Incondicional amor à Cátedra de Pedro

Ao comentar um filme documentário sobre a vida no Vaticano na época de Pio XII, Dr. Plinio manifestava, uma vez mais, sua fidelidade à Igreja na pessoa do Papa.

 

Acima de qualquer poder temporal, o Papado é o mais alto poder existente na Terra. É o mais alto, pois tudo quanto diz respeito ao sobrenatural vale mais do que aquilo que se refere ao natural, e o espírito vale mais do que a matéria. Ademais, o Papa tem um poder universal sobre todos os povos, em todos os lugares, enquanto as outras soberanias existentes no mundo são limitadas.

Alguém pode ser rei de um país ou presidente de outro; não há rei do mundo, nem presidente do mundo. Ora, o Papa é o Pastor do mundo inteiro, ele tem uma jurisdição sobre as almas de todo o orbe. O resultado é que, mesmo sob esse terceiro título — o menos importante de todos, mas que é tão importante — ninguém pode se comparar ao Papa.

Então, a ideia é a seguinte: sendo o Papa o representante de Deus na Terra e, portanto, do mais sobrenatural dos poderes, toda a ordem da graça está na mão dele, a ele compete exercer em sumo grau as faculdades de ensinar, de guiar e de santificar, próprias à Igreja Católica. Por exercer esse ministério de uma ordem tão transcendente, ele é o maior hierarca de toda a Igreja e, por isso, também deve estar cercado das maiores manifestações de respeito que a um homem possam ser tributadas.

Respeito, amor e força na monarquia papal

Por causa disso, toda a vida ao redor do Papa há de ser organizada de maneira a torná-lo objeto desse respeito e desse amor. O governo papal sobre a Igreja é uma monarquia que corresponde a três ideias: a ideia do respeito, a ideia do amor e a ideia da força.

A ideia do respeito, em primeiro lugar. O Papa deve ser venerado, como eu já disse.

Em segundo lugar, a ideia do amor. Se o Papa é o representante de Cristo na Terra, todo o amor que os homens tributam a Nosso Senhor Jesus Cristo deve ter como seu ponto de aplicação imediata o Papa, que representa Cristo na Terra.

Depois, a ideia de força. O Papa é um pastor. Os senhores não podem conceber um pastor que não tenha um papel de força a desenvolver, porque o pastor precisa defender as ovelhas contra o lobo. E, portanto, ele deve aplicar a força contra o lobo. O poder de governar as ovelhas tem como elemento intrínseco o de combater o lobo pelas armas espirituais.

Então os senhores veem em torno do Pontífice uma pompa que é religiosa, ao mesmo tempo paterna, mas também é uma pompa de força. E a nota força precisa ser um pouco salientada. Os senhores veem ali as guardas pontifícias: a Guarda Suíça, a Guarda Palatina, a Guarda Nobre — composta exatamente de elementos da nobreza romana —, que serviam ao Papa gratuitamente e se revezavam no serviço papal. Essas três milícias guarneciam os palácios do Papa. É claro que com uma primeira preocupação imediata de garantir a integridade pessoal do Pontífice, a ordem naquele enorme movimento de pessoas e a incolumidade dos colossais tesouros de arte que ali se encontram.

Uma visita que valia por um verdadeiro exercício espiritual

Assim, tudo era organizado de modo a que, em torno do Papa, esses sentimentos pudessem se exprimir. De maneira a ser dada a todos os que fossem ver o Papa a oportunidade de ter os seus sentimentos de devoção, de respeito, de amor, de temor diante da força, levados ao mais alto grau. Portanto, toda a organização ali visava a incutir nos fiéis os sentimentos que eles deveriam possuir.

Por esta razão, uma visita à Basílica de São Pedro e ao Palácio do Vaticano valia por um verdadeiro exercício espiritual do qual o fiel saía com sua alma mais aderente, mais unida ao Papa do que anteriormente.

Quando apareceu o cinema, a possibilidade de realizar filmes como esse e de passá-los ao mundo inteiro levou para os que não podiam ir até lá o espetáculo magnífico e cotidiano dentro do qual a vida de um Papa se desenvolvia.

É natural que, sendo o Papa a cabeça visível da Igreja, pessoas do mundo inteiro procurem ir a Roma para vê-lo. E o número dos que viajavam para ver o Sumo Pontífice — desde São Pedro, primeiro Papa, até nossos dias — foi se multiplicando à medida que os meios de locomoção se tornavam mais fáceis. De maneira a Roma passar a ser, sobretudo nos últimos cem anos, um ponto de atração dos estrangeiros, católicos de todas as partes do mundo chegando continuamente lá.

Os senhores viram, no filme, feridos de guerra, freiras que querem falar com o Papa. Havia de tudo. É um resumo do mundo que quer falar com o Papa. É preciso falar com o Papa!

Os senhores prestem atenção nas fisionomias das pessoas quando falam com o Papa, sobretudo depois de sua passagem. É quase a fisionomia de quem acaba de comungar. Recebeu do Pontífice uma palavrinha só, mas que palavrinha! É guardada na alma para a vida inteira: o timbre de voz, o sorriso, a temperatura da mão, como a mão apertou, como não apertou, os eflúvios, os imponderáveis que o Papa traz em torno de si, tudo isso a pessoa guarda para a vida inteira, e até para a hora da morte, porque é para a hora da morte que guarda.

Estar unido à Cátedra de Pedro até na hora da morte

Eu tive a experiência disso. Eu levei vários objetos para serem abençoados por Pio XII, entre eles algumas velas. As velas que se levavam para o Papa benzer eram velas lindas, que se vendiam na Via de la Conciliazione, todas trabalhadas, com relevos, com figuras, etc. Ele abençoou. Eu guardei de novo na minha pasta, com muitos outros objetos.

Quando cheguei ao hotel, pensei o seguinte — eu tinha a intenção de pôr uma vela dessas na sede do nosso Movimento e dar outra a minha mãe — eu pensei com meus botões: “O que é que eu vou fazer com essas velas? Uma dessas velas deve ser guardada para quando eu morrer. O agonizante católico morre com a vela na mão, e eu quero que a vela com a qual eu morra seja a vela abençoada pelo Vigário de Cristo. Assim estarei unido à Cátedra de Roma até quando eu estiver sem sentidos, até quando me encontrar entre a vida e a morte, e o meu intelecto não articular mais nenhum pensamento. Por minha recomendação, minha mão vai ser agarrada a esta vela que representa tudo aquilo que eu amo na Terra: o Papa, com o qual tudo quanto há na Terra é digno de amor e sem o qual nada é digno de amor, apenas de desprezo, porque está marcado pelo pecado original e pelo domínio do demônio.” É o movimento natural da minha alma.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/1/1976)

As cruzes bem aceitas diminuem as penas do Purgatório

A pessoa que compreende que o natural desta vida é sofrer tem suas paixões mais ordenadas, facilitando assim a prática da virtude. Contudo, se é avessa a todo e qualquer sofrimento ela se torna orgulhosa, pretensiosa, sensual, preguiçosa; enfim, desatam-se nela todos os desregramentos

As considerações externadas a seguir(1) desenvolvem a ideia de que uma das razões pelas quais devemos aceitar a cruz nesta Terra, é por ela nos abreviar as penas do Purgatório.

Expiar nesta vida as próprias faltas é um grande benefício

Mas se o castigo necessário dos pecados que cometemos for no tempo reservado para o outro mundo, a punição caberá à justiça vingadora de Deus, que leva tudo a fogo e sangue!

Castigo espantoso, inefável, incompreensível: “Quis novit potestatem iræ tuæ?”(2) Castigo sem misericórdia, “judicium sine misericordia”(3), sem piedade, sem alívio, sem méritos, sem limite e sem fim. Sim, sem fim: esse pecado mortal de um momento, que cometestes; esse pensamento mau e voluntário, essa palavra que o vento levou; essa açãozinha contra a Lei de Deus, que durou tão pouco, será punida eternamente, enquanto Deus for Deus, com os demônios no Inferno, sem que o Deus das vinganças tenha piedade de vossos soluços e de vossas lágrimas, capazes de fender as pedras! Sofrer para sempre sem mérito, sem  misericórdia e sem fim!

Será que pensamos nisto, queridos Irmãos e Irmãs, quando sofremos alguma pena neste mundo? Como somos felizes de poder trocar tão vantajosamente uma pena eterna e infrutífera por outra, passageira e meritória, carregando nossa cruz com paciência! Quantas dívidas temos a pagar! Quantos pecados temos, cuja expiação, mesmo após amarga contrição e confissão sincera, será preciso que soframos no Purgatório durante séculos inteiros, porque nos contentamos, neste mundo, de penitências leves demais!

Ah, paguemos neste mundo de forma amigável, levando bem nossa cruz! Tudo deverá ser pago rigorosamente no outro, até o último centavo, mesmo uma palavra ociosa (Mt 12, 36). Se   pudéssemos arrebatar ao demônio o livro da morte, onde anotou os nossos pecados todos e a pena que lhes corresponde, que grande débito verificaríamos e como nos sentiríamos encantados de sofrer, durante anos inteiros neste mundo, para não sofrer um só dia no outro!

Verdade que poucos tomam em consideração

São Luís Grignion desenvolve o pensamento em algumas considerações pormenorizadas, as quais merecem ser comentadas, tanto mais que fazem parte de um tesouro que todo mundo conhece, ou ao menos deveria conhecer, para conseguir a vida eterna.

Ele afirma que muitas pessoas, quando sofrem, não costumam pensar a respeito da vantagem que o sofrimento traz para elas em relação  ao Purgatório. Esta verdade é mais corrente do que se imagina. Entretanto, pouquíssimas são as pessoas que, ao sofrer alguma coisa, fazem o seguinte comentário: “Ainda bem, as minhas penas do Purgatório vão se tomar mais leves!” Embora esta verdade seja conhecida por todo mundo, quase ninguém a toma em consideração.

Porque há verdades tão surradas que nem nos lembramos delas. Entretanto, quando ouvimos serem  mencionadas, voltam ao espírito com enfaramento de nossa parte, tão conhecidas elas são. E quando alguém quer insistir sobre elas, vem a resposta: “Nós já sabíamos disso…”

Este é o último ponto de decadência em que uma verdade pode estar no espírito de alguém.

Infelizmente, esta verdade encontra-se neste estágio, até mesmo em muitos ambientes católicos. Por isso, julgo importante desenvolver este tema para refrescá-lo em nosso espírito.

Os sofrimentos desta Terra e os do Purgatório

O primeiro argumento dado por São Luís é de se tratar de um alto negócio trocar as penas do Purgatório pelos sofrimentos desta Terra. Porque estes são frutíferos, enquanto a pena do Purgatório não tem mais mérito. Nesta Terra, os padecimentos bem recebidos nos obtêm um lugar mais alto no Céu;   os do Purgatório, não. Portanto, tendo em vista a eternidade, é vantagem sofrermos nesta vida.

A maior parte das pessoas, ao receber uma adversidade, fica inconformada, revoltada, aborrecida, e este pensamento pode nos ajudar a carregar não sei quantas provações pelas quais temos de passar: “Estou sofrendo isto, mas, afinal de contas, o justo peca sete vezes ao dia; e na hipótese favorável de que eu seja justo, peco pelo menos sete vezes ao dia. Logo, estou expiando meus pecados aqui, mas conquistando méritos para o Céu, enquanto que no Purgatório eu não vou expiar com mérito”.

Outra consideração feita por São Luís é de que a pena nesta vida é rápida, passageira, enquanto no Purgatório pode ser longuíssima. Por exemplo, dez minutos sofridos aqui com paciência podem expiar um pecado que levaria dez ou cem anos para ser expiado no Purgatório. Lamentavelmente, há por vezes uma espécie de recuo da Fé, por onde esses pensamentos pesam pouco e não temos suficiente energia de Fé para transformá-los em convicção, em elemento dinâmico dentro da alma. Porém,  é um raciocínio de grande valor.

O fogo do Purgatório queima misteriosamente a alma Continua São Luís Grignion: Quantas dívidas temos a pagar! Quantos pecados temos, cuja expiação, mesmo após amarga contrição e confissão sincera, será preciso que soframos no Purgatório durante séculos inteiros…

Aqui está uma ideia a respeito da severidade das penas do Purgatório muito pouco usual para nossos dias. Na realidade, se tomarmos em consideração qual é o alcance de um pecado, mesmo venial, compreenderemos que podemos sofrer muito tempo no Purgatório por causa de pecados bem confessados.

Consideremos que, segundo certos teólogos, o fogo do Purgatório é o mesmo do Inferno, e queima misteriosamente a alma. E isso pode levar séculos! Que tremendo se tivéssemos que passar dez minutos com o dedo queimando na chama de uma vela, sem anestésico e depois sem os mil cuidados da cirurgia moderna! Seria para nós um delírio, uma tragédia.

Imaginem o que seria passar dez anos com o dedo queimando no fogo de uma vela! É uma coisa inconcebível. Pois bem, no Purgatório está a alma posta inteira dentro do fogo, e às vezes durante um século! De 1867 para cá, quanta coisa aconteceu? Em 1867, Napoleão III ainda era imperador; Dom Pedro II, com sua barba loura, ainda reinava no Brasil… Durante esses cem anos, uma alma expiando um pecado no Purgatório!

Há revelações privadas que nos falam de pessoas que terão de ficar no Purgatório até o fim do mundo. Podemos nós saber o que nos espera?

Então, como devemos receber de boa vontade, com alegria uma penitência nesta Terra!

É preciso preparar-se para o sofrimento nesta Terra

Mais adiante ele diz: E como nos sentiríamos encantados  por sofrermos anos inteiros neste mundo para não sofrer um dia só no outro. Querem ver a repercussão sociológica desse pensamento?

Imaginem que a maior parte das pessoas estivesse compenetrada dessa ideia, da qual resulta a seguinte convicção: esta existência, de si, é uma existência de sofrimento. O homem é feito para sofrer enquanto ele não chegar ao Céu.

Logo, a primeira coisa que se deve ensinar a uma pessoa, para ela tomar atitude perante a vida e, em última análise, para sofrer pouco, é conformá-la à ideia de que ela vai sofrer muito.

Porque todos os homens que existem sofrem muito. Portanto, é preciso preparar-se para isso. E, segunda ideia, se não sofrer aqui, sofrerá no Purgatório. Com isso as pessoas perderiam muito de seu orgulho e de sua sensualidade. Sem dúvida, é uma consideração que humilha o homem, mas a alma fica apta a toda espécie de virtude. E quando lhe acontece algum revés, em vez de tomar a posição de alguém que está diante de um absurdo, já vai compreendendo que é o normal e estava previsto, pois o natural é sofrer.

Quantas centenas de milhões de pessoas estão postas na ideia de que é perfeitamente possível levar a vida sofrendo muito pouco, colhendo os frutos  da diversão e do bem-estar que esperam encontrar na realização de sua vontade!

Para essas pessoas qualquer pequeno tropeço é algo que não se compreende como tenha acontecido, um verdadeiro azar. Logo, é preciso lutar de faca na mão para evitar que essas coisas  aconteçam.

Resultado: a caverna onde habitam todos os pecados se abre. Porque com essa ideia a pessoa fica orgulhosa, pretensiosa, sensual, preguiçosa, enfim, todos os vícios se manifestam. O indivíduo fica entregue ao pecado e desatam-se nele todas as desordens, todos os desregramentos.

Por quê? Porque não se é amigo da cruz e não se quer compreender que o natural desta vida é sofrer.

É normal acontecerem reveses na vida

Noto muito essa mentalidade errada na concepção com que certas pessoas tomam as próprias atividades. Por exemplo, lançam um negócio que tarda um pouco a se resolver. Então começa a aflição: “Não viu o que está acontecendo?! Esse meu negócio está tardando a se concretizar. E agora, o que será?” Passam, então, a lançar previsões insensatas: “Se esse negócio arrebentar agora, vou ter que vender tal coisa… Não. Vendo tal outra, faço isso e aquilo…”  Ora, admitida a ideia de que é normal acontecerem reveses na vida, ficamos com a alma preparada para sofrer, sabendo que a qualquer momento podem vir coisas desagradáveis em cima de nós.

Assim adquirimos outra sensibilidade, outro bom senso, outro estímulo para a virtude e — coisa curiosa — sofremos menos. Porque, por mais que se sofra nesta vida, o medo do sofrimento que vem creio ser o maior de todos os sofrimentos. E esse medo vem dessa falta de profundidade.

Do ponto de vista sociológico, isso é de uma importância fundamental. Não se pode ter o Reino de Maria e uma Civilização Cristã se a grande maioria das pessoas não estiver compenetrada de que é normal sofrer. Mais ainda: de que o verdadeiro sentido da vida do homem nesta Terra é aceitar bem os seus padecimentos e conduzi-los corretamente.

Isso é carregar a Cruz de Jesus Cristo. O homem, com os olhos postos em Deus, deve estar satisfeito consigo e grato, não quando logra evitar os sofrimentos, mas quando consegue carregar bem a cruz. Esta doutrina aplica-se também ao apostolado.

Toda ação apostólica é acompanhada de sofrimento e é próprio a ela enfrentar os mais graves reveses, passar pelas dores mais cruciantes, suportando isso com resignação para de fato impulsionar quem deve ser impulsionado.

Creio não haver apóstolo que possa ser tomado a sério se não for um varão das dores. Ele tem que sofrer, mas não como os outros; ele deve ser um ponto de atração e de concentração das dores. Os sofrimentos precisam confluir no apóstolo, e ele deve recebê-los, abraçá-los como Nosso Senhor abraçou a sua Cruz ou como,  por exemplo, o Profeta Jeremias abraçou todo o imenso  sofrimento que ele suportou para, de fato, realizar os desígnios da Providência sobre ele.

Almas irradiantes para o apostolado

Devemos, pois, ter uma conformidade enorme com o fato de estarmos continuamente provados. E não só em nossas pessoas — por doenças, cruzes interiores —, como também em nosso apostolado, em nossos negócios, etc.

Para correspondermos inteiramente à nossa missão, devemos ser, ao mesmo tempo, escravos de Nossa Senhora, apóstolos dos últimos tempos e amigos da cruz. Não se pode ser uma das três  coisas sem ser também as duas outras; isto é indissolúvel.

É próprio da escravidão a Nossa Senhora, quando é bem vivida, dar  valor à cruz. O amor à cruz consiste em considerar normal sofrer reveses, e conduzir isso com serenidade, equilíbrio, força de alma, sem estar a toda hora procurando evadir-se do sofrimento para o reino da frivolidade,  da dissipação, da bagatela; mas, pelo contrário, recolhendo essas cruzes e cultivando-as no interior da alma.

Um bom exame de consciência seria perguntar-se: Eu estou crucificado por tal ponto; como estou carregando minha cruz? Levo-a com toda a conformidade, com todo o amor?

Estou alegre de poder servir a Santa Igreja Católica Apostólica Romana e de sofrer por ela? Se isto for assim, então sou um varão das dores. E neste caso, poderei ser um apóstolo dos últimos tempos e um verdadeiro escravo de Maria.

Isto se dá, em nossa vida espiritual, até em relação às nossas faltas. Temos pecados, imperfeições. Ficamos com o nosso amor-próprio espicaçado? Ou temos paciência em suportá-los e fazemos esta consideração: “É verdade, este mundo, além de ser um vale de lágrimas, é um vale de pecados. Eu pequei, infelizmente, mas vou conduzir a minha pobre e miserável condição de pecador com paciência.

Vou aceitar a humilhação que assim recai sobre mim, vou procurar me reerguer mais uma, duas, cinco vezes, tratando-me a mim mesmo com a paciência com que Nossa Senhora me trata. Não perderei a tranquilidade, mesmo na maior miséria e na maior tristeza. Aceitarei a humilhação como quem aceita a  cruz, e continuarei a andar calma e alegremente, com um sorriso até o fim da vida”.

Isso é propriamente o que torna as almas irradiantes para o apostolado.

Um dos traços dominantes de nossa vida

Conta-se que, estando Napoleão prestes a fazer aclamar-se imperador — naquele período que, segundo alguns autores, foi o verdadeiro apogeu dele — um daqueles bajuladores perguntou-lhe por que ele não se proclamava deus. E ele teria respondido: “Não dá certo, porque depois de Jesus Cristo só existe um jeito de ser tomado a sério como um deus: subir no alto do Calvário e se fazer crucificar. E isso eu não quero”.

Ele apanhou muito bem esta verdade: só é tomado a sério para as coisas divinas aquele que sofre. Não é pelos sucessos que se arrastam aqueles a quem se quer conquistar, e sim pela dor, por algo   de inexprimível existente no contágio de uma alma abnegada e que não  se procura a si mesma. E isso só se sente em quem sofre e aceita o sofrimento. Eis o que verdadeiramente atrai e faz apostolado.

A meu ver seria temerário pedir sofrimentos a Nossa Senhora. Mas trata-se de ter uma atitude de alma pela qual digamos a Ela que gostaríamos de estar preparados para sermos assim. E embora não tenhamos coragem de sê-lo,  se Ela quiser nos dar esta coragem, nós aceitaremos. Porque entendemos não ser inteiramente consagrado à Santíssima Virgem quem não compreendeu que deve  estar consagrado à dor.

De maneira a considerarmos como normal, como o pão nosso de cada dia nesta vida, a dor carregada  com resignação, espírito sobrenatural e paciência; a dor prevista e a imprevista; a dor explicada, e a dor inexplicável. Temos que fazer dessa aceitação da dor um dos traços dominantes de nossa vida, pois cada um de nós deve tornar-se um “vir dolorum” — um varão das dores.

Assim adquiriremos aquela flexibilidade de alma, aquela bondade, aquela generosidade, aquele desapego,  aquela submissão, aquela aniquilação que caracteriza o verdadeiro apóstolo dos últimos tempos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/9/1967)

1) SÃO LUÍS MARIA GRIGNION DE MONTFORT. Carta Circular aos Amigos da Cruz, n. 22 e 23.
2) Do latim: Quem conhece o poder de tua cólera? (Sl 89, 11).
3) Do latim: julgamento sem misericórdia (Tg 2, 13).

No Senhor há copiosa redenção – Salmo 129

Concluindo seus comentários ao Salmo 129 — o De Profundis — Dr. Plinio ressalta a beleza da alma arrependida que se sentiu objeto da amplitude do perdão divino. Transbordante de reconhecimento, o Salmista recomenda aos que trilham o caminho da vida: do início da manhã até a noite, confiai na bondade de Deus, pois o Salvador se encarnou no seio de Maria para trazer a todos a sua “copiosa redenção”.

Como já tivemos ocasião de observar em relação aos outros Salmos Penitenciais, também no De Profundis encontraremos uma preocupação com a beleza poética do texto que não o abandona um só instante. Não de uma poesia trivial, mas imbuída de algo encantador.

A contrição fez nascer a alegria

Podemos imaginar cidades daquele tempo pastoril, a maior parte delas pequenas, dominadas pela vida bucólica que as circundava, nas quais os habitantes se sentiam no campo. Fez-se noite. Enquanto quase todos dormiam, um pecador arrependido de suas quedas chorava, elevando ao Céu sua prece entre lágrimas, implorando a misericórdia divina.

Quando os primeiros raios do sol tingem o horizonte e a claridade da manhã principia a entrar pelas frestas da porta e da janela, o pranto dele toma certa nota de alegria. Poder-se-ia dizer que, assim como a noite gerou o dia, a contrição fez nascer a felicidade e trouxe o perdão.

“Confiai na misericórdia e sereis atendidos”

Afirma a seguir o Salmista:
Desde a vigília da manhã até a noite, espere Israel no Senhor.

Desde o despertar até a hora de dormir — em que a luta pela vida de certa forma se interrompe, os olhos se fecham e o sono toma conta do homem — deve ele esperar em Deus, mesmo sobrevindo as coisas mais indesejáveis. Pode até cair sobre um justo a série de infortúnios desencadeados pelo demônio contra Jó, fazendo com que todo o edifício de sua grandeza e felicidade terrena desabe em cima dele. Segundo o texto sagrado (cf. Jó 2, 9), aquele só não perdeu a esposa, que o acompanhou para criticá-lo na miséria. Leproso, Jó sentou-se num monturo de cacos, transformado na cátedra de sua dor. Ainda assim, confiou e esperou no Senhor.

Insisto na preocupação do Salmista de exprimir com pulcritude seus pensamentos, a fim de nos fazer sentir melhor o sabor da realidade.

Infelizmente, a vida moderna não favorece muito o hábito de nos determos a considerar essas belezas e com elas nos deleitarmos. Como essa é uma atitude equivocada! Se Deus realizou tantas coisas magníficas, sublimes, é seu desejo que nos aquietemos para nelas meditar e refletir.

Então o Salmista, como homem que teve a experiência da misericórdia de Deus, oferece este conselho: “Vejam como eu não merecia o perdão, mas chorei, pranteei e o obtive. Vós todos que andais pelo caminho, confiai na clemência divina desde a manhã até a noite e também a alcançareis!” É o sentido deste Salmo.

Abundância do perdão divino

Porque no Senhor está a misericórdia, e há n’Ele copiosa redenção.

A primeira frase desse versículo — “no Senhor está a misericórdia” —, pode parecer um tanto vaga, porém encerra profundo sentido.

Na verdade, a misericórdia existente no mundo é um desdobramento e um efeito do amor do Altíssimo para com os homens. Porque Ele é misericordioso, há homens misericordiosos sobre a Terra. E as pessoas concebidas no pecado original, esquecendo-se de Deus, podem se tornar hostis umas em relação às outras. Assim, quanto mais uma sociedade tende para o ateísmo, mais se transforma num conjunto de animais selvagens. …e há n’Ele copiosa redenção.

Isto é, o Deus Filho, encarnado, sofreu e morreu por nós, como nosso Redentor. Os méritos infinitos de seu sacrifício obtiveram do Pai Eterno o perdão de nossas culpas. Então, por sua misericórdia, Ele limpa os pecados dos homens, e o faz copiosamente, com abundância e largueza.

E Ele mesmo redimirá Israel de todas as suas iniquidades.

Meditando nessas palavras finais do Salmo, é difícil não pensar, uma vez mais, em Nosso Senhor Jesus Cristo como Salvador do mundo. Nesse sentido, revestem-se elas de um caráter profético, pois não apenas uma nação — no caso, Israel — nem estes ou aqueles indivíduos, mas a humanidade inteira necessitou de redenção. E o Redentor veio, gerado pelo Espírito Santo no seio puríssimo de Maria, padeceu e se imolou por nós, abrindo novamente para os homens as portas do Céu.

Pode-se dizer que Jesus verteu torrentes de sangue; ou seja, o sangue por Ele derramado era de certo modo dor liquefeita, sofrimentos indizíveis, amargados de todas as formas possíveis. Porém, a redenção operada por Ele é também copiosa, jorra aos borbotões.

Clemência paradigmática: a conversão do bom ladrão

Uma das mais tocantes provas dessa misericórdia infinita deu-se no último lance da Paixão, quando Ele, parecendo derrotado, ergueu um louro de vitória: a conversão de Dimas.

Três estavam crucificados no alto do Calvário: o Santo dos Santos, o bom ladrão e o mau. Este último, facínora como era, sentindo que sua vida terminava, inconformado blasfemava contra Nosso Senhor. O outro, ao ver Jesus pregado no madeiro, deixou-se tocar pela santidade do Verbo Encarnado. Dimas compreendeu que sua vida criminosa o tornava merecedor da punição recebida.

Porém, havendo em Cristo “copiosa redenção”, sentiu a ação da graça sobre ele, infundindo-lhe a esperança de receber o perdão daquele Homem, não só extraordinário, mas superior a toda cogitação.

Quiçá, antes de morrer, o bom ladrão pensou: “Ele não é um simples ser humano, mas é o Homem-Deus”. Abraçou, então, a fé que por assim dizer emanava de Jesus crucificado, de quem é abundante a clemência, e deve ter dito ao Salvador que O reconhecia e O adorava como Deus. E se Dimas não o declarou com palavras, explicitou essa verdade no seu coração, e Nosso Senhor, sem dúvida, conheceu os desejos e intenções dele.

Por isso Jesus lhe fez uma promessa que era a confirmação de tudo quanto ele sentia no seu íntimo: “Hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43). Ou seja, o Redentor Divino perdoou todos os pecados do bom ladrão e, pouco depois, levava a alma dele para o Céu. Cabe considerar que, enquanto não se operou a Redenção pela morte de Jesus, nenhum homem entrou na bem-aventurança eterna. Nem mesmo São José, pai adotivo de Nosso Senhor, esposo legítimo de Maria Santíssima. E a esse ladrão, ex-miserável, gloriosamente redimido, o Salvador afirmou:

“Hoje estarás comigo no Paraíso”.

As almas de incontáveis justos presumivelmente esperavam há dezenas, centenas e milhares anos que o Messias morresse por elas na cruz e lhes franqueasse os umbrais do Céu. Ora, pouco antes do “consummatum est”, Nosso Senhor quis manifestar esse prodígio: tomou um bandido, transformou-o em santo e proclamou sua santidade ante os homens, dizendo-lhe: “Venha comigo!” A conversão do bom ladrão se insere, pois, nos fatos que estes versículos finais do Salmo 129, tocantes e proféticos, nos fazem entrever.

Plinio Corrêa de Oliveira

Sem amor a Deus, não se alcança a paz

A ordem internacional tem de se basear necessariamente no amor ao próximo. Enquanto os povos não se amarem, não souberem pôr um freio a suas ambições ilegítimas e suas vaidades nacionais, não haverá ordem internacional.

E como o amor ao próximo [é] uma realidade vivaz e profunda, que brota do amor de Deus; como não é possível ter verdadeiro amor de Deus quem não ama a Nosso Senhor Jesus Cristo; e como não pode amar verdadeiramente a Nosso Senhor Jesus Cristo quem não está na Igreja Católica, enquanto a Igreja  não for reconhecida como a base do edifício internacional, a alma das relações entre os povos e a guardiã de toda a moral, não poderá haver na esfera internacional, para os povos, paz verdadeira.

Em outros termos, ou o mundo se converte e reproduz fielmente a visão agostiniana da “Civitas Dei”, em que cada povo leva o amor de Deus a ponto de renunciar a tudo quanto lese aos outros povos; ou pelo contrário, o mundo será aquela cidade do demônio, em que todos levam o amor de si mesmos a ponto de se esquecer de Deus, de calcar aos pés a moral, e de fazer da violação dos direitos dos povos fracos a norma habitual de sua conduta.

De todas as fases em que se divide a história, foi sem dúvida a Idade Média aquela que mais se aproximou da realização perfeita de uma civilização católica. Na esfera internacional, o conceito dominante era de “Cristandade ”. Esse conceito político tem os mais sólidos fundamentos teológicos, e se baseia na doutrina do Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo, no qual nos inserimos por meio do santo Batismo.

Toda a tendência dos melhores doutrinadores consistia em reconhecer ao todo homogêneo formado pelos povos católicos, um só chefe espiritual, o Papa. Assim, obedientes a uma só doutrina, a um só pensamento, aos preceitos de uma só civilização — a católica — esses povos estavam sujeitos ao “veredictum” paternalmente imparcial de um só juiz, o Papa.

A pseudo-reforma protestante rompeu essa maravilhosa unidade, e retirou da alçada do tribunal internacional que era o Papado, numerosos povos. Rompido o elo de subordinação entre o Pai comum e tantos filhos rebeldes, evaporou-se das relações internacionais, de modo completo, o ambiente de família. E, à ordem cristã baseada no amor fraterno, se substituiu uma ordem baseada na desconfiança e no ódio. Nascer do ódio, significa nascer do mal, nascer do pecado, nascer do fracasso.

E, de fato, o pecado, o fracasso e o mal foram as três raízes mais profundas e mais ativas da nova ordem de coisas.

Plinio Corrêa de Oliveira (Excertos de artigo publicado no “Legionário”, nº 491, 8/2/1942. Título nosso.

Revista Dr Plinio (Fevereiro de 2012)

Sonhando com a Idade Média..

Incrustado nas montanhas da Baviera, famoso no mundo inteiro, o castelo de Neuschwanstein foi construído no século XIX pelo Rei Luís II, um homem apaixonado pelas coisas da Idade Média.

Seu entusiasmo por aquela época de fé e de grandezas cristãs o levou a idealizar um edifício que exprimisse todo o espírito medieval, e, mais ainda, chegasse a transcender em algo o estilo gótico.  Surgiu Neuschwanstein. O castelo se situa num panorama ultra favorável. Posto numa espécie de píncaro em relação a todas as circunjacências imediatas, servem-lhe de fundo de quadro três lindos aspectos da natureza. Primeiro, um longo movimento de montanhas que parecem convergir para ele, extinguindo-se aos seus pés. Depois, dois lagos cujas águas límpidas e cristalinas assemelham-se a espelhos, como são em geral as que se represam nos altos dos montes. Em terceiro lugar, uma floresta plantada, tão densa e tão vigorosa que parece uma mata virgem.

No meio de tudo, o castelo sobranceiro, dando a impressão de receber sua dignidade e sua força de todas as montanhas que nele desembocam. Domina de modo soberano tudo o que lhe fica  abaixo, como quem agarra a natureza em nome da majestade dos montes que o antecedem.

Como um rei procedente de uma genealogia fabulosa e de um passado grandioso, que no presente governa seus povos de forma altaneira. Assim temos esse castelo colocado no seu lugar. É uma  verdadeira garra subjugando a montanha, é um autêntico herói que olha do alto os panoramas, sentindo-se superior a todo o cenário que considera.

A primeira coisa que se nota no castelo é o jogo das torres. Sobretudo a mais elevada, que parece desafiar os montes às suas costas, como quem diz: “Não me contento em jugular o que está abaixo; eu discuto e rivalizo com aquilo que, acima de mim, quer contestar que me encontro, sozinha, no píncaro do orbe!”

Singularmente esguia, essa torre se divide em motivos ornamentais, culminando num telhado cônico que acentua a sensação de se tratar mesmo de um pináculo do universo. Terraços erguidos  sobre ameias, além de várias janelas, indicam uma torre própria para ser habitada.

E quando pensamos no que significa morar numa construção dessas, figuramos logo um quarto de paredes de pedra, com uma grande lareira onde o fogo aquece no inverno, projetando reflexos de labaredas num bonito vitral, enquanto se ouvem os ventos uivantes lá fora.

Ou então, na proximidade da primavera e do estio, sentindo que a natureza toda estremece e a torre continua firme. Compreende-se que é alguma coisa viver num local como esse! Bem diferente da existência num edifício de apartamentos…

Há depois o prédio principal do castelo, constituído de vários andares e que se prolonga em dois corpos laterais, mais baixos, entrecortados e finalizados por torres de diferentes feitios. Dir-se-ia que a grandeza de Neuschwanstein segue um ziguezague de torre a torre, sendo  rematada pelo pátio interno, como se este fosse uma taça que recolhe  em si toda a atmosfera de magnitude ali contemplada.

Existe ainda outra fachada do castelo, edificada em pedra (ou tijolo) de cor avermelhada, aberta por um portal magnífico e dando para um terraço de onde se domina a natureza.  Ali se ergue a última torre, reminiscência de todas as outras, que reproduz em ponto menor a grandiosidade da construção. Fosse esta última composta apenas por tal torre, dotada de uma vida própria, e já  teríamos um lindo castelo. Mas, por trás disso sobe uma verdadeira sinfonia de torres, ameias e tetos cônicos, até a suprema ponta que desafia as montanhas.

Todo esse conjunto nos transmite a ideia de uma grandeza sumamente hierárquica, que se desdobra nos seus respectivos degraus até se abrir para o que lhe é inferior, ter um afago para quem deseja ultrapassar seus portões com boa intenção, ou ter uma ameaça para quem se aproxima imbuído de maus sentimentos.

Porque este castelo tem qualquer coisa de fortaleza; e esta fortaleza, algo de cárcere. Para aquele que entra de acordo com a vontade do dono, não há maravilhas que não lhe sejam aí desvendadas. Para o inimigo e o criminoso, porém, reservam-se castigos e punições. Eis o Neuschwanstein, um castelo altamente simbólico do senso de batalha, de combate e de dignidade afidalgada do homem medieval.

Castelo tão belo de se ver, esplêndido sonho de um rei que poderia ter sido grande e não o foi, mas que deixou à humanidade uma extraordinária figura de tudo quanto estava destinado a realizar…

Plinio Corrêa de Oliveira

“Não apartes de mim o teu rosto…” Salmo 101

A súplica humilde e sempre confiante na infinita bondade divina era um dos aspectos da piedade de Dr. Plinio. Por essa razão, agradava-lhe de modo particular a recitação dos Salmos Penitenciais, repassados de filial apelo à clemência do Criador. Acompanhemos, agora, os comentários que Dr. Plinio nos faz ao Salmo 101.

Como já fiz questão de salientar antes — e por cautela explicável o reitero —, até hoje não tive oportunidade de ler comentários aos Salmos Penitenciais. Recitei-os em várias épocas de minha existência, como quando menino recebi uma tocante graça diante da imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, na Igreja do Coração de Jesus, a qual me levou a dar os primeiros passos na vida espiritual. Depois, ao longo dos anos, adquiri o costume de rezá-los durante certos períodos, mas nunca tomei conhecimento de textos explicativos a respeito deles.
Assim sendo, longe de mim pretender não haja equívoco em alguma interpretação que eu faça. Desde já, e de bom grado, estendo a mão à palmatória, se me demonstrarem que determinada afirmação não confere com os comentários oficiais da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, constantes não apenas nos documentos de seu Magistério, mas naquilo que se pode chamar o consenso dos autênticos teólogos.
Posta essa ressalva, passo a lhes transmitir os sentimentos que despertam em mim a leitura dos Salmos, ou seja, minha impressão pessoal, a ser partilhada por todos nós. Tenho a esperança de que tal leitura, realizada em comum, produza no conjunto o bem espiritual que recebo quando releio os Salmos e os comento para mim mesmo, no íntimo de minha alma.

Caráter profético do Salmo 101

Isso assente, devo dizer que este Salmo me parece profético em certos sentidos da palavra.
De um lado, é a história individual de um pecador que, como os referidos em Salmos anteriores, foi uma boa pessoa, que amava a Deus e por Ele era amada. Em dado momento, esse amigo do Senhor foi ingrato, revoltou-se contra o Altíssimo e pecou. O Criador não contemporizou e o puniu com sua cólera.
O homem, então, sendo flagelado pela ira divina, geme, chora e sente com amargura o mal cometido. Ajoe­lha-se, implora perdão. Nessa súplica ele registra que Deus o absolveu, e agradece do fundo da alma tal clemência. Não só externa sua gratidão, mas glorifica a Deus, com expressões de particular beleza e, sobretudo, verdadeiras.
Há, também, trechos referentes a Israel, ao fim do mundo e da História. Alguns versículos poderiam ser aplicados à existência do povo judaico, especialmente amado por Deus, que prometera a Abraão uma descendência mais numerosa que as estrelas do céu e as areias da praia. Entretanto, os filhos de Abraão pecaram e Deus se ergueu contra eles, castigando-os. Em vários episódios de sua história, nota-se o castigo divino se abatendo sobre o povo que andou mal, como se deu no cativeiro de Babilônia, durante o qual os judeus ficaram reduzidos à escravidão. Em seguida vem o arrependimento, e Deus os ajuda a se libertarem e voltar para Israel.
Quanto ao futuro, entende-se pelas passagens da Escritura que o povo judaico pedirá perdão e este ser-lhe-á concedido de modo tão imenso e profundo que ele se converterá. Quando isso acontecer, será de novo o Povo Eleito, o mais católico e virtuoso da Terra, tornando-se exemplo e motivo de alegria para o mundo inteiro. Até que sobrevenha a grande decadência final e, numa atmosfera de maldade generalizada, surja o Anticristo.

Os homens da fidelidade extrema

Quando isso suceder, as duas testemunhas que terão aparecido na Terra para profetizarem em nome do Senhor, serão mortas, presumivelmente pelo próprio Anticristo, e seus corpos expostos durante três dias e meio em praça pública, causando regozijo em todos os ímpios. E narra o texto sagrado que os iníquos festejarão esse crime, trocando presentes para celebrar a morte desses dois homens de Deus.
No auge de seu poder, o Anticristo talvez queira se proclamar Deus ele próprio e se fazer adorar. Em todo o caso, dirá que é Cristo, mas será uma caricatura do Redentor. O verdadeiro Filho do Altíssimo estará, na aparência, derrotado, contando apenas com um punhado de fiéis… Mas, que fiéis!
Como eu os invejo! Quando o demônio se achar triunfante no píncaro de sua glória, eles permanecerão íntegros, de uma fidelidade extrema, última, absoluta. Serão os homens incontestáveis, incontestados, que tiveram a coragem de contestar e afrontar de peito erguido tudo quanto é mau. E como me compraz a hipótese de que esses derradeiros fiéis sejam, entre outros, membros da obra por nós constituída, sobrevivendo a tudo, até os instantes finais da humanidade!
Ficarão esses autênticos católicos encerrados numa catacumba, conhecendo apenas por reflexos subterrâneos o que se passa na superfície da Terra, ou estarão presentes nos acontecimentos, em meio a mil perigos, vexações, tribulações, formando a coorte que se apresenta ao lado de Nosso Senhor, vaiado, contestado, objeto de toda a espécie de hostilidades?
O certo é que Ele — com um “E” maiúsculo tão imenso que se estende de ponta a outra do universo — não se rebaixará a combater a lesma imunda chamada Anticristo, mas o destruirá com um simples sopro de sua boca.
Com a morte do ímpio, Deus encerrará a História. Os dias da Terra se completaram, deu-se o grandioso Juízo Final, e o tempo cede lugar à eternidade.

O penitente posto à prova por Deus

Tendo em vista essas considerações, passemos a comentar os versículos do Salmo 101, levando em conta que também nós podemos nos comparar a este homem anônimo e misterioso do qual falam os textos sagrados, ditados pelo Divino Espírito Santo a um profeta. Tal pessoa havia sido boa, amiga do Criador, mas em determinado momento — oh! lástima, da parte de quantos de nós isto é verdade! — prevaricou e ofendeu a Deus. Compreendendo a situação em que se pôs, arrepende-se e dirige aos Céus a sua súplica.
Senhor, ouve a minha oração e chegue a Ti o meu clamor.
Esse pedido com o qual se inicia o Salmo sugere a idéia de alguém que reza, porém percebendo uma aparente indiferença de Deus em relação à sua prece. Ele fala com o Senhor e não recebe nenhuma resposta. Julgando-se não atendido, insiste com “clamor”. Clamar é falar em alta voz, bradar. Na medida e no sentido que esse último verbo comporte um sentimento de respeito, é do brado que se trata. “O meu clamor chegue a Ti”: clama-se para quem está longe, do qual nos separa uma grande distância. Então, as palavras do Salmista equivalem a estas: “Chegue a Ti minha voz longínqua, Tu que te puseste tão afastado de mim, ou me colocaste tão distante, ouve-me, por favor!”
Isso supõe a idéia de um pecador profundamente convicto do mal cometido por ele, e a quem Deus, entretanto, quer provar. Não cedendo desde logo ao primeiro sinal de sua penitência, Deus concede-lhe a graça para que se arrependa ainda mais. Compreende-se. Pois Ele não quer se contentar, em contrapartida de um grande pecado, com um qualquer pequeno pedido de perdão. Deus escava nessa alma os sulcos da dor, para que deles nasçam as flores da contrição.
Quantas e quantas vezes o mesmo acontece conosco! Pedimos algo a Deus e — ainda que o façamos pela gloriosa intercessão de Maria Santíssima, cuja mediação é infalível e sempre vitoriosa — nos parece não haver rea­ção da parte d’Ele. Nosso Senhor assim age, para que clamemos mais alto e o nosso gemido, expressão de nossa dor e humilhação, faça sair das entranhas de nossas almas os brados absolutamente lancinantes, diante dos quais Deus se inclina e, afinal, perdoa.

“Um olhar teu me resgata e redime!”

Não apartes de mim o teu rosto; em qualquer dia que me achar atribulado, inclina para mim o teu ouvido.
Esse versículo é uma reiteração do primeiro. Porém, para evitar algo de monótono inerente a toda repetição e conservar o mérito da perseverança, o versículo utiliza outras palavras e metáforas, dizendo mais ou menos a mesma coisa que o primeiro. Consideremos sua beleza:
Não apartes de mim o teu rosto…
Reaparece a noção contida no versículo precedente, de quem julga suas preces desprezadas por Deus. Então persiste na súplica: “Tu não me olhas e voltaste de lado o teu rosto. Eu te chamo e não me vês, porque não queres, desvias teus olhos enojados da minha alma pecadora. A Ti eu suplico: não afastes mais de mim o teu rosto, que me é como o sol. Um olhar teu me cura, resgata e redime!
“Mas, Senhor, para que Tu me fites, deves voltar teus olhos para mim. Eu me inclino envergonhado diante da limpidez e pureza de teu olhar, o qual não ouso encarar e há de pousar sobre as feridas repelentes dos pecados que me cobrem. Mas, sei que teu olhar cura o mal que ele rejeita, e assim te peço: olhai-me, curai-me!
Esse Salmo me parece profundamente compreensível e tocante, trazendo-me à lembrança a letra da música Ojos claros, do compositor espanhol Guerrero, que muito me agrada e termina com esta súplica: “E já que morreis por mim, olhai-me pelo menos…”
Tais palavras evocam a idéia de Cristo no alto da Cruz e um pecador de joelhos junto a ela, implorando perdão, batendo no peito e dizendo: “Sei que minhas culpas me tornam uma das causas de vossa morte. E como, conforme diz o Salmista, estou metido num limo, numa substância escorregadia, quase diria pantanosa, onde não há solidez1, rogo-Vos: olhai-me ao menos. Se me concederdes um olhar, Vós me tereis dado tudo!”
Tenho a impressão de que, ao chegar a hora de minha morte, pedirei a Jesus, pelos rogos de Maria, esse olhar salvador: “olhai-me ao menos”, porque quero passar para a outra vida com Ele olhando para mim. E aproveito a ocasião para sugerir essa piedosa prática a quem se encontrar no derradeiro instante que um dia chega para todos: lembre-se de pedir a Nossa Senhora que dirija a Jesus, em seu favor, este pedido: “Olhai-o, ao menos”. Porque se a Virgem Santíssima assim interceder por nós, a porta do Céu se nos abrirá.

O desejo de ser atendido prontamente

…em qualquer dia que me achar atribulado, inclina para mim o teu ouvido.
Mais uma vez, a mesma metáfora. Como Nosso Senhor está com a face voltada para outra direção, suas vistas não olham para o pecador que reza, e seus ouvidos como que permanecem fechados à voz suplicante.
Pode acontecer ao longo dos dias de qualquer um de nós — mais extensos ou menos, conforme aprouver aos desígnios divinos — a desgraça de que, em certo momento, Deus nos olhe com olhar por assim dizer empalidecido, distante e desinteressado, a fim de arrancar de nossa alma um gemido de penitência. Se tal acontecer, não fiquemos angustiados, mas roguemos a Nossa Senhora que interceda por nós. Ela, então, dirá a Jesus: “Meu Filho, voltai vossos ouvidos para ele e ouvi suas palavras. Eu vos peço.”
Em qualquer diz que Te invocar, ouve-me prontamente.
O homem aflito espera que Deus não demore em atendê-lo, pois a aflição é uma dor da qual ele procura escapar. Então o pecador exprime essas belas palavras: “Em qualquer dia que te invocar, ouve-me prontamente”.
Ou seja: “Senhor, ouvi-me e atendei-me com rapidez!”
Plinio Correa De Oliveira (Continua em próximo número.)
1 ) Cf. Sl 68, 3.

Homens-símbolo

Atendendo ao pedido de jovens discípulos, Dr. Plinio aprofunda a teoria dos arquétipos1, dando alguns exemplos históricos.

 

Naturalmente, a profissão, a situação, onde a arquetipia aparece mais claramente é a de chefe de Estado.

Garcia Moreno, arquétipo do Equador

Por exemplo, o Presidente da República do Equador, Garcia Moreno, é o arquétipo do equatoriano com origem espanhola relativamente próxima, talvez com alguma mistura; ou seja, do hispano do Norte da América do Sul, diferente nesse ponto dos hispano-americanos do Centro e do Sul.

Ele o é pelo físico e muito mais pela alma. Quer dizer, Garcia Moreno tem uma profundidade de espírito, uma firmeza e uma lógica de pensamento, um domínio sobre si mesmo e uma permanente mobilização de todo o seu ser para cumprir um dever muito árduo, qualidades essas que brilham nele, envergando o uniforme de Chefe de Estado, com o qual se fez fotografar ou pintar mais de uma vez.

É o arquétipo do povo sul-americano de origem hispânica, eventualmente com alguma miscigenação indígena; tinha potencialmente as qualidades do seu povo. Portanto, muita propensão para a Fé católica, apostólica e romana, grande afinidade com a Igreja; uma elevação de alma para as coisas sobrenaturais, sem dúvida dada pela graça, mas que encontra um ponto de inserção na natureza.

Garcia Moreno possuía tudo isso de modo esplêndido, mas com alguma coisa que é o contrário dos povos com miscigenação indígena.

A miscigenação pode favorecer determinados defeitos

É próprio de pessoas que levam consigo essa miscigenação uma tendência para o sonho de olhos abertos, o sentimentalismo, a moleza e a inconstância.

Mas é característico do católico, quando ele nasce com esses defeitos, virá-los pelo avesso e ser salientíssimo nas virtudes opostas. E para mim, a maior pulcritude da alma de Garcia Moreno é essa. Foi morto por causa disso. É um arquétipo que virou ao avesso os defeitos do povo dele. Foi um homem admirável!

Não há um grande povo que não tenha os seus defeitos nativos virados pelo avesso. Do contrário, eles dominam. Nossos defeitos nativos ou são levados na chibata o tempo inteiro, ou eles nos põem sob a chibata.

Para mim, Garcia Moreno foi quem melhor realizou o desígnio divino a respeito do povo equatoriano.

Luís XIV, rei de um povo querido por Deus

O continente mais rico em arquetipias é o europeu. Em geral, quando um povo teve um grande rei, este foi arquétipo de seu povo.

O que caracteriza preliminarmente todo grande rei é ser o homem no qual, por excelência, seu povo se sente refletido. Sua simples presença faz com que a nação veja a concretização de seus próprios ideais de perfeição, e queira realizá-los, reconhecendo nele o modelo de si mesma. Esse é o arquétipo.

Por exemplo, Luís XIV é o arquétipo do francês no que este tem de mais ilustre, mais magnífico, mais estupendo.

Quando Santa Margarida Maria recebeu do Redentor o encargo de levar uma mensagem a Luís XIV para estimular a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, o Divino Mestre pronunciou estas palavras iniciais: “Diga ao meu amigo, o Rei de França, tais e tais coisas.” E os intérpretes se empenham em querer entender, nesse caso, qual o sentido dos termos “meu amigo”.

Na realidade, ele era seu amigo porque a França era a nação querida, e Luís XIV o arquétipo desse país. Enquanto tal, Deus o amava com aquela predileção gratuita e insondável com que Ele queria a nação primogênita da Cristandade.

Tomemos outros dois monarcas pouco posteriores a Luís XIV e que foram grandes reis, a seu modo: Maria Teresa, a Imperatriz da Áustria, e Frederico II, o Rei da Prússia.

Maria Teresa: a imperatriz que simbolizava o conjunto dos reinos por ela governados

Maria Teresa foi o padrão da imperatriz, que simbolizava inteiramente o conjunto de reinos governados por ela. No seguinte sentido: os Estados chamados da Casa d’Áustria — Áustria, Hungria, Checoslováquia e outros — formavam uma soma de Estados com um rei comum, chamado antigamente de Arquiduque da Áustria. Os Arquiduques da Áustria foram um denominador comum de todos esses povos e os arquetipizaram tão magnificamente que, quando o Tratado de Versailles, em 1918 — no fim da I Guerra Mundial — desmembrou essa monarquia, foi preciso que as nações participantes — portanto, supostamente, libertadas do jugo da Áustria — assumissem a obrigação de não eleger um imperador ou rei.

Maria Teresa representava — além da graça feminina — o que havia de charmant, de encantador no espírito austríaco, bem como as virtudes militares da raça alemã, valores esses harmonicamente aliados. E arrebatou os povos, como mostra um fato conhecido da vida dela.

Frederico II, Rei da Prússia, atacou o império austro-húngaro e Maria Teresa, não tendo meios para defendê-lo, sofreu derrotas. Frederico II mandou propor-lhe uma paz vergonhosa, e ela respondeu: “Enquanto eu tiver para governar a última aldeia do Tirol ou da Caríntia, ali estarei resistindo ao Rei da Prússia. Diga-lhe que não me rendo, e vou impor a paz.”

Havia o perigo de a Hungria separar-se do império.  Maria Teresa mandou convocar o parlamento dessa nação, onde ela fez um discurso sobre as circunstâncias então existentes. Quando terminou, todos os representantes da nobreza desembainharam suas espadas e clamaram: “Morreremos pelo nosso Rei, Maria Teresa!”. Ela arquetipizou nesse episódio o tradicional heroísmo magiar.

Eleição de Maria Teresa

Vago o trono do Sacro Império Alemão — que era eletivo —, deveria ser eleito o sucessor. Durante séculos, era automático que o trono imperial fosse deferido a um Habsburg, ao Chefe da Casa d’Áustria.

Não tendo possibilidade de ser eleita imperatriz, Maria Teresa casou-se com um príncipe da Casa de Lorena, que ela fez eleger imperador. Assim, tornou-se imperatriz por estar casada com esse príncipe. E o título de imperador foi depois transmitido a todos os descendentes dela. Vemos, assim, como Maria Teresa possuía tacto, finura e delicadeza.

O patrimônio teresiano

E também jeito. Tinha olho prático de boa dona de casa.

Maria Teresa combinou com seu marido o seguinte: “Devemos prolongar a existência de nossa Casa o quanto possível. E para isso precisamos aproveitar a atual situação a fim de tomar todos os bens que já possuímos, reorganizar tudo, fazê-los produzirem para adquirirmos novos bens, de maneira que quando percamos os nossos tronos, ainda sejamos príncipes riquíssimos. Meu esposo, deixa-me a política e faça as finanças.”

Em 1918, foi proclamada a república na Áustria, por imposição dos Aliados. Os Habsburg perderam o trono, mas tinham um negócio chamado Patrimônio Teresiano, que era enorme, a fim de manter o conjunto da dinastia.

Analisando seu todo, constatamos que era uma mulher fantástica: ela representava o gênio austríaco no total.

Frederico II

Frederico II e os Hohenzollern em geral — a cuja família ele pertencia — representavam o gênio prussiano no seguinte sentido: antes de tudo a guerra, o exército, o combate, o entusiasmo pela força. Secundariamente a música, os belos castelos — de uma beleza, que os franceses, um pouco suspeitamente, argúem de excesso de severidade. A garra militar, a águia prussiana, tomando conta de tudo. Em certo momento quase conquistou a Europa.

Sem dúvida, Frederico II representava arquetipicamente o povo prussiano.

Assim, poderíamos indicar outros exemplos.

Dom Pedro II, arquétipo do Brasil

No Brasil, na época de Dom Pedro II, indiscutivelmente a organização da família ainda era muito viva, pujante, a qual convém com o feitio afetivo do brasileiro.

O velho Pedro II, de cabelo e barba brancos, jeito respeitável, venerável, mas bondoso, foi durante décadas o vovô do Brasil. E o Brasil sentiu delícias em ser neto de Dom Pedro II. O modo pelo qual ele governava e dirigia a política brasileira era inteligente e cheio de jeitinhos. O povo brasileiro gosta do jeitinho; a força imposta “à la” Frederico II o brasileiro aprecia muito menos. Querer impor a força pela força pode azedar a situação muito desagradavelmente, ou até fatalmente.

A Constituição brasileira, liberal, reduzia muito os poderes do Imperador. Mas ele era um político muito esperto e sagaz. E servia-se do prestígio de ser Imperador para negociar por fora o curso da política, de tal maneira que o político número um do Brasil era Dom Pedro II. E ele ia acomodando as coisas de tal modo que o governo dele foi um reino de paz. Terminaram as revoltas que havia, o Brasil teve uma grande prosperidade e foi naquele tempo uma das maiores nações americanas — naturalmente os Estados Unidos estavam muito acima, do ponto de vista do progresso econômico. A esquadra mercante brasileira, para poder exportar inúmeras coisas produzidas por um país enorme, era a segunda do mundo.

Mas os políticos liberais reclamavam contra Dom Pedro II, o qual redarguia: “Eu exerço inteiramente os poderes constitucionais, não saio da Constituição uma linha.”

Eles diziam: “É verdade, mas Vossa Majestade tem um poder pessoal extraconstitucional, que vale mais do que seu poder constitucional. E não pode exercer os dois poderes juntos.”

E o Imperador replicava: “Onde está isso na Constituição? Nada me impede de ter influência política. Se um político brasileiro me pede um conselho, eu cumpro minha obrigação atendendo-o. Se o conselho influencia, é porque foi eficaz! O que vocês têm contra isso?”

Os liberais vociferavam muito contra seu poder pessoal, porque não podiam nada contra a força moral do Imperador.

Dom Pedro II conduziu a situação quase até o fim de sua vida. E foi destronado por uma série de circunstâncias. Mas ele representou arquetipicamente o brasileiro; quanto a isso não há dúvida nenhuma.

Quando o povo é grande, pode ser arquetipizado. Quando é um magma de gente, não há quem arquetipize aquela massa; ele, por assim dizer, clama pelo seu arquétipo.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 17/2/1989)

Revista Dr Plinio 155 (Fevereiro de 2011)

 

1) No contexto da presente conferência, Dr. Plinio aplica este termo a pessoas que exprimem em grau eminente as características de um povo, constituindo um paradigma.

 

Como nasceu e cresceu meu amor ao Papado

Eram famosas aquelas “palavrinhas”, no vasto círculo de amigos de Dr. Plinio. Assim eram chamadas as conversas curtas e informais com pequenos grupos de jovens, cujo principal interesse era  ouvir a narração de episódios da vida desse varão. Constituíam excelentes ocasiões para Dr. Plinio cultivar nas almas de seus ouvintes a boa doutrina. Sendo um de seus temas favoritos o amor ao Papado, certa ocasião ele contou o que segue.

 

O ambiente em que fui educado era o de uma família tradicional nos primórdios do século XX, muito antigo portanto, no qual ocorriam grandes discussões entre duas espécies de pessoas: de um lado, os católicos convictos; de outro, alguns que se diziam ateus. Eram controvérsias calorosas, verdadeiras batalhas intelectuais, embora se mantivesse sempre um fundo de cordialidade. Quer dizer, sem desaforos nem desrespeitos. Uma vez terminado o entrechoque, voltava-se à boa paz. Mas eram batalhas!

Uma consideração de menino: o Papa, supremo e sacrossanto

Cresci, portanto, num meio em que esses problemas de fé, Igreja e correlatos faziam parte de minha formação espiritual, despertando em mim um interesse pela Religião Católica e uma adesão a ela sempre maiores.

O vínculo que se criou com o catolicismo estreitava-se ainda mais quando, nessas discussões, sobressaía a figura maravilhosa da máxima autoridade na Igreja, o Papa. Ele, o Vigário de Cristo, supremo, sacrossanto, que manda em todos e indica a hora certa do pensamento humano no relógio infalível de sua mente, que não pode errar, porque Deus o ampara contra o erro. Eu achava essa posição o supra-sumo do magnífico e do bem-ordenado.

Quando fiquei um pouco mais velho, a essa simpatia se juntou uma adesão mais racional, consciente e profunda que a do menino. Compreendi o quanto estou sujeito a erros, de modo que, sozinho, não posso encontrar o caminho certo. Ora, eu queria encontrar esse caminho verdadeiro, desejava acertar meu passo, custasse o que custasse.

Como me haver nessa situação? Ou haveria um guia infalível, apoiado por Deus, para me conduzir; ou, se não existisse esse guia infalível, todos os homens seríamos cegos guiando outros cegos. Esse guia infalível é o Papa. Era preciso, portanto, alimentar uma confiança inteira nele, ou cair na completa descrença e no achincalhe de tudo, como infelizmente acontece com muitas pessoas pelo mundo, vivendo ao léu, cegos em campo raso, sem saberem para onde vão, o que querem e o que pensam. Andam como tontos.

A linha reta para chegar ao Céu

E daí compreendi que a peça-chave de toda a ordem humana e a linha reta para chegar ao Céu estava no Papado. Então, entusiasmo sem limites pelo Papado! E pelo dom que Deus deu aos homens, quando Nosso Senhor Jesus Cristo fundou a instituição pontifícia, no momento em que perguntou aos seus Apóstolos quem achavam ser Ele, Pedro respondeu: “Vós sois Cristo, o Filho de Deus vivo”. Ouvindo isso, Nosso Senhor teve as célebres e soleníssimas palavras: “Pedro, tu és pedra, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; e as portas do inferno — quer dizer, o poder de Satanás — não prevalecer ão contra ela”. Jamais a vencerão.

Tudo isso eu achava, e acho, o supra-sumo da história dos homens e das almas. E quero, quando chegar o momento de minha morte, mais do que nunca em minha vida, estar persuadido dessa verdade.

Um pouco mais velho ainda, compreendi outro importante princípio: se devemos reconhecer no Papa o poder que Nosso Senhor Jesus Cristo lhe outorgou, não devemos ver nele nem um poder maior nem, sobretudo, menor do que aquele dado por Jesus. Cumpre aceitarmos e venerarmos o Papado como Nosso Senhor o fez. Não podemos modelar um Papado segundo nossa cabeça, mas entender que a instituição fundada pelo Divino Salvador é excelente, porque Ele é infalível no sentido pleno da palavra. Homem-Deus, incapaz de errar, perfeito em tudo quanto fizesse. Estaremos seguros, apoiados na autoridade de Deus.

De tudo isso, repito, me vem uma tão grande admiração pelo Papado, um tamanho entusiasmo, que eu quase diria uma adoração, se não refreasse a tempo a palavra em meus lábios.

Exemplos da grandeza do papado

É um amor sem limites, uma veneração por aquela grandeza pontifícia que eu próprio vi em alguns fatos históricos do passado. Por exemplo, no tempo de Pio XI o nazismo e o comunismo  estavam no auge de seu poder e ameaçavam, um ou outro, tomar conta da Europa. Como? Mediriam forças numa guerra, e aquele que saísse vitorioso dominava o continente europeu. Percebendo o perigo, Pio XI publicou duas encíclicas sucessivas: a primeira, condenando o comunismo, com uma energia única e extraordinária; no dia seguinte, outra encíclica condenando o nazismo.

Enfrentou os dois poderes de peito aberto, reduzindo-os ao silêncio. Sem soldados, sem tropas, sem canhões, sem bombas de gás asfixiante, o Papa os combateu e emudeceu. Para mim, um gesto grandioso! Recordo-me de outro belo episódio em que reluziram a coragem e a sabedoria pontifícias. Desta feita, com o Papa Pio XII, que pronunciou um discurso no qual fez uma distinção famosa entre povo e massa. Tão luminosa, tão acertada, que pode ser considerada uma das coisas mais inteligentes que tenha produzido o pensamento humano.

Um conselheiro do Papa, o Pe. Leiber (com quem mantive muito boas relações), contou-me que, após a publicação desse discurso, Pio XII recebeu calorosas felicitações e agradecimentos do Presidente Roosevelt, dos Estados Unidos. Este desejava externar seu reconhecimento — note-se, um protestante — por aquelas palavras que lhe serviriam para orientar o próprio governo norte-americano!

Esta é a grandeza do Papado, diante da qual se vergam até as maiores potências da terra.

A felicidade: fruto da inocência

A procura da felicidade representa importante papel em todas as etapas da vida de uma pessoa, sobretudo na infância. Porém, onde de fato encontrá-la?
Comentando como esse problema se punha em sua mais tenra idade, Dr. Plinio nos mostra que a alma inocente vê em tudo uma imagem de Deus, e, por isso, constantemente sente sua alma inundada da mais pura e verdadeira felicidade.

 

A fim de desenvolver o tema que me foi proposto — onde encontrar a verdadeira felicidade? —, proponho rememorar meus tempos de juventude com a esperança de encontrar um denominador comum entre a concepção de felicidade dos jovens em 1984 e dos de 1924.

Ao longo dos tempos, um mesmo equívoco…

A respeito do conceito de felicidade, as pessoas ao longo dos anos têm concebido os mesmos equívocos com algumas poucas diferenças. Assim, parece-me que analisando como este problema se punha em minha juventude, poderei encontrar uma resposta útil também aos jovens que vieram meio século depois.

Naquela época, ainda não se adotara a semana inglesa; então, no sábado à tarde, os colégios e comércios iam se fechando e a São Paulinho se preparava para gozar a felicidade.

No que consistia a felicidade de um jovem comum, como era o meu caso, uma vez que ainda não tinha conhecido o movimento mariano, se bem que, por um auxílio especial de Nossa Senhora, tinha Fé e levava uma vida pura?

As alegrias da vida sem pecado

O que primeiro se me apresentava era gozar a vida sem pecar, porque, tendo Fé, eu sabia que não devia pecar. Ora, quanta coisa agradável pode-se fazer sem pecar! Por exemplo, quando eu chegava em casa, meu pai me chamava, abria a carteira e dizia: “Está aqui o seu dinheiro da semana!” Este, como é natural, era gasto todo no final de semana.

A quantia que eu recebia de meu pai era suficiente para passar com largueza o final de semana. Além disso, como eu sempre estava junto de meus primos, cujas famílias eram mais abastadas do que a minha, eu participava de alguma forma do luxo deles.

Assim, terminados os afazeres do sábado, nos telefonávamos e marcávamos um ponto de encontro. Começavam os passeios: confeitarias, cinemas, etc. Todos estes ambientes de nenhum modo tinham a torpeza que apresentam hoje.

No domingo de manhã, eu ia à Missa às onze horas na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, depois da qual voltava para casa. Ao chegar, eu encontrava preparado um saboroso almoço, em geral um cuscuz delicioso acompanhado de cerveja.

Agradáveis momentos na vida familiar

À noite, eu ia jantar em casa de um tio, onde se reuniam quase trinta pessoas, todos os parentes jovens. Lá estava preparada uma mesa enorme, repleta de frios do melhor restaurante de São Paulo. Terminado o jantar, muitos se dispersavam e voltavam para suas casas, enquanto alguns, entre os quais eu e minha irmã, subíamos a um terraço muito agradável, de onde me lembro especialmente, ter contemplado belas noites enluaradas. Ali permanecíamos até mais de meia-noite, conversando sobre os mais diversos temas.

Quando chegávamos em casa, após a prosa no terraço, minha mãe geralmente estava recostada em seu quarto, com o terço nas mãos. Eu me sentava junto à sua cama e começava outra conversa, também sobre todos os assuntos possíveis. Ali permanecia por volta de uma hora, depois eu ia para o meu quarto, onde ainda rezava um pouco e dormia contente, após aquele final de semana no qual eu tinha experimentado várias, intensas e, às vezes, contínuas sensações de bem-estar.

Desta forma, tinham-se justapostas várias sensações muito agradáveis, às quais se somava uma intensa impressão de juventude trasbordante de saúde e que tem diante de si um futuro promissor.

Um pouco pelo que me diziam, mas sobretudo pelo que eu analisava, percebia estar na mente da maior parte das pessoas com as quais eu tinha contato a seguinte ideia a meu respeito: “Você tem tudo para ser feliz! Talvez pudesse ter mais, caso conseguisse obter mais dinheiro, bem-estar e luxo. Se você morasse em Paris ou em Viena, certamente você seria mais feliz. Mas, o que você tem é suficiente para encher uma pessoa de alegria. São poucos os jovens em São Paulo que gozam de uma felicidade como a sua!”

Para ser franco, devo dizer que eu me empanturrava dessa felicidade, e quanto mais sensações gostosas tivesse, para mim melhor. Mas, às vezes algo cortava e interrompia por instantes tais impressões. Nessas ocasiões eu me punha o problema: Será que isso é de fato a felicidade?

Dificuldades da vida e felicidade

Era, sobretudo, nos dias de semana — os quais apresentavam fastios de toda ordem em contraste com o bem-estar do fim de semana — que me vinha esta questão. Começava com a educação que eu recebia em casa, a qual supunha a toda hora pequenas advertências do seguinte gênero: “Não se entra na sala assim; não se põe o guardanapo deste modo; não se mexe com a cadeira desse jeito; dê risada mais moderada; gargalhadas imoderadas não são de gente educada…” Bastava relaxar um pouco para vir o aviso: “Se você relaxar, vai ser evitado pelas pessoas educadas, e muitos vão afastar-se de você.”

Eu então pensava: “Mas, eu gosto de dar gargalhada…” No entanto, percebia que eu não podia fazer aquelas coisas e precisava dominar-me.

Então, eu me perguntava: “Mas, se o fato de dominar-se é desagradável, será que ele não é contrário à felicidade?”

Lembrava-me que algumas vezes, estando numa festa, eu tinha vontade de não ser amável com ninguém, mas a educação indicava que eu fosse agradável a todo mundo. Aquilo exigia que em certas ocasiões eu passasse um tempo enorme conversando com a pessoa mais enfadonha que se encontrava na festa, até o momento em que alguém, desavisado, entrasse na conversa e me desse a ocasião de com um sorriso muito amável poder me retirar…

A educação era um dos problemas que pareciam opor-se à felicidade, mas havia muitos outros…

Ser ilustre ou ser feliz?

Por exemplo, à vista de homens maduros eu percebia que todos, à medida que ficavam mais velhos, deveriam ir graduando-se e subindo de condição, de maneira a, em dado momento, ter ascendido a uma condição ilustre em relação ao que fora seu ponto de partida.

Notava também que quem não subisse essa escalada estava fadado a ser objeto do desprezo — ainda que de modo velado e amável — dos outros. Esperava-se, portanto, que também eu galgasse essa escadaria, de maneira a ser notavelmente ilustre.

Eu pensava: “É verdade, viver sem realizar nada não é felicidade. Pois, também um porco no chiqueiro vive desta forma, apenas se alimentando e engordando para ser morto e servir de alimento a outros. Ele não faz nada, e por isso não têm uma história. Ademais, sinto impulsos que me levam a fazer algo; e compreendo que se eu não fizer nada não terei felicidade. Mas como isso é duro! Para ser algo na vida é preciso estudar, saber coordenar as ideias, aprender um vasto vocabulário e exprimir-se com perfeição e clareza, de modo a tornar-se agradável. Como aprender tudo isso? É preciso apertar a cabeça e fazer esforço duro!”

Isso era penoso para mim, pois eu possuía uma enorme tendência à preguiça e deliciava-me em não fazer nada. Para mim, isso era um dos elementos constitutivos da felicidade.

Mas, logo percebi que o fruto do far niente1 era dos mais amargos. Ou eu gozava as delícias de não fazer nada ou as de ter feito algo na vida. Qual delas escolher?

Descortinava-se, então, diante de mim, uma vida inteira de esforço para chegar ao pináculo. Na insegurança e na incerteza de não ter êxito como várias pessoas que conheci, as quais terminaram infelizes, eu pensava: “Assim eu não posso ser. Mas para isso eu devo levar uma vida duríssima.” E então, me perguntava: “Felicidade, onde estás?”

As amarguras da vida e a felicidade

Por outro lado, eu nasci naturalmente muito afetivo, gostando das pessoas e querendo que elas gostem de mim. Mas logo percebi que isto era uma ilusão.

Lembro-me de haver em meu tempo uma brincadeira que consistia em entrar em um automovelzinho todo ladeado de borracha, o qual devia ser conduzido de modo a ir batendo uns nos outros. Eu pensava: “A vida é como este carrinho, mas sem as borrachas! Nela se recebe pancada de todos os lados; a lei que a rege parece ser como a lei da selva, a lei das feras.” Mais uma vez a indagação: Felicidade, onde estás?

Uma de minhas preocupações mais sérias vinha ao ver certos homens ateus, os quais eu conhecia em grande número. Diante deles me perguntava: “Será que eu também vou perder a Fé?” A isto eu preferia morrer!

Estes eram os problemas que mais pesavam ao jovem que queria ter uma vida feliz naqueles idos anos de 1924.

A felicidade está no porvir?

Eu apenas entrava para a vida, tinha 16 anos, e o número de meus problemas deixava-me pasmo. Percebia que os demais jovens do meu tempo não falavam sobre seus próprios problemas, pois ficava feio. Pelo contrário, cada um devia fingir ser perfeitamente feliz, o que me parece ser do mesmo modo até hoje.

Mas, com todos estes problemas eu olhava para o futuro no qual parecia ver uma ponta de felicidade. Imaginava que ficando velho teria uma vida sossegada, pois não sentiria mais essa pressão das pessoas que me circundavam. Poderia, então, me dedicar a leituras, teria dinheiro necessário para viver bem, faria algumas viagens. Encontraria, enfim, o porto para o qual eu rumava.

Não suspeitava que na idade onde eu esperava encontrar sossego e despreocupação, teria de estar em meio às mais duras lutas e dificuldades.

No entanto, apesar de estar à espera de uma felicidade futura, eu guardava a recordação de já ter sido muito feliz. E nisso está o cerne da questão.

Ai que saudades da aurora de minha vida…

Perguntava-me então: Quando é que eu realmente fui feliz? Lembrava-me que em minha primeira infância, antes de entrar no Colégio São Luís, até os dez anos de idade, mais ou menos, eu tinha sido enormemente feliz. Que felicidades inundavam minha alma naquele tempo e que indizível alegria eu sentia dentro de mim! Perguntava-me se só eu sentia aquilo. E na leitura de certas obras literárias, às vezes de autores brasileiros, mas quase sempre de franceses, eu encontrava referências a esta felicidade da infância. Um deles, Casimiro de Abreu, dizia: “Ai que saudades da aurora de minha vida, de minha infância querida, que os tempos não trazem mais!”

De fato, lembrando-me das intensas alegrias que eu tinha naquele tempo, comecei a filosofar sobre elas e analisar quanto eram superiores às que tenho hoje.

Recordo-me de ter lido um dito de Napoleão que, apesar de minhas restrições em relação ao autor, encheu-me de admiração. Certa vez perguntaram-lhe: “Qual foi o dia mais feliz de sua vida?” Pensava que ele responderia ter sido o dia de sua coroação. Pois, qual não teria sido sua satisfação ao ficar imperador?

Porém, para minha surpresa, Napoleão respondeu: “Foi o dia da minha Primeira Comunhão.” Logo que ouvi isto me veio à lembrança o dia da minha Primeira Comunhão, bem como outros inúmeros fatos de minha infância, os quais me encheram de saudades e fizeram-me pensar o seguinte: “Será que vale a pena todo este esforço para ser algo na vida, uma vez que quanto mais nela se avança, mais se tem impressão de estar deixando para trás aquilo que se busca? Não haverá algo de errado neste caminho?”

Inigualáveis alegrias da infância

Em meu tempo de infância, a vida se dividia em duas partes: os dias excepcionais e os dias comuns.

Os dias excepcionais eram geralmente os de festa. Neles eu sentia certas alegrias que provinham mais do interior de minha alma do que da própria festa.

Lembro-me, por exemplo, de um parque que havia na Avenida Francisco Matarazzo, chamado Parque Antárctica, o qual era aberto ao público e muito bem organizado, com um jardim plantado à la alemão e, portanto, muito bonito e agradável, apesar do que, poucos o frequentavam.

No dia de Páscoa, meus primos e eu íamos para lá, dirigidos por Mamãe, a qual era assistida por duas ou três Fräuleins. Sendo o parque enorme e possuindo vastos canteiros verdes, lá se podia correr à vontade, desfrutando do ar puro, da beleza e do perfume das flores. Ali permanecíamos brincando durante muitas horas.

Dentre outras coisas, lembro-me de que tirávamos de uma bonita caixa, um jogo chamado croquet o qual consistia em alguns paus muito bem pintados que eram fincados no chão de modo a formar um arco dentro do qual se devia fazer passar as bolas. Entre os que jogavam pior estava eu, talvez porque, como todo brasileiro, eu não levava o jogo muito a sério e não fazia questão de ganhar a partida, mas sim de gozar daquela alegria.

Terminados os jogos, chegava a hora dos ovos de Páscoa. Enquanto nós estávamos brincando, Mamãe com as Fräuleins tinham escondido os ovos pelo parque. Ao terminar, chamavam as crianças para começarem a procurar. Cada criança poderia ficar com os ovos que encontrasse. E como também para isso eu não tinha muita agilidade, Mamãe acompanhava-me com o olhar, e quando percebia que eu ia me aproximando dela um tanto desolado por estar com fome e não ter encontrado nenhum ovo, ela então sorrindo dizia: “Filhão, vá por ali que você vai encontrar uma coisa muito boa.”

Naquilo tudo eu sentia uma alegria muito superior à da comida, pois ela provinha de algo que estava no fundo de minha alma, o qual me enchia de satisfação.

Terminado o passeio, voltávamos para casa na hora da sesta, o que — ao contrário de todas as outras crianças — eu achava uma delícia. Eu ia contente para a minha cama macia, num quarto muito agradável, o qual já estava em certa penumbra, pois as venezianas eram fechadas, enquanto as janelas permaneciam abertas, deixando entrar um delicioso ar puro. Com a pouca luminosidade que havia no ambiente, eu permanecia prestando atenção no papel de parede de meu quarto, o qual era de origem francesa e tinha figuras de medalhões, pendentes de fitas azuis; eu os analisava enquanto ouvia os ruídos da cidade até adormecer tranquilo.

Só não era feliz a hora de levantar-me para estudar… Porém, ainda assim, este esforço era largamente compensado por todo o resto. No que consistia, então, essa felicidade?

À procura de um sentido para a vida

Quando essas perguntas começaram a surgir em meu espírito, compreendi que se eu encontrasse no fundo de minha alma a resposta para elas, teria com isso encontrado aquilo que deveria dar sentido a toda minha vida.

Levei anos refletindo sobre isso sem conseguir decifrar inteiramente a questão. Cheguei a pôr-me o problema de que aquilo não passava de mera imaginação. No entanto, lembrava-me que ao lado de toda aquela felicidade, havia algo superior, proveniente da sensação de ter a consciência tranquila.

Recordo-me, por exemplo, que quando eu fazia bem meus estudos, a Fräulein, geralmente, dava-me algo que eu gostava de comer. E quando eu cumpria meu dever em algo mais relevante, era a própria Dona Lucilia que me agradava de forma especial. Assim, a ideia de mérito e de prêmio para a consciência justa, ou seja, para aqueles que são bons, levavam ao auge a sensação que eu tinha de felicidade. Parecia-me com isso ter encontrado o ponto pelo qual até mesmo o cumprimento do dever tornava-se atraentíssimo. Tratava-se da feliz sensação de ter cumprido o dever.

A constante alegria da alma inocente

Dessa forma, minha ideia a respeito da felicidade de infância foi se acrisolando, até chegar à compreensão de que ela era fruto da inocência. Ou seja, daquele estado de alma próprio aos que não tiveram a desgraça de ofender a Deus.  

Lembro-me das borboletas azuis e verdes que me deixavam encantadíssimo, e me levavam a tentar apanhá-las, pois a inocência me fazia ver nelas um brilho, um fulgor e uma beleza que me deleitavam de forma inexplicável, o que no fundo provinha do fato de ver refletido nelas algo de Deus. Aquilo me fazia sentir um antegozo da alegria celeste, fruto da eterna contemplação da face de Deus.

E não só em uma borboleta ou alguma outra coisa, mais em tudo a alma inocente vê uma imagem de Deus, por isso sente constantemente sua alma inundada da mais pura e verdadeira felicidade.

Minha maior alegria

Entretanto, eu tive a maior felicidade de minha vida em algo que me encheu de entusiasmo, desde pequeno: a Santa Igreja Católica Apostólica Romana! Mais do que qualquer panorama ou qualquer flor, incomparavelmente mais do que qualquer delícia ou iguaria, ela me falava à alma.

Isso me dava a convicção de que por mais que fosse preciso sofrer, lutar, enfrentar dificuldades para levar uma vida digna, na Igreja eu encontraria toda a alegria que nesta vida se pode ter.  v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/5/1984)

Revista Dr Plinio 155 (Fevereiro de 2011)

 

 

 

1) “Il dolce far niente”. Expressão italiana que significa “A doçura de não fazer nada”.

 

Reflexo do senhorio divino

Recolhido nas grandiosas e abençoadas solidões de Subiaco, São Bento idealizou a Civilização Cristã que, pouco depois, começaria a ser edificada em solo europeu.

Para o santo Patriarca, era preciso que houvesse uma vida religiosa no ápice de toda a existência humana, seguida pela vida temporal dos homens que se entregam às meras atividades terrenas.

Porém, era igualmente necessário, por vontade de Deus, que esses homens tivessem um alto pensamento, uma alta mentalidade e elevados anseios, a fim de engendrarem uma sociedade temporal toda marcada por aquela sociedade espiritual.

Uma bela manifestação deste ideal encontra-se na praça e no Palácio Público de Siena, na Itália. Ali se notam esplendores que nasceram com São Bento e com a obra beneditina no retiro de Subiaco. Sobretudo em determinados momentos em que a praça se acha praticamente vazia, tem-se a impressão de que toda a história do lugar conseguiu fugir do século atual e voltar, reconfortada, para as centúrias em que não tinha em torno de si a não ser suas próprias maravilhas e homens cheios de fé.

Num cenário bastante bonito, o palácio se ergue como um rei, dominador, pronto para governar as outras casas. Dir-se-ia que, através de seu relógio, ele possui um olhar com o qual supervisiona os acontecimentos ao seu redor. É um olhar ordenador, de quem conhece a situação própria de cada coisa se o bem que há no fato de elas estarem em seus respectivos lugares, cobrando-lhes, pelo mesmo olhar, a permanência delas nas suas posições.

Este o palácio, esplêndido e digno, amplo, confortável, severo e forte, que não depende a não ser de si para dirigir, e que exerce esta função tão parecida com a de Deus: governar os homens. O poder que se aloja ali, embora temporal, é exercido em nome de Deus, e representa eminentemente o domínio divino sobre a humanidade.

É um poder que não se exprime com a leveza e o esplendor das coisas sobrenaturais, como por exemplo, numa linda catedral gótica, as ogivas elegantes e os vitrais paradisíacos.

Não, a natureza é mais pesada que a graça. Ela nasce do chão, santa e legitimamente, mas é do solo que ela vem. A graça desce do Céu. Elas se encontram e se osculam: a natureza, serva, beija os pés da graça, a senhora.

Contudo, os dirigentes e os súditos do tempo em que o Palácio Público de Siena foi construído, estavam profundamente compenetrados da ideia de que, quem governa, mesmo na ordem temporal, o faz por desígnio de Deus. E que, para corresponder de modo perfeito a essa disposição divina, o governante deve, não raras vezes, demonstrar a sua força persuasiva natural, equivalente ao dom de mover as almas que tem a graça. Daí, um ligeiro ar de fortificação, uma certa aparência de quartel no Palácio Público, em cujos porões poderiam caber alguns cárceres, os quais, entretanto, não comprometem o conjunto de majestade desse edifício. Pormenor curioso, os dois torreões levantados nos ângulos do corpo central parecem braços e mãos erguidos ao Céu, pedindo a ajuda de Deus para o exercício de mando das coisas temporais…

Assim, por trás da magnífica temporalidade desse palácio, brilha a missão de velar sobre a Igreja para protegê-la, para favorecer a expansão dos missionários por toda a terra, para facilitar aos sacerdotes católicos a livre pregação da palavra de Deus.

O Estado tem, portanto, essa missão muito mais elevada que a de governar os homens: a de favorecer a Igreja. Este lado altíssimo do poder estatal é muito bem representado pela torre do palácio.

Esta se alça nos ares, sobe e sobe, como quem diz: “Vós, olhando para o lado terreno das coisas tendes toda a minha figura temporal. Vede como ela é bela! Mas vós não vistes nada. Vós não conheceis minha missão divina. Olhai!”

O interior do Palácio acompanha sua grandeza e esplendor externos. Salas cobertas de pinturas de extremo valor. Em Subiaco abriam-se as vastidões que têm como cúpula o próprio céu, e que alimentaram as reflexões de São Bento. Nesse palácio há tetos e arcos que convidam ao recolhimento do espaço pequeno, onde o homem pode também meditar nas coisas de Deus.

E então somos levados a imaginar um governante dessa Siena medieval, passeando pelas salas, terraços e torres do seu palácio. Um espírito ponderado e pensativo, cuidando da magnitude de seu poder temporal, das grandes responsabilidades e dos grandes serviços que pode prestar à salvação das almas, para o bem dos homens e, sobretudo, para o da Igreja.

Enquanto toda a cidade dorme, e apenas se ouve, de tempos em tempos, um tilintar dos relógios e um eco dos sinos a indicarem as horas que correm, ele está lá em cima, sozinho, rezando e pensando, pensando e rezando, como São Bento em Subiaco meditava…

São homens assim que sofrem e se tornam solitários nas grutas de Deus e são construções e monumentos como o Palácio de Siena que se transformam em instrumentos da graça, para conduzir as almas ao Paraíso Celestial.