Dignidade e sapiencialidade de um monumento

As belas construções conforme o espírito católico são menos custosas que os prédios de estilo moderno, que se espalham pelas megalópoles atuais. Isso mostra que o dinheiro não é o principal fator na edificação de uma civilização, e sim a Fé.

 

Temos aqui o Palácio da Comuna de Piacenza, na Itália, edifício gótico onde funcionam a Câmara Municipal e a Prefeitura.

Agradável contraste entre a estátua e o edifício

O edifício é constituído de três linhas. A parte branca é de pedra, a de cima, com janelas, é feita de tijolos, e depois vemos esses enfeites no alto.

O número três tem uma misteriosa capacidade de beleza relacionada, de modo inefável, com a Santíssima Trindade.

Essas janelas todas dão para uma praça, onde vemos duas estátuas muito bem colocadas. Um modo banal de posicionar esses monumentos seria o seguinte: traçar uma linha reta a partir do meio desses cinco arcos e sobre ela colocar, bem no centro, uma das estátuas.

Ora, essas estátuas foram colocadas meio fora de lugar, sem muita relação com o edifício. Mas elas estão num ponto muito poético e constituem uma surpresa agradável para quem olha. Portanto, são bonitas no ponto onde se encontram. É um belo indefinível. Enquanto falo, estou procurando encontrar palavras para exprimir o que há de bonito e não as consigo encontrar. Ademais, a figura representa um cavaleiro numa marcha muito bonita, e este “movimento” contrasta agradavelmente com o que o edifício atrás tem de sério, de estático, de solene.

Nota-se que essa área de baixo é vazada e constitui uma espécie de passeio público que, provavelmente, acompanha o prédio em toda a sua extensão. Em certas regiões da Itália, onde chove e neva muito, esse espaço coberto é de grande auxílio para a população.

Encontramos nessa parte uma série de arcos. De um lado são cinco arcos e, logo acima, seis janelas, sucedidas por elementos decorativos, no topo. Essa sucessão de elementos que se repetem dá uma sensação de unidade ao edifício; entretanto, uma impressão, ao mesmo tempo, extremamente variegada. Porque na base está o arco gótico todo feito em pedra, com uma inegável nota aristocrática, forte, dando quase a ideia de uma porta de fortaleza ou de castelo.

Diversas gamas de maravilhoso

Já as janelas de cima são elegantes, distintas, mas não são tão nobres e nem tão fortes quanto os arcos embaixo. Elas têm qualquer coisa de boa burguesia rica e correspondem muito a uma classe meio nobre, meio burguesa que floresceu na Itália naquele tempo.

Analisando essas janelas, encontramos cinco colunas, mais uma vez. Essas colunas tornam leve a fachada a qual ficaria muito pesada com esses cinco arcos grandes que a compõem. Ademais, essas pequenas colunas constituem uma continuidade em relação ao que está embaixo, porque elas são de pedra também.

Por outro lado, combinam muito bem com a parte que está acima, constituída de tijolos. A mudança de materiais está habilmente preparada pelo artista, e as passagens de um lance para outro do edifício são muito definidas.

Bem no alto, nota-se este cuidado do arquiteto: encerrando essa parte de tijolos, vemos posta, na próxima passagem de um elemento a outro, uma barra com uma espécie de ameias, num estilo ainda gótico, que corta esse lance e faz com que se possa imaginar o edifício sem essa parte superior.

No alto surge o campanário cujos sinos serviam para alertar a população em caso de incêndio, guerra ou outras eventualidades.

Essas ameias são feitas com uma finalidade decorativa e não militar. Notem como são interessantes, altas e se abrem em cima como que para deixar escapar qualquer coisa que penetra no céu. E, como se não sentissem em si bastante poder de elevação, elas são superadas por esses elementos que, mais do que os outros, rumam para o alto.

De maneira que quem olha para o alto do edifício tem a impressão de que ele termina subindo para o céu e perdendo-se no horizonte do panorama.

O conjunto dá uma ideia de bom senso, de peso, de ordem, de solidez que exprime bem o que seria a pequena aristocracia de uma pequena cidade. Possui a dignidade e a sapiencialidade de um monumento da Civilização Cristã, e nisto tem qualquer coisa de maravilhoso, fazendo com que, ao compararmos este edifício com qualquer casa de plutocrata em uma megalópole moderna — cuja construção e materiais utilizados custam vinte vezes mais do que este prédio —, vemos, contudo, ser este aqui um verdadeiro palácio. Um príncipe pode morar aqui, mas não poderia residir em certas casas de plutocratas.

É, exatamente, a presença da sabedoria e da arte da Civilização Cristã.

Notamos neste Palácio da Comuna de Piacenza aspectos do maravilhoso. Não o maravilhoso no grande, mas no miúdo, para demonstrar que há gamas diversas de maravilhoso. E para provar também não ser por falta de dinheiro, mas sim de Fé, que não se constrói uma grande civilização, pois o dinheiro não é o principal fator na edificação de uma civilização.

Onde há Fé, essas coisas aparecem. Tire a Fé, elas morrem completamente.

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/3/1967)

 

Admiração: doutrina e exemplos

Em Dr. Plinio a admiração surgia da conjugação dos princípios com os símbolos que os representavam. Este fenômeno atingia seu auge na consideração das coisas sagradas e da Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo.

 

Todos nos lembramos dos cursos de Catecismo que fizemos, os quais eram inteiramente padronizados. Se compararmos os manuais de Catecismo de diversas épocas, veremos haver entre eles apenas mudança de ortografia, o que, aliás, tem seu lado muito louvável: “És cristão? Sim, sou cristão pela graça de Deus. Ser cristão é ser batizado, crer e professar a Doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo, etc.” É um escachoar de esplendores, mas apresentado sob a forma da estrita doutrina.

Parabolização

Aquilo causa admiração? Causa, e todos nós tivemos fugazes movimentos de admiração ao longo do curso de Catecismo, e depois, no decurso da vida, com aquilo que aprendemos na catequese. Quer dizer, de vez em quando, um ou outro aspecto vem à memória, achamos bonito, e aquilo fica depositado no espírito. Essa é uma admiração de caráter meramente doutrinário diante da qual o homem comum não se sustenta por muito tempo.

Minha posição admirativa perante esses princípios teve mais longevidade porque Nossa Senhora me deu, de um lado, certa profundidade de espírito e, de outro lado — coisa muito importante que, a meu ver, convém frisar —, uma facilidade de compreender estados de alma de pessoas que conheci, ou sobre as quais li ou ouvi falar, como também interiores de casas, aspectos de fachadas, paisagens, plantas, animais e uma série de coisas relacionadas com isso, o que me permitia fazer uma fabulação, isto é, transformação do princípio na fábula. Mas seria muito mais correto dizer “parabolização” daquilo que foi visto no Catecismo; é a aplicação dos princípios.

Princípios assimilados através de objetos

Dou um exemplo característico: enquanto, em toda a minha vida, tive desinteresse por calicezinhos de licor, pequenos, bonitinhos, mas que não me dizem nada, os cálices grandes, de um tipo que se deixou de usar já no século XIX, sempre me interessaram muito. Primeiro de tudo, os cálices usados na Missa sempre me falaram enormemente.

De outro lado, certas taças mais antigas que tinham a forma de cálice. Por exemplo, na Idade Média, cálices pesados, com cabos cheios de pedras preciosas, nos quais se punha um vinho generoso e abundante, e que eu, amigo do vermelho, gosto de imaginar o “Bourgogne”. Beber aquilo me parece que é nobre, dá alento ao homem, circulação à vida, a natureza se torna mais robusta. Sobretudo se o cálice é um pouco rústico, de um cristal grosso, quase uma rocha dentro da qual se cavou um cálice para ser usado por algum par de Carlos Magno… Parece-me muito convidativo.

Isso me fala muito da mentalidade humana enquanto realizando a síntese do pensamento. A forma do cálice me sugere um pensamento cuja conclusão e síntese estão no ponto onde o cálice encosta na haste.

No cálice da Missa está presente o holocausto por várias razões considerado, que se fecha efetivamente no propósito e na consumação do martírio. Levantar um cálice de ouro é de “toute beauté”!(1) A elevação do cálice sempre produz em mim muito efeito, porque a Fé me ensina que ali estão o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, e também porque, para mim, o holocausto feito na Missa se simboliza muito no cálice.

Então, vemos a verdade de Fé muito relacionada com um objeto a serviço desta verdade. Assim, há uma facilidade muito grande de guardar o princípio, por causa exatamente de um objeto que fixa a parábola ao princípio, dando a este uma espécie de vida que, para o meu modo de ser — para um indivíduo mais intelectual talvez não seja assim —, é absolutamente indispensável.

Lamparina do Santíssimo Sacramento, mármores e incenso

Um objeto que tem algo a ver com o cálice e produz em meu espírito um efeito análogo é a lamparina. Lamparinas bonitas, bem arranjadas, havia muitas antigamente. As lamparinas nem sempre têm um valor extraordinário, mas possuem um elevado aspecto simbólico.

Eu tenho, graças a Nossa Senhora, uma facilidade por onde, numa vigília noturna, por exemplo, diante do Santíssimo Sacramento, olhando para a lamparina, as considerações doutrinárias que faço pousam sobre a lamparina, tomando-a como símbolo, conferindo uma proporção humana àquelas considerações teóricas.

Para meu uso pessoal, isso significa muito e dá, então, aos princípios do Catecismo um complemento que me facilita admirar.

Mármores muito bonitos empregados em igrejas me dizem muito também. Havia igrejinhas paroquiais na São Paulinho, que eu conheci no meu tempo de menino, e diante das quais me extasiei a justo título. A Igreja de Santa Cecília, por exemplo, é igrejinha paroquial. Mas tem uma capela do Santíssimo Sacramento com mármores de Carrara, representando desenhos geométricos.

Fiquei encantando com aquilo. E aqueles princípios geométricos se assimilaram em meu espírito a uma lógica, a um vigor, a uma coerência, que a força conferida pelo Santíssimo, pela Comunhão, dá à alma e exige dela.

E, assim, mil outras coisas!

Por exemplo, o incenso é uma coisa fenomenal! Simboliza a alma humana que se eleva na oração, mas a alma sacrificada, dolorida, que está queimando, e faz subir a Deus uma oração de agradável odor. Mas também a homenagem respeitosa, nobre, aristocrática, que sobe até o trono de Deus.

E, depois que o incenso se espalha bem na igreja e dá a impressão de que as nuvens vieram povoá-la, tornando-a meio conatural com o céu. Assim, há uma porção de coisas que a mim falam muito agudamente e que, em toda a minha vida, relacionei com os princípios, facilitando a admiração por eles.

Admiração: conjugação elevada de diversos princípios

Em nós a admiração não é uma operação de Anjos, mas de homens, em que os princípios precisam estar associados, conjugados, relacionados com símbolos, e daí subir — por assim dizer, explodir — à admiração.

Isso eu fazia com uma multidão de coisas da vida. Por exemplo, certa ocasião meus olhos caíram num quadrinho colocado na parede de uma sala, o qual representava uma caravela saindo da laguna de Veneza e demandando o mar. Não pretendo nem um pouco dizer que se tratava de um grande quadro, uma maravilha, mas era um bom quadro. A água era apresentada num colorido muito matinal, uma espécie de azul ligeiramente esverdeado, que parecia quase uma pedra preciosa.

Por detrás, em contraste com a serenidade matinal do mar, uma acumulação de nuvens ainda luminosas, mas que para mim falavam de um porvir borrascoso para a nau. O navio parecia sair da laguna com a tripulação inconsciente dessas nuvens e toda enlevada com a água. As velas enfunadas pareciam exprimir o desígnio humano de navegar, enfunado pela esperança da navegação bem sucedida e pela alegria da viagem, da mudança, do lucro e do risco.

Daí uma facilidade muito grande de admirar aquilo. Não estou analisando o quadro enquanto quadro, mas a paisagem. Teria mais valor ainda se eu a visse, não numa tela, mas na realidade.  O valor da cena representaria mil aspectos nobres da alma humana, que eu passo a definir.

Primeiro, uma mobilidade leve e decidida rumo ao desconhecido, que é o passo da coragem, do destemor. Depois, uma espécie de altura; o mastro central parecia desafiar o mar, com uma atitude ligeiramente de senhorio em relação ao mar, como quem diz: “Eu te vejo de cima, e tu não me engolirás!”

Mas, de outro lado, as saudades pesam em algo. O barco não dava a impressão de estar saindo muito depressa. Ele parecia dizer um discreto adeus à terra. E, por fim, a borrasca atrás parecia afirmar que os navegantes estavam com a alma decidida ao risco. A cena lembrava estados de alma muito bonitos.

Ou seja, por detrás disso estavam princípios que se tornam mais fáceis de serem amados quando se fazem essas correlações.

Daí nasce a admiração. Porque assim é fácil admirar. Imaginemos que colocassem em nossas mãos um tratadinho intitulado: “Das virtudes do navegante”. Pode ser muito verdadeiro, apreciável. Eu gostaria enormemente de ter esse tratadinho para ordenar, dar o sentido profundo das impressões que aquilo me causou. Mas no “éclat”(2) da admiração, a impressão tem seu papel.

Grandeza enquanto atraindo, protegendo, perdoando

Gosto muito da imagem do Coração de Jesus que se encontra na sala de visitas de meu apartamento, venero-a muito. Mas ela é muito menos expressiva, como imagem, do que o quadro acima descrito.

Diferente é a impressão que me causa, não a imagem, mas o próprio Coração de Jesus. É, em seu aspecto afável e doce, a própria perfeição, de uma superioridade infinita em relação a qualquer pessoa que se achegue a Ele. Mas de uma dessas superioridades que nem sei como qualificar; é total! Os homens só não se surpreendem com o Sagrado Coração de Jesus porque são de pedra mais dura do que o alabastro com o qual foi feita aquela imagem.

É a grandeza enquanto atraindo, protegendo, perdoando, e não enquanto pondo o indivíduo no lugar e dando uma lição de hierarquia. Entretanto, a lição de hierarquia está ali presente. Quer dizer, é impossível olhar para Nosso Senhor sem cair de joelhos. Em qualquer leitura do Evangelho, queiramos ou não, fazemos uma imagem mental de Nosso Senhor. E esta imagem mental sempre leva a pessoa a se ajoelhar. E com o Coração à mostra, ainda muito mais.

Nosso Senhor dormindo no barco

Consideremos as várias cenas do Evangelho, que estão na linha do Sagrado Coração de Jesus. Nosso Senhor dormindo no barco, durante a tempestade, por exemplo.

É a coisa mais comum que pode haver. Um marzinho, um barquinho ordinário e um homem com uma túnica pobre — mas, segundo uma bela tradição, esta túnica era inconsútil e crescia com Ele! —, deitado e dormindo. E o sono de Jesus, que harmonia! Que doçura, que perfeição! Quanta reflexão dentro deste sono! Que elevação a deste repouso! O mérito santíssimo daquele cansaço que assim se desprendia d’Ele e subia como holocausto até o Céu.

O contágio do repouso, da paz d’Ele, para quem O olhasse. Nunca seria possível aproximar-se d’Ele e vê-Lo dormindo, sem imediatamente se ajoelhar. No que diz respeito a mim, uma vontade enorme de tocar n’Ele, e uma falta de coragem! Como é possível tocar n’Ele? Nem em suas vestes, em que tocou aquela mulher, eu ousaria tocar. O lugar onde se soube que Ele pousou os pés, se não deixou marca, ali eu ousaria oscular; se deixou, não ousaria. Porque é Deus!

Podemos imaginar como os cabelos d’Ele, durante o sono, se dispunham em torno dos ombros… Não ornamentalmente, mas com certa naturalidade. Porém, que efeitos produziam! Sua respiração perfeitíssima, enquanto dormia, exalando amor àquele que de olhos fechados Ele via! O que se passava durante o sono d’Ele, o que significa seu sono? Incontestavelmente dormia. Mas, não é como o nosso sono… Não será que Ele rezava enquanto dormia, dirigindo-Se ao Padre Eterno? A natureza divina d’Ele certamente falava. E o que falava?

Será que não teria conhecimento de que nos encontrávamos ali perto? E não estava nos comunicando graças durante este tempo, enquanto dormia?

E nosso furor se alguém viesse dizer que, do lado de lá do lago, há gente que trama a morte d’Ele. “Acontecerá qualquer coisa, menos que toquem n’Ele. Bandidos!” Creio que a única coisa que poderia distrair um homem do fato de Ele estar lá seria a ideia de que os assassinos estivessem ali perto. Mas, ainda nisso, entrava uma admiração sem limite. Como é maravilhoso admirar! Aí sim, sentir-se pequeno, que coisa maravilhosa!

Nisso entraria toda uma teoria da admiração!

Porém, isto tem uma recíproca: a pessoa não ser capaz de ver uma coisa sem reportar até os princípios. E, portanto, certas admirações que eu tive, deixando-me “écrier”(3) de encantamento.

As correlações ajudam a alimentar a admiração…

A grande casa de modas em São Paulo era “La Saison de l’Année”, que fazia vestidos para senhoras de acordo com a estação do ano. A casa não era francesa, devia ser de uma Da. Francisquinha, que parecia entender do “métier”; sabia, sobretudo, ganhar dinheiro, fazia muita fortuna. E sabia muito bem agradar senhoras ricas. Ela era “francesosa”.

Mas, então, chegavam lá na Francisquinha, com um pimpolho chamado Plinio, conduzido pela mão e desolado de ter que entrar na casa de modas. Sentia uma caceteação sem nome, tanto mais que a cliente e a Da. Francisquinha esqueciam absolutamente que o pimpolho existia. E embarcavam nas suas elaborações infindas. Porque a Da. Francisquinha devia fazer a crítica, mas quão amável e respeitosa para não perder a freguesa.

E surgiam novas sugestões. Então, as vendedoras traziam pilhas de revistas que colocavam sobre a mesa, e debatiam. De maneira que uma sessão com a Da. Francisquinha, o mínimo que levava era meia hora. Mas para um menino, ficar meia hora sem ar… Devemos imaginar tudo isso na São Paulinho pequena, muito rica — sempre foi rica — e totalmente europeizada.

Havia uma casa de flores chamada, se não me engano, “La Rose de France”. Vemos em tudo a influência francesa, a qual eu hauri de todos os jeitos, a plenos pulmões e de todos os modos. Como nas outras casas de flores, havia uma vitrine. De repente, “La Rose de France” resolveu pôr um sistema de umectar continuamente a vitrine, de maneira a conservar melhor as flores. E, ao longo de toda a vitrine, pequenos arcos de água caíam formando filas. Tornava-se uma espécie de cortina de água transparente, constituindo como que um babadozinho, mas que era uma coisa linda!

Lembro-me de que, indo ao colégio de bonde, passei em frente dessa casa de flores e, de repente, notei aquela modificação na vitrine e pensei: “Ah, que maravilha! Se pudesse, eu descia para ir olhar lá em frente. Não posso descer. Mas que coisa estupenda!”

Encantei-me, ­admirei enormemente porque há uma porção de estados de espíritos no homem que cortinas desse gênero me sugerem, e que a água disposta assim sugere ainda mais. Donde uma admiração, porque tem uma relação com a alma humana, com situações históricas que foram assim, etc.

Esse relacionamento fácil ajuda enormemente a admiração.  E eu me pergunto se nós todos não poderíamos adquirir isso, se quiséssemos.

…e esta, por sua vez, torna-se uma evidente defesa da pureza

A expressão “Santa Igreja” diz que a Igreja é santa. Intelectivamente se compreende o que é a santidade, mas há uma beleza na expressão “Santa Igreja”, que faz reluzir esta verdade. A Santa Igreja é uma coisa celeste, divina! A Santa Igreja Católica Apostólica Romana… A própria cadência dos adjetivos é de uma beleza extraordinária!

Um simples tratado de Teologia, para quem é insensível a isto que nós estamos dizendo, deixa a alma com todos os elementos para a admiração? Eu não creio. Estou longe de menosprezar o tratado de Teologia. Eu penso que ele, como contém a verdade expressa, é muito mais importante do que isso. Mas não quero dizer que a alma humana deve estar dissociada disso.

Inclusive o vocabulário humano é criado para exprimir essas coisas. Não é criado só para isto, mas também para isto, numa função que a meu ver é altamente conveniente ou necessária.

São Paulo afirma que os romanos, por não terem o desejo de amar essas coisas, caíram na imoralidade. A meu ver, isto que estou explanando é uma defesa da pureza; é até uma evidente defesa da pureza.

Entretanto, no espírito dos homens contemporâneos, a Revolução pôs a ideia de que se devem estancar os surtos de alma que vão nesse sentido, porque formam um homem fantasioso, inútil e desviado nas suas elucubrações.

Unir-se é ver, admirar e inalar!

Lembro-me bem de como o carinho de mamãe ajudou-me a fazer correlações como essas.

Eu acordava durante a noite com insônias, ia até a cama dela e tinha a inconsciência de me sentar sobre o peito dela, e abrir seus olhos com as mãos. Eu percebia que mamãe estava com muito sono, mas ela abria os olhos, olhava-me com afeto e imediatamente dizia: “Meu filho!” E tirava o seu travesseiro e me punha sentado sobre ele — era uma criança de dois, três anos — e começava a brincar comigo.

Ela tinha me salvado daquele “naufrágio” de estar acordado sozinho num quarto escuro, onde apenas um pouco de luz entrava por uma bandeira de uma porta. Ela me havia salvado do desespero. Mas com que abundância de bondade!

Quando vinha o sono, ela me deitava, brincava ainda um pouquinho comigo, e eu dormia. Naquele tempo eu já pensava: “Querer bem é assim, e com ela eu me arranjo!” Mas não era um pensamento utilitário. O querer bem é assim… Minha ideia era: “Eu preciso querê-la assim, e já estou querendo”.

Ao chegar a velhice dela, eu a ajudei no “naufrágio”. Porque a solidão naquela idade seria um naufrágio, do qual a solidão da criança, no quarto durante a noite, era uma imagem. E creio ter feito com ela o que ela fez comigo.

Vendo-a querer-me bem daquele jeito, eu aprendi com ela, nela, a querê-la bem do mesmo modo. Quando se vê alguma coisa em alguém e ama de maneira a modelar seu espírito de acordo com aquilo, isto é união.

Subindo infinitamente de ponto, quem olhasse Nosso Senhor dormindo na barca, ou era de uma ingratidão soberana, ou sairia de lá com outra alma. Porque unir-se é isso. É ver, admirar e inalar! Receber, acolher e modelar-se. Isto é unir-se!

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/10/1984)

 

 

1) Do francês: de toda beleza.

2) Do francês: brilho.

3) Do francês: gritar, proclamar fortemente.

Verdadeira cultura e tipo humano

Qual o verdadeiro conceito de cultura? Por que os “produtos” culturais destilados pela Civilização Cristã são tão superiores aos engendrados pelo paganismo? Durante uma reunião de trabalho, Dr.  linio fez algumas explicitações a respeito dessas questões. Oferecemo-las a nossos leitores tais quais ele as expôs.

 

Deus, organizando o universo, teve a intenção de Se fazer conhecer pelos homens enquanto causa de toda a criação, e conhecer-Se nos seus predicados divinos.

Portanto, fazendo conhecer as criaturas pelos homens, Ele faz conhecer não só cada uma em particular, mas faz conhecer a excelência do conjunto da criação, enquanto conjunto. Como diz o Gênesis, Deus, após ter criado tudo, repousou na consideração daquilo que Ele tinha feito e alegrou-se — é um modo de dizer — porque viu que o conjunto era ótimo.

Do conhecimento de todas as criaturas, para cada homem ficam as impressões e os conceitos. Mas fica uma impressão global do conjunto, que por sua vez dá um certo conhecimento, uma certa noção, leva a um certo conceito, que é mais alto do que o conceito dos seres tomados individualmente.

Cultura de uma região ou de um povo

Uma palavra cujo sentido é muito discutido hoje em dia é “cultura”. Na verdade, para quem tenha elevação de pensamento religioso, cultura é precisamente o conhecimento global que os homens têm do universo, acompanhado de um conceito e de uma sensação a respeito do universo que não é igual para todos, mas que tem uma certa acomodação dentro da objetividade, conforme cada pessoa, família, região, nação. Segundo cada qual, isso vai se matizando e tendo uma espécie de visão própria — sempre objetiva, embora diversa — do que é o universo, do que é Deus, do que são  os elementos componentes do universo e de que maneira refletem a Deus.

Isso caracteriza o espírito de um indivíduo, de uma família, de uma região, de um país ou de uma área de civilização. E quando caracteriza o espírito de uma área grande, pode-se dizer que tal visão é a cultura daquela zona.

A cultura vem a ser esse conjunto de conhecimentos e, portanto, também esse conjunto de mentalidades, fundamentalmente religioso, embora — e este ponto nos diversifica muito de certos modos de religiosidade — não exclusivamente eclesiástico ou não exclusivamente dado à oração, mas dado a um conhecimento religioso da coisa temporal.

Há, pois, um sentir das coisas afim com o pensamento, que enriquece a conceituação e é por ela enriquecido. Não se trata de algo meramente conceptual e doutrinário, como está no livro “Revolução e Contra-Revolução”, mas também de algo de sensível, que completa. A exposição que faço nesse livro não compreende o meu pensamento global.

Esse é meu pensamento sobre a matéria, o qual, como sempre, sujeito amorosamente, com alegria, à correção que o Magistério da Igreja julgue conveniente introduzir.

Deus opera dentro da chamada religião natural Há um pensador francês que chama essa visão de “lumière” [luz]. É mesmo uma “lumière”?

À primeira vista seríamos levados a negar, porque pensamos em “lumen” [luz] da graça, e a graça é sobrenatural.

Ora, o que acabo de expor se desenvolve na linha natural. Deus, quando faz ver o universo ao homem e, através do universo, faz ver que Ele existe e como Ele é, opera dentro da temática chamada religião natural. É a religião que não vem da Revelação, mas da razão humana. Tudo quanto expus até aqui vem da razão humana. Qual é o papel da fé e, portanto, também, qual é o papel da graça nesse conjunto? Qual é o papel da Igreja? O que é “lumière” aí?

Tratemos de esclarecer essas questões. Penso que a palavra luz poderia se aplicar aqui em dois sentidos. Um é o sentido da luz natural, a “lumen rationis”, pela qual o homem crê em Deus, crê na unidade de Deus, crê numa porção de dados da religião que lhe vêm da razão. Para dar adesão a esses dados naturais o homem não precisa da graça, embora esta possa ajudá-loe esclarecê-lo.

Para crer naquilo que é revelado é preciso a fé. Aí se faz necessário o dom específico da graça, um recurso sobrenatural pelo qual o homem se torna capaz de entender e de dar adesão ao que é revelado.

Devemos ainda levar em consideração que, quando Deus nos concede graças, estas se fazem conhecer por uma espécie de contato. Por uma sensibilidade proveniente da ação do sobrenatural em nós, sentimos algo que nos toca e nos eleva rumo às coisas divinas.

A experiência mística é uma das razões mais profundas da fé

Por exemplo, temos uma série de percepções do divino em nós, em várias ocasiões de nossa vida. Quando, às vezes, comungamos, temos uma certa percepção; às vezes quando entramos numa igreja onde está o Santíssimo, percebemos que Ele está lá. Ou quando visitamos, por exemplo, a Sainte Chapelle.

Não sou um homem emocional, até tendo ao contrário. Contudo, quando pela primeira vez entrei na Sainte Chapelle, já no pavimento térreo, achei-o, desse ponto de vista, tão sensibilizante de coisas sobrenaturais que tive uma verdadeira exclamação: “Ah!” Quer dizer: “Que beleza!” Por essa minha reação pode-se imaginar o que senti quando cheguei ao andar de cima, muito mais esplendoroso.

A expressão “que beleza!” exprime a percepção de um “pulchrum” [belo] sacral e sobrenatural. Não é uma consideração puramente estética como se pode ter, por exemplo, diante do Parthenon de Atenas, mas é algo que me toca favoravelmente, admiravelmente, ao ver, por exemplo, os vitrais da Sainte Chapelle.

Claro que a sensação do belo que está mesclada com isso pode ser estudada do ponto de vista natural e se podem encontrar aí as regras da estética.

Mas por cima há outra coisa que toca, e que a meu ver é uma das razões mais profundas da fé que tem o católico: é uma experiência mística, que é essa sensação do sobrenatural, e que completa —  na linha de conhecer a criação feita por Deus — a visão dessa criação, porque o ápice da criação é a graça. Isso faz com que o católico, nessa matéria, tenha um “acabamento” cultural — no sentido  da palavra cultural que expus atrás, de conhecimento do universo — em que ele percebe a presença da graça em coisas que às vezes nem são diretamente religiosas, mas nas quais ele percebe a raiz  religiosa. E sentindo a raiz religiosa, ele com a fé do carvoeiro brada: “Eu creio!”

Elogio à Torre de Belém é feito com emoção religiosa

Tantas vezes tenho elogiado a Torre de Belém, em Portugal. De cada vez faço-o com uma emoção religiosa. Não é como quem elogiasse, por exemplo, o Taj-Mahal, que é uma construção pagã. Olhando a Torre de Belém, a graça me toca a respeito de um monumento no qual se refletiu e se reflete a graça que levou os primeiros navegadores, primeiros missionários e primeiros conquistadores a empreenderem as epopeias deles, continuação da graça da reconquista do território português contra os mouros.

Tudo isso forma um sulco histórico só. Quando fui à França da última vez, fiquei longamente olhando o castelo de Chambord. Eu seria capaz de ficar ali indefinidamente fitando esse castelo, mesmo durante a noite. Não, porém, por causa de sua relação com Francisco I, mas por algo da França de Clóvis, da França de São Remígio, da França de Santa Clotilde, enfim, de todas as  Franças, da França da irmã de Luís XVI, que foi beatificada — é isso que me toca vendo coisas assim e que formam, portanto, o ápice da cultura.

Bem entendido, posso ver isso nas coisas temporais, mas sobretudo na Santa Igreja Católica Apostólica Romana tomada ela como um todo.

O tipo humano, o mais magnífico produto da cultura

E aqui se segue outra “lumière”, uma luz sobrenatural que se soma à luz natural na mesma linha e da qual nasce um dos mais magníficos produtos da cultura: o tipo humano. Cada civilização, cada cultura, cada graça para o estilo de civilização e de cultura que Deus quer para um país, ajuda a formar um tipo humano, e esse tipo humano é a obra-prima da Igreja e da sociedade temporal numa área de civilização.

A destilação de um tipo humano é a obra-prima de todo esse conjunto de causas e efeitos. Quando um povo, no seu conjunto, anda bem na vida espiritual, gera o tipo humano perfeito que Deus, quando criou o homem, queria que em certo momento da História fosse gerado.

Esse tipo humano não é só uma raça, não é só uma nação. É uma forma de perfeição espiritual que é o homem, a vida tomando o seu corpo como símbolo de sua alma e fazendo de seu olhar, de sua voz, de seus gestos, de todo o seu andar símbolos de sua alma. Manifestando uma alma que não é a de um santo que morreu e não ressuscitou, mas a alma de um santo que vive dentro da sua carne e dentro de seus ossos. Mas é um santo.

O tipo humano perfeito se exprime com aquilo que há de mais alto no homem, somado à graça e à cultura que atuam nele.

Esse tipo humano não deve ser considerado somente enquanto nacional, diferente em cada nação, como o chileno, o português e o francês. É mais do que isso. É que, dentro de um mesmo país, ou de uma mesma área de cultura, apresentam-se homens destinados por Deus a exercer funções diversas, e que, sendo portadores e retransmissores desse “lumen”, devem fazê-lo à maneira do seu país e à maneira do trabalho ou da função que exercem no seu país. De tal maneira que um homem que é pai de família, bom, santo, acaba tendo um certo modo de retransmitir esse “lumen” de modo próprio.

Por exemplo, próprio ao pai de família de tal século, de tal região da França, ou até de tal encosta de montanha. São tipos humanos que vão se destilando, aprimorando-se de acordo com as circunstâncias e a função na sociedade temporal, mas pela luz vivificante da natureza e da graça.

Exemplos de tipos humanos

Por exemplo, um professor. Ele seria um homem católico em tudo. É professor porque deve haver professores no mundo, deve haver pessoas que assumam a função de professor e, portanto, ele a  assumiu. Não se trata, portanto, de uma vocação divina, para a qual Deus o tenha chamado; mas Deus quis que houvesse professores, e que, por uma distribuição natural, alguns homens fossem professores.

Os que são, são-no por desígnio de Deus. Não é, pois, como a vocação sacerdotal, que é individualíssima. Mas é um chamado de Deus para uma certa categoria de pessoas que se distribuem naturalmente por aquela categoria. Ainda que ensinem apenas mineralogia ou cibernética, os professores têm a missão de ser um tipo humano diante dos alunos, e com certa riqueza de comunicação e de modelagem especial, quando são fiéis à sua própria vida espiritual e ao desígnio de Deus a respeito deles. Há uma função docente global da classe dos professores que é o “lumen” do professor, de maneira tal que a mente do aluno é particularmente tocada por isso.

Isso se dá em toda espécie de profissões. Por exemplo, nos vitrais e nas iluminuras da Idade Média vemos sapateiros, navegantes, calígrafos, com características que vão se superpondo [ao longo  da História] e elaborando tipos humanos.

Esses tipos têm densidades diferentes da ação da graça e da natureza, e deve haver um tipo que tem um requinte pelo qual a natureza e a graça nele fazem algo de mais “exquis” [requintado]: esse é o nobre. É propriamente um fruto da Civilização Cristã.

Comparemo-lo, por exemplo, com o marajá indiano. Fazemos deste uma imagem cristianizada, mas que não corresponde à realidade. Ele se traja com uma roupagem linda, mas não é capaz de usá-la com nobreza. Senta-se de modo deseducado. Porta um turbante lindo, no qual terá uma safira, um rubi, uma “aigrette” [penacho] magnífica, mas tem aquele olhar no qual não se notam as doçuras e as graças da civilização.

Tome-se, em contrapartida, um barãozinho das Ardennes, na Bélgica, ou um pequeno “squire”(*) inglês — são algo inteiramente superior. Foram destilados pela Civilização Cristã.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

 

* – Pequeno fidalgo que mora no campo.

Vaso de Eleição

Destinada desde toda a eternidade para gerar o Filho do Altíssimo, Nossa Senhora é o Vaso de Eleição cuja alma foi adornada de uma coerência extraordinária, uma unidade admirável, sem hesitações nem dilacerações, repleta de fé sobrenatural, de certeza e convicção na existência de Deus, de firmeza nos mais altos como nos menores princípios.

Alma soberanamente límpida e lúcida, soberanamente elevada e grande, soberanamente séria e profunda, na qual se comprouve de modo perfeito o Senhor do Céu e da Terra.

Plinio Corrêa de Oliveira

Nossa Senhora e a luta entre a Revolução e a Contra-Revolução – II

Diante de uma humanidade em extremo pútrida, quase inidônea para praticar verdadeiramente a santidade, vislumbres de uma misericórdia nova assentada na devoção a Nossa Senhora se fazem sentir. Naqueles que procuram ser bons existe uma luta entre os vícios e uma graça persistente, inefavelmente obstinada, indicando uma enormidade de graça que verdadeiramente não tem  proporção com nada, uma espécie de sinal precursor do Reino de Maria.

 

Vislumbres de uma nova ação de Nossa Senhora nas almas

Há uma coisa curiosa nas revelações a Sóror Maria de Ágreda(1), nas quais ela diz que no Apocalipse há  muitos conceitos especiais contidos de um modo simbólico, que ainda não foram desvendados, a respeito das relações de Nossa Senhora com os Apóstolos, especialmente com São João Evangelista. E só quando chegar a época em que os teólogos de repente entenderem as cifras o Apocalipse a respeito disso, eles conhecerão todo o tesouro que a Revelação contém, e o Magistério da Igreja poderá se exercer na sua plenitude quanto a esse novo panorama.

Isso vai muito de acordo com o que diz São Luís Grignion de Montfort. Quer dizer, forma um todo.

Embora essa ideia de Maria de Ágreda não esteja provada pelo simples fato de ela dizer, não tem nada de heterodoxo.

Haverá, presumivelmente, um momento em que isso vai se desatar, e esse conhecimento vai se consumar.

Então, nós temos este outro dado que é o progresso desse mistério de graça. Houve uma devoção a Nossa Senhora ao longo dos tempos que, em certo momento, pelo desejo d’Ela, começou a tomar uma consistência maior, a qual vai desenvolvendo dentro das almas esse mistério, e é o triunfo dele que acaba com o reino do demônio e estabelece o verdadeiro Reino de Nossa Senhora.

Tenho impressão de que há alguns vislumbres, por onde se compreende algo a respeito dessa ação misteriosa de Nossa Senhora nas almas. E muito ortodoxos, sérios, sólidos, embora à maneira de vislumbres.

Realidade simbolizada no Coração sagrado de Jesus

Houve tempo em que estive lendo a respeito das devoções ao Sagrado Coração de Jesus e ao Coração Imaculado de Maria –  inclusive encíclicas a respeito disso –, para responder à seguinte pergunta: Em essência, o que é a devoção ao Sagrado Coração de Jesus? E depois, por conexão: O que é a devoção ao Coração Imaculado de Maria? Nós sabemos que o objeto dessa devoção é o Coração enquanto membro do corpo divino-humano d’Ele, ou do corpo sagrado e imaculado d’Ela, mas que são, sobretudo,  símbolos de algo de ordem espiritual.

Então, qual é essa realidade simbolizada através do coração? As encíclicas respondem bastante claramente a respeito de Nosso Senhor Jesus Cristo, e não é difícil fazer a transposição ao Coração Imaculado de Maria. Resumindo: a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, como as encíclicas apresentam, é a devoção àquilo que nós podemos chamar o espírito de Nosso Senhor Jesus Cristo, portanto, a doutrina d’Ele; não apenas a doutrina, porém aquilo que é a sabedoria, a santidade d’Ele, quer dizer, uma doutrina não só enquanto concebida, mas possuída, personificada e vivida. Quer dizer, algo de lógico e algo contido nesta expressão meio imponderável que é o espírito de alguém como, por exemplo, o espírito de Elias.

O que é o espírito de Elias? A comparação até não é muito feliz porque é a graça de Elias. Mas vamos dizer, por exemplo, o espírito da Companhia de Jesus. O que é o espírito da Companhia de Jesus? No seu bom sentido, é o espírito de Santo Inácio. Porém o que é o espírito de Santo Inácio? É o conjunto de doutrinas especificamente dele e enquanto vividas por ele, possuídas por ele, simbolizadas por ele. De tal maneira que ele era o paradigma do próprio espírito dele.

Assim é o espírito de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas enquanto querendo disseminar-se, contagiar, conquistar, quer dizer, um espírito enquanto amoroso dos homens. E como em face de uma  humanidade pecadora o maior triunfo desse espírito não é a justiça, mas a conquista, acaba sendo a misericórdia. Porque pela justiça Deus manda o pecador para o Inferno, pela misericórdia Ele conquista o pecador. O maior triunfo de Deus está em perdoar e em converter.

Então, nós compreendemos o aspecto misericordioso da devoção ao Sagrado Coração de Jesus, que é tão acentuado na piedade popular. Aliás, também bastante realçado em muitos documentos da Santa Igreja: o Coração de Jesus enquanto fonte de misericórdia.

Similitude do Imaculado Coração de Maria

Paralelamente entende-se o que é o Imaculado Coração de Maria, nem é preciso tratar disso. Contudo, quando se presta bem atenção nessas duas invocações e devoções, nota-se haver meandros dentro dos quais cabem algumas coisas que se intuem, mas tem-se a impressão de que não foram inteiramente ditas.

Há uma espécie de comunicação de Nosso Senhor a quem Lhe cultua o Coração, maior, mais completa, mais inteira, do que quem Lhe presta culto nos outros mistérios. Como também há uma forma de comunicação mais plena de Nossa Senhora a quem Lhe cultua o Coração Imaculado. Os que tratam dessas duas devoções  dizem que elas são para os últimos tempos, os fins da História da Igreja, as últimas expansões da misericórdia.

Então, nós voltamos mais uma  vez à impressão de um acréscimo da graça que se opera por maravilhas de misericórdia, progressivamente e mais intensamente a partir do momento em que essas duas devoções foram reveladas aos homens. É, portanto, mais uma tinta para a ideia de um mistério de graça a se manifestar, a se declarar.

Sinal precursor de uma graça superabundante que unirá os homens a Nossa Senhora no Reino de Maria Tem-se a impressão de que essa graça, essa misericórdia nova incidiu sobre uma humanidade em extremo pútrida, quase que tornada inidônea, à força do vício, para praticar verdadeiramente a santidade. De tal maneira decadente do ponto de vista moral, que é uma coisa que indicaria dever vir o fim do mundo.

Vejo, entretanto, naqueles que procuram ser bons, a luta entre uma graça persistente, inefavelmente obstinada, e uma série enorme de repelões em sentido contrário, de recusas, de molezas, de  infidelidades de toda espécie e tamanho.

Não obstante, parece- me ver uma vitória  progressiva dessa graça, marcada de um modo muito interessante pela forma através da qual as pessoas progridem espiritualmente dentro de nosso  Movimento.

Nesse sentido, é tanta misericórdia que sou levado a ver nisso uma espécie de sinal precursor desta graça superabundante, que no Reino de Maria vai prender os homens a Nossa Senhora.

A meu ver isso não seria explicável sem esta graça dada aos fracos, aos pequenos, e que corresponde àquela divisa da Igreja de Filadélfia, conforme diz o Apocalipse: fraca, mas fiel (cf. Ap 3, 8).

Uma graça que sustenta na fidelidade aqueles que são muito fracos. Na humanidade mais capenga, mais pobre, descem graças contínuas as mais imerecidas que, entretanto, vão formando um fluxo de virtude absolutamente indiscutível.

Tantos casos de regeneração moral magnífica, de gente que passa de moleque de rua para o que há de mais recomendável em matéria de piedade e de virtude, e não se pode deixar de reconhecer haver ali um enorme sopro da graça, uma coisa eminentemente sobrenatural, mas comparável aos grandes sopros da graça que a História da Igreja registra. Naturalmente ainda uma coisa de  começo, nos seus primeiros vagidos, nos seus movimentos iniciais, mas existe. Tudo isto indica uma enormidade de graça que verdadeiramente não tem proporção com nada do que se passa hoje.

E esta graça é toda assentada na devoção a Nossa Senhora. Se tivéssemos uma diminuição da devoção a Maria Santíssima que fosse do tamanho de um milímetro – se em milímetros essas coisas pudessem se medir – nosso Movimento estourava agora. Tenho a impressão de que não dava tempo de eu acabar a minha conferência. De tal maneira tudo isso é nascido da devoção a Nossa  Senhora e vive do alento d’Ela.

A devoção à Virgem Maria está em relação a outras virtudes como o motor ao avião. O motor na frente leva atrás de si todo o resto. A devoção a Nossa Senhora é o motor de todas as virtudes. Estando em progresso, o resto vai.

“Pequena Via” e aurora do Reino de Maria

Creio não dever terminar esta exposição sem falar um pouco a respeito de Santa Teresinha do Menino Jesus, e da “Pequena Via” em conexão com isso. Se isto é assim, nós então passamos para uma outra ordem de ideias que parece colateral, mas que nada tem de colateral.

Santa Teresinha do Menino Jesus, em sua História de uma alma, tem também várias referências a uma intensidade nova do amor de Deus, tão poderosa que vai colher aqueles que são pequenos,  insignificantes, pouco poderosos em vários sentidos da palavra, e levá-los para a santidade.

Então, é uma maior efusão da graça divina enquanto conquistadora, da benignidade de Deus, enquanto contentando- Se com pouco para fazer grandes  coisas, uma maior manifestação da eficácia da graça, enquanto tirando o grande daquilo que é pequeno. Santa Teresinha diz que ela se imolou como vítima em holocausto ao amor misericordioso de Deus, para consagrar uma via que  incontáveis almas deveriam seguir. E que ela, no Céu, passaria sua eternidade fazendo cair uma chuva de pétalas de rosas sobre a Terra.

É evidente que as pétalas de rosas significam graças temporais como ela concede, mas para conduzir a graças espirituais, e que é esse maior amor de Deus de que nós acabamos de falar.

Deve haver uma relação entre essa esperança dela de um progresso do amor misericordioso de Deus e a aurora  do Reino de Maria.

Embora ela não tenha expressado isso em termos de Reino de Maria, percebia-se também que o fato deveria se dar depois de sua morte, com uma certa continuidade, não era para começar a aparecer dali a mil anos. Mas a morte de Santa Teresinha correspondia, de algum modo, ao desencadear disso. E que, portanto, a marcha progressiva do amor misericordioso no mundo deveria  ser feita a partir do caminho aberto por ela.

A “Pequena Via” acaba sendo – quando estudada em todos os seus aspectos –, a vários títulos, a via pela qual as almas pequenas de uma humanidade decadente seriam colhidas pela misericórdia e levadas à santidade.

É, pois, a espiritualidade específica daqueles   que querem ser filhos e escravos de Nossa Senhora, e subir nas vias da vida espiritual.

Temos, assim, uma relação entre a “Pequena Via” e essa aurora do Reino de Maria.

Uma novena a Santa Teresinha

Uma coisa puramente individual, mas vem ao caso lembrar: lá pelos idos de 1930, fiz uma novena para Santa Teresinha, em que eu pedia duas graças: uma era de me cair nas mãos um livro que desse andamento à minha vida espiritual.

E a outra, arranjar um bom dinheiro para não ter preocupações financeiras, e poder cuidar do apostolado sem aborrecimentos.

Fui logo atendido quanto ao primeiro pedido. Na semana em que iniciei a novena, fui à Igreja do Coração de Maria, para comprar um livro de vida espiritual. Eu só tinha dinheiro para adquirir um livro, então escolhi muito para, pelo menos, levar o que mais me convinha. E afinal de contas optei pelo livro de São Luís Maria Grignion de Montfort. Mas escolhi-o por uma bagatela, pois estava impresso em vermelho e preto, uma edição muito bonitinha, e porque,  em última análise, o vermelho sempre exerceu uma atração sobre mim. Acabei, assim, decidindo pelo Tratado da  Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem.

Levei-o para casa e comecei a ler. Então compreendi que era um paraíso! Santa Teresinha foi muito menos rápida em atender a segunda parte do meu pedido, e muito mais parcimoniosa também.

Mas a primeira ela atendeu generosamente. Tenho a impressão de que esta graça do Reino de Maria algumas almas muito eleitas de Nossa Senhora, desde Elias até o fim do mundo, tiveram e terão. Mas eram fatos individuais, que passarão a ser um episódio coletivo quando vier o Reino de Maria.

Elias foi o primeiro, e Eliseu teve porque recebeu o espírito de Elias. Aqui entra outro mistério. O que é essa comunicação do espírito, como se faz, qual é a realidade?

Creio que São Luís Grignion de Montfort teve isso de um modo magnífico. A meu ver, quem quiser ter uma ideia de como foi Elias, pode ler na Bíblia, mas também o livro de São Luís, porque essas pessoas prefiguram e seguem as outras, mais ou menos, como os anticristos prefigurativos ao longo da História.

Acho que São Grignion de Montfort foi eminentemente uma espécie de Elias. E que há assim algo à maneira de gotas de graças “eliáticas” que caem de vez em quando. E que haverá uma era em que essa graça de Elias vai ser patenteada para o mundo inteiro, e então será o Reino de Maria.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/7/1967)

1) Religiosa concepcionista, escritora mística, abadessa do convento de Ágreda, na Espanha (*1602 – †1665).

Quadros impregnados de sobrenatural

Ao aplicar seu dom do discernimento dos espíritos na análise de alguns quadros de Giotto, Dr. Plinio descreve, além de traços das almas de diversos personagens, a atmosfera inocente e sobrenatural que os envolve.

Giotto é um pintor italiano do fim da Idade Média, quase Renascença, admirável. Não sei se ele foi um santo como o Beato Angelico — que é o magnata da pintura da graça —, desconfio que sim e desconfio que não. Porque na literatura comum — a que chegou a meu alcance, nunca tive tempo de procurar um livro especial sobre ele — há um silêncio sobre sua pessoa. Ou porque ele foi muito bom, e os maus querem esconder; ou foi muito ruim, e os bons desejam ocultar. Mas há qualquer coisa que não está clara. Enfim, Giotto pintou muitos quadros, a meu ver intensamente impregnados de sobrenatural.

Inocência e dignidade ante a hipocrisia dos prevaricadores

Em Pádua, na Cappella degli Scrovegni, aparecem cenas caracterizadas por uma inocência ainda toda medieval, numa atmosfera sobrenatural magnífica.

Essa famosa capela situa-se num parque muito bem cuidado. Dentro, o chão é todo de mármore esplêndido, com um desenho agradável, um jogo de cores bonito. De um lado e de outro, vemos  estalas reservadas com uma espécie de gradeado de mármore também, muito bonito e bem trabalhado.

São Joaquim e Sant’Ana são os pais de Nossa Senhora. A construção dos fundos simboliza vagamente o que Giotto imaginava como Templo de Jerusalém, mas é muito mais algo medieval com  reminiscências românicas, ou com prenúncios renascentistas, do que qualquer outra coisa. Na primeira fileira, vemos um personagem vestido de cor-de-rosa que conversa com outro; ambos usam hábitos à maneira de batinas, o que era corrente para todo o mundo na Antiguidade. A cor de um desses trajes seria um pouquinho verde-ervilha, misturada com um pouco de dourado. Vejam  como a cor-de-rosa é muito delicada. Um desses deve ser sacerdote judaico; e ao lado do estandarte está São Joaquim.

Ele e Sant’Ana não tinham filhos e isso era considerado uma vergonha, porque quem não possuía filhos estava condenado a renunciar à esperança de ser um antepassado do Messias. A grande alegria era viver com os olhos voltados para o futuro, à espera do Messias que viria salvar o mundo, e seria o centro da História de Israel e da Humanidade. São Joaquim está sendo conduzido para fora, e vê-se na atitude dele uma certa vergonha.

Ele quer resistir um pouco, argumentar porque se sente inocente, mas o outro, muito mais corpulento do que ele e com a autoridade de sacerdote, parece dizer-lhe que não tem remédio e vá  embora. Atrás, um personagem muito mais graduado, com uma capa vermelha sobre uma túnica que parece meio dourada, o qual olha a cena como quem faz executar as suas ordens por um sacerdote de posição inferior. É a humilhação deste homem, que seria um antepassado do Messias.

Notem a cor do céu, a luz espalhada é inocente, não tem nada de comum com a poluição da luz nas babéis modernas, nem com a luz do Sol de hoje em dia. É uma luz diáfana, bonita, encantadora, que parece perpetuamente matutina.

São Joaquim, na humilhação em que ele está, parece muito virginal, muito digno. O sacerdote, meio misterioso. Vê-se que São Joaquim é um homem limpo, até fisicamente. Quanto ao sacerdote, tem-se a impressão de que, por debaixo dessas batinas, há sujeira. E mais suja é a figura de vermelho ali atrás. São Joaquim representa a doçura da Nova Lei, os outros exprimem a hipocrisia e a dureza do sacerdócio prevaricador, no fim do Antigo Testamento.

São Joaquim faz penitência

São Joaquim achou que tinha faltas. Era geralmente admitido que sobre quem não tivesse filhos pesava o castigo de ser estéril para o Messias. Então, ele vai fazer penitência, num lugar ermo, deserto. Vemo-lo aí numa atitude muito digna, triste, confrangida, de quem está fazendo um exame de consciência inútil, porque ele não consegue encontrar a sua falta.

E dois pastores vêm falar com ele. Notem como se vestia um pastor daquele tempo! Como estão bem trajados, e é acertada a escolha de cores nesse quadro penitencial! São Joaquim mais uma vez de cor-de-rosa. Um homem velho, cujo cabelo está entre louro e grisalho, profundamente compenetrado e envergonhado, pedindo perdão das faltas que ele não praticou. Ele não sabia, mas assim expiava as faltas que os outros têm, mas não querem reconhecer. E os pastores com certeza estão querendo oferecer alguma coisa para ele. No chão há umas ovelhas e na frente um cão pastor.

É interessante o seguinte: os pastores estão com trajes meio róseos; os rochedos, que indicam uma natureza um tanto desértica, têm qualquer coisa de róseo também. E a ingenuidade das arvorezinhas que nascem do rochedo é encantadora. Uma criança inocente, que fosse pintar arvorezinhas, pintaria assim, e nós sorrimos encantados com o frescor de alma que elas exprimem.

Mais ainda: o jeito desse cão pastor — que deveria atacar o lobo —, diante desse verdadeiro cordeiro que era São Joaquim, tem simpatia, se sente contente. Observem o salto desse cachorro, o jeito com que deseja ter uma carícia de São Joaquim, que não presta muita atenção nele porque está meditando.

No próprio cão há qualquer coisa de puro. Uma alma virginal que fosse pintar um cão pastor pulando, pintá-lo-ia assim. Essa candura toda agrada enormemente a quem gosta da inocência. O azul do céu contrasta com esse cor-de-rosa com uma harmonia magnífica! Um fato bonito e nobre Vem então a primeira gota de luz, no meio dessas trevas. Sant’Ana está rezando sozinha num  quartinho — que o autor procurou imaginar como seria naquela época — e recebe uma revelação, na qual lhe é dito que ela vai ser a antepassada do Messias, e então sua tristeza vai se transformar em super alegria. Uma criada está do lado de fora com uma espécie de roca — é frequente ver isso em coisas medievais — e alheia à cena. O modo pelo qual Giotto apresenta Sant’Ana inteiramente entretida na revelação, e a criada completamente alheia — esta é terra a terra, pensando nos seus fios, e aquela no terceiro Céu — é muito bonito.

É interessante notar também a ingenuidade do desenho: o quarto de Sant’Ana, um toldozinho de alvenaria, e em cima um terracinho para as noites quentes. Embaixo a criada trabalha. O Arcanjo São Gabriel, que foi quem avisou Nossa Senhora da Encarnação do Verbo, fala a São Joaquim e explica- lhe o que sucederá. O Santo, então, está oferecendo um sacrifício a Deus para agradecer essa grande dádiva, esse grande dom que ele está recebendo. Mas se vê que está com a fisionomia mais animada, mais alegre, e que ele é um sacrificador sério. E se tem a impressão que um bom número da bicharada que está perto dele vai perecer.

São Joaquim teve um sonho a respeito do futuro nascimento de Nossa Senhora. Não é um sonho na casa dele, mas ao ar livre; o teto é a abóboda celeste. Um Anjo desce e comunica-lhe o  nascimento de uma filha. E aqui está o mistério: o direito de primogenitura e os direitos  sucessórios na Casa de Davi se transmitiam entre homens, não entre mulheres; como é que ele, tendo uma  filha e não um filho, seria o avô do Messias? Mas lhe foi revelado, ele crê.

Perto de São Joaquim estão pastores, camponeses, vestidos exatamente como nas iluminuras medievais. É muito bonito o tom que ele dá para o céu, um azul que não é dia, mas uma espécie de claridade noturna que também não é luar, e que circunda um fato tão bonito e tão nobre quanto esse.

Jerusalém era fortificada, como todas as cidades daquele tempo, com ameias um pouquinho à medieval. São Joaquim e Sant’Ana se encontram na Porta de Ouro.

Nascimento de Nossa Senhora

Maria Santíssima nasceu e é apresentada pelas assessoras. Essa vestida meio de verde parece ser uma mulher especializada em assistir senhoras em lances desses; atrás será alguém da família que também está assistindo. E Sant’Ana recebe essa Menina que ela sabe ser a Mãe do Messias. Daí ela acolher a Menina, não como tantas mães recebem uma filha — uma bonequinha e começam a brincar com ela —, mas com profunda seriedade, contemplativa, olhando para a Menina.

A Menina está toda enrolada. De acordo com o hábito, deve ter sido banhada e depois apresentada a Sant’Ana, mas já com o aro de santidade em torno da cabeça. Porque como Ela foi concebida sem pecado original, e recebeu desde o primeiro instante de seu ser uma inteligência muito superior à de todos nós — de São Tomás de Aquino, de Santo Antônio de Pádua, de quem quiserem —, já tem em grau eminentíssimo a santidade. E Sant’Ana está recebendo Aquela que é o Vaso de Eleição, o Vaso Sagrado de toda espécie de graças, e ela olha como quem diz: “Desta nascerá o Messias esperado pelas gerações.”

Notem uns pormenores bem curiosos: a combinação de cores da cobertura de Sant’Ana é bonita? Tem qualquer coisa de contemporâneo. E, dentro de um quadro atual, o preto tomaria um realce que não possui no quadro aqui apresentado. E é agradável de olhar. Posta num ambiente moderno, esta cobertura me daria a impressão de meio modernosa.

Embaixo está a cena. É sucessiva, como história em quadrinhos: um quadrinho no fundo, um em cima e outro embaixo. Nossa Senhora vai ser deitada numa espécie de berço. Então há uma criada que está embalando — ou é um bercinho que deve fazer um pouco de “ninna nanna”, com certeza —, e outra criada faz com que Ela engula algum alimento. A mulher que se encontra no ângulo está com as mãos postas, rezando; ela percebe algo do extraordinário da cena. A profissional tem uma cara profissional, apenas muito atenta ao que está se passando.

São José, modesto, humilde, recolhido e calmo

Maria Santíssima vai ser apresentada no Templo. Essa construção é uma idealização de como esse homem imaginava a parte do Templo onde Nossa Senhora ia ser apresentada. Sant’Ana é essa de vermelho que está carregando a Ela. E São Joaquim me parece ser aquele que está no fundo, vestido com uma roupa um pouco violácea, com as mãos postas e um aro de santidade na cabeça, com barba, etc. Ambos são velhos e vão apresentar no Templo Nossa Senhora.

Mas o que importa especialmente no caso é o seguinte: fazer notar o escândalo dos que falavam contra eles porque não podiam ter filhos. Mas ao mesmo tempo ceticismo: “É verdade, afinal tiveram uma filha. Mas o que adiantava ter uma filha mulher?” De maneira que para eles era uma vitória, porém uma vitória que não dava em nada. Eles estão apresentando calmamente Nossa Senhora que já anda com os próprios pés, é uma mocinha.

Tudo no Templo era muito ornado com ouro, mármores, etc. Vemos ali candidatos à mão de Maria Santíssima, que se apresentam ao rabino levando ramos secos. Aquele cujo ramo florir é quem deve casar-se com Nossa Senhora.

Encontramos São José à esquerda. Aquele cujo ramo de fato vai florir está colocado de lado, é o último. Ele é modesto, humilde, tem o halo da santidade, mas não quer sobressair. Os outros desejam salientar-se e estão apresentando o ramo seco quase como cheques, pois julgam que vão vencer. São José está recolhido e calmo.

Evidentemente só o ramo dele florirá. Ele é quem vai ficar com a mão da Santíssima Virgem. Sua fisionomia é apresentada com certa perplexidade. Por quê? Porque ele tinha feito voto de ser virgem. Ele recebera uma revelação de que deveria casar-se com Nossa Senhora, mas não sabia como seria isso. Mas obedeceu e levou o seu ramo também. Podemos imaginar a surpresa dele quando o seu ramo floresceu.

“Sou muito sensível às cores”

Eu queria chamar a atenção para este ponto particular: eu sou — como já disse, é um modo de ser legítimo como outros — muito sensível a cores. E as harmonias de cores me interessam  especialmente. Giotto joga predominantemente com duas espécies de recursos cromáticos: algumas são cores muito clarinhas, delicadas. Vejam o verde bonito do primeiro portador de ramo. Um que deve ser ajudante do sacerdote tem uma túnica lilás e uma espécie de capa ligeiramente esverdeada, mas combinando muito bem. E atrás há outro portador de ramo cujo traje é de uma cor  que não sei definir, mas é feita de cores muito claras. São José está vestido com cores um pouco mais escuras, mas ainda são bastante claras. Entre eles há um com uma cor mais escura, ou melhor, bem menos clara. Seria uma composição de cor bordeaux com um pouco de azulado. As cores dos outros trajes quase não se distinguem, porque aparecem pedaços pequenos de roupa.

O rabino está com um traje de uma cor um pouco parecida com a daquele personagem de roupa mais escura. Há uma espécie de radicalidade nisso. É a radicalidade no claro e a radicalidade no carregado, que forma no todo um contraste interessante. Imaginem que esse sacerdote estivesse com uma cor clarinha, e o outro que está atrás também. Como ficaria tudo insípido! Esse tom escuro confere uma nota de seriedade ao clarinho, e é um equilíbrio de cores muito bonito.

A cena é tão característica, tão expressiva! Há uma espécie de empenho da parte dos pretendentes a se casarem com Nossa Senhora. Era nobre querer isso. Pode-se desejar alguém melhor do que Maria Santíssima? Entre as hipóteses  possíveis, no momento me alegra imaginar que todos os pretendentes rejeitados eram levados pela graça, e que depois se tornaram grandes devotos de  Nossa Senhora.

Mas o eleito já estava determinado por Deus, que operou o milagre na vara carregada pelo homem casto por excelência.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/11/1988)

Um “arco-íris” sobre a sociedade inteira

A Divina Providência nobilitou muito a classe operária ao fazer com que São José exercesse o ofício de carpinteiro. Ele era, portanto, um trabalhador manual e, ao mesmo tempo, pertencia à família real mais ilustre que houve na Terra, porque dela nasceu Nosso Senhor Jesus Cristo. E ser da estirpe do Redentor é a maior honra possível em matéria de genealogia.

Reunindo em si essas duas classes sociais, São José formava uma espécie de “arco-íris” que englobava a sociedade inteira numa grande harmonia.

Como operário humilde, ele acatou os seus superiores naquele tempo e respeitava a hierarquia social daqueles que estavam acima dele. Mas, por outro lado, como príncipe da Casa de Davi, também sabia qual era a sua missão e cumpriu-a magnificamente, contribuindo para a preservação, defesa e glorificação terrena de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/7/1989)

Mãe e Advogada nossa

Mãe do Homem-Deus, a Santíssima Virgem foi Mãe de todos aqueles que nasceram para a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mãe do Redentor, tornou-Se Mãe dos pecadores e desempenhou, assim, um papel que, de certo modo, o próprio Deus não poderia exercer. Ele é o eterno Juiz que deve punir os que O injuriam. Nossa Senhora, porém, é Mãe. E às mães não cabe a tarefa de julgar, as a de interceder.

Elas são as naturais advogadas dos filhos, e estão solidárias com estes até quando o pai os increpa a justo título. Assim, por mais miserável, imundo e repelente que seja o filho pecador, a Mãe de misericórdia o perdoa e roga por ele ao Senhor, aplacando a justiça divina. Advogada supremamente boa, Nossa Senhora, em favor de cada um dos pecadores que a Ela recorre, dirige a Jesus Cristo esta súplica: “Meu Deus e meu Filho, pelo vosso dolorosíssimo sofrimento no Calvário, pela minha Imaculada Conceição, pela minha perpétua virgindade, pelo amor que Vós sabeis que Vos tenho, peço-Vos: perdoai-o!”

Eis a missão de Maria Santíssima como nossa Mãe e Advogada.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/2/1971)

Vale de lágrimas no meio de montanhas cujos picos tocam no Paraíso – I

Deveria haver uma educação pela qual a pessoa compreendesse que esta vida é um vale de lágrimas, porém colocado no meio de montanhas cujos picos tocam no Paraíso. Ou seja, existe a possibilidade de altas felicidades, compradas a custo das lágrimas e do sangue. Não se trata de êxtases ou revelações, mas dos gáudios da união com Deus, prefigura da visão beatífica.

 

Como todos sabem, eu nasci na “Belle Époque”(1). Minha adolescência e mocidade transcorreram no período denominado “entre deux guerres”(2), no qual havia uma convalescença que não chegou a se consumar, um meio-termo entre a saúde e a doença, com algo do peso, mas também da alegria da convalescença, porquanto esta é um sair do estado doentio e um caminhar para a saúde que se aproxima.

Sem nenhuma complacência com o ilícito, Dr. Plinio apreciava o lícito material

Houve um período primevo no qual a minha inocência me dava muito o desejo de coisas extraordinárias, não expressas, mas nas quais entrava a graça. Porém pouco mais tarde a minha atenção foi, não inteira, mas fortemente, desviada desse campo de cogitação para os problemas referentes à minha perseverança, à interlocução e polêmica com o pensamento revolucionário, à necessidade de me agarrar na minha fidelidade para não me deixar levar e, portanto, para a luta.

Assim, essas cogitações superiores saíram um tanto de minha atenção, sem que jamais eu as recusasse. Mas era como se não coubesse na minha mente tanta coisa para pensar ao mesmo tempo. Então, isso ficou um pouco de lado como um quadro que se tem dentro de casa, do qual se gosta muito, mas que a vida cotidiana obriga a não estar prestando atenção sempre nas excelências do quadro. Assim também era isso dentro da minha alma.

Eu tinha a ideia de que dia viria no qual teria tempo de cogitar e de somar o que ia conquistando na luta, na polêmica, na concepção da sociedade temporal com aquelas alcandoradas e anteriores elucubrações, percepções, conaturalidades, apetências naturais elevadas, etc. A isso juntou-se o fato de que, ao começar a frequentar o mundo do “entre deux guerres”, ele me oferecia, mesmo dentro do lícito, muitas delícias. E eu, “truculento” em tudo, embora negando-me categoricamente qualquer complacência com o ilícito, era muito apreciador do lícito material: o luxo, a boa comida, o conforto, a vida agradável. Essas coisas passaram a se representar para mim como muito desejáveis e criavam a ilusão, mais ou menos implícita, de que o homem, possuindo virtude, prestígio e grande luxo, teria atingido o teto do que esta vida pode dar. Até certo ponto, isso projetava a poeira de um olvido sobre as apetências alcandoradas de outrora.

As felicidades apresentadas pelo mundo eram festivais do demônio

Nos primeiros cinco anos do que eu poderia chamar minha conversão, caiu-me nas mãos uma biografia de Santa Teresa de Jesus, em dois volumes, escrita por uma carmelita de Caen, na França. A descrição dos êxtases deliciosíssimos feita pela autora, acrescida ao fato de que eu estava numa fase onde nadava nas consolações muito mais deleitáveis do que o prestígio, conforto e luxo dentro da virtude, isso tudo me levou a compreender que havia outra gama de felicidade para a qual a minha alma estava desatenta, em virtude do curso das coisas.

Comecei, então, a procurar o que era isso. Para Santa Teresa de Jesus gostar tanto daqueles êxtases fantásticos, deveria haver na alma dela uma aptidão natural, que o sobrenatural satisfazia.

Fazendo a introspecção de mim mesmo, eu notava uma violentíssima vontade de degustar aquilo porque era a união com Deus, mas também – devo dizer – e muito, pelo gáudio inseparável dessa união. Quer dizer, essa união em si mesma, e salvo as noites escuras e provações, é cheia de gáudio como uma esponja pode estar cheia de água.

Então me perguntava: onde existe na minha alma uma apetência dessas coisas, tão dormente que eu não percebia, mas tão viva que, posto diante da descrição, levanto-me inteiro como que num bramido?

Muitos anos depois, lendo fragmentos de literatura grega, em geral, um pouco de Platão e, depois, Padres do Oriente, percebi que a alma deles se movia numa atmosfera de delícias do espírito. Nos gregos, eram delícias naturais, mas andando na linha da transesfera(3); nos Padres gregos, eram sobrenaturais e também naturais, visto que eles eram algum tanto herdeiros da cultura grega.

Perguntando-me qual o suporte dessas coisas, cheguei à conclusão de que aqueles arroubos da infância indicavam a zona natural da alma voltada para o desejo dessas graças, e na qual, entrando a graça, aquilo se desenvolve.

Deveria, pois, haver uma educação na qual a pessoa compreendesse o seguinte: esta vida é um vale de lágrimas, é verdade, mas um vale de lágrimas no meio de montanhas cujos picos tocam no Paraíso. Portanto, existe a possibilidade de altas felicidades nesta vida, compradas a custo das lágrimas e do sangue, mas existe. Essas felicidades não são as da “Belle Époque”, do “entre deux guerres”, nem do que se lhe seguiu – que eram festivais do demônio –, mas são felicidades presentes nessa zona da alma.

Ponto de inserção do amor de Deus na alma

O homem fica um imbecil, cego, tartamudo e coxo se ele não vive em função disso. A meu ver, sem isso a pessoa tem condições dificílimas para praticar a Religião Católica e perseverar nela, porque o ponto de inserção do amor de Deus na alma é esse. Essa é a zona de nossa alma mais voltada para Deus, e é nas felicidades dessa zona que a pessoa encontra parte de sua motivação para não querer o vício, que é o obscurecimento e a renúncia a essas altas felicidades. De outro lado, é essa zona da alma que dá coragem para as renúncias impostas pela virtude.

Para ser implantado o Reino de Maria seria necessário que a graça criasse um ambiente em consequência do qual as almas ficassem assim, e as virtudes fossem preservadas pela educação e por tudo, constantemente nessa direção. Aliás, aí está a temperança. Sem isso essa virtude é uma espécie de ascese e ginástica.

Entretanto é preciso notar que aqui, sem que nós tenhamos percebido, se encontra um dos pontos mais delicados da fidelidade à nossa vocação. Porque o thau(4), quando está no seu florescimento primeiro, abre um caminho para isso. Há um determinado momento em que os atrativos sensíveis deste caminho deixam de reluzir, e a fidelidade ao thau passa a ser mais ou menos como a fidelidade conjugal num casal em que o esposo e a esposa perderam a graça um para o outro, mas aguentam porque é preciso. Com efeito, há uma espécie de segunda etapa matrimonial com o thau – se ousássemos nos exprimir assim – que é despida dessas coisas. Tenho a impressão de que não seria tão despida, mesmo na maior noite escura, se esse senso tivesse prevalecido, por onde a decadência equivale sempre a um determinado momento em que a pessoa quis fechar os olhos aos esplendores do thau para prestar atenção nas coisas da Terra. São as vaidades e aflições de espírito que levam a isso.

Se para nós a perseverança é dura e penosa, a vida é fatigante e cheia de abrolhos, isso tudo tomará um caráter de suportabilidade e até de alegria – não a da fruição, mas dessas alegrias que chamam para Deus –, na medida em que conseguirmos recompor na nossa alma essa forma de amor de Deus, que corresponde a ter sentido, conhecido e degustado a semelhança de certas coisas com Ele, e nisto ter degustado a Ele.

Não me refiro a coisas materiais, mas às internas da alma, prefigurações da visão beatífica. Não se trata de êxtases, visões, mas é natureza e graça. Isto recompõe as nossas almas e nos faz andar.                v

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/5/1984)
Revista Dr Plinio 262 (Janeiro de 2020)

 

1) Período de cultura cosmopolita na História da Europa que começou no fim do século XIX (1871) e durou até a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914.

2) Período compreendido entre o fim da I Guerra mundial (1919) e o início da II Guerra (1939). A primeira metade deste período chamou-se “les années folles” (os anos loucos), devido essencialmente às rupturas que se verificaram no relacionamento social.

3) Termo criado por Dr. Plinio para significar que, acima das realidades visíveis, existem as invisíveis. As primeiras constituem a esfera, ou seja, o universo material; e as invisíveis, a transesfera.

4) Denominação da última letra do alfabeto hebraico, a qual tinha a forma de uma cruz. Baseando-se no capítulo 9 da profecia de Ezequiel, Dr. Plinio empregava esse termo a fim de indicar um sinal marcado por Deus nas almas das pessoas especialmente chamadas a rezar e agir pela derrota da Revolução, vitória da Igreja e implantação do Reino de Maria.

Um belo complemento do traje eclesiástico

O barrete e outros sinais distintivos dos trajes eclesiásticos ou civis foram sendo abolidos, mostrando a tendência para a república universal desejada pelo comunismo, e que representa o reino do demônio, onde não haja mais raças, línguas, culturas, nem civilizações diversas, e todos os homens constituam apenas uma ordem parda ou cinzenta, indiferente, de pessoas sem qualquer personalidade.

 

Lembro-me perfeitamente de minha reação, em menino, ao ver o barrete eclesiástico, utilizado pelos padres jesuítas do Colégio São Luís.

Os três gomos do barrete simbolizam a Santíssima Trindade

Eu tinha conhecido sacerdotes salesianos – religiosos, portanto – da Igreja do Coração de Jesus, e seculares da Igreja de Santa Cecília, que era nossa paróquia. Não conhecia outros, embora os visse passarem pela rua. Mas não sei por que razão, quer os salesianos, quer os padres seculares, eu nunca os tinha visto de barrete. Quando muito, os via usando-o ao entrarem para a Missa, mas tiravam logo ou já vinham com ele na mão. O fato é que o barrete não tinha me chamado especialmente a atenção.

Quando entrei para o Colégio São Luís, quase todos os padres usavam barrete, sistematicamente, sobretudo na época mais fria do ano.

As cátedras naquele tempo eram altas, tinham uns quatro ou cinco degraus, e o professor falava muito de cima, numa espécie de banco, um quadrilátero vazio e por detrás uma madeira revestindo a parede, formando assim uma espécie de cenário para ele. Era uma coisa muito respeitável e própria a prestigiar o magistério. Naturalmente isso desapareceu, como desaparecem as coisas boas sob o influxo da Revolução, perdendo o caráter honorífico, restando apenas o funcional. Era a morte gradual da noção de honra e o advento da funcionalidade não honorífica, onde não mais a função da honra, mas apenas o útil representa algum papel.

Foi nesse ambiente, acima descrito, da sala de aula com a cátedra antiga que tive uma impressão magnífica ao ver o professor usando o barrete. Pensei: “Que coisa digna, bem arranjada, como vai bem com a batina !” Ademais, sentado naquela cátedra, com a seriedade com que falavam naquele tempo, dando aula, quase se diria que o barrete era uma coroa preta colocada sobre a cabeça.

O barrete é encimado por três gomos, que simbolizam a Santíssima Trindade, dispostos de tal forma que um dos lados do barrete fica vazio. Entretanto – vejam como são as conclusões de uma criança! –, habituado a certo tipo de simetria, eu julgava que do outro lado o gomo tinha caído, e que por economia os padres não o tinham mandado colar. Era a explicação que eu encontrava… E lamentava comigo. Cheguei a pensar: “Se eu pedisse dinheiro a papai e mamãe para mandar comprar uns gomos para eles porem, não será que ficaria bem?” Mas eu percebia que havia qualquer coisa por onde não era para mexer nisso, nem perguntar, e deixar a coisa assim. Mais tarde entendi o porquê.

Quando a Igreja toca em algo ela faz maravilhas

Mas fiquei encantado e, embora eu fosse muito menino, veio-me ao espírito a seguinte reflexão: “Eu conheço muitos homens respeitáveis e de idade avançada, não eclesiásticos, que lucrariam tanto em usar uma coisa desse gênero!” Um ou outro até usava, para se proteger do frio, uma espécie de gorrozinho cilíndrico, em geral feito de um tecido muito rico e vistoso, com cores alegres. Ainda que o homem fosse de idade, ele punha isso na cabeça. Mas eu pensava: “Esses gorrozinhos que eles põem não valem nada. Veja o que os eclesiásticos põem na cabeça! Quem compôs esse barrete? Não foi nenhum desses padres. Com certeza, se eu perguntar quem foi eles não sabem, porque isso se perde nos tempos. Então, quem foi? Foi a Igreja.” E me lembro de ter vindo à mente esta reflexão claramente: “Observe como na Igreja, sendo divina e exímia em todas as coisas grandes, há uma qualidade por onde até nas pequenas, quando ela toca com a ponta dos dedos, faz uma maravilha!”

Assim, fiquei realmente encantadíssimo com o barrete eclesiástico. Imaginem a minha tristeza quando comecei a perceber que o uso do barrete era cada vez mais abandonado.

Além de compor bem e ser um belo complemento do traje eclesiástico, o barrete corresponde a uma ideia que desapareceu completamente. Quando eu era pequeno, os meninos de minha idade já usavam chapéu. Qualquer que fosse a espécie do chapéu, ao transpor o limiar de qualquer das portas de sua própria casa, a “fortiori” da residência dos outros, o menino tinha que tirar o chapéu. Usar chapéu dentro de casa era o auge da impolidez, da falta de delicadeza. Tratava-se de uma coisa toda convencional, mas era assim.

Porém, o convencional antes da Revolução Francesa era outro. O homem passava o dia todo de chapéu, e só o tirava diante de pessoas de muito respeito, ou quando ele se referia à Santíssima Trindade, Nosso Senhor Jesus Cristo, Nossa Senhora, Sagrada Eucaristia. Também quando entrava uma pessoa ilustre no salão, por exemplo um príncipe, um marechal de França, um membro da Academia de Letras, um cardeal.

A Revolução promoveu o desaparecimento do barrete, do chapéu, do uniforme

Essas são atitudes convencionais, não estão ligadas ao direito natural. Entretanto, é conforme ao direito natural que haja cerimônias. Como e quais elas sejam, na maior parte dos casos é uma convenção elaborada ao longo da História pelos costumes, pela índole de cada povo, etc.; não é imposto por uma lei moral, não decorre da ordem natural das coisas.

Por exemplo, a nós ocidentais parece a coisa mais normal do mundo nos cumprimentarmos apertando a mão. Mas no Oriente isso não é costume nem um pouco. O cumprimento é feito de longe, com certa forma de reverência, de vênia. É legítimo, são coisas convencionais.

Contudo, não é meramente convencional que haja cerimônias. E para atingir a ordem natural, a Revolução instituindo o igualitarismo tinha que promover o desaparecimento do barrete, como do chapéu, do uniforme, tanto para leigos como para eclesiásticos.

Eu assisti a essas três etapas: os leigos que deixaram de usar o chapéu, depois o paletó, passando já a usar bermudas. Os militares que abandonam o uniforme e se vestem como os civis, quando não estão em serviço, confundindo-se, então, com qualquer um nessas ocasiões.

Ora, era evidente que a Revolução solicitasse ao clero que abolisse a tonsura, abandonasse a batina e usasse apenas um distintivo. Depois, não usasse mais distintivo algum. Nessa demolição entrou também, necessariamente, o barrete que me deixou tão saudosas recordações.

No completo desaparecimento dos trajes distintivos das várias condições de vida já se fere, arranha-se a ordem natural, porque, embora não seja imperativamente necessário, é da mais alta conveniência para a boa ordem natural das coisas que as diversas condições de vida tenham seus distintivos.

É a razão pela qual, por exemplo, o homem e a senhora casados usam aliança. Quem não é casado não usa. Quem olha percebe logo qual o estado civil daquela pessoa. Isso é tão próximo da ordem natural, que a abolição de todos esses sinais tende para a república universal desejada pelo comunismo, e que representa o reino de demônio, onde não haja mais raças, línguas, culturas, nem civilizações diversas, não haja mais nada de diverso, e todos os homens constituam apenas uma ordem parda ou cinzenta, indiferente, de pessoas sem qualquer personalidade.

Estas foram as reflexões sugeridas pela saudosa lembrança do imponente barrete dos meus mestres jesuítas.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/7/1983)
Revista Dr Plinio 262 (Janeiro de 2020)