Símbolo da santidade, majestade e força – I

Analisando um leão heráldico, Dr. Plinio demonstra como, através de um ente criado, nos elevamos a considerações de caráter metafísico e sobrenatural, reconhecendo em seres materiais os símbolos de realidades espirituais.

 

Um dos modos pelos quais podemos fazer apostolado, hoje em dia, é levar as almas para a consideração da quarta via de São Tomás de Aquino(1).

Como abordar o tema

Há, entretanto, uma dificuldade que consiste no seguinte: alguns espíritos são muito sensíveis a isso; outros, pelo contrário, são pouco sensíveis. Sem dúvida, essa insensibilidade é produzida, em parte, pela Revolução, mas também por determinadas características legítimas do espírito humano, que devemos tomar em consideração.

Existem pessoas que sabem muito bem ver os reflexos de Deus numa determinada arte, mas não em outra. Por exemplo, são muito sensíveis àquilo que um fenômeno sonoro reflita de Deus, mas menos sensíveis aos fenômenos cromáticos. Outros têm grande sensibilidade ao elemento olfativo, para os quais o perfume diz extraordinariamente. Outros ainda serão mais sensíveis a uma produção literária. E assim por diante.

Quer dizer, há legítimas diferenças de espírito na consideração da quarta via, o que já estabelece uma primeira dificuldade para abordar o tema. Ademais, há demonstrações erradas que habituaram os espíritos a considerar as coisas de um modo equivocado.

Não dispondo no momento de músicas nem de perfumes, pareceu-me adequado fazer uma exposição da quarta via baseada na heráldica, disciplina nascida na Idade Média que, através de sinais e símbolos, exprime determinadas realidades referentes à vida de um indivíduo, de uma família, província, nação, instituição, enfim de qualquer entidade que se possa conceber.

Analisemos o estandarte que temos diante de nós. Começo por dizer como o símbolo que o compõe não deve ser considerado: o leão é o mais forte dos animais; portanto é legitimo que ele tenha sido escolhido como símbolo da fortaleza. O sangue derramado pelo homem é uma manifestação do martírio e da dedicação. De maneira que é legítimo que, quando se queira simbolizar a coragem levada até o limite do heroísmo do mártir ou do guerreiro, se use essa cor. Então, por essas razões, o nosso estandarte fala de combatividade e de heroísmo: a combatividade do leão e o heroísmo de quem verte o seu sangue pela causa que defende.

Este é o modo pelo qual o assunto não deve ser examinado. Não que seja errado dizer isso, mas não é sob este aspecto que o tema precisa ser abordado.

O leão heráldico, quintessência de todos os leões

O leão é um animal cuja figura foi acolhida e manipulada pelos desenhistas da heráldica, que procuraram fazer um leão evidentemente parecido com o que se vê nas selvas, mas no qual os traços característicos foram acentuados, de maneira a serem, por assim dizer, estilizados. Estilização é tomar aquilo que é característico e representá-lo de modo acentuado.

Em nosso estandarte, por exemplo, vemos que os traços característicos do leão foram acentuados pelos heraldistas. Portanto, algo que nem todo leão tem e até muito poucos leões possuirão, talvez nenhum tenha no seu conjunto, o heraldista soube, por um efeito da arte, destacar de maneira a modelar um leão que é, ao mesmo tempo, a quintessência de todos os leões. Um leão exatamente assim não existe em nenhum lugar. Em outras palavras, é um leão ultra-real, de um lado, pois o que há de mais real no leão está expresso aí; mas, de outro lado, é irreal porque nenhum leão é realmente assim.

Este leão, assim modelado, pode ser considerado como símbolo de um determinado tipo de força, não por se parecer com um animal selvagem, mas é outra ideia. Há diversos animais na natureza que podem simbolizar a força: a águia, a sucuri que estrangula um cordeiro e o come, o touro, o elefante, o rinoceronte. Mas nenhum animal simboliza o tipo de força simbolizada pelo leão.

Tomemos, por exemplo, o rinoceronte. Um animal feio, sem nenhuma arquitetura. A figura dele é uma massa de carne carregada por umas patas furibundas que escoiceiam estupidamente. Tem uma agressividade cafajeste, de botequim. É a força bruta na sua estupidez.

O leão representa, antes de tudo, uma força suprema na órbita em que ele se move. Entretanto, ele é o primeiro não apenas por ser o mais forte, mas porque é o mais glorioso. Ele tem a sua cabeça cercada por um halo de glória, porque aquela juba não se compõe de pelos desordenados como os do rinoceronte, do búfalo, não são pelos cheios de bichos, de pedaços de folga, nem nada disso, mas limpos. O leão é um animal de corte, bem arranjado; seus pelos caem como devem cair e formam uma espécie de auréola meio áurea em torno dele. Ele se move e os meneios de sua cabeça são cercados pelos movimentos prestigiosos da sua melena.

O olhar dele é fronteiro e já tritura antes de as mandíbulas terem triturado, dando a ideia de que sua força está na alma mais do que no corpo, o que é propriamente a força bem ordenada. É a força de espírito que move a do corpo. E não uma força do corpo imbecil, governada por um espírito insuficiente para regê-la; isto é uma degradação, uma supremacia da matéria sobre o espírito.

Espaços vazios de criaturas, mas cheio de vitória

Disseram-me que o leão não enxerga coisas pequenas, só as grandes. Isso que poderia parecer uma insuficiência tem também seu aspecto simbólico. Há um provérbio latino que diz: “Aquila non capit muscas” – A águia não pega moscas. O leão não olha coisinhas. Há outros bichos que cuidam delas; ele é feito para as coisas grandes, é superior em tudo.

O focinho do leão não é vilmente achatado, nem uma ponta bicuda. Tem uma nobre elevação que vai bem com a conformidade da face, cobre inteiramente a mandíbula que aperta sem nervosismo, mas quebra e come com a naturalidade com que um de nós comeria, por exemplo, uma sardinha. Assim a mandíbula do leão fará com o osso de um animal considerável. Ele tritura e ainda passa majestosamente sua língua rubra, bonita, por aquela beiçorra. A língua faz uma volta elegante, movendo-se com beleza, enquanto ele engole. Depois o leão fecha a boca e entra numa espécie de quietude: “Agora digerirei”. Está terminada a mastigação, a luta; a deglutição já tem algo do repouso, em seguida vem a digestão majestosa, com a serenidade da vitória conquistada. O leão paira nos espaços vazios de criaturas, mas cheio de vitória; e seu repouso é repleto de reflexos áureos.

Delicadeza e força

O passo do leão é dominador, mas não o domínio estúpido com que o elefante esmaga a formiga. Uma catástrofe para a formiga. Aquela montanha de carnes achatando vilmente um pequeno bichinho cheio de complexidades e de organicidade. É a derrota da subtileza diante do fato consumado, estúpido e brutal.

O leão, não. As patas dele não foram feitas para esmagar, mas para andar, correr e saltar. De maneira tal que ele salta com certa delicadeza. Não, porém, a delicadeza do frágil. Uma das belezas do leão é o modo pelo qual ele alia a delicadeza à força. O jeito da pata do leão pisar o chão é todo um movimento muscular lindo. Ele avança a pata e toma posse do chão, sem esmagá-lo; cria uma soberania de alguns centímetros em torno da pata, simplesmente pelo fato de pousar sobre ela. E depois aquela pata se encolhe e dá apoio a ele. Vê-se o serviço que a pata presta: carregar aquela massa possante. Mas quando ele se equilibrou inteiramente, a pata já está distendida e pronta para caminhar. E vai aquilo assim, numa conquista progressiva dos espaços inocupados, que é uma verdadeira beleza. É metódica, serena, não admite discussão, e quando chega a hora do leão correr é diferente. Porque aí aparece qualquer coisa de raposa dentro do leão. Ele se torna perspicaz, se assanha todo, começa a trotar preocupado e sôfrego. Cada vez que ele se aproxima mais, o olhar vai fixando e já engolindo o que as patas ainda não alcançam. O ataque é régio porque nesse momento ele vira bípede. E entra com toda a sua estatura.

Vemos nesta figura heráldica o leão que levanta as patas e já vai agarrar, mas cada pata se transforma numa espada, numa arma. Com as garras assim erguidas está feito o assalto, numa espécie de indignação tão majestosa e direita que se diria estar o leão indignado contra quem ousou não se sujeitar a ele. Essa atitude tem algo de régio. Assim Luís XVI deveria ter recebido as multidões revoltadas que atacaram o Palácio de Versailles.

A cauda, um pouco acima da cabeça, dá ideia de triunfo

O corpo do leão tem isto de muito bonito, que os nossos estandartes reproduzem bastante bem. O leão é tão arquitetônico que ele possui como que duas zonas distintas do corpo: a zona felpuda, a da cabeça, é a fachada do leão. Assim como um prédio, além da fachada, possui outras alas, o corpo do leão tem uma parte que é inteiramente raspada e lisa, de uma forma que, à medida que vai chegando para trás, se adelgaça. Nele o peito é mais saliente. A outra parte do corpo vai se tornando mais esguia até às patas traseiras, que já participam do ímpeto de combate. Quase não se percebe que as funções digestivas ocupam uma parte no corpo do leão. Ele todo é uma máquina de guerra, em que a fisiologia passa por uma coisa mais ou menos irreal. Nem se pensa em fisiologia, quando se vê um leão andando. Ele parece pairar acima das contingências fisiológicas, tão esplêndido ele é.

A cauda do leão foi aproveitada no nosso estandarte para ser um ornato a mais. O rabo é frequentemente feio nos animais. Só há dois tipos de animais em que o rabo é bonito: o cavalo e certo gênero de pássaros, a começar pelo pavão, naturalmente. Esta ave me encanta. A mentalidade moderna rejeita os pavões, pois para ela eles são o símbolo do fausto inútil que não trabalha, da coisa preciosa que vale pouco dinheiro. Se a cauda do pavão fosse feita de cheques, esse gênero de pessoas a compreenderia melhor, mas sendo de penas tão vistosas e bonitas, o que pode valer aquilo?

O artista que representou esse leão segundo a tradição heráldica aproveitou a cauda do animal como uma manifestação de galhardia a mais. Eu fiz questão de que essa galhardia fosse tal que a cauda ficasse um pouquinho acima da cabeça, dando a ideia de um triunfo. Quer dizer, mesmo aquilo que se arrasta normalmente pelo chão, o leão tem a vitalidade para levantar de um modo nobre, representando quase uma flâmula ou uma bandeira, que ele carrega para dar a ideia da leveza de seus recursos, depois de ter dado a ideia de toda a majestade de sua “personalidade”.           

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/1/1973)

Revista Dr Plinio 251 (Fevereiro de 2019)

 

1) Cf. Suma Teológica I, q. 2, a. 3.

 

A gota d’água no cálice de vinho

Ainda sobre o papel do nosso sofrimento (que Dr. Plinio aborda neste número com base na vida dos pastorinhos de Fátima), mais uma consideração: ele nada seria, se não se associasse à Paixão  redentora de Jesus Cristo, que o vivifica e lhe confere méritos sobrenaturais abundantíssimos.

Embora os merecimentos da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo sejam superabundantes, dispôs a vontade divina que deles se aproveitassem os homens, em muitas circunstâncias, unindo seus  próprios sacrifícios aos do nosso Redentor. Assim nos ensina a Santa Igreja.

Donde, para conseguir tocar e converter determinada alma, por exemplo, seriam suficientes os méritos infinitos alcançados por Jesus, sem os quais nada obteríamos. Porém, é do superior desejo  de Deus que essa conversão se efetue mediante o concurso dos nossos sofrimentos, associados aos de Nosso Senhor.

E se almejamos, portanto, uma imensa transformação moral para a sociedade contemporânea, ou um “renouveau” da vida da Igreja, cumpre que soframos todo o necessário, nos consumindo nesse  sofrimento como uma tocha ardente. Tais são os desígnios de nosso divino Salvador, para que, de fato, a dolorosíssima Paixão d’Ele se verificasse útil a essa alma, àquele grupo social, ou mesmo àquele ciclo de civilização.

A essa necessidade de unir nossas dores às de Jesus, costuma-se aplicar um dos muitos e lindos simbolismos da liturgia eclesiástica. Trata-se da gota d’água que o sacerdote verte no cálice com  vinho, durante o Ofertório, a qual representaria o sofrimento humano depositado no oceano do sofrimento divino, para, juntos, serem imolados ao Padre Eterno.

Quiçá esse simbolismo não tenha fundamento na história litúrgica, porém exprime ele adequadamente um pensamento piedoso suscitado por esse ritual da celebração eucarística. E sempre que  observo o padre fazer essa mistura da água com o vinho, lembro-me dessa ideia muito formativa: é a gota do nosso sofrimento no mar das dores de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Por outro lado, reveste-se de extrema beleza o fato de essa gota d´água, uma vez dissolvida no vinho, ser também transubstanciada.

Quer dizer, o que não era matéria para consagração, acaba se tornando uma só coisa com a espécie do vinho e se transubstancia no Sangue preciosíssimo de Cristo.

Isto manifesta bem o valor descomunal de nossos méritos, de si tão minguados, quando unidos aos méritos infinitamente valiosos de Nosso Senhor.

O sofrimento humano completa o desenho da Criação

Poder-se-ia, agora, aprofundar a razão de ser desse vínculo entre o nosso sacrifício e o de Jesus. Considerando os desígnios divinos, chegaríamos à conclusão de que, tendo Deus criado seres  inteligentes e dotados de vontade, intencionalmente deixou que uma parte da beleza da criação fosse completada por esses seres. Daí uma série de coisas lindas da natureza surgirem graças ao engenho humano. Por exemplo, o casulo do bicho-da-seda é uma obra saída das mãos do Onipotente, com a manifesta intenção de que o homem o utilizasse para fabricar o rico tecido com que  orna mobílias, decora ambientes ou confecciona magníficas peças de vestuário.

De si feios, o verme e o casulo oferecem ao talento dos artífices a matéria para realizarem maravilhas.

E assim, mil outros elementos se encontram na criação, tornando-a semelhante a esses desenhos pontilhados no seu contorno geral, feitos para serem completados e coloridos pelas crianças.

O homem, entendendo a criação, amando-a e aperfeiçoando-a, recebe de Deus a honra incomparável de ser elevado à dignidade de continuador d’Ele no seu plano para o mundo.

Ora, tendo acontecido que Deus, além de Criador, se fez Redentor, dispondo que Jesus Cristo padecesse e morresse na Cruz para nos salvar, era natural que o homem também fosse associado a  essa obra-prima da criação, que é a Redenção. E que ele, portanto, tivesse um sofrimento complementar a oferecer ao Padre Eterno, unido ao sacrifício do Verbo Encarnado.

Grandeza das almas que sofrem pelas outras

Temos, então, as mais diversas e tocantes formas de padecimento do homem nesta terra de exílio.  É belo o sofrimento do apóstolo, com seu caráter expiatório ou imprecatório, como um ato de  amor e de holocausto desinteressado, tantas vezes misturado a lutas e dificuldades de toda ordem. É belo, quando ele precisa levar a bom termo sua faina apostólica num determinado meio, e surgem as incompreensões, as calúnias, os motejos, precipitando-se sobre o apóstolo. Ele enfrenta todos os obstáculos, parecendo abandonado por Deus. Por quê?

Porque é preciso que ele sofra, assim como é necessário que ele atue e reze. Sem esse sacrifício do apóstolo, Nosso Senhor poderia recusar a aplicação dos méritos da Paixão d’Ele para aquele  ambiente, para aquele meio, para aquela alma.

Belo é, igualmente, o padecer daqueles dos quais a graça divina se serve para atuar, pela primeira vez, junto a um determinado grupo social. Esses  instrumentos suscitados por Deus são como que  fundadores, e devem ter um sofrimento mais intenso do que os outros. De fato, o homem que inicia uma obra possui a glória de tê-la começado. Mas essa glória traz para ele o peso tremendo de  sofrer pela obra inteira. E se esta for chamada a perdurar até o fim do mundo, produzindo frutos que o tornarão ainda mais engrandecido, é natural que ele irrigue com suas dores a existência inteira dessa fundação.

Para suprir a debilidade dos homens no oferecimento de seu sacrifício, existem na Igreja as almas que têm a vocação de sofrer pelas outras. Diante dessas pessoas desejosas e capazes de padecer  pelo próximo, teria vontade de me ajoelhar e lhes dizer — “servatis servandis” — como São João Batista a Nosso Senhor: “Não sou digno de desatar as correias de seu sapato”. De tal maneira me empolga e entusiasma essa forma de apostolado, merecedora de meu respeito e profunda veneração.

Nada é mais nobre e mais bonito, nada revela maior integridade de alma e maior sinceridade em todos os propósitos, nada é mais eficiente em seu gênero próprio, do que a alma que aceita sofrer pelos outros. Barreiras enormes se abatem, preconceitos tremendos caem, dificuldades fabulosas se resolvem quando uma determinada alma decide ser conseqüente e abraçar a dor até onde o  permita a vontade de Nosso Senhor. Não tenho palavras para exprimir a gratidão emocionada, o sentimento de culpa e de vergonha que me toma diante de uma alma que realmente seja capaz de  levar essa vocação até o fim.

“De culpa e de vergonha”, digo, porque sempre me fica a impressão de que, na raiz do êxito admirável de nosso apostolado, existem almas que sofreram e talvez já morreram — ou ainda estejam  vivas — padecendo para nos alcançar tudo o que a nós foi concedido por Nossa Senhora.

Se me fosse dada a felicidade de conhecer uma alma assim, sem dúvida me ajoelharia e lhe beijaria os pés. Porque, abaixo de Deus, eu estaria diante da causa verdadeira da nossa grandeza, da  razão primeira de nossos sucessos, da minha perseverança e do que possa haver de virtude em mim. Com efeito, se alguém não tivesse tomado a cruz às costas e subido ao alto do Calvário, imolando-se por nós, não creio que eu pudesse realizar a obra que me foi confiada.

Portanto, essa alma sofredora é o sustentáculo de minha fraqueza, o remédio para as minhas lacunas, enfim, é o fator preponderante para que nossas atividades progridam e frutifiquem.

Nada se faz sem os “micro-Cristos”

Claro está que as almas mais especialmente por Nosso Senhor para se associar ao sofrimento d’Ele nos entusiasmam, pois se entregam a algo que poucos têm coragem de abraçar. Muitos estão  prontos para agir, alguns para rezar. Onde estão os dispostos a sofrer? Onde encontraremos alguém que deseje se sacrificar, com este sentimento: “Eu sofro, peço à Nossa Senhora que conforte a  minha fraqueza, mas aceito e dou esse passo”?

É natural que em nossa obra a Providência suscitasse almas dispostas a sofrer e a fazer do padecimento seu primeiro apostolado. Essas almas seriam as principais entre nós, incumbidas da missão  mais difícil, mais necessária, mais urgente.

Para se compreender o mérito dessa vocação particular, devemos tomar em consideração que o sofrimento não é só se flagelar ou se martirizar. Não. Antes de tudo, é aceitar bem as diversas  provações que Deus permite em nossa existência diária. Devemos recebê-las de frente e dizer: “É verdade, eu sofro. Posso até agir para eliminar essa dor. Mas, enquanto não for evitada, acolho-a  de bom grado, porque é algo inapreciável para a minha alma e para a dos meus semelhantes. É preciso que alguém se imole por eles.”

Penso não existir expressão mais vil do que esta: “Vê lá se eu sou um Cristo para aguentar tal coisa!”. Embora seja de uma sordície inominável, ela tem um pressuposto curioso: existem “micro-Cristos”, digamos, que aqui, lá e acolá se deixam crucificar para que as realizações humanas cheguem a bom termo. E sem esses “micro-Cristos”, nada se faz. Eles são a honra, a glória, a alegria, a  vitória dos ambientes pelos quais sofreram. É deveras inapreciável essa condição de sofredores dentro da Igreja. Almas que devemos amar entranhadamente, porque foram corajosas o bastante  para oferecerem a Nosso Senhor sua própria imolação: “Quero unir meu sofrimento ao vosso. Se tenho de ser como uma azeitona a ser espremida para dela tirardes o óleo, ou como a uva da qual  extraíreis o vinho, ou como o grão de trigo triturado para dar a hóstia, é este o meu desejo!”

Tenho a impressão de que eu diria com o Salmo: “meus ossos humilhados exultam”, se visse em nosso movimento almas chamadas por Nossa Senhora para o sofrimento e a dor.

Holocausto digno de admiração e gratidão inteiras

Em um de seus famosos escritos, Huysmans nos conta que há em Lourdes um Carmelo cujas freiras têm por missão sofrer e expiar para conseguir conversões e curas no Santuário. Porém, no  momento daquelas lindas “procissões das velas”, daquelas curas miraculosas, daquelas grandes transformações morais, daquela glorificação de Nossa Senhora em meio à felicidade do povo,  ninguém está se lembrando do convento das carmelitas, onde existem religiosas doentes, morrendo, sofrendo aridezes interiores e desolações tremendas, para que os outros estejam na alegria ou  sendo objeto da benevolência divina. Não importa: aos olhos de Nossa Senhora, a fonte de toda essa alegria está naquele Carmelo.

O mais bonito é que as freiras assumem o compromisso de não pedir a própria cura. Pergunto: haverá na Terra algo mais digno de admiração do que essa forma de holocausto?

A esse respeito, vale recordar um lindo fato da vida de Santa Teresinha do Menino Jesus. Ela desejava ardentemente ser tudo na Igreja: missionário, padre, apóstolo leigo… E essa vontade intensa  chegava a constituir para ela um verdadeiro suplício. Mas, a partir do instante em que entendeu o valor do sofrimento, através do qual poderia obter graças para as almas que cumpriam essas  vocações, e, desse modo, atender o seu anelo de fazer tudo em todos os lugares ao  mesmo tempo — ela então encontrou ânimo para sofrer e achou paz para a sua alma.

É compreensível que, diante de uma pessoa assim, nos emocionemos até o extremo que nos seja possível.

E que a veneremos, respeitemos e lhe externemos nossa gratidão, em toda a medida que nos seja dado agradecer.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 71 (Fevereiro de 2004)

 

A Igreja é o centro da História

A Igreja é o princípio vital da sociedade, do Estado, da civilização e da cultura. Com essa conclusão pouco consonante com a História laica e materialista ensinada hoje em dia, Dr. Plinio encerra  seus comentários à Carta Apostólica “Annum Ingressi”, de Leão XIII. Antes ele aborda dois pressupostos para completar seu pensamento a respeito da matéria: as influências preternaturais na vida humana e a natureza dos mandamentos de Deus, de cujo cumprimento nascem a ordem e a harmonia.

 

Já vimos anteriormente que as paixões desregradas do homem, somadas ao poder das trevas, constituem no seu conjunto a “cidade do demônio”. Resta-nos dar sobre ela algumas precisões.

A escravidão “natural” ao demônio

A expressão é do próprio Jesus Cristo: “Haec est hora vestra, et potestas tenebrarum” (Lc 22, 53) — “esta é vossa hora e do poder das trevas”. Se Jesus Cristo é a luz que veio a este mundo (cf Jo 1,  9), as trevas, sendo o contrário da luz, são portanto aquilo que se opõe a Jesus Cristo, isto é, o demônio.

Há, pois, uma “potestade do demônio”. Esta se exerce no inferno, que é o reino das trevas, e também neste mundo. E por isto o demônio é chamado “príncipe deste mundo”. Vejamos em que  sentido.

Desde que o pecado original trancou para os homens as portas do Céu, eles se tornaram súditos do demônio. Com efeito, foi o demônio que arrastou Adão e Eva ao pecado pela voz da serpente (Gn  , 1-5), fechando-lhes, assim, o Céu e provocando o desregramento das potências de suas almas, desregramento que é a fonte de todo pecado. Posto na impossibilidade de praticar o bem em razão dessa desordem, o homem era escravo de suas paixões e, portanto, do demônio, autor dessa servidão.

É verdade que, “ante praevisa merita”, em previsão dos méritos de Jesus Cristo, o homem começou a receber a graça logo depois da queda. Também é verdade que, com a Redenção, ele se tornou  independente do demônio e se fez escravo de Jesus Cristo.

Não obstante, pelo pecado mortal, o homem remido rompe com Deus e volta à escravidão do demônio — “volta o cão a seu vômito”, escreve São Pedro (2 Pe 2, 22) — na qual fica durante todo o  tempo em que se conservar em tal estado. E assim, mesmo depois da Redenção, o demônio tem escravos entre os homens, e estes terão mais culpa se forem cristãos, máxime se católicos.

Quanto maior é a altura de que se cai, maior a queda.

Chamamos a essa escravidão “natural”, porque ela se explica quase inteiramente pela maldade natural do homem depois do pecado.

O poder das trevas preternatural

Mas há outra forma de maldade, que degrada o homem abaixo desse nível. É a que vem da ação preternatural do demônio na alma. Quando o homem se entrega a essa ação, torna-se escravo do  príncipe das trevas a título muito especial.

Embora decaído de sua glória celeste, o demônio não perdeu a natureza angélica e na abjeção do inferno conserva toda a lucidez, pondo suas capacidades a serviço de seu ódio contra Deus.

Mas o inferno é um cárcere e o demônio, um condenado. Infinitamente inferior a Deus como inteligência e poder, só estende sua ação fora do inferno na medida em que a Providência o permite. E  Ela o permite habitualmente. No livro de Jó lê-se um impressionante diálogo entre Deus e o demônio.

Este último, agastado com a glória dada a Deus pela virtude do patriarca, afirma que essa virtude é apenas superficial, e pede licença para tentá-lo. Deus consente. E todas as desgraças da terra se   abatem sobre o heroico varão.

Cada alma tem sua história e, enquanto história de alma, vê-se que Deus permite ao demônio atormentar e tentar por todas as formas os justos, com o intuito de pôr à prova sua fidelidade. Sobre  eles se exerce de mil modos — ora com violência tempestuosa, ora com pérfidos ardis, sempre com uma sedução terrível — o misterioso poder das trevas. E eles lhe resistem.

Entretanto, muitos homens não lhe resistem e se entregam ao pecado. Note-se bem que, no caso aqui considerado, o pecado não tem por causa exclusiva as paixões humanas desregradas.

Conquanto o demônio não possa obrigar o homem a pecar, pode ter, por permissão de Deus, uma ação por vezes muito grande sobre a imaginação, de sorte que por esse meio pode aliciar vigorosamente o homem para o pecado. Sobre os que, no exercício de seu livre arbítrio, não lhe resistem, o demônio pode adquirir, por punição divina, o poder cada vez maior de exercer sua ação.

E, a correrem as coisas segundo seu desenvolvimento lógico, esse poder pode chegar a ser uma tirania à qual o homem só pode resistir com recursos excepcionais da graça e um esforço heroico da  vontade.

Essa servidão, que pode existir em modos e graus incontáveis, é preternatural, distinta da servidão natural, considerada no item anterior. “Preternatural” é um termo utilizado pela linguagem da  Igreja para designar aquilo que é superior à natureza humana, mas é distinto da ordem sobrenatural, relativa a Deus e, portanto, superior a todas as criaturas.

A ação que a graça de Deus exerce sobre o homem é sobrenatural. A ação do demônio é preternatural. Até onde pode ir essa ação preternatural?

Afirma a Sagrada Escritura que “omnes dii gentium demonia” (Sl 95, 5), e isso foi constantemente admitido pela Igreja. Satanás tem, pois, seus altares e seus adoradores por toda a Terra.

Todo culto ao demônio é intrinsecamente tão contrário à natureza humana, as profanações de hóstias consagradas, as “missas negras” que ele muitas vezes comporta revelam um tal ódio a Deus que não se podem explicar por causas exclusivamente naturais.

É preciso a atuação de algo de pior do que têm os piores homens para que sua maldade chegue a esse ponto.

À medida que, pela ação preternatural do demônio, aumentam em quantidade e em gravidade os pecados dos homens, a Justiça de Deus tende a retrair suas graças. À medida que se retraem as  graças, vai ficando livre o campo para os pecados dos homens e Deus vai dando ao demônio maior liberdade de ação.

Acontece que o homem pode inclinar sua vontade livremente, quer para o lado de Deus, quer para o do demônio. Por conseguinte, conforme uma ou outra inclinação desse verdadeiro pêndulo  entre o Céu e o inferno, que é o livre arbítrio humano, os homens e as nações caminham pelas veredas da virtude rumo ao Céu, ou pela larga estrada do vício rumo ao inferno.

Em nossa época de cepticismo, as afirmações de Leão XIII a respeito de tudo isso podem fazer sorrir. Nesse sorriso céptico não serão coerentes consigo os que admitem como inspiradas por Deus  a Sagrada Escritura.

Com efeito, a Escritura nos fala, do Gênesis ao Apocalipse, sobre duas raças espirituais em que se dividem os homens: filhos da Virgem e filhos da serpente, filhos dos homens e filhos de Deus,  filhos da luz e filhos das trevas, raça de justos e raça de víboras, filhos do demônio e filhos de Deus.

Os Mandamentos, imposição arbitrária de Deus?

Os Mandamentos nos instruem sobre os atos que devemos fazer ou não fazer para salvar nossa alma. O Divino Redentor é explícito a este respeito. Ele promete a vida eterna aos que observam a  Lei: “Si vis vitam ingredi, serva mandata” — “Se queres entrar na vida, observa os Mandamentos” (Mt 19, 17). E ameaça com as penas do inferno os que a violam.

Por que estabeleceu Deus esses Mandamentos e não outros? Poderia ter permitido que os homens praticassem as ações proibidas pelos Mandamentos, e condicionar a salvação à prática de atos que os Mandamentos não proíbem? Poderia, por exemplo, ter dispensado o homem do 6º mandamento, substituindo-o por outro que proibisse algum ato reputado inócuo pela moral católica?

Para Puffendorf e outros tratadistas protestantes, é fora de dúvida que sim. Para eles, os Mandamentos são arbitrários, são sacrifícios impostos a nós por Deus para provar nosso amor.

Pensam, assim, que a Lei foi editada com o único intuito de nos impor sofrimentos. Mas Deus poderia perfeitamente ter escolhido outros Mandamentos, em lugar dos que estão em vigor. Em  outros termos, os Mandamentos não são bons nem maus em si, e devemos obedecer a eles só porque Deus o quis.

Segundo a doutrina da Igreja, a prática dos Mandamentos realmente impõe sacrifícios que dão a prova de amor a Deus, e sem esse amor o homem não se pode salvar. Todavia, ao estabelecer os  Mandamentos, Deus não escolheu ações inócuas em si, que passaram a ser más só porque Ele as proibiu. Pelo contrário, Ele as proibiu por serem intrinsecamente más. Há, pois, para a Igreja um  bem objetivo que está em certas ações, e um mal objetivo, que está em outras. Note-se a palavra “objetivo”. Não se trata de um bem ou um mal subjetivos, existentes na mente deste ou daquele homem, deste ou daquele povo, mas de um bem e um mal reais, imutáveis, que continuariam a ser bem e mal, qualquer que fosse a ideia formada por homens ou povos a esse respeito.

Em conseqüência, sendo Deus infinitamente sábio e bom, Ele não poderia ter editado uma Lei oposta à que nos deu no Monte Sinai. Deus pode tudo, menos o erro e o mal. Esta doutrina, como se  vê, está toda baseada na ideia do bem e do mal objetivos. O que se deve entender por isto?

A lei eterna

Como ensina a doutrina católica, Deus, Criador de todas as coisas, sendo infinitamente sábio, criou cada ser com uma natureza própria, dotada de atributos próprios, e com um modo de operar conforme a essa natureza. Operando de acordo com esta, todos os seres fazem a vontade de Deus. Essa vontade, presente na mente divina antes de todos os séculos, é chamada de lei eterna (Suma  Teol. I-II, q. 91, a. 1; q. 93). Dela decorrem todas as outras leis.

A lei eterna, entretanto, não existe só na mente de Deus. A partir da criação, passou ela a vigorar objetivamente para os seres criados, de modo tal que, desde o seu primeiro instante, todos eles  passaram a participar de algum modo na lei eterna, impressa neles pelo próprio Deus (Suma Teol. I-II, q. 91, a. 2). Contudo, as criaturas racionais participam de uma forma mais excelente.

A lei natural

O homem é capaz de conhecer, pelos recursos de sua inteligência, a vontade de Deus. Pode, assim, conhecer os seres, sua natureza, seu modo de operar, e de proceder em relação a si mesmo, ao  próximo e a cada ser de acordo com a respectiva natureza, segundo a vontade divina. Sua propensão em proceder dessa maneira é chamada de lei natural (Suma Teol. I-II, q. 91, a. 2; q. 94).

Como diz São Tomás, a lei natural nada mais é do que a participação da lei eterna na criatura racional (nas criaturas irracionais essa participação se dá apenas por analogia).

A lei natural tem seu fundamento imediato, pois, na natureza humana, e seu último fundamento em Deus. Em outras palavras, a lei eterna e a lei natural não são senão a mesma vontade divina,  enquanto existente em Deus e enquanto gravada no coração das criaturas racionais.

A lei divina

Como o homem tem um fim último sobrenatural, para o qual deve ser dirigido de um modo superior, não limitado apenas aos preceitos da lei natural, era conveniente e necessário que Deus lhe  revelasse a lei divina, “pela qual a lei eterna é participada de acordo com esse modo superior” (Suma Teol. I-II, q. 91, a. 4).

A lei divina se tornou também indispensável em virtude do pecado original, pois a inteligência humana ficou sujeita a erros, podendo levar o homem, por debilidade intelectual, a não ver bem este  ou aquele ditame da lei natural. Pior do que isso, a vontade humana passou a ser propensa ao mal, podendo facilmente induzir o homem a fechar os olhos ao conhecimento da mesma lei, e assim somar, a uma causa de erros intelectuais involuntários, outra de erros voluntários.

Estando o homem nessa profunda miséria moral, Deus veio em seu auxílio e, à lei divina em vigor na época primitiva, acrescentou os Mandamentos da Antiga Aliança, dando a Moisés, no alto do  monte Sinai, a tábuas da lei.

No Decálogo estão inscritos os princípios essenciais que contêm em si toda a lei natural (Suma Teol. I-II, q. 94, a. 4, ad. 1). Séculos depois, foi promulgada por Nosso Senhor e pelos Apóstolos a Nova Lei, que aperfeiçoou a Antiga; conservou o Decálogo e ab-rogou os preceitos relativos ao povo judeu antes da Redenção. Está ela contida na Sagrada Escritura e na Tradição.

Ordem e desordem

A ordem, como diz São Tomás, é a disposição das coisas segundo sua natureza e seu fim. O cumprimento da vontade de Deus é, portanto, a própria ordem. Pois Deus quer a disposição das coisas  segundo sua natureza e seu fim. E a desobediência à vontade de Deus é a desordem. O código da ordem é, como vimos, o Decálogo.

O bem de um ser é aquilo que lhe convém, que é conforme a sua natureza e o conduz a seu fim. O mal é o contrário (Suma Teol. I, q. 48, a. 1). Todas as criaturas não racionais movem-se conforme  sua natureza e seu fim, por assim dizer cegamente. Apenas o homem, dotado de inteligência e vontade livre, tem o poder de praticar o mal. Com isto, ele desrespeita a vontade de seu Criador, e  introduz a desordem na criação, isto é, em si e em torno de si.

O bem e o mal na sociedade humana

Em nossa época de estatismo exagerado, confia-se por demais no poder das leis e da administração para resolver os problemas humanos. Essa atitude provém do fato de não nos lembrarmos  suficientemente de que a matéria-prima da qual é feita a sociedade é o homem. Se a matéria prima for boa, tudo se pode esperar do efeito de boas leis. Mas se for má, as boas leis serão  radicalmente impotentes.

Com fios podres, o que pode fazer o mais hábil dos tecelões? Com cidadãos corrompidos, o que pode fazer o mais perfeito dos governantes? Se, em determinada sociedade, cada homem se portar  bem nos ambientes sociais a que pertence — família, profissão, etc — toda a sociedade andará bem. Se se portar mal, toda a sociedade andará mal. Daí a necessidade da Igreja que, corrigindo e  santificando os homens, é princípio vital para manter no bem a sociedade.

A Igreja, centro da História

Ora, se a Igreja é assim indispensável para o bem das sociedades, é também princípio vital das nações e dos Estados. Dai-nos — dizia Santo Agostinho — “um exército composto de soldados que  observem fielmente os ensinamentos de Jesus; e assim também os governadores; e os maridos e as esposas; e os pais e os filhos; e os patrões e os criados; e os reis e os súditos; e os juízes, e até os contribuintes e os cobradores de impostos, todos sendo segundo quer a doutrina de Cristo, e veremos se [os filósofos anticatólicos] ainda ousarão dizer que essa doutrina é nociva ao Estado, ou se, pelo contrário, terão de reconhecer que é um valioso sustentáculo para o Estado” (Ep. 138 ad Marcellinum, 2, 15).

A Igreja é igualmente o princípio vital da civilização e da cultura. Qualquer que seja o sentido que se dê a essas palavras, as realidades por elas  designadas contêm em si uma noção de perfeição, razão pela qual a Igreja tem de ser, forçosamente, sua alma.

Em outros termos, a cultura e a civilização só são plenamente elas mesmas se forem católicas.

A contrario sensu, quanto mais uma civilização ou uma cultura vai perdendo seus valores católicos, tanto mais vai deixando de ser civilização e deixando de ser cultura.

De tudo isto se segue que a grande necessidade essencial dos povos, das culturas e das civilizações é serem católicos, e que o grande perigo para eles consiste em se afastarem da Igreja. Daí ser esta  o centro de gravidade em torno do qual giram todos os fatos históricos.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 59 (Fevereiro de 2003)

GRANDEZAS E PULCRITUDES DA DOR

O homem tem necessidade de tornar suportável a vida nesta Terra. Para adoçar suas agruras, ele tem à disposição muitos lenitivos lícitos, entre os quais, a contemplação do que há de celeste e maravilhoso na obra da Civilização Cristã.

Acontece, porém, que um dos frutos excelentes engendrados pela Cristandade é, precisamente, a atitude que o católico deve tomar em face da dor.

Certa vez, nos meus tempos de aluno dos jesuítas, um professor de Religião nos propôs um problema muito interessante, abstraindo-se do aspecto prosaico que o envolve.

— Imaginem — dizia ele — que uma galinha fosse capaz de pensar, e que alguém se aproximasse dela e lhe dissesse: “Tu foste criada para servir de alimento ao homem. Daqui a pouco, seu dono vai te matar e te almoçar”. Pergunta-se, então, que sentimento deveria ter a galinha: de horror, porque vai morrer? Ou de entusiasmo, porque o fim para o qual ela existe — alimentar o homem — vai se realizar?

O problema estava bem apresentado, e me impressionou de modo profundo.

Anos depois, procurando resolvê-lo à luz da doutrina católica, a solução me pareceu clara. Não se trata, é evidente, da galinha, mas do estado de espírito delineado pela figura metafórica que o professor nos pintou. A resposta que encontrei foi esta: a galinha sentiria necessariamente a dor horrorosa de sua própria imolação; porém, mais do que a dor, ela não poderia deixar de sentir a felicidade inerente ao fato de ter alcançado o seu fim último, a sua completa realização. E isto traz uma alegria muito superior à infelicidade do holocausto. Portanto, os dois sentimentos deveriam se juntar, de tal maneira que a galinha amasse o fato de chegar a seu fim, embora o fizesse com dor.

O mesmo se pode aplicar à vida humana. Neste mundo, a pessoa feliz não é a que vive muito, nem a que vive prazerosamente. É, na verdade, aquela que conduz a sua existência segundo o objetivo para o qual foi criada: amar, servir e glorificar a Deus no cumprimento dos desígnios que Ele tem sobre ela. Nosso ânimo deve decorrer desse senso de que a alegria elevada e serena da finalidade alcançada é a autêntica alegria da vida. Nela encontramos as forças para suportar os sofrimentos que a Providência permite em nosso caminho, e os recursos para compreender tudo quanto eles significam na consecução de nossa realização suprema.

Por isso mesmo, na época da Europa maravilhosa, nos áureos tempos da Civilização Cristã, encontramos a dor instalada no meio dos esplendores da vida, com toda a amplitude possível. Assim, a morte transformava-se numa grande solenidade, a respeito da qual a etiqueta tinha disposto todas as suas exigências.

Por exemplo, quando um arquiduque d’Áustria agonizava, no momento em que lhe seria ministrado o Santo Viático, todos os príncipes da Casa Imperial ali presentes entravam em procissão no quarto, e formavam uma corola de velas acesas em torno do Senhor Eucarístico e daquele que em breve partiria para a eternidade. No meio de toda essa magnificência, o moribundo recebia o Santíssimo Sacramento, era ungido com os santos óleos. Seu falecimento se dava em meio a esse aparato da morte realizado com as pompas da vida. Como suprema despedida, seu funeral era um requinte de gala.

Magnífica expressão desse enobrecimento da dor, dessa superior beleza de que se revestia o sofrimento, temos os garbosos e hieráticos gizantes medievais, os grandiosos monumentos fúnebres, as estátuas representando homens cobertos de véu e carregando imponentes caixões. Toda uma arte imensamente desenvolvida, para revestir de pulcritude o aspecto doloroso da vida.

Mais. O entusiasmo com que se esperava e se cantava, nas vésperas das batalhas, a agonia da luta. Nasceram as canções de gesta, nas quais cada golpe, cada “ai!” recebia a glorificação de um acento épico, de uma arrebatadora melodia. Nas salas de armas dos castelos, na noite que antecedia a partida para a frente de combate, os homens conversavam e sorriam. E nos bailes das festas de primavera, enquanto dançavam pelos salões dos palácios, aqueles nobres de cabeleira empoada, de sapatos de fivelas de prata e saltos escarlates sabiam que dali a poucas semanas estariam partindo para a guerra. Sabiam que muitos não retornariam, que várias daquelas senhoras estariam na viuvez, mães ficariam sem filhos, e os filhos, sem pais. Entretanto, dançavam… Eles encaravam a dor com serenidade e grandeza de alma.

Do mesmo modo eram respeitadas e postas em foco as mais variadas formas de sofrimento — inclusive o da maternidade ou o do esforço intelectual levado a bom termo —, porque bem se compreendia a noção de que esta Terra é um vale de lágrimas, segundo a linda expressão da Salve Rainha. Sorria-se para a dor por uma superior razão: “Vou realizar meu fim, aquilo para o que existo, e, por causa disso, apesar de todo sofrimento, estou alegre”.

Daí vêm, igualmente, o júbilo e a pompa com que a Igreja celebrava — e celebra — a entrada de alguém para a vida religiosa. É o ingresso numa existência de renúncias e provações. Mas, em se tratando de uma jovem, esta se veste de noiva, orna-se a capela de flores, toca-se o órgão, o coro canta, e tudo se passa como se fosse uma esplêndida festa de casamento. A razão disso: a moça está em vias de realizar a finalidade para a qual foi criada.

Em sua vida no claustro ela encontrará a dor, sem dúvida, porém a assumirá de “grand coeur”, com abundância de alma, sondando-a até o extremo, a exemplo do Divino Mestre que, diante da Cruz, abraçou-a e chorou. Pranto de comoção no qual, avantajando-se ao oceano de amargura interior, entrava uma imensa felicidade: era seu supremo objetivo, a Cruz para a qual toda a vida d’Ele havia sido ordenada.

Obediência e entusiasmo

Dr. Plinio discorre sobre a estreita relação existente entre a obediência a Deus, a seus Mandamentos e aos legítimos superiores, e o entusiasmo, sem o qual nenhum ato sobrenatural atinge sua perfeição.

 

Examinando bem a ideia que, muitas vezes, é difundida a respeito do modo de ser católico, nota-se que as pessoas não percebem que amar a Deus sobre todas as coisas significa amá-Lo com entusiasmo, pois só nos entusiasmamos com as coisas que colocamos acima de todas as outras.  E não existe modo de amar a Deus sobre todas as coisas, que não seja dar a Ele todo o entusiasmo de nossa alma.

Obediência e alegria do entusiasmo

Ora, qual é o termômetro do entusiasmo? É exatamente a obediência. Quando a pessoa está muito entusiasmada, percebe o quanto ela se une com aquilo que a entusiasma, obedecendo. E ela tem aí um calor, um timbre, um amor de obediência todo especial, que leva sua alma inteira. Tanto mais que São Tomás afirma que um mínimo resíduo de felicidade o homem precisa ter, senão ele não aguenta a vida. E, mais do que tudo, o que faz aguentar a vida e ser feliz é a alegria do entusiasmo, por amor de Deus.

É entre esses entusiasmados que se vê o frescor do espírito, o calor da alma, a ligeireza das mentalidades, o voo, a deliberação, o gesto, a força de impacto, etc. E se o homem não tem a alegria desse entusiasmo, ele começa a subestimar, a sofismar, a relaxar, decair, degradar-se, tudo passa a ficar pesado e ele não aguenta a obediência.

Contaram-me um episódio da vida de Santo Inácio, que eu já ouvira falar: um noviço estava conversando, embevecido, com Santo Inácio. Vendo o noviço encantadíssimo, o Santo Fundador lhe diz: “Vá fazer tal coisa!” O noviço não caiu logo em si, e Santo Inácio acrescenta: “Não pode o amor ser maior que a obediência. Portanto, estás errado!” E lhe deu uma penitência severíssima.

Diante dessa atitude, o entusiasmado fica encantado e pensa: “Oh, que retidão, que precisão! Que sagrada intransigência! Que maravilha!” Reação do homem sem entusiasmo: “Que ruim é Santo Inácio! Eu estava tão embevecido ouvindo-o e ele fez essa brutalidade comigo!” Quer dizer, esse homem não tem fogo e não é capaz de compreender os píncaros da perfeição e da virtude.

Como cumprir os Mandamentos

Por vezes, nas aulas de Catecismo, os Mandamentos são apresentados com o seguinte fundo de quadro: “Os Mandamentos são duros, mas é preciso aguentar, porque Deus tem o direito de mandar. Ele poderia ter sido mais misericordioso e ter feito os Mandamentos mais leves. Não os fez, e quem os cumpre, afinal de contas, vai para o Céu. Se não cumprir, vai para o Inferno; está revelado. Portanto, aguente e gema! Peça a Nossa Senhora, que de vez em quando Ela atenue um pouco. Isso é assim, então comece a praticar a Religião!”

Ora, isso não é entusiasmo. Resultado: não se praticam os Mandamentos.

Cumprem-se os Mandamentos no entusiasmo! “Não pecarás contra a castidade!” A reação da alma diante disso não pode ser a seguinte: “Ih! Mas como é duro hein?! Como aguentarei?” Perdeu a batalha. A atitude tem que ser outra: “Oh, castidade, que beleza tens! Como és magnífica! Que píncaro! Claro, não pecarei!” Assim se guarda a pureza.

“Não mentirás!” Deus tem horror à boca mentirosa, diz a Escritura. Servir-se dos lábios e da língua, dons tão preciosos de Deus; da voz, símbolo tão magnífico da alma humana, para mentir, utilizar isso para um objetivo contrário à finalidade natural querida por Deus, que infâmia! Mas a veracidade… O varão veraz, que diz as coisas como são, que magnífico! O entusiasmo leva à verdade.

Nosso Senhor no Horto das Oliveiras

O entusiasmo é algo tão magnífico que ele se parece com o Sol, até mesmo quando este entra em ocaso. Mas, uma coisa é o pôr de sol do entusiasmo, outra é a moleza do decadente. Não se confundem.

No pôr de sol do entusiasmo, a vontade de se sacrificar, o desejo de ideal continua intacto, embora o indivíduo não sinta nada. E o modelo disso é Nosso Senhor Jesus Cristo no Horto das Oliveiras. Depois que eu tenha mencionado isso, o único jeito é dobrar os joelhos, porque o Modelo é tão sagrado que não há outra coisa para dizer. Ele não estava na alegria de sua alma nessa ocasião.

São Francisco de Sales o disse bem: Jesus só tinha a alegria na fina ponta de sua alma. No resto era um mar de desolação. Mas, como Nosso Senhor aceitou o sofrimento! Bebeu o cálice, aguentou a Paixão e morreu para aquilo que Ele tinha resolvido morrer! Isso é entusiasmo!

Mas para sermos capazes desse entusiasmo na dor, precisamos ser muito capazes do outro. Quer dizer, ter na alegria e na força de nossa alma o entusiasmo no sentido corrente da palavra. Nossa Senhora saberá, quando vier o momento, como nos introduzir no entusiasmo do sofrimento. Nademos nesse entusiasmo corrente, porque essa é a hora dele.

A Igreja é a causa de nossa alegria

Como manter o entusiasmo?

O nosso entusiasmo visa como fundo de quadro, evidentemente, a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana. Ela é a causa de nossa alegria. Tudo quanto se diz de Nossa Senhora, “mutatis mutandis”, pode-se afirmar da Igreja. E poder-se-ia fazer uma saudação à Igreja, invocando a “Salve Rainha, Mãe de misericórdia”. Talvez com muito poucas modificações, caberia à Igreja perfeitamente a oração Salve Rainha, que é uma saudação a Nossa Senhora. Inclusive se poderia pedir, nas orações, as graças da Igreja, porque isso tudo a Esposa de Cristo possui.

Não basta conhecer a teoria

Entretanto, andam em erro aqueles que imaginam que, a partir de uma concepção doutrinária a respeito da Igreja, um homem recompõe a imagem do que deve ser o verdadeiro católico. Seria mais ou menos como uma pessoa que estudou a teoria da arte e se capacitou nela, mas nunca foi a um museu, nem viu uma obra de arte, jamais fez uma consideração artística in concreto. Aqueles meros princípios artísticos, por mais que sejam lógicos, convincentes, verdadeiros, bons, não são suficientes para a criação artística; há um passo que a mera teoria não transpõe. E é preciso ter visto a coisa concreta para que o espírito também se aplique sobre ela, e verifique a afinidade da coisa concreta com os conhecimentos doutrinários que adquiriu. E, em consequência, julgue-a boa, analise-a adequadamente e a incorpore ao seu cabedal intelectual.

As falsificações manipuladas pela Revolução

Na época atual não temos apenas uma dificuldade muito grande em ver a doutrina da Igreja viva em pessoas, mas recebemos também contrafações, falsos modelos. E a realidade de nossa situação seria como a de um homem a quem se tivesse ensinado a teoria da arte, mas meio falsificada, de maneira que ele percebesse haver muito de verdadeiro ali, mas algo lhe causasse estranheza. E isso fosse ilustrado por museus de arte moderna, com a arte falsificada. Ele, naturalmente, sairia desses museus com contraimagens, contrafiguras ajustadas a uma doutrina meio falsificada. Compreendemos assim a dificuldade desse cérebro gerar a ideia do que é uma verdadeira obra de arte.

E é isso que sucede conosco porque, devido à Revolução, temos a mente literalmente povoada, até nos últimos pormenores, de ideias, impressões e clichês falsos. E uma obra de saneamento interno, para a aquisição da plena fidelidade, supõe que a Providência mande homens que fiel e adequadamente simbolizem aquilo que ensinam. Quer dizer, eles devem ensinar o que verdadeiramente a Igreja ensina, e simbolizar aquilo que Ela ensina.

Como é que eles simbolizam?

A mentalidade de um católico

Antes de tudo pela mentalidade. Em que sentido da palavra? O mais adequado dos símbolos de Deus é o homem, evidentemente. E quando alguém se refere ao homem, fala de sua mentalidade porque é o mais nobre, o por onde ele é homem inteiramente, porque ele tem uma mente. Então esta mente, configurada como manda a Igreja, como quer Deus, é o melhor símbolo do Criador.

Assim, era preciso que a Doutrina Católica fosse ilustrada com essas mentes à maneira de Deus, quer dizer, à maneira da Igreja. Alguém poderia me dizer: “Mas, há aí um círculo vicioso, porque estar ilustrado com um exemplo concreto à maneira de Deus e da Igreja é ter a doutrina de Deus e da Igreja. De maneira que voltamos à questão, basta ter a doutrina”.

Respondo: Sem a doutrina, nada feito. Mas não se pode dizer que simplesmente com ela tudo esteja feito. Já expliquei e ilustrei, não preciso mais insistir.

Como é que conhecemos a mente de um homem?

Um homem, que é membro da Igreja, não personifica a Igreja inteira nem ele é a Igreja em abstrato. O que é um homem católico?

É aquele que inteiramente, no ponto monárquico de sua alma, disse sim à Igreja. Mas, o que quer dizer aqui “inteiramente”?

Primeiro Mandamento: amor entusiástico

A formulação existente no Antigo Testamento para o primeiro Mandamento é perfeita: “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda tua alma e com todas as tuas forças”(1), quer dizer é um amor entusiástico, que exprime o amor inteiro.

Então, o católico está constituído segundo a “arquitetura” harmônica que Deus lhe concedeu e sobre a qual incide clara, luminosa, a luz de Cristo, a luz da Igreja. E, incidindo aí, propaga-se por toda a mentalidade da pessoa, à maneira de algo que vivifica e amolda todo o seu ser. E não é só isso, porque a graça envolve, circunda a alma em mil aspectos, mil circunstâncias da vida, mil ocasiões.

Os santos e o Purgatório

Essa transparência da graça num homem pode ser maior ou menor. Há pessoas que são retas, amadas por Deus, vão para o Céu, mas antes devem passar pelo Purgatório. Tais pessoas têm uma transparência maior ou menor para essa ação da graça.

Segundo foi revelado a uma mística, Santa Teresa de Ávila, antes de subir ao Céu, teve que passar rapidamente pelo Purgatório. E ela havia sofrido na Terra tudo quanto sabemos!

Os teólogos afirmam que os mártires vão para o Céu diretamente, não passam pelo Purgatório. Um São Lourenço, por exemplo, cujo martírio foi horripilante. Ele mesmo vendo as gotas da gordura de sua própria carne caírem dos seus membros sobre o corpo, porque ele estava sendo assado! Após suas costas ficarem completamente assadas, ele disse: “Nas costas tudo acabou, virem-me do outro lado!” Viraram-no de bruços, foi assado e morreu.

Encontro de São Domingos, São Francisco e Santo Ângelo

Essa transparência pode ter, portanto, graus diferentes, segundo as várias almas.

Alguém perguntaria: “Mas, se eu conheço uma pessoa assim e depois posso vir a conhecer várias outras semelhantes, por que hei de optar por uma e não por outras na linha da obediência? Só porque eu fiz um voto? Qual a razão dessa obediência, dessa opção que eu terei feito antes de ter conhecido outros?”

A pergunta está mal feita, porque, quando se trata de almas inteiramente transparentes a essa graça, nunca fazem diferença entre si. E cada uma atrai quem deve atrair, e encaminha quem deve encaminhar àquele ao qual deve ser encaminhado.

Todos conhecem, por exemplo, o famoso encontro de São Domingos, São Francisco e o carmelita Santo Ângelo, numa sacristia, creio que de Roma. Imaginemos que um passante por ali diga perplexo: “Para mim, isso deu esquizofrenia, porque são três tão grandes santos que não sei a qual deles devo seguir.”

Eu lhe diria: “Trate indiferentemente com qualquer um dos três que você verá qual tem que seguir. E se você não vir, ele mesmo indicará: ‘Meu filho, você foi feliz; não é comigo, é com outro que você vai ficar.’”

Há uma linha mestra, uma avenida de clareza onde todas as almas assim se encontram, sem nunca provocarem trombada.

Entretanto, existe um outro dado a tomar em consideração, porque esse é o lado da graça. Há o aspecto demônio, o qual não faz a obra da graça, mas sim da Providência. Por incrível que pareça, isso é assim. E ele, ouvindo-nos falar isso, fica furiosíssimo, porque bem sabe que a obra dele executa os desígnios de Deus.

A tentação coletiva, o demônio social

Foi por desígnio de Deus que satanás tentou Adão e Eva. Não era desígnio de Deus que eles pecassem, mas que fossem provados e, se fossem ruins, merecessem o castigo.

Fala-se muito, em aulas de Religião, da tentação individual, da ação do demônio sobre um homem para induzi-lo ao pecado. Está muito bem lembrado, mas me espanta e lamento que não se diga nada da tentação coletiva; desses demônios que agem simultaneamente sobre os indivíduos de todo um grupo ou setor social, de toda uma sociedade, e levam as pessoas para o Inferno por esse modo.

Nesta época em que se fala tanto do socialismo, da função social da propriedade, do demônio social não se fala. Um modo de completar a virtude para a qual a graça nos convida é a luta contra o demônio, por onde ficamos o contrário daquilo a que ele também nos convida.

Portanto, a graça leva para um lado, e a luta contra a tentação conduz para o lado da graça. E esse é o furor do demônio quando recebe um “pontapé”, porque ele percebe que a alma não se incomodou com a tentação dele, porque fez o contrário do que ele queria.

Estamos numa época onde a tentação social é tão fabulosa, que ela é propriamente o fundo de todas as tentações individuais. Não há uma tentação individual que não esteja maculada, sobre a qual não pese a tentação social, que não seja condicionada por esta; atualmente a tentação social — num certo sentido da palavra — é mais forte que a tentação individual.

O fato de conhecermos pessoas completamente voltadas contra a tentação social, é uma outra graça que nos leva a praticar a obediência em relação a essas pessoas.

Então, retomando o exemplo do artista que conhece a teoria da arte e não a arte concreta, podemos afirmar que um combatente que conheça a teoria da guerra, mas nunca tenha feito guerra não dá nada.

Pelo contrário, se tomarmos um combatente que fez a guerra contra o mal e que se modelou segundo tal guerra, esse merece a nossa confiança.

Esses fatores se somam para que nossa obediência seja entusiasmada. E entusiasmada não só nas boas horas, mas nas horas más, porque essas são razões razoáveis por onde, nos momentos onde decai o entusiasmo sensível, elas estaqueiam. E a pessoa bem estaqueada, na hora do entusiasmo sensível, vai até onde pode e recolhe como fruto que, na hora do entusiasmo não sensível, faz tudo quanto deve.

Espero que o comentário que fiz até agora tenha sido entusiasmado. Mais ainda, espero que tenha sido entusiasmante, porque eu quisera realmente acender o entusiasmo na alma dos que aqui se encontram.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 22 e 23/6/1982)

Revista Dr Plinio 191 (Fevereiro de 2014)

 

1) Dt 6, 5.

 

Ponto culminante na luta entre o bem e o mal

Depois da morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, o mal nunca teve tanta audácia em se mostrar como na Revolução Francesa. Na luta entre o bem e o mal, a verdade e o erro, o belo e o feio, essa Revolução é uma espécie de ponto culminante. Ela pode ser considerada, sob esse aspecto, como um grande e horrível livro no qual se aprendem verdades terríveis e admiráveis.

 

Suponhamos a existência de um palácio tão admirável que, se não tivéssemos conhecido pelo menos em fotografia, nossa mente não seria capaz de imaginá-lo.

Encanto por um belo palácio

Entretanto, obtida uma boa fotografia, a mostrássemos a um colega que nos dissesse:

– Mas que palácio lindo, que fotografia maravilhosa! Você não poderia me emprestar isto durante alguns dias para eu levar para casa?

– Por que olhar isto, qual é a vantagem? – perguntaríamos para experimentá-lo.

– Não sei, isso eleva a minha alma. Vendo esse palácio, esses mármores, essas tapeçarias, esses móveis, o prédio na sua beleza, na sua distinção, em sua imponência, a minha alma como que sobe. E sinto necessidade disto, porque tudo no mundo contemporâneo abaixa, deprime, avilta, corrói, destrói, decepciona. Encontrei algo que produz o efeito contrário na minha alma; isto é o remédio. Se você pudesse me dar uma cópia dessa fotografia, seria a maior obra de caridade que me faria, porque fico encantado com esse palácio.

Notaríamos imediatamente a nobreza de alma de nosso interlocutor e pensaríamos em nosso íntimo: “Certamente vou fazer o sacrifício de dar-lhe essa fotografia, porque ela realiza o papel de um par de asas para a alma dele subir mais alto, até Nossa Senhora, a fim de aumentar os horizontes intelectuais dele e, com isso, seus horizontes religiosos, espirituais. Se esse palácio é uma imagem do Céu na Terra, este pobre coitado, que não tem ideia alguma do Paraíso, ao contemplar esse palácio poderá sentir-se mais elevado rumo ao Céu, para onde eu quero tanto que ele vá.”

Ódio a tudo que é distinto, nobre, elevado

Imaginemos agora o contrário:

Um de nós está folheando um álbum com fotografias do Palácio de Versailles. Alguém se aproxima e pergunta:

– O que tem Versailles de extraordinário?

– Ora, Versailles é uma obra de Deus.

– De Deus não, foi o Rei Luís XIV que mandou o arquiteto Mansart fazer os planos e construir o palácio. Deus não entrou em nada nisso.

– Versailles é filho dos homens, é verdade, mas os homens são filhos de Deus; logo, Versailles é um neto de Deus, como diz Dante Alighieri. Tudo o que existe, direta ou indiretamente, foi feito por Deus. Portanto, admire esse palácio porque é um meio de chegar até o Criador. Pois para amar a Deus que não vemos é preciso amarmos as criaturas terrenas que vemos. Versailles é uma criatura de Deus; amemo-la para amarmos inteiramente a Deus. Você não o acha bonito?

– Sim, e precisamente por isso eu o odeio, porque detesto tudo quanto é nobre, distinto e eleva o espírito.

Aqui estariam delineadas duas visões opostas da vida: uma é a dos filhos da luz, de Nossa Senhora, Ela mesma de uma perfeição, beleza e santidade maiores do que tudo quanto possamos imaginar. A outra é a dos filhos das trevas.

Santa Bernadette era de educação muito primitiva…

No século XIX, na gruta de Massabielle, na cidadezinha de Lourdes, Nossa Senhora apareceu a uma camponesa chamada Bernadette Soubirous, filha de um casal extremamente pobre. Era gente do povo, reta, de costumes muito bons, mas de educação bastante primitiva, porque eram trabalhadores manuais da terra e não tinham contato com nada de superior, de mais elevado.

Um dia em que estava perto dessa gruta, Bernadette escutou uma voz e, olhando para o seu interior, viu uma Senhora de uma beleza admirável. Era Maria Santíssima em pessoa que começou a dirigir-lhe a palavra. A jovem camponesa, com toda a simplicidade, principiou a falar com Nossa Senhora, mantendo as mãos postas na atitude de quem reza.

A Santíssima Virgem deu-lhe uma série de explicações e depois acabou recomendando-lhe que arranhasse a terra ali onde ela estava, pois começaria a aparecer água. A água se tornaria mais abundante e, de um simples filão, passaria a ser uma corrente de água forte, grande; usando essa água muitas pessoas se curariam e ali se tornaria um lugar onde Nossa Senhora seria muito glorificada.

Bernadette imediatamente começou a arranhar o chão, que era uma terra comum. E, para seu espanto, ela viu que de repente começou a minar água, apareceu um regato e formou-se o tal curso de água.

Houve várias visões e Santa Bernadette, em sua ingenuidade, contava para o povo. Então, cada vez que estava marcada uma aparição de Nossa Senhora, um número crescente de pessoas vinha para presenciar o fato.

A Santíssima Virgem só aparecia para Santa Bernadette, a qual falava de tal maneira que se percebia estar vendo alguém, embora os circunstantes não ouvissem as respostas de Maria Santíssima.

…mas se nobilitava quando conversava com Nossa Senhora

Certa ocasião li este bonito depoimento de um padre que presenciou as aparições: ele, que frequentara ambientes da alta sociedade, tratara com gente de muita categoria e vira, portanto, senhoras de muita distinção, declarava nunca ter notado um sorriso tão bondoso, uma atitude tão fina, distinta e amável num rosto feminino, do que em Santa Bernadette quando conversava com a Santíssima Virgem. Portanto, segundo ele, não havia marquesa nem duquesa francesa que se comparasse com a elevação de Santa Bernadette que, nesses momentos, se nobilitava inteira e ficava com uma distinção extraordinária. Terminada a conversa, ela voltava imediatamente a apresentar a fisionomia tosca de uma simples camponesa.

Esse pormenor das aparições de Lourdes mostra bem o quanto Deus ama tudo aquilo que é distinto, nobre, que se parece com a Mãe Santíssima d’Ele, a mais perfeita das criaturas.

Há uma canção na qual Nossa Senhora é invocada como “summi Regis palatium” – palácio onde habita o sumo Rei. Ela é comparada a um palácio porque o Verbo de Deus, ao encarnar-Se, habitou dentro d’Ela. Durante todo o tempo em que o Corpo sagrado de Nosso Senhor esteve sendo gerado e desenvolvido pela Santíssima Virgem, até o momento do nascimento, Ela foi o palácio de Cristo na Terra, mais excelente e magnífico do que todos os palácios reais e de tudo quanto se possa imaginar, porque feito para abrigar Aquele que é o próprio Deus feito Homem.

Explosão de ódio contra tudo quanto é grandioso, nobre, legítimo, bom

Isso posto, compreende-se que se daquelas duas mentalidades opostas acima descritas – uma favorável e outra contrária à existência de palácios – se constituíssem dois grupos de homens, eles entrariam em luta um contra o outro, porque um amaria e outro odiaria tudo quanto é verdadeiro, bom e belo. Teríamos uma luta tremenda parecida com a batalha entre São Miguel Arcanjo e os Anjos bons, de um lado, e os demônios capitaneados por Lúcifer, de outro lado.

Ao se revoltar contra Deus, Lúcifer, até então o anjo que conduzia a luz, tornou-se trevas e a mais hedionda das criaturas, pois odiou Aquele que é a Verdade, o Bem e a Beleza.

Essas considerações resumem o sentido da Revolução Francesa. Todos os elementos de verdade, bondade e beleza existentes na Terra antes dessa Revolução foram construídos, organizados por pessoas dotadas de um espírito voltado para Deus, que eram segundo o Criador e amavam o verdadeiro, o bem e o belo.

Em sentido oposto, a Revolução Francesa foi a explosão do ódio daqueles que detestavam tudo quanto é grandioso, nobre, legítimo, bom, e queriam estabelecer um mundo chulo, desordenado, imoral, sem fé.

Tal Revolução foi uma revolta dos homens que se deixaram dominar pelo Inferno, para acabar com tudo quanto era elevado, belo e bom na Terra.

Por essa razão, como não queriam que houvesse reis, rainhas, nobres, palácios, grandeza nem beleza, estragaram aqueles parques, quebraram ou roubaram os objetos do palácio, espandongaram os lustres, despedaçaram os espelhos. Aprisionaram a família real, culminando, após meses de tormento e de abominação, na condenação à morte do Rei Luís XVI, da Rainha Maria Antonieta e de uma irmã do Rei, Madame Elizabeth, dando início ao período histórico chamado do Terror, em que bastava alguém ser nobre para estar condenado à morte.

A mais distinta, elevada e sofredora de todas as damas do século XVIII

Para encerrar, conto um fato que ilustra bem o espírito que animava a Revolução Francesa.

Morto o Rei Luís XVI, a Rainha ficou viúva. Chegou o dia de ser apresentada ao tribunal para ser julgada, e ela queria muito salvar a própria vida para defender seus filhos, ainda crianças, pois não queria que estas fossem educadas pelos revolucionários.

Então Maria Antonieta preparou um discurso no qual ela mesma realizava a sua defesa, enquanto os revolucionários iriam apresentar testemunhas que fariam acusações falsas contra ela.

Certa noite, os revolucionários invadiram o recinto onde seu filho dormia. A mãe, embora fosse uma dama frágil, lutou contra eles fisicamente para defender o menino, mas afinal não pôde resistir, e os revolucionários o raptaram, tendo ele passado meses sem ver a mãe.

Estabelecido o tribunal revolucionário, o menino entra como testemunha para depor contra a própria mãe. Ele calçava tamancos ordinários muito grandes, dentro dos quais puseram palha para não caírem dos pés; estava bêbado e ao ver a mãe não teve o menor sentimento de afeto, permanecendo parado com uma cara abestalhada.

O presidente do tribunal disse a ele:

– Menino, conta aqui a todas as pessoas presentes os crimes que a tua mãe cometeu contigo.

Haviam ensinado para ele, como a um autômato, a mais infame das coisas. O menino disse que sua mãe o tinha iniciado na imoralidade.

Maria Antonieta ouviu aquilo e, diante dessa acusação torpe que todo mundo via ser uma calúnia, notando que a galeria estava cheia de mulheres do povo, disse: “Eu apelo a todas as mães da França para que digam se acreditam nessa acusação”.

As mulheres bateram palmas à Rainha a mais não poder.

Contudo, era o período da Revolução Francesa em que se dizia ser a época da liberdade, mas na realidade imperava a tirania. O presidente do tribunal, que deveria declarar inválido o testemunho de uma criança bêbada, sobretudo quando ela diz algo que ninguém podia acreditar e apenas provava a infâmia dos acusadores, entretanto deu ordem para retirarem da sala todas as mulheres, a fim de evitar que aplaudissem novamente Maria Antonieta. E, por fim, condenou-a à morte. Assim morreu a mais distinta, elevada e sofredora de todas as damas daquele século.

Podemos afirmar que o mal nunca teve, depois da morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, tanta desfaçatez, tanta audácia em se mostrar, como na Revolução Francesa. De maneira que na luta entre o bem e o mal, a verdade e o erro, o belo e o feio, essa Revolução é um episódio central e uma espécie de ponto culminante. Não compreende os fatos que vieram antes nem depois quem não analisa a Revolução Francesa assim. Ela pode ser considerada, sob esse ponto de vista, como um grande e horrível livro no qual, entretanto, se aprendem verdades terríveis e admiráveis.            v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/4/1993)

Revista Dr Plinio 239 (Fevereiro de 2018)

 

Oração para pedir a troca de vontades

Coração Sapiencial e Imaculado de Maria, que simbolizais a mentalidade sagrada, a vontade santíssima, a perfeitíssima disciplina da Mãe de Deus, nós Vos pedimos: abri-Vos para nós.

Considerai nossas mentes infiltradas de máximas revolucionárias! Tende em vista as nossas vontades debilitadas por toda espécie de maus hábitos e pressões decorrentes do ímpeto da Revolução!

Olhai para a nossa sensibilidade trabalhada pelos mais nocivos fermentos do mundo satânico que a Revolução vem desenvolvendo, e tende pena de nós! Nós Vos pedimos que substituais nossas mentalidades revolucionárias, de maneira que nossos princípios reflitam, com a fidelidade perfeita, a doutrina e o espírito da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Trocai a nossa vontade  corrompida, substituindo-a pela vossa sem mancha, sem hesitação, sem concessões! Substituí nossa sensibilidade pela vossa, ordenada, equilibrada, puríssima, em tudo obediente à vossa vontade e inteligência!

Vós sois, Coração Imaculado, o Sacrário do Espírito Santo. Habitai no meu coração para que o vosso Divino Esposo habite em mim e eu seja um templo d’Ele! Dai-me, assim, ó Coração Sapiencial e Imaculado de Maria, o “Grand Retour” tão desejado e fazei-me um discípulo perfeito vosso! Amém.

Sacralidade e beleza em duas pontes europeias

Em sua contínua busca da sacralidade e beleza nas coisas, Dr. Plinio era levado a analisar tudo sob este ponto de vista. Tecendo considerações a respeito de duas pontes — uma veneziana e outra francesa —, descreve o que elas têm de sacral e dessacralizante.

A ponte do Rialto tem como característica marcante a extrema delicadeza da estrutura do arco. Nota-se que houve a intenção de fazer a ponte coberta, de maneira a garantir os transeuntes contra a chuva. Mas essa ideia funcional foi superada de tal maneira, que nem se é levado a pensar nela diante da delicadeza das arcadas sucessivas e do movimento de ascensão de uma parte e de outra, terminando num elemento monárquico e central que dá vagamente a impressão de um nicho de imagem num arco de triunfo.

Delicadeza e seriedade

De tal modo a parte funcional foi englobada pela parte arquitetônica, artística, que uma pessoa que olhasse para a ponte do Rialto não pensaria em chuva, nem em galeria, nem em nada disso. Teria a impressão de que isso foi colocado ali em cima como mero enfeite, o qual se destaca por um misto de delicadeza e de seriedade. Há seriedade aí porque há pensamento em tudo, há um desejo verdadeiro de fazer as coisas muito bem feitas, com uma grande aplicação de espírito.

Essa aplicação de espírito, entretanto, se disfarça a si própria de maneira a se ter a impressão de que o artista que concebeu isso desenhou em poucos minutos e mandou colocar ali em cima essa estrutura. Chamo a atenção para os menores acabamentos. Notem a balaustrada como é bonita. Depois, o próprio arco da ponte, como é de um movimento delicado.

Passando por debaixo, as águas prestigiosíssimas de Veneza, que parecem carregar consigo a beleza de todos os palácios por onde elas se movimentam.

Vê-se aqui a proa de uma gôndola e outras embarcações. Na gôndola temos algo de muito delicado e que afirma vigorosamente a superioridade do espírito sobre a matéria, da arte sobre o funcional, do nobre sobre aquilo que é vulgar. O gondoleiro é um homem do povo; contudo, notem a elegância, a beleza do movimento e da posição dele; a nobreza com que ele desloca esse imenso remo. Ele está fazendo força, mas não nos dá ideia, nem um pouco, de uma força vulgar. Dir-se-ia quase que ele está executando uma figura especialmente para ficar elegante nessa fotografia.

Hierarquia de valores e predomínio do estético sobre o útil

Isso é sacral. Em que sentido é sacral? No sentido de que apresenta uma hierarquia de valores que conduz para o sacral, prepara para o sacral, sem que se possa afirmar diretamente que tenha uma nota intensamente sacral. O aristocrático, de si, tem uma parcela de sacral. Essa ponte, evidentemente, é aristocrática. O predomínio do estético sobre o útil tem qualquer coisa de sacral também, porque é uma forma de predomínio do espírito sobre a matéria.

Há qualquer coisa de sacral nesse elemento monárquico central da ponte. Poder-se-ia imaginar uma imagem colocada em cada um desses arcos, de tal maneira que não se diria que o sacral se sentiria isolado, expulso, maltratado dentro desse ambiente.

Eu deixo de me referir a esse pano, porque é uma propaganda comercial, e lamenta-se que aí esteja.

O que existe aqui de não sacral? Não há nenhum emblema, nenhum sinal religioso. A influência da Renascença quase não deixou reminiscência alguma da Idade Média dentro disso. E se é verdade que nesses arcos caberiam bustos de imagens, caberiam também bustos de grandes homens de Florença ou da Antiguidade. Num desses arcos se poderia pôr, tanto São João Evangelista, São João Batista, como Pitágoras ou deuses profanos. Quer dizer, a atmosfera da Renascença já entrou aqui. Entrou no quê? Tudo isso é muito bonito, muito nobre, mas tem qualquer coisa de fruitivo, que não foi feito para a contemplação, mas para o gozo da vida, para o prazer. E com isso vai abrindo as portas para coisas piores. Esse seria o comentário sobre a ponte do Rialto.

[Dr. Plinio comenta em seguida uma fotografia da ponte Alexandre III, situada sobre o rio Sena, em Paris.]

Doçura do gênio francês

Faz parte da doçura do gênio francês afirmar-se nas circunstâncias mais inesperadas. Esses bonitos lampadários são feitos de tal maneira que, ao menos a mim, causam a impressão de que são vidros de perfume. A forma, o colorido é tal que, se soubéssemos que se guarda perfume dentro deles, acharíamos natural. Quer dizer, há qualquer coisa de mesa de toilette nessas luminárias. Elas são tão bem trabalhadas, tão doces, tão delicadas que não parecem ter sido feitas para estar expostas à intempérie: neve, todos os ventos soprando; entretanto, no meio de tudo isso a nota francesa põe essa doçura, essa suavidade que é própria do espírito francês.

Essa doçura, entretanto, se afirma também em uma coisa que Deus pôs na França — não foram os franceses que fizeram; eles se inspiraram na doçura da natureza da França. Vejam essa árvore reduzida apenas a um esquema, porque toda a folhagem desapareceu. Ficou só a galharia. Considerem a beleza da cor. Ela é de um marrom lindo! Percebem a delicadeza com que essa árvore deixa transparecer uma impressão de tristeza? A árvore é incapaz de tristeza, mas dir-se-ia que ela está triste, desolada. Essa galharia dá a impressão de penachos caindo; são penachos isolados que se estendem pelo céu, levados ao vento. Mas tudo tão esguio! Cada um desses galhozinhos se entronca no outro com tanta elegância e cai de um modo tão langoroso, que se diria que essa árvore é quase romântica. Não é romântica porque ela é feita pela natureza, não foi modelada por nenhum escultor.

A entrada da ponte é monumental. Uma coluna no alto da qual se encontram figuras finas, segurando espadas, e cujos braços efetuam gestos elegantes, delicados. Tudo isso dá a impressão de algo de etéreo, e também de muito nobre. A nota aristocrática está visivelmente presente na construção dessa ponte. A nota espiritual, no sentido de predomínio do espírito sobre a matéria, que a modela de maneira a se pensar numa porção de coisas espirituais, de estados de espírito do homem, também está presente.

Obra da ”Belle Époque” com eflúvios do ”Ancien Régime”

Também nessa ponte vemos o predomínio do artístico sobre o funcional. Essas são afirmações de sacralidade. Quando contemplamos essas lâmpadas, achamo-las tão bonitas que temos a impressão de serem enfeites desenhados para esse lugar, e nem pensamos em sua utilidade.

Entretanto, podemos dizer que a nota fruitiva está mais presente do que na ponte do Rialto. Essa ponte francesa é obra da “Belle Époque”, uma época histórica que se desenvolvia na França sob o regime republicano, mas dentro do quadro de uma Europa inteiramente monarquista e de uma sociedade francesa ainda profundamente aristocrática. Há eflúvios de “Ancien Régime”(1) que estão presentes nisso. Mas a sensação de gozo da vida é intensa. A ideia da capital de todos os prazeres do mundo, de uma ponte construída para causar sensações agradáveis aos olhos, para divertir o homem, para dar-lhe vontade de viver nesta Terra, também parece muito presente aqui.

De maneira que esse seria o lado, a meu ver, dessacralizante da ponte Alexandre III.

Quanto à Idade Média, nem se põe sequer uma consideração a respeito. Se o Rialto tem ainda um vago perfume de Idade Média, aqui há um perfume de “Ancien Régime”. Portanto, um perfume muito menos denso de Contra-Revolução do que o da Idade Média.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/2/1971)

1) Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.

A necessária virtude da previdência

Dentre os valiosos conselhos legados por Dr. Plinio aos seus seguidores destaca-se, com a ênfase que nos tem sido dado conhecer ao longo destas páginas, o constante apelo à confiança na maternal e infalível misericórdia de Maria Santíssima. Disposição de alma essa que ele recomendava, sobretudo, para as encruzilhadas da vida espiritual e os momentos cruciantes do quotidiano terreno.

Porém, ao lado da confiança, empenhava-se Dr. Plinio em incentivar a prática de outra virtude, não menos importante e necessária que aquela — a da previdência. Assim, ensinava ele: “O homem previdente procura perceber o perigo quando este é ainda pequeno e remoto, pois melhor se prepara o confronto contra algo distante, e mais facilmente se vence o que tem menores proporções.

“Ora, na existência de todos os dias constatamos que a maior parte das pessoas não possui o hábito dessa previdência. Na teoria, todos concordam com o acerto de tal atitude de espírito, mas, de fato, poucos a observam. Deixa-se o perigo remoto e pequeno crescer, avolumar-se, imbuídos da ideia segundo a qual, em última análise, sempre pode sobrevir um imprevisto que afaste o risco. Desse modo, não nos aflige a preocupação de estarmos atentos quanto a uma eventualidade ruim. Esta, provavelmente, se resolverá por si mesma.

“Ademais, aos imprevidentes acode amiúde a noção de que para tudo há o famoso ‘jeitinho’: caso o perigo se torne grande, ao invés de se fazer um imenso esforço e preparar uma tenaz investida contra ele, dá-se um ‘jeitinho’ e o mal se afasta…

“Devemos nos lembrar, porém, desta outra verdade: se o ‘jeitinho’ por vezes soluciona, o mínimo que se pode dizer é que por vezes não nos socorre. E se alguém não deseja ser derrotado em nenhuma circunstância, o remédio é ser continuamente previdente, pois, do contrário, num belo momento ele não prevê o perigo, este cresce de modo súbito e o estrangula. Portanto, quem possui o senso da responsabilidade e do dever, não pode pensar de outra forma.

“Essa disposição de alma, mais do que em relação às dificuldades temporais, vale para enfrentar os perigos da vida espiritual. Começa a se delinear em nós um pequeno defeito. Se o combatermos de imediato, nossa integridade espiritual estará salva. Se lhe opusermos resistência apenas quando ele avulta, já nos tornamos débeis: diante do defeito fraco, o homem é forte; diante do defeito forte, o homem é fraco.

“Cumpre, pois, termos uma vigilância continuamente voltada para nossa vida interior. Importa sermos desconfiados contra nós mesmos. De Plinio Corrêa de Oliveira quem mais deve desconfiar é Plinio Corrêa de Oliveira, pois o principal responsável por mim junto a Deus e à Santíssima Virgem sou eu próprio. E como me sei concebido no pecado original, portanto com más inclinações e defeitos, devo nutrir desconfiança contra essas imperfeições, não lhes fazendo concessão alguma, vendo todos os ardis que a fraqueza humana pode sugerir em mim para ceder a elas. Desse modo as poderei vencer. Se não combato a pequena lacuna, a armadilha quase imperceptível, dentro em pouco estarei na voragem de uma tentação sob a qual posso sucumbir.

“Vigiai e orai para não cairdes em tentação, recomendou o Divino Mestre. Quer dizer, é preciso vigiar, é necessário prever. O homem vigilante e previdente não se assusta com a proximidade do perigo, pois já se preparou para enfrentá-lo, planejou todos os lances da luta e compreende que fez o que devia ter feito. Sobretudo suplica o misericordioso auxílio de Nossa Senhora, principal fator de qualquer êxito na vida espiritual. Nosso próprio esforço será indispensável, porém secundário: o elemento primordial é a graça divina, obtida pelo Sangue de Jesus Cristo, sempre sob o poderoso amparo de Maria Santíssima.

“Pelo contrário, o homem imprevidente e sem vigilância procura não pensar no perigo e quando este se apresenta, não sabe como agir. Aturdido, não encontra os meios adequados para se defender em tal confronto. Pode ser derrotado. Já o vigilante, mesmo diante do revés, não se deixa esmorecer. Recobra forças e novo ânimo face ao infortúnio. Sua consciência está tranquila, pois ele procedeu como devia. Sabe que Nossa Senhora o protegerá ainda mais. Outras e maiores vitórias lhe estão reservadas.”

Plinio Corrêa de Oliveira

Desigualdade: um bem ou um mal?

Como devemos considerar as pessoas superiores a nós? Admirando-as por suas qualidades, ou invejando-as por não sermos iguais a elas? Igualdade e desigualdade, até que ponto constituem um bem para o homem?

 

É notória a complexidade do universo. Nele há seres inteligentes como o homem; seres dotados de vida, mas sem inteligência, como os animais e as plantas; seres sem vida nem inteligência, como os minerais.

De fato, à medida que a Ciência progride e verifica quão numerosos são os seres que compõe o universo, constatamos as inter-relações e as desigualdades postas na criação.

Os anjos são mais numerosos que os homens

Ora, as ciências naturais nos apresentam algo muito inferior ao que alcançamos pela Fé. Sabemos existirem os anjos, puros espíritos que não podemos ver. E a Teologia nos ensina serem os anjos incomparavelmente mais numerosos do que os homens.

São Tomás dá para isso uma bonita explicação, apresentando uma razão metafísica que toca no estético: a Criação é excelente; o melhor deve ser mais numeroso1. Ora, como puros espíritos, os anjos são superiores a quem não é puro espírito.

Suponhamos um tapete. O que ocupa mais espaço, a franja ou propriamente o tapete? É o tapete. Pois uma franja enorme e um tapete pequenino é uma coisa caricata. Ora, o tapete da Criação são os anjos, puros espíritos. E à medida que vai se aproximando da matéria vem a franja. Então, os anjos são mais numerosos do que os homens.

Compreende-se que haja uma escala, e no alto, como qualidade e quantidade superiores, estão os anjos.

A desigualdade entre os anjos é maior do que a existente entre os homens

Não devemos imaginar que um anjo está para outro anjo como um homem para outro homem. Nós, homens, por mais diferentes que sejamos uns dos outros, somos da mesma espécie. Os anjos, não. Cada anjo é de uma espécie diferente da do outro2.

E o anjo inferior foi feito para servir o superior; aquele é menos inteligente e tem uma capacidade menor de amar do que este. Por causa disso, recebe de Deus uma glória e uma graça menor do que aquele que está acima.

Assim, se fôssemos fazer um gráfico do mundo angélico, traçaríamos uma espécie de fio de linha enorme, em que cada anjo seria um ponto; cada um deles está a serviço do anjo superior, e através deste conhece a Deus, mas ele mesmo também vê diretamente o Criador. Todos os anjos O veem diretamente, mas não contemplam tudo; e pelos anjos superiores cada anjo inferior conhece alguma coisa mais a respeito de Deus.

Dessa forma, a desigualdade entre os anjos é enormemente maior do que a existente entre os homens. Ora, os anjos são uma porção da Criação muito mais preciosa do que os homens.

Devemos agradecer a Deus por ter criado pessoas superiores a nós

Vemos assim que a desigualdade é algo existente no universo, de tal maneira que em sua parte mais excelente ela ainda é maior. Podemos então fazer as seguintes perguntas: Foi bom que Deus fizesse assim? Não teria sido melhor que Ele criasse todos os anjos iguais? E que desse a nós homens a natureza dos anjos? E concedido aos animais, às plantas, aos seres inanimados, inteligência e vontade como os maiores dos anjos? Ou, então, que Deus não fizesse anjos, mas só nós, homens, e todos iguais uns aos outros? Não seria mais justo? O Criador não teria desse modo revelado mais bondade?

Alguém diria: Pareceria que sim, pois sempre que um homem vê um superior ele se entristece, por desejar ser igual ao outro. Sendo assim, Deus, criando a desigualdade, fez uma fonte de tristeza. Ora, não é próprio à bondade criar a tristeza. Logo, Ele não deveria ter feito a desigualdade.

Primeiramente, não é verdade que cada homem, quando vê no outro um superior, fica triste. A tristeza pelo fato de ver que outro tem mais é própria do invejoso.

De acordo com a Doutrina Católica, quando vemos alguém que tem mais do que nós, possui uma perfeição por onde se parece mais com Deus, devemos nos alegrar.

Qual deveria ser a reação de quem tivesse a honra de conhecer São Tomás de Aquino?

Dou uma comparação. Eu creio não ofender a ninguém dizendo que São Tomás de Aquino era incomparavelmente mais inteligente do que qualquer um de nós. A prova disso são algumas confidências que ele fez a Frei Reginaldo, irmão leigo, uma espécie de secretário dele. São Tomás disse-lhe nunca ter feito uma leitura sem que se lembrasse com toda a facilidade, para a vida inteira, de tudo quanto tinha lido. De outro lado, ele nunca precisara reler nada, porque tinha entendido até o fundo tudo quanto lera.

Algo desconcertante em sua obra é que, para resolver os problemas, ele cita de um modo triunfal trechos da Bíblia, os quais passariam despercebidos para outros. Vê-se que ele conhecia a Bíblia perfeitamente. Pode-se dizer que possuía uma inteligência incomparável, fabulosa.

Sabendo que São Tomás foi tão mais inteligente do que eu, se tivesse a honra imerecida de conhecê-lo, qual deveria ser a minha reação?

Imaginemos que ele estivesse aqui ao meu lado, e eu ousando fazer esta conferência em sua presença. São Tomás era um homem alto, corpulento, com pescoço muito grosso — os colegas o chamavam de boi, porque ele tinha olhos grandes, era calmo, constantemente pensando. Eu me perguntaria: “Que coisas sublimíssimas ele está cogitando a respeito do que estou dizendo?”

Creio que, na hora de ele falar, os presentes neste auditório ficariam em suspense: “O que ele vai dizer eu anoto, gravo, fico ajoelhado, rezo, já que tal homem vai falar na minha presença!”

O invejoso, espiritualmente descendente de Caim, diria: “Por que Deus não me fez igual a São Tomás?”

E o homem reto, espiritualmente descendente de Abel, exclamaria: “Que maravilha é essa obra-prima do Criador, São Tomás de Aquino! Considerando sua grande inteligência, compreendo melhor como Deus é inteligente. Portanto, através do seu conhecimento, conheço melhor a Deus. Como agradeço ao Criador o ter-me dado São Tomás, imagem viva, criada, da infinita e incriada inteligência d’Ele! Meu Deus, eu Vos agradeço do fundo da alma; vi um pouco de Vós em São Tomás de Aquino.” Esse é um homem segundo Deus.

O superior deve ser uma imagem de Deus para o inferior

Conforme a Doutrina Católica, a desigualdade existe para que os seres superiores imitem melhor o Criador e O tornem mais conhecido pelos que são menos. Por causa disso, todo maior, se corresponder à sua vocação, deve ser para o menor como uma imagem de Deus.

São Tomás de Aquino exemplifica com a riqueza. Ele pergunta se é bom que haja pessoas mais ricas do que outras.

E responde que é bom porque os mais ricos, dando aos mais pobres, fazem que estes compreendam o que é a generosidade e, desse modo, entendam e amem a generosidade de Deus. A generosidade do rico para com o pobre é uma imagem criada da generosidade do Criador para com o homem. A desigualdade de fortuna, portanto, é um bem.

Alguns seres devem velar por outros

Há dois princípios que regem o problema da desigualdade: o maior é uma imagem de Deus para o menor; em todo o universo, uns seres devem velar pelos outros.

Embora Deus cuide diretamente das criaturas, Ele concebeu a Criação de modo que uns seres velam por outros. Assim, os anjos maiores governam os menores; os homens superiores dirigem os inferiores.

Quer dizer, há uma colaboração: os maiores orientam e elevam os inferiores até Deus; estes os servem. Nesta colaboração, que não poderia existir se os seres fossem todos iguais, se afirma o plano do Criador. Por esta forma, na desigualdade, vemos realizar-se a Providência de Deus.

A desigualdade é um meio para amarmos a Deus

Que atitude devemos tomar diante daqueles que são mais do que nós? De respeito, reverência e de agradecimento a Deus pelos dons que lhes deu. Devemos nos alegrar pelos dons que lhes foram concedidos pelo Criador, e também porque esses dons são benéficos para nós.

Por exemplo, falando sobre a inteligência de São Tomás de Aquino, estou certo de que abri os horizontes de alguns dos presentes, pois não imaginavam que houvesse homens tão inteligentes. Ao imaginá-los, em algo esclarecemos a nossa própria inteligência.

São Tomás morreu, sua alma está no Céu e seu corpo se desfez em pó. Num continente que ele não sabia  existir, a América; num país que não imaginava que existiria, o Brasil; numa cidade a qual não pensava que um dia haveria, São Paulo; no local onde no tempo dele talvez houvesse uma taba de índio, entretanto, no ano de 1975, a recordação de São Tomás de Aquino abre horizontes.

É um bem para nós que ele tenha existido. Trata-se de uma desigualdade benfazeja. Assim devemos olhar aqueles que são mais do que nós.

Pulcritude da hierarquia existente na Igreja

Esta impostação de alma explica, em boa parte, a diferença entre os católicos e os protestantes. No ápice da Igreja existe a figura do Papa, monarca da Igreja universal, Vigário de Cristo, a quem foi dito: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela.” (Mt 16,18). Mais do que um Papa não se pode ser.

Lendo a história dos grandes imperadores romanos, tem-se a impressão de que foram homens como depois não houve mais na Terra. Ora, qualquer Papa tem muito mais poder do que Júlio César. Um Pontífice, hoje em dia, governa seiscentos milhões de católicos3, mais ou menos, e não é um poder como o de César, na ponta da lança, mas espiritual, que obriga em consciência. Ele fala e os outros devem crer.

Houve alguma vez na História um poder igual a este? “Tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus”  (Mt 16,19). O católico se rejubila com isso. Quão belo é haver na Igreja um chefe, um rei, uma cabeça tão alta e adornada com poderes tão esplêndidos! E, logo abaixo do Soberano Pontífice, os príncipes da Igreja, os Arcebispos, os Bispos, colocados cada qual para governar uma parcela da Igreja universal, sob a autoridade do Papa! Como é pulcro ver um Bispo que entra numa igreja, de mitra, com báculo, e o coro cantando a plenos pulmões: “Tu és sacerdote eternamente, segundo a ordem de Melquisedech”; ele avança, o povo se ajoelha e o Bispo distribui as bênçãos de um lado e de outro, usando luvas bordadas a ouro e um anel de ametista. Que beleza!

Alguns dizem o contrário: “Por que não eu? Seria bom aplicar o livre exame… nada de infalibilidade! Sou tão infalível quanto o Papa. Na minha cabeça sou eu que mando. Nada de Papa!” Outros afirmam: “Nada de Bispos!” E outros declaram: “Nada de padres!” Tais indivíduos são movidos pelo orgulho, portanto pela inveja. Nós somos movidos pelo Espírito Santo e, portanto, pelo espírito de abnegação, de respeito, de amor. A pessoa que compreende quem é um Papa entende muito melhor quem é Deus Nosso Senhor. O Papa e Bispos são imagens vivas de Deus.

Cosmos: um conjunto de coisas ordenadas

Passemos agora ao ponto terminal da conferência.

A desigualdade é um bem, mas não é o único bem que existe no universo. Todos conhecem a diferença que há entre caos e cosmos.

Na linguagem comum, corrente, caos é uma desordem, um amontoado de coisas que não têm relação entre si. Por exemplo, se chegássemos aqui nesta sala e encontrássemos as cadeiras em desordem, algumas delas dependuradas no teto com cordéis, os lustres no chão, perguntaríamos: “Quem fez esse caos?” Todo mundo acharia a palavra “caos” bem aplicada, pois ela se refere ao conjunto de coisas que não estão colocadas em ordem, umas em relação às outras.

Cosmos é, pelo contrário, um conjunto de coisas postas em ordem entre si. Por isso dizemos que Deus criou um cosmos ou um universo. As palavras “cosmos” e “universo” querem dizer a mesma coisa, ou seja, tudo ordenado.

Para que as coisas estejam ordenadas, é preciso que elas sejam, de algum modo, iguais e também desiguais. Porque se forem totalmente desiguais, não há ordem possível entre elas.

Imaginemos que alguém veja um sapato, um canário, uma fotografia de Churchill e diz para um subalterno: “Ponha esses objetos em ordem nesta mesa.” Não há ordem possível, porque são coisas totalmente heterogêneas. A ordem supõe certa relação.

Se fossem três fotografias de Churchill, poder-se-ia colocá-las em ordem, considerando o tamanho da foto, a idade dele etc. Ou, então, três canários ou três sapatos poderiam ser postos em ordem.

A igualdade e a desigualdade devem compor-se para formar uma ordem

Quer dizer, para se pôr em ordem as coisas é preciso que elas tenham algo de comum e também desigualdades fáceis de se perceber. Se uma pessoa faz três cópias de uma fotografia de Churchill e me pede para pô-las em ordem, eu respondo: “Meu caro, a olho nu, não! Se você me der uma superluneta, vou verificar que há entre as cópias alguma diferença de tamanho; mas a olho nu, sem eu perceber as desigualdades existentes entre elas, não é possível colocá-las em ordem.”

A ordem supõe um misto de igualdade e desigualdade. Assim, para que houvesse cosmos eram necessários seres por algum lado iguais e por outro lado desiguais.

A desigualdade não é um mal, é um bem. Ambas — a igualdade e a desigualdade — devem compor-se para formar uma ordem.

Esta é a tese da Doutrina Católica, mas que nosso Movimento exprime e reproduz. Deve haver entre as coisas uma hierarquia proporcionada e harmônica. Uma hierarquia desarmônica não vale nada, porque destrói essa relação.

Apresento mais um exemplo muito ao alcance dos que estão neste auditório, porque quanto mais eu der exemplos fáceis, tanto menos canso a mente dos presentes, que podem assim melhor acompanhar a doutrina.

A lei da proporção concilia a igualdade com a desigualdade

Um exército possui uma hierarquia: general, coronel, tenente-coronel, etc. Se alguém me disser: “Dr. Plinio, o exército do país X é excelente; nele há generais e tenentes-coronéis, mas não coronéis”, farei a observação: “É preciso verificar, pois, se for assim, as coisas não funcionam. Porque todo exército é uma engrenagem; em certo momento, uma ordem tem que passar pelo coronel, e, se este posto não existir, será um exército manco.”

Porque na verdadeira hierarquia, entre o mais alto grau até o ínfimo, é preciso que haja vários graus intermediários, de maneira que entre o maior e o menor exista uma proporção. Trata-se da lei da proporção, que concilia a igualdade com a desigualdade.

Imaginemos uma escada muito bonita, em que os degraus mais altos sejam menores e, à medida que se vai descendo, os degraus se tornam longos; a escada vai se abrindo. É uma obra-prima. Se nessa escada faltasse um degrau intermediário, ela se tornaria horrenda, uma caricatura, porque perdeu a proporção entre o degrau mais alto e o mais baixo.

Então a hierarquia deve ser proporcionada, de maneira que entre o maior e o menor haja sempre um contato, uma proporção.

É o que vemos na Igreja Católica. O Papa está colocado no fastígio; abaixo dele estão os Cardeais, depois os Arcebispos, os Bispos, os Monsenhores, os Cônegos e depois os simples Padres. São graus que, de alto a baixo, existem dentro da Igreja. Isso torna suave o acesso ao Papa e estabelece uma engrenagem que faz da hierarquia algo amável, afável e agradável; há um misto de igualdade e desigualdade.

Assim, fica demonstrado como devemos ter espírito hierárquico.

Deve-se desejar progredir para servir a Deus

Tratarei finalmente da seguinte questão: Se é bom que haja desigualdade, nunca se deve procurar subir?

Depende da razão pela qual a pessoa queira progredir. Se desejar subir por amor de Deus, para servi-Lo — não por orgulho —-, ela está agindo conforme a ordem do universo. A pessoa deve procurar progredir na proporção dos meios que o Criador lhe concede.

Por isso um indivíduo estuda e torna maior sua ciência, outro trabalha e aumenta seu dinheiro, um terceiro faz exercícios físicos e desenvolve sua musculatura. Deus dá a cada pessoa possibilidades para se aperfeiçoar. Na medida em que procuremos a perfeição para ficarmos mais semelhantes a Deus, é bom subir.

Se uma pessoa, por exemplo, quer cantar e diz: “Como o cântico harmonioso é uma bela criatura e a canção em si é bela, eu quero cantar para possuir essa beleza, que é um reflexo do Criador.” Isso é uma coisa justa, direita.

Entretanto, se ela pensa: “Não tolero que tal indivíduo saiba cantar e eu não. Então vou aprender a cantar apenas para ser mais que ele.” Isso é inveja, um pecado.

Também não é direito querer aprender alguma coisa, ou subir, em qualquer sentido da palavra, para ter o gosto de ver o outro em baixo. “Sou igual a meu irmão, mas vou dar uma tacada financeira e farei uma casa magnífica em frente à dele, que a transformará numa barraca.” Isso é um péssimo sentimento, vontade de oprimir os outros; não é uma coisa católica.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/1/1975)

Revista Dr Plinio (Fevereiro de 2012)

 

 

1) Cfr. Suma Teológica I, q. 50, a. 3.

2) Cfr. Suma Teológica I, q. 50, a. 4.

3) Atualmente, o número de católicos excede a cifra de 1.250.000.000.