janela é cheia de  fantasia, de poesia, de expressão, sem ser teatral.

Nota-se que quem a abriu teve uma preocupação apenas de arejamento, pensou tão-só no lado prático de bisbilhotar o movimento na rua e comentá-lo com o vizinho.

Não raras vezes é essa a origem de semelhantes detalhes. Mas, vai-se ver, eles se mostram pitorescos, poéticos, interessantes, cheios de vida, de uma espontaneidade ao mesmo tempo ousada e harmônica. O fundamento dessa poesia e dessa beleza está em que, sendo tais realizações animadas pela graça divina, acabam exprimindo uma harmonia, pode-se dizer, mais pensada por Deus que pelos homens.

Um teórico da Renascença afirmaria que todas as espontaneidades, caso não sejam controladas pela razão, redutíveis a normas e seguidas como sistema, redundam num horror. Ora, a tese  verdadeira, conforme a doutrina cristã, é outra: quando a alma está penetrada pela graça de Deus, realiza espontaneamente coisas de extraordinária formosura, que têm uma ordenação superior, e que expressam elevados princípios, nem sempre susceptíveis de serem convertidos em termos mais simples.

Assim, compraz considerar em Genazzano essa arquitetura, filha da virtude, libertada dos grilhões da arte sistemática, das regras coercitivas, e entregue à alegria de si mesma. Dir-se-ia um pouco  a felicidade do sol, da natureza amena, a alegria da vida cotidiana, alegria da saúde (que seus habitantes possuem de forma impressionante!), enfim, mil alegrias, mas sobretudo a alegria da Fé.

O que torna agradável o passeio em Genazzano é embeber-se dessa espontaneidade, é ouvir esse cântico de um povo batizado, é deixar-se tomar pelas coisas vivas,  claras, bruscas, pelo imprevisto e pelos aparentes entrechoques das harmonias. Variegados aspectos que a alma do homem contemporâneo tem necessidade de contemplar, de acariciar até, experimentando mais ou menos a sensação que nos colhe quando vemos surdir do chão uma água límpida, despoluída, que brota meio cantante das profundezas da terra. Tal é a vida, quando ela nasce do populino católico.

O mesmo populino que construiu as casinholas encantadoras, algumas aprumadas, outras trôpegas, essa aconchegada a um canto de muralha, aquela elevando-se sobre uma espécie de arcada, de  maneira que dá meio para o plano, meio para um precipício.

O mesmo populino que traçou essas ruas interessantes, alargando-se em pequenas praças, escondendo-se em becos, ou confundindo-se com escadarias de pedras diferentes, alheias a planos de  arquitetura. Pôs-se um degrau, outro e outro, sem a intenção de fazer algo pitoresco. Mas foi o que resultou do espontâneo. Às vezes aparece uma simetria, por acaso, sem ser calculada, porém  simpática, e faz com que o visitante descanse da espontaneidade anterior.

* * *

Se formos analisar o ponto inicial de tantas bênçãos, chegaremos à grande irradiação de um “lúmen” existente na Idade Média, do qual os primeiros reluzimentos já se haviam feito sentir no tempo  das catacumbas. Esse “lúmen” estava para o mundo dos primórdios do cristandade como uma lamparina com uma linda chama, acesa numa catedral tão grande que, apesar de sua maravilhosa labareda, não se notava capaz de iluminar todo o recinto sagrado. No volver dos séculos, foi ele crescendo em intensidade, até atingir sua plenitude na civilização medieval.

E tamanha força adquiriu que, quando entrou em decadência a Idade Média, esta continuou todavia muito carregada desse lúmen: o “Lumen Christi”, a Luz de Cristo, cujas cintilações ainda podem  ser admiradas nas pitorescas ruelas e esquinas de Genazzano.

Nosso Senhor

Houve um pintor alemão que em certa ocasião pintou Nosso Senhor figurando-O como o Bom Pastor, batendo à porta de uma casa. Alguém, então, vendo o quadro, objetou-lhe:
— O senhor cometeu um erro na confecção desse seu quadro, porque essa porta não tem fechadura.

O pintor respondeu:
— É verdade, mas não foi erro. Esta porta simboliza o coração humano, no qual o Redentor bate, e não há fechadura do lado de fora, mas só de dentro.

Realmente certo tipo de abertura de alma a pessoa só faz por si mesma, e ninguém tem poder para interferir.

Pois bem, o jeito de fazer com que as almas se abram para que a graça possa entrar nelas é por meio do sacrifício, da oração, da aceitação da dor com que nos deparamos em nossa vida, carregando a Cruz de Nosso Senhor amorosamente, compreendendo ser normal que o homem sofra. E ele só é grande na medida em que sofre.

Os homens que carregam os grandes sofrimentos por amor de Deus são os únicos grandes homens da História. Os homens decisivos da História são os que souberam sofrer tudo, por fidelidade a Nosso Senhor.

É claro que esse sofrer não é apenas passivo: deixar cair as pancadas em cima da cabeça. Mas é um sofrer ativo, quer dizer, significa muitas vezes tomar a iniciativa da luta, combater, arrostar a opinião dos outros, aceitar de ficar posto em situações difíceis, contrafeitas, contraditórias. Enfim, todo o sofrimento da batalha mais intrépida, ousada e cheia de iniciativas. Tudo isso é sofrer, e até sofrer por excelência. Mas é preciso saber sofrer.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/2/1965)

Cântico da alma inocente

Quem ouve o canto gregoriano pela primeira vez pode ser tomado pela impressão equivocada de que se trata de uma música no seu estágio rudimentar, exprimindo, com um “minimum” de  movimentação, estados de espírito mais comuns à condição social de uma civilização nômade, entregue sobretudo aos labores manuais, que apenas começa a dar conta de si mesma e de suas  vicissitudes de alma. E que, portanto, tem necessidades muito limitadas e circunscritas para serem expressas através de melodias e cânticos.

Daí uma música, enquanto sonoridade, pouco desenvolvida, um canto monótono, próprio desses espíritos primitivos e de uma liturgia igualmente elementar, sóbria, com movimentos escassos,  não obstante os adornos e paramentos eclesiásticos de indiscutível beleza.

Segundo essa concepção, a Igreja terá passado séculos e séculos atraindo almas neurastênicas, debilitadas ou não desenvolvidas, um beatério que correspondia à camada mais rudimentar da  sociedade, a única disposta a se sentir tocada e enlevada na tediosa ambientação criada pelo canto gregoriano.

Sem dúvida, uma ideia errada. No universo das maravilhas engendradas pelo espírito católico, o gregoriano aparece exatamente com predicados contrários aos do que essa falsa impressão lhe  empresta. Ele surge nos albores da Idade Média, numa civilização que ainda não conhecera os poetas clássicos nem a literatura convencional, que não usou ruge nem batom, que não pretendeu ter ciências esclarecidas e modernas, mas possuía um extraordinário ímpeto para o belo e para a pulcritude.

Tinha-se um vigor e uma fecundidade espiritual imensos, com uma profusão de percepções, de concepções primevas, de observações e contemplações que redundava numa produção artística e  social potentíssima, cada alma elevando-se no seu próprio espaço, erguendo-se como palmeiras, sem disputar terreno umas com as outras, formando uma linda e vasta floresta.

Um dos produtos dessa grandeza de alma foi o canto gregoriano. E se este não apresenta os acentos retumbantes das músicas que nasceram nos séculos posteriores, é porque foi concebido com o  cuidado da discrição, da humildade daquilo que precisa do seu isolamento, que evita de se expor à luz do sol do convívio com quem poderá entendê-lo mal, banalizá-lo e que, no total, não foi feito  para a intimidade com ele. Íntimos, são poucos…

Então, ele como que hesita em pôr a pleno som para uma igreja os seus sentimentos. Há nele uma certa “retenue”, assim como há, de outro lado, o receio de, à força de se exteriorizar, apegar-se   vaidosamente ao seu timbre.

Porque, de si, é tão inebriante a faculdade de se exprimir, que a pessoa se põe a falar e facilmente desliza para a conversa solta, pelo simples gosto da loquacidade. Cumpre refrear essa tendência,  com aquela harmonia suave e cadenciada do gregoriano, onde se nota a vontade de não aparecer, de ser modesto, de conservar o frescor da humildade e da sua própria inocência.

Talvez, pelo desconhecimento de algumas regras musicais adequadas, haja algo de realmente incipiente no gregoriano, que não chegou a se exprimir em seu completo desdobramento, mas que  aponta para ele. Seria como a orla de uma floresta. Dentro desta estão todas as gamas do heroísmo e da ternura, da reflexão e dos esplendores da sadia despreocupação.

Ele é sóbrio, e se não transpõe essa orla, carrega entretanto dentro de si a sua própria floresta, formidável que é uma potencialidade quase inexaurível de gerar civilizações e maravilhas em  qualquer parte do mundo. É a força da inocência aliada à graça, que transformou, por exemplo, os pântanos e vales mefíticos da antiga Europa em jardins salpicados de vida e de cor, onde, entre arvoredos e lagos lindíssimos, avantajam-se grandiosas abadias, imponentes castelos e majestosas catedrais. Uma Europa “gregorianizada”.

Agora, qual é o efeito do gregoriano sobre a alma do homem contemporâneo que sabe admirá-lo? Sobre a minha própria alma, portanto? Eu diria que dele emana uma forma de temperatura que  transmite todo o aconchegante do quente e todo o agradável frescor do frígido, de um frio que não corta nem maltrata, onde uma brisa tépida de vez em quando faz sorrir. Ele tem as temperaturas da vida, que estão para além das algidezes e calores do mundo mineral. É uma composição de outra natureza, que nos comunica refrigério, luz e paz; que ajuda a despertar e a dar vigor, em nossas  almas, a mil ordenações da inocência que o choque com o mundo contemporâneo — no qual encontramos uma selva com macacos, tigres, cobras e javalis, que são os assuntos alheios à nossa  salvação eterna — tenderia a fazer esquecer e a adormecer, desviando nosso olhar espiritual.

Outro efeito que o gregoriano produz nas almas é o de tornar-lhes patente o lugar do murmúrio na expressividade do homem. É falso que este, para se exprimir por inteiro, tenha de fazê-lo nos  registros mais altos de sua voz e nas ondulações maiores de seus movimentos. Não. Existem harmonias, composições, santidades por assim dizer supra-sônicas que se veriam maculadas e traídas  caso fossem descritas pelo som na sua máxima intensidade. Só o murmúrio é capaz de expressar o que é supra-sônico.

Por isso o gregoriano é o cântico do murmúrio.

E enquanto tal, aliás, faz ele sentir que esta é a terra de exílio para a qual viemos em conseqüência do pecado original. Há nele algo de penumbra ascética, de sonoridades meio penitenciais, de  almas do purgatório que passam sussurrando, gemendo e entoando canções de esperança. Se lhe prestarmos bem atenção, veremos nele a inocência que se sabe a si mesma em estado de prova,  tomando todos os cuidados consigo mesma. Há um quê de mortificado, de vigilante, dentro do celeste desembaraço do gregoriano, à maneira do  capuz colocado na cabeça de um frade jovem: lembra o aspecto penitencial, adverte contra o vazio das coisas terrenas, contra o mentiroso dos “élans” excessivos do próprio homem.

Assim é o gregoriano. Das alegrias exultantes do “Te Deum”, aos recolhimentos solenes do “Tantum ergo”, é a música que tem essa qualidade incomparável de exprimir a atitude perfeita, o exato grau  de luz da alma reta e verdadeiramente inocente quando  se coloca diante de Deus.

Plinio Corrêa de Oliveira

Stille Nacht

O Stille Nacht, a bela música alemã composta no século XIX, passou a ser a canção de Natal por excelência. Ao ouvi-la, tem-se a impressão de que o coro está na gruta de Belém e canta emocionado, mas canta baixinho para não acordar o Menino…

 

O comentário, evidentemente, abrange uma interpretação do Natal, visto com uma categoria extraordinária pelo povo alemão.

Há vários descendentes de alemães aqui, que poderiam falar a esse respeito com mais autoridade do que eu… Existe uma característica não muito própria ao latino, mas sim ao alemão: conceber as coisas de tal maneira que tudo quanto é altamente sacral vem acompanhado de muita calma e muito recolhimento.

A concepção italiana da noite de Natal

Um presépio elaborado, por exemplo, em certas regiões da Itália tem as figuras tomando atitudes muito enfáticas, tais como: o Menino Jesus, deitado na manjedoura, estendendo os braços a Nossa Senhora, a qual está debruçada sobre o Divino Infante, numa atitude de ternura profunda, mas borbulhante, que tende a se manifestar em gestos, e só falta falar.

Se o artista conseguir dar a Nossa Senhora e ao Menino Jesus uma impressão por onde alguém diga “Só falta falarem!”, ele fica encantado, porque o falar, se manifestar, é o auge da realização da cena. E São José — ao qual cabe, no diálogo entre Maria Santíssima e o Divino Infante, um papel mais modesto porque ele é apenas o pai jurídico do Menino Jesus — tem também uma atitude, que se não falta apenas falar, falta somente chorar ou sorrir, conforme a interpretação. Mas ele está se exprimindo.

É a ideia de que a emoção religiosa deve exprimir-se por meio de grande vivacidade. E, como é próprio a toda vivacidade, esta, por sua vez, precisa manifestar-se por pensamentos e palavras; os pensamentos devem ser vivos e as palavras enfáticas, calorosas.

A concepção alemã

É exatamente o contrário a concepção alemã da noite de Natal. Em todos os povos, a comemoração do Natal, para ser sacral, tem que produzir nas almas uma impressão profunda. Em certas partes da Itália se entende que essa sensação profunda deve manifestar-se, exteriorizando-se.

Mas para a mentalidade alemã, porque é profunda, tal impressão não deve expandir-se; estando no fundo da alma, o melhor modo de exprimi-la é o silêncio, o recolhimento e a calma.

 Quer dizer, enquanto para uns o auge da expressão é a palavra e os gestos, para outros, pelo contrário, esse auge está numa forma de silêncio e de inação, que dão a conhecer profundidades insuspeitadas da alma humana; e o próprio silêncio indica a importância que a pessoa dá ao assunto, para exprimir tudo quanto ela pensa. Trata-se de uma posição de alma menos exclamativa do que meditativa, elucubrante — eu diria quase filosófica ou teológica —, recolhida.

E a calma não é, entretanto, meramente científica, mas profundamente enternecida. Uma ternura indicando um afeto tão grande que prefere calar-se, a falar.

Então, se alguns têm a eloquência da palavra e do gesto, outros possuem a eloquência do silêncio e do recolhimento. São duas posições diferentes. Muitas vezes as coisas grandiosas, para o alemão começam na imparcialidade, na serenidade, piano, pianino, devagar, para acabar, em certas ocasiões, na barulheira wagneriana. Enquanto que no temperamento latino, do qual, sob alguns aspectos, o italiano — pelo menos de certas partes da Itália — é a expressão mais característica, tudo já se inicia no grande estilo.

Qual das duas posições é melhor? Compreendo que os italianos achem uma coisa, os alemães outra.

E a posição brasileira qual é? Entender perfeitamente ambas as posições e degustar tão bem uma quanto outra. É o que sinto em mim. Eu, como brasileiro — ainda mais tendo a loquacidade do nordestino nas minhas veias —, certamente falaria mais do que o alemão, e estaria um pouco aquém do italiano.

São variedades regionais, através das quais Deus quer ser adorado por cada povo. Não se trata aqui de escolher, mas de contemplar a beleza das variantes. Temos uma variante alemã. Não sei se existe alguma canção de Natal italiana. As francesas não possuem a beleza da alemã. Os Noëls franceses são muito bonitos, mas não como o Stille Nacht, que é propriamente a canção de Natal. A nós compete apreciar a música como vai ser apresentada aqui, característica de uma noite de Natal alemã.

O que o alemão sente na Noite Sagrada

O que o alemão sente na Weihnacht, na Noite Sagrada?

Uma grande calma, sobretudo numa cidadezinha da Alemanha onde foi composta a Stille Nacht. Houve uma dificuldade qualquer na paróquia, em razão da qual não puderam cantar a música sacra tradicional. Então, a pedido do vigário, solicitaram ao professorzinho secundário do lugar que compusesse uma musiquinha para a noite de Natal. E ele, sem julgar estar fazendo uma coisa genial, compôs uma canção que ficou a música de Natal do mundo.

Bem depois, pela difusão dessa canção, esse professor ficou célebre. Conserva-se a casa dele, que é visitada por turistas. Compreende-se muito bem o Stille Nacht, Heilige Nacht vendo fotografias da cidadezinha na neve, os tetos, em forma de cone, branquinhos, as casinhas marrons, tudo parecendo feito de pão de mel para se comer. E uma igrejinha como que feita de marzipã, um brinquedo de criança, como são as aldeias alemãs.

Imaginemos o caminho que conduz para a igreja, um pouco em zigue-zague, feito sobre a neve e bordejado de neve de ambos os lados, as casinhas todas com luzes acesas e suas janelinhas com renda e bem cuidadinhas, como os alemães fazem; o sininho que toca em certa hora e as famílias que aparecem todas agasalhadas — cada indivíduo parecendo uma bolota de lã —, criancinhas que vêm em fila, carregando lanternas — porque esses felizardos não têm iluminação pública. 

A neve, sem fazer barulho, cai em flocos ligeiros. Um imenso silêncio, recolhido, de uma noite sagrada, onde todo o mundo pensa no silêncio que cercava a gruta e a manjedoura. Meia-noite, Nossa Senhora e São José, sozinhos no estábulo. São José recolhido e Maria Santíssima num altíssimo êxtase; em determinado momento, não se sabe como, Nossa Senhora e São José ouvem um vagido: o Filho de Deus entrou no mundo, conservando intacta a Virgem, antes, durante e depois do parto. O maior fato da História, até então acontecido, se deu naquela manjedoura.

Nossa Senhora olha, pela primeira vez, a face de seu próprio Filho e se enternece extasiada; adora-O. São José não sabe o que dizer. Mas tudo é silêncio, eles não comentam nada, mas mil anjos ali estão em revoadas insensíveis. Sem que se ouça uma nota de música, mil músicas são entoadas dentro desse silêncio.

A união de alma da Virgem Maria com seu santo esposo atinge o auge em função do Menino, que nasceu d’Ela, mas sobre o qual São José tem um verdadeiro direito de pai, porque, como esposo, tem o direito ao fruto das entranhas da esposa. De maneira que sem ser o pai, ele tem o direito. Além disso, ele é da Casa de Davi e aquele Menino também o é.

Podemos imaginar o Divino Infante fazendo um gesto para São José, a adoração deste e a afabilidade com que Nossa Senhora lhe entrega o Menino Jesus, exercendo pela primeira vez a sua função de Medianeira.

Aquele silêncio só foi interrompido pela música dos anjos que, vindos do mais alto dos Céus, aparecem e comunicam aos pastores que nasceu o Menino-Deus. Essa música foi pastoril, quer dizer, com a tranquilidade, a candura, a inocência do ambiente pastoril.

Os pastores inocentes acordam e exclamam: “Que beleza!” E perguntam: “O que será?” Depois da explicação, eles começam a andar por extensões ligeiramente onduladas, numa daquelas noites brilhantes do Oriente Próximo, em que as estrelas aparecem num coruscamento quase excessivo para nossa sensibilidade de ocidentais. Uma maravilha! Um céu mais de Paraíso do que desta Terra. Chegam à manjedoura, e encontram Nossa Senhora e São José adorando o Menino Jesus. Tudo é silêncio, calma, harmonia, estabilidade. Temos a impressão de que, se lá estivéssemos, desejaríamos que aquela noite nunca mais terminasse, e por fim lá morrêssemos e fôssemos para o Céu.

O estado de espírito que Stille Nacht exprime

Foi esse estado de espírito — pastoril, angélico, sobrenatural, familiar, íntimo, de uma grande dignidade e um grande alcance metafísico — que a canção quis exprimir.

Vejamos alguns trechos dessa música.

 

“Stille Nacht! Heilige Nacht!”: Noite silenciosa! Noite Santa!

“Alles schläft, einsam wacht”: Tudo dorme, só está acordado

“Nur das traute hoch heilige Paar”: O venerável e altamente santo casal

 

“Venerável e altamente santo casal” — a adjetivação é caracteristicamente alemã.

Nota-se na alegria do Natal uma ternura meio lírica, na qual existe certa compaixão. Dentro do festivo há uma tristeza, devido ao frio e à pobreza em que nasce o Menino Jesus. Mais do que isso: é uma tristeza prevendo a Cruz. Há algo da sombra da Cruz que se projeta sobre a noite de Natal. De onde uma ternura com compaixão para Aquele que veio, afinal de contas, para ser o Redentor, sofrer e morrer.

 

“Holder Knabe im lockigen Haar”: Um Menino com cabelos cacheados

“Schlaf in himmlischer Ruhe!”: Dorme numa tranquilidade celeste

 

A nota de tranquilidade está acentuada de todos os modos. Trata-se de uma serenidade do céu, onde se movem as estrelas; não é a modorra da Terra, do menino preguiçoso.

 

“Stille Nacht! Heilige Nacht!” : Noite tranquila! Noite santa!

“Hirten erst Kundgemacht”: Pastores, aos quais foi feito o primeiro precônio

“Durch der Engel, Halleluja”: O Aleluia dos Anjos

“Tönt es laut von fern und nah”: Faz-se ouvir alto, longe e perto:

“Christ, der Retter, ist da!”: Cristo, o Salvador, está aqui!

 

Nota-se muito a impressão de um problema que se resolveu, pois uma salvação veio à Terra.

 

“Stille Nacht! Helige Nacht!”

“Gottes Sohn, o wie lacht”: Ó Filho de Deus, que sorriso cheio de amor

“Lieb’aus deinem göttlichen mund”: Sai de vossos lábios divinos

“Da uns schlägt die rettende Stund”: E bate para nós as pancadas da hora da Salvação

 

Quer dizer, os lábios se movimentam num sorriso, como se fosse um relógio que desse o timbre da hora da Salvação.

 

“Christ, in deiner Geburt!”: Ó Cristo, no dia de teu nascimento!

 

Vemos que é uma canção muito simples, popular, mas de um sentido profundo. Feliz o povo onde a cultura está tão entranhada em tudo, que um homenzinho do interior, de repente, abre a boca e sai tal música de seus lábios!

A cultura não consiste em ter somente gênios, mas em estar tão disseminada que floresçam coisas dessas inesperadamente, nos vários degraus da sociedade.

Uma magistral lição de vida interior

Tratar-se-ia de perguntar se os meridionais, sobretudo os de aquém-Atlântico, com sensibilidade borbulhante, têm algo a lucrar com isso. Eu responderia que bastante.

Os povos muito intuitivos são por demais extrovertidos e, por isso, se tornam facilmente agitados. Esta calma convida para o recolhimento, a interiorização, a fim de perceber a voz da graça dentro da alma e não estar a toda hora prestando atenção no outro, mas sim em Deus.

Uma magistral lição de vida interior nos é dada por essa música.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/12/1973)

Revista Dr Plinio 153 (Dezembro de 2010)