Castelos de Espanha

Fronte erguida, olhar distante, característico de quem está meditando em horizontes sublimes; a ressequida mão estendida de modo firme, própria do homem que, sem se abaixar nem se rebaixar, assim recorre à caridade alheia: “Se tiver o que me dar e quiser fazê-lo, dê-me por amor a Deus. Porque dEle eu sou filho e, portanto, mereço que me socorram com aquilo de que necessito. Quer me dar uma esmola, pelo amor de Deus?”

Esse perfil do mendigo espanhol, superiormente retratado pelo escritor Antero de Figueiredo, revela muito bem a altivez e a dignidade com que a mendicância tinha lugar na terra do Cid   Campeador e de Santo Inácio de Loyola. É este o mesmo senso da grandeza e da respeitabilidade que permite aos mais subidos nobres espanhóis usarem um belíssimo título: Grande de Espanha.

Quando se ouve semelhante denominação honorífica, tem-se quase a impressão de que seu portador é um ente fabuloso: Fulano de tal, Duque e Grande de Espanha!

Uma alma verdadeiramente católica, que sabe admirar e amar as diferentes qualidades postas por Deus nos diversos povos do mundo, rejubila-se com esse senso da grandeza, tão distintivo dos nobres, dos guerreiros, dos santos e dos mendigos de Espanha.

E dos seus castelos. Sim, essa ideia da própria magnificência se acha presente também nos castelos espanhóis, de tal maneira que, para se referir a alguém que estivesse arquitetando sonhos e inalcançáveis anelos, cunhou-se nos vários idiomas europeus a expressão: “construindo castelos em Espanha”. Quer dizer, edificações formidáveis, miríficas, inexistentes, mas das quais os castelos de Espanha se aproximam de algum modo, dando a ideia de um ambiente onde o tal sonhador quereria viver. Daí alguns imaginarem o castelo na Espanha mais ou menos como os antigos concebiam o Olimpo…

Na verdade, sonhos postos à margem, certos álbuns de castelos da Espanha nos fazem conhecer variados  aspectos da grandeza dessa nação. As fortalezas neles retratadas são tão altivas, tão  altaneiras — e altanaria não quer dizer orgulho, e sim noção do próprio valor e dignidade — são tão corajosas, têm torres tão feitas para avistar ao longe o atacante mouro, que realmente encantam.

É curioso notar que esse modo de ser tem igualmente seu reflexo na vida de família dos espanhóis. Ou seja, a par de um elevado grau de carinho cercando os membros de uma mesma casa, a autoridade paterna conserva algo da supremacia do antigo castelão e senhor feudal junto aos seus vassalos. O pai quer ser inteiramente respeitado, e o filho se compraz em devotar-lhe essa completa deferência. As fórmulas de afeto e de cortesia existem, porém sempre envoltas nesse panejamento de dignidade e de incontestável força paterna, em virtude do que o filho não se atreve a  discutir com o pai, e menos ainda a ridicularizá-lo com algum gracejo.

É o hispânico senso da grandeza, que deste modo enobrece as relações domésticas.

* * *

Trata-se do mesmo senso que envolve de uma aura mítica as antigas fortalezas ibéricas. Ora é um castelo que se diria inexistente. De fato, ele está ali; mas, se fôssemos idealizar uma construção fabulosa, mirífica, imaginaríamos algo como ele. É um castelo cujos vários aspectos são realizações de sucessivos desejos de algo mais belo, mais grandioso, mais extraordinário. Insaciáveis aspirações que, por fim, se concretizam em admirável conjunto: um castelo de Espanha!

Ora são panos de muralha erguidos num ambiente que a natureza lhes tornou particularmente adequado, sob um dossel de nuvens volumosas, inconstantes, e em meio a um cambiante jogo de luz que lhes confere uma aparência fugidia, deixando-lhes partes profundas meio escuras, e outras muito iluminadas.

Por vezes resta apenas uma ruína. Mas, que força maravilhosa tem essa ruína! Em vez de incutir pena, ela sugere a ideia da grandeza que outrora possuiu. Ela faz reviver um esplendoroso passado, tão magnífico que se pode perguntar se essas pedras derruídas não nos levam a imaginar um passado mais bonito do que este foi na realidade.

Entretanto, é o próprio das coisas que tiveram seus dias de grandeza: todo o seu passado permanece como uma espécie de imensa cauda que desce do Céu até elas. É a continuidade histórica, é o que foi e, uma vez extinto, deixou sua lendária memória no espírito humano: “Fui. Não sou mais. Contudo, se eu fui o que deveria ter sido, de algum modo para sempre o serei!”

Quem, pois, não se toma de respeito diante dessas ruínas? Elas também foram, e continuam sendo, castelos de Espanha…

Heroísmo, graça e beleza

Ergue-se sozinha, desafiando a vastidão das águas que se abrem à sua frente. Dir-se-ia antes um palácio em forma de torre, espaçoso, amplo, imponente, com seus diversos andares encimados pelo caminho de ronda, ao longo do qual os vigias atentos são capazes de perlustrar todo o horizonte.

Cercada de pátios, patamares e guaritas, fruto de uma concepção corajosa, misto de guerreiro e sagrado, a Torre de Belém é, a meu ver, um dos mais belos monumentos da Cristandade.

Quando a vi pela primeira vez, desde logo tornou-se dos meus maiores encantos. Era a forma de grandeza e de pulcritude que eu desejava conhecer, sem a poder imaginar. Contemplando-a com meus próprios olhos, veio-me ao espírito este pensamento: “Já a pressentia, mas não conseguia colocá-la em palavras; tudo em mim se inclinava para ela, para o desejo que algo assim existisse. Eis a torre que eu tanto esperava!”

Senti, por assim dizer, uma vivíssima consonância que nos unia. Pareceu-me magnífica como dignidade, calma, distinção, majestade. Como vigor, força e, ao mesmo tempo, suavidade e delicadeza, presente naquelas sacadas de onde o rei e a corte assistiam a partida dos valorosos navegantes. Pude imaginar os adeuses de parte a parte, os lenços que se agitavam para marcar a separação e todas as outras manifestações de carinho e amizade para com os que se ausentavam. Tudo isso me veio de imediato à imaginação, porque havia essa consonância da Torre comigo.

Lembrar-me dela é para mim uma fonte de alegria: “Lá está a Torre, e sempre poderei revê-la!”

Extraordinária definição de ousadia, altiva, séria, resolvida a enfrentar os mares, ela nos convida a superiores cogitações. Sua atmosfera é incompatível com a superficialidade, a intriga e as mesquinharias da baixeza humana. Dela emanam aromas espirituais e sobrenaturais, o maravilhoso perfume da graça divina, posto que edificada por almas movidas de espírito católico, cuja inspiração artística sublimou-se por uma espécie de carisma e dom celestial para atingir aquele esplendor de realização.

Obra do passado, ela nos fala de futuro. Suas pedras de alvura reluzente nos transporta para o mundo dos contos de fábula.

É o próprio símbolo do heroísmo, da graça e da beleza.

Tenho para mim que certos lugares e monumentos que não possuem um significado diretamente religioso, mas constituem uma expressão cultural definida muito católica, devem ser admirados por amor à Igreja. A Torre de Belém é um deles.

Eu lhe devoto tanto apreço porque amo a Esposa Mística de Cristo. E quando a elogio, faço-o com uma emoção religiosa: porque a graça me toca a alma ao vê-la, e ao perceber nos seus encantos os reflexos dos sentimentos cristãos que levaram os navegadores, os missionários e os conquistadores lusitanos a empreenderem uma epopeia que traçou indelével sulco nas águas da História.

“Unum” de Veneza e do mar

Entre os belíssimos monumentos de Veneza, cidade cuja conjunção com o mar atrai turistas do mundo inteiro, destaca-se a Catedral de São Marcos, poema construído em torno da Santa Missa, onde a Pala d’Oro, com sua feeria de esmaltes e cores, concorre não apenas para a cultura artística, mas principalmente para a formação religiosa do povo de Deus, o que faz dessa obra de arte um verdadeiro tesouro.

 

Estando em Veneza, em minha última viagem à Europa(1), tive a oportunidade de transpor de lancha um braço de mar, saindo de Veneza em direção a duas ilhas que ficam em frente: São Jorge e Giudecca.

Conclave que elegeu Pio VII

À medida que nos distanciamos de Veneza, vamos tendo uma mudança de panorama que mereceria ser comentada, e que é a seguinte: quando a lancha está a uma distância ainda pequena da cidade, não se goza tanto da proximidade do mar porque a atenção fica inteiramente absorvida pelos monumentos. Ademais, o ser humano não consegue fixar bem a atenção na conjunção monumento-mar, porque o mar é muito largo, o monumento muito bonito, e ora um ora outro biparte a atenção do homem.

Com a distância, pelo contrário, vai-se formando um “unum” de Veneza e do mar, pelo qual, num primeiro momento, trata-se de considerar como a cidade é bonita vista a partir do mar. Bem mais longe, a cidade vai ficando ao fundo do panorama e o mar atrai mais a atenção. Por fim, Veneza torna-se apenas uma moldura distante para o mar, cuja beleza é ressaltada ao ser emoldurado por ela.

A Ilha de São Jorge é toda tomada pela basílica e o mosteiro do mesmo nome. É, portanto, uma ilha-mosteiro. Em fins do século XVIII, quando o Papado parecia destroçado, o Papa Pio VI, muito doente, foi arrastado à força pelos revolucionários franceses e levado prisioneiro para a França.

Ao chegar à cidade de Valence, o povo queria vê-lo, aglutinado do lado de fora da casa onde o Pontífice estava. Ele se arrastou até o terraço para evitar uma agressão do povo e apresentou-se dizendo “Ecce homo – Eis o homem”, que foram as palavras com as quais Pôncio Pilatos apresentou ao populacho revoltado Nosso Senhor flagelado, coroado de espinhos, com o manto da ignomínia e a cana de bobo na mão. Pio VI, para significar como estava reduzido a quase nada, disse de si mesmo que estava como Nosso Senhor. É uma coisa que um Vigário de Cristo pode dizer, quando se encontra nessa situação tristíssima.

Quando ele morreu, muitos tiveram a loucura de pensar que não haveria mais papas e a Igreja Católica iria sumindo aos poucos. O Imperador da Áustria era senhor de Veneza naquele tempo e resolveu realizar um conclave para os cardeais elegerem um novo pontífice. O soberano proporcionou todas as condições para que o conclave se realizasse nessa ilha, e ali foi eleito Pio VII como papa.

A partir da Ilha de São Jorge, a distância de Veneza se faz sentir menos do que da Ilha Giudecca. Portanto, não é ainda verdade dizer que a cidade serve de mera moldura ao mar. Pelo contrário, Veneza e o mar se completam, um embeleza o outro.

Para melhor avaliar a beleza desse panorama, imaginem que uma empresa colossal resolvesse propor ao Governo italiano, por razões de transporte, desviar esse braço de mar, e construísse em cima disso uma avenida de asfalto. Podemos imaginar a feiura que isso teria? Por outro lado, se estourasse uma guerra que destruísse Veneza, por causa desse mar valeria a pena ir ali? Entretanto, a conjunção Veneza-mar atrai turistas do mundo inteiro.

Triunfo da Cruz sobre o crescente do Islã

Temos uma vista da Praça de São Marcos que pode ser melhor admirada em horas em que está menos tomada por turistas. Notem a enorme diferença de estilos existente entre o campanário e a basílica. Contudo, vejam que variedade agradável isso ocasiona. É uma verdadeira beleza! Como o jeito, à maneira de bengala, dessa torre dura, forte e alta contrasta com o rendilhado gracioso, amável, da basílica! Cada coisa realça a beleza da outra e forma um conjunto lindíssimo.

A “Torre do Relógio” é um dos monumentos mais famosos de Veneza. Ele se compõe de um corpo central onde se encontra o relógio que dá o nome ao edifício, e dois andares laterais bonitos, mas muito mais discretos, deixando todo o realce ao prédio principal, servindo-lhe de moldura, pois ainda que não houvesse essas edificações em volta, essa parte já constituiria uma torre.

O relógio é muito bonito. O quadrante é de um azul bem escuro com desenhos em dourado e os números estão inscritos em círculos de pedra. Em cada ângulo encontra-se uma pequena circunferência vazada.

A torre é fundamentalmente uma homenagem a Nossa Senhora. Na parte mais visível dela está a Santíssima Virgem com o Menino Jesus. Por ocasião do Natal, entram em cena os Reis Magos precedidos por um Anjo – movidos por um sistema mecânico –, e passam diante da Virgem-Mãe com seu Divino Filho para reverenciá-Los.

Na construção da torre, Veneza não se esqueceu de si própria e colocou num lugar menos central, mas bastante evidente, o emblema da cidade: um leão alado, símbolo do Evangelista São Marcos, sob cujo patrocínio está a Sereníssima República.

Esse é um prédio destinado à vida civil comum, não se trata de uma igreja. Entretanto, vejam como é impregnado profundamente de Religião, de maneira a encontrarmos em quase todos os motivos decorativos uma alusão religiosa. Até mesmo em cima, os mouros que estão batendo no sino. Veneza possuía escravos mouros aprisionados durante as guerras, as quais, em geral, eram por motivo religioso. Os venezianos eram católicos e os mouros maometanos. Os escravos deviam servir os seus senhores; então estão representados ali os escravos mouros batendo o sino. Ou seja, é o triunfo da Cruz sobre o crescente do Islã.

Cavalos que parecem conversar

Os famosos cavalos de Veneza, na realidade, pertenciam ao Império Bizantino, tendo sido trazidos de Constantinopla como presa de guerra. São considerados como verdadeira maravilha no gênero, porque representam com uma vitalidade e naturalidade assombrosas quatro cavalos que vão numa marcha um pouco viva, mas não em disparada. É muito interessante o inter-relacionamento entre eles. Cavalo não conversa; contudo, estes estão como que conversando. Notem o movimento de cabeça do primeiro para o segundo e do terceiro para o quarto. Percebe-se isso nos animais, às vezes: estão como que convivendo, quase como se conversassem. Considerem a discrição do movimento das patas, em nada forçado. É a marcha comum de cavalos numa rua, mas animais de categoria.

Napoleão, que era um grande ladrão, levou-os para Paris. Quando ele caiu, o rei legítimo da França, irmão de Luís XVI, Luís XVIII, restituiu a Veneza esses cavalos roubados. O rei legítimo não queria ser dono ilegítimo de um tesouro desses. Então foram reinstalados.

Mais recentemente descobriu-se que o ar do mar e outras circunstâncias estavam deteriorando os cavalos. Para evitar isso, que seria uma perda irreparável, foram feitas cópias exatíssimas, as quais ficam expostas às intempéries, enquanto as originais permanecem num lugar onde estejam a salvo dos fatores de deterioração.

Um poema construído em torno da Santa Missa

No interior da Basílica de São Marcos nota-se uma série de arcos que culminam num último, fechado numa espécie de semicírculo todo cravejado de mosaicos preciosos. O corpo da igreja é formado de tal maneira que possui arcos até o fim. Nos lados, os arcos se interrompem em certo momento para recomeçarem depois, deixando um espaço vazio.

A catedral é construída em forma de cruz. O Corpo sagrado de Nosso Senhor estaria ao longo da nave central, e nas laterais os braços, cujo principal, para onde se inclinou a cabeça sagrada do Redentor na hora da morte, fica à direita do altar. Então a ideia da Cruz, do sacrifício, da morte e, portanto, da Redenção infinitamente preciosa de Nosso Senhor Jesus Cristo, e de que a Missa renova de modo incruento o Santo Sacrifício do Calvário, fica simbolizada muito adequadamente por essa disposição.

No primeiro plano vemos uma cruz disposta de maneira a ser observada por quem entra e por quem está nas naves laterais. Portanto, em qualquer lado que se esteja vê-se o símbolo de nossa Redenção, indicando o significado central da catedral, que é de ser o lugar onde se celebra a Missa, ato supremo da piedade católica. Assim, essa basílica é todo um poema construído em torno da Santa Missa.

Para além dessa espécie de vedação com colunatas, feita de pedras lindíssimas, que separa o altar-mor do corpo da catedral, vemos à direita e à esquerda os púlpitos de onde os sacerdotes e diáconos leem as Sagradas Escrituras e cantam o Ofício sagrado.

O solo em Veneza é de tal maneira úmido que apresenta resistências desiguais aos pesos que carrega. Então, há partes do chão que são um pouco mais afundadas, outras mais salientes, e é necessária certa atenção para não se perder o equilíbrio e cair de repente. Mas esse piso é feito de tal maneira que em nenhum lugar esse movimento de terreno prejudicou os mosaicos. Estão todos perfeitos.

Pala d’Oro

No alto desta espécie de divisão estão as imagens de Nossa Senhora, São João Batista e dos doze Apóstolos, reunidos em torno da Cruz. Notem a beleza dessa divisão e como ela marca bem a diferença entre o sacerdote e os fiéis. O sacerdote é o ministro de Deus, escolhido por Ele para representar os fiéis diante d’Ele. É ele quem tem o poder de celebrar a Missa, e por suas palavras se opera a transubstanciação. Nós, os fiéis, não temos esse poder. Porém, essa separação tão categórica é toda feita com amor, e por causa disso vemos como a Igreja enfeita e orna essa divisão e acentua nela a hierarquia estabelecida por Nosso Senhor Jesus Cristo.

O retábulo do altar-mor é a famosa Pala d’Oro. Examinando esses esmaltes, vemos como cada um é uma verdadeira maravilha. Mas diz o Gênesis que Deus, tendo concluído a obra da Criação, no sétimo dia repousou e, contemplando o que tinha feito, viu que o conjunto era muito bom. É bem verdade, o conjunto das coisas excelentes tem mais beleza do que a mera soma das excelências que o constituem, individualmente consideradas. É uma regra de harmonia.

No centro, vemos um esmalte representando Jesus Cristo rodeado dos quatro Evangelistas. Em cima, à esquerda, São Marcos; à direita, São João. Embaixo, à esquerda, São Mateus; à direita, São Lucas.

Nessa obra de arte encontramos, numa feeria de esmaltes e cores, um grande número de cenas, pessoas, fisionomias. E no primeiro golpe de olhar consideramos uma beleza feita da mistura indefinida e multiplicada das cores, formas e figuras, muito deleitável à vista, mas também muito conveniente à piedade, porque os olhos ficam atraídos a se deterem sobre temas santíssimos, cristianíssimos; o que concorre, em primeiríssimo lugar, para a formação religiosa e, em segundo, para a cultura artística do povo de Deus. Tudo isso faz da Pala d’Oro um verdadeiro tesouro.    v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/12/1988)
Revista Dr Plinio 263 (Fevereiro de 2020)

 

1) Nessa viagem, Dr. Plinio esteve em Veneza de 30 de setembro a 5 outubro de 1988.

 

Vale de lágrimas no meio de montanhas cujos picos tocam no Paraíso – II

Viver para um ideal é o melhor remédio contra os problemas da vida espiritual ou os desequilíbrios nervosos. Entretanto, isso só é possível se este ideal está constantemente voltado ao amor à transesfera, que é o início, a orla do amor de Deus.

 

Certa ocasião caiu-me nas mãos uma fotografia minha tirada em menino. Eu estava no último período dessa fase, antes de encontrar a Revolução e ter que começar a pensar nela.

Brisas e cores absolutas que não existem nesta Terra

Entrei no Colégio São Luís pelos dez anos de idade, e aí começou outra fase. Fui tirar uma fotografia, porque naquele tempo, de quando em quando, as pessoas punham uma roupa melhor e se faziam fotografar, o que depois ficava no balaio das recordações da família. Balaios esses que a minha geração jogou todos no lixo. Em casa se conservou porque mamãe guardava.

Nessa fotografia eu estava vestido não com traje de gala, mas com a roupa que um menino fino punha para ir passear, tomar um lanche numa confeitaria, umas coisas assim.

Lembro-me perfeitamente do estado de espírito com que me encontrava naquela ocasião. Eu estava inundado de cogitações destas e fui para o fotógrafo, o qual me olhou e percebeu que eu permanecia inteiramente alheio a ele, à “Fräulein” e a tudo mais, e que não estava, portanto, com “cara fotográfica”. Então, ele me recomendou:

— Tome uma atitude.

Eu fiquei em pé e disse:

— Estou aqui!

— Não, não. Uma atitude viva!

— Mas eu não sei tomar uma atitude viva.

— Olhe, fique bem perto deste sofá, ponha seu pé aqui, sua mão no queixo…

Eu executei o que ele quis, mas pensando em outras coisas. Ele me fotografou nessa situação.

No que eu pensava? Era um meio-pensar e meio-sentir. Nessa minha idade, não podia ser uma especulação filosófica, abstrata, nem eu tinha talento para fazer isso. Era algo quase prosaico, mas assim: sempre gostei enormemente de toda espécie e grau de vento: brisa, ventinho, ventania, tufão… Lembro-me de que naquele dia soprava sobre mim uma brisa ligeiramente tendente para fresca, e eu estava vestindo uma roupa muito arejada. Sentia-me, assim, inundado pela brisa, leve, refrigerado, e a claridade do dia parecia ter uma reversibilidade com o frescor discreto da brisa. Parecia-me haver um nexo, mas não sabia qual, entre todos aqueles prazeres e um lado invisível onde havia brisas e cores absolutas, como esta Terra não tem.

Naturalmente, nesta comparação entram as características minhas. Portanto, sendo eminentemente colorista, as cores, brisas e temperaturas falam-me muito.

Então, por exemplo, um nácar, num dia como aquele, mais do que em outros, levava-me a ideia para um nácar perfeito, mas que me parecia ter um parentesco com uma porção de outras cores perfeitas simbolizadas pelas cores contingentes que eu via em torno de mim. Isso eu percebia vagamente, não tinha inteligência para formular, mas a minha sensibilidade era como se esse nácar perfeito fosse meio vivo, ou habitasse numa terra, fosse de uma zona onde as cores eram bem vivas. De fato, não era assim, mas uma sensação do absoluto e de Deus, e de que, com a ajuda de Nossa Senhora, eu chegaria até lá.

Eu mantinha o olhar voltado para essa zona de modo permanente, mas com graus de intensidade muito desiguais. No dia dessa fotografia, não sei por que, era muito maior. Entretanto, quer nos dias maiores, quer nos menores, mais ou menos eu percebia o nexo disso com milhares de outras coisas que formavam uma transesfera(1).

A parte mais rica, produtiva e fina da inteligência de um homem

Parece-me que isso tem certa relação com o discernimento dos espíritos. Quando se tem isso muito fino, percebe-se melhor nos outros qual é o estado de alma. Sobretudo, a primeira nota que se toma a respeito de alguém, e que dá a clave em função da qual essa pessoa deve ser interpretada, é ver como ela está em relação a essas riquezas de alma. Sem isso as correlações não se fazem.

A meu ver, essa é a parte mais rica, mais produtiva e fina da inteligência de um homem. Não é inteligência universitária. É um pensar, sentir, querer, onde a reversibilidade entre essas três potências da alma se nota melhor.

O amor a essa transesfera é o início, a orla do amor de Deus. Para esse amor, o homem se volta por interesse ou desinteresse? Esta é uma pergunta fundamentalmente mal feita, porque aí o interesse e o desinteresse se fundem num píncaro mais alto. Aí está o verdadeiro amor de Deus. Exatamente, a dissociação entre interesse e desinteresse põe-se num nível menor. Se eu tiver que renunciar a um interesse para conservar isso, eu o farei. Mas nisso há uma coisa que supera o interesse e o desinteresse. É o movimento inteiro de minha alma; por todas as razões de meu desinteresse e de meu interesse eu pendo para lá.

Não sei quantos problemas há na vida espiritual em que nós passamos dez, quinze, vinte anos remexendo inutilmente; e quanto mais remexe, mais desgasta o terreno e mais o cobre com a poeira das decepções, porque a solução não está ali, mas sim no que estou dizendo. Como também problemas de desequilíbrio nervoso. Então, toma um remédio para se equilibrar. Eu até sou favorável ao remédio quando o desequilíbrio chegou a tal ponto que não tem outro jeito. Mas esta é uma contemporização necessária, não a solução. A solução é isto de que estamos tratando. Seria até a nossa resposta à Psiquiatria contemporânea. O absoluto é melhor do que a Psiquiatria. Viver para um ideal resolve problemas de nervos.                v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/5/1984)

Revista Dr Plinio 263 (Fevereiro de 2020)

 

1) Termo criado por Dr. Plinio para significar que, acima das realidades visíveis, existem as invisíveis. As primeiras constituem a esfera, ou seja, o universo material; e as invisíveis, a transesfera.

 

A seriedade em luta contra o relativismo

Relembrando o momento trágico de seu acidente automobilístico, no qual viu-se entre a vida e a morte, Dr. Plinio tece profundas considerações sobre a seriedade da vida e o mal do relativismo. Que sinistra a vida de um homem que se entrega para um ideal e o serve com mediocridade!

 

Ao receber um pedido filial para tratar a respeito do período que se seguiu ao desastre(1) e da operação a que fui submetido no dia 6 de fevereiro de 1975, eu não poderia me recusar a atendê-lo. Entretanto, não saberia o que dizer, porque todo esse período se passou dentro de uma semiconsciência. Lembro-me confusamente de que eu emergia, de vez em quando, da subconsciência para a consciência. Assim, percebia por momentos gotas claras e grandes da realidade, mas fugidias, que rolavam pelo abismo das circunstâncias pós-operatórias.

A morte é a mais augusta tabeliã que há sobre a Terra

Nessas condições, eu não tinha ideia do que de fato estava se passando comigo. Mas, entre outras coisas, digamos que tenha ali expiado as minhas faltas. Se expiei as faltas daqueles que seriam meus discípulos, como o dou por bem empregado!

Em meio àquilo tudo eu não me dava conta de que uma coisa estava fazendo: tanto nos momentos de inconsciência, quanto nos de consciência, eu estava ajudando a fortificar na posição contrarrevolucionária os dois enormes olhos escuros e sevilhanos que me acompanhavam a todo o momento(2).

Porque eu vejo pelas repercussões posteriores que ele, com piedade filial, prestou atenção em tudo, analisou e tirou conclusões de tudo. Nossa Senhora foi servida em que ele ficasse edificado com o que viu. Até que ponto essa edificação poderia ter concorrido para depois ele ter realizado o que fez? Em medida talvez não pequena. E se assim foi, fica inteiramente de pé que nesse momento eu estava sofrendo e ajudando a ele para trazer tantos e tantos outros.

Há certas coisas de que eu tenho certeza que só se ensinam ou se sancionam pelo exemplo no momento em que a morte está próxima. É a mais augusta tabeliã que há sobre a Terra. O que se passa em presença dela raramente é a fraude, porque ela avança e desmascara tudo! É o juízo que está atrás dela; ela não faz senão servir de arauto ao juízo. E ao ouvir os passos do grande Juiz que vem, é preciso ser quase satânico para não ter medo e não pedir perdão!

Tenho assistido a muitos enterros em minha vida. Como é natural, está na ordem das coisas, um bom número deles de pessoas perfeitamente insignificantes. O primeiro homem que eu vi morrer em minha vida era um coitado. Lembro-me de tê-lo visto esticado num jardim, com os braços para trás, lívido, com os olhos vidrados. Podia ser a imagem, a personificação do homem insignificante. Mas ao olhá-lo às voltas com a morte, a tragédia da vida humana aparecia e a grandeza da morte também; e por detrás disso, a grandeza d’Aquele a quem a morte prenuncia.

Naquele momento pude compreender a forma de grandeza de que aquele pobre coitado era capaz, embora não a tivesse realizado. Veio-me, então, uma reflexão que nunca mais abandonei em minha vida: Se esse coitado é capaz de tanta grandeza, todo homem é grande, desde que seja fiel!

A verdade é que na presença da morte as coisas tomam essas dimensões.

Se houvesse em minha alma alguma superficialidade…

Se ver a morte por detrás de mim pode vos ter ajudado, como dou por bem empregado, como isso me contenta, como fico alegre! Como considerar o que naquele momento se me apresentou? Imaginem que eu tivesse uma certa superficialidade de alma e nessa hora ela aparecesse. Que efeito isso causaria?

O desastre ocorreu em 1975, quando eu tinha sessenta e seis anos. Com essa idade já foi para trás uma vida. Todos conhecem bem o meu passado. Posso dizer que aos olhos dos homens – não ouso dizer aos olhos de Deus – é um passado solidamente estruturado, coerente, lógico, limpo, rumando contínua e abnegadamente para um mesmo fim.

Senti um frêmito quando, em mocinho, li numa das conferências da “Université des Annales” que Bayard, o cavaleiro do tempo de Francisco I e de Carlos V, era chamado “le chevalier sans peur et sans reproche”(3). Volto a dizer: eu não ousaria afirmar isto de mim aos olhos de Nossa Senhora, mas aos olhos dos homens, sim. Os nossos adversários não têm coragem de negá-lo! A respeito do meu passado, os lábios deles que só destilam a calúnia ficam em silêncio. Porque se me inculpassem, eu lhes perguntaria: “Quando me viram ter “peur” e quando me puderam fazer um “reproche”? Apontem!” E por saberem que esta seria a resposta, ficam quietos.

Na realidade, se houvesse em minha alma alguma superficialidade, apesar da continuidade dessa obra, ela apareceria aos olhos do filho, do amigo, do discípulo. E se aparecesse, poderia causar uma insegurança – não creio que fosse a dúvida – quiçá um empenho menor, em algo o impulso diminuiria. E decrescendo na alma dele, diminuiria em todos aqueles que deveriam estar sob sua orientação. O menor impulso equivaleria a um minguamento quantitativo e qualitativo, o que por sua vez significaria um minguamento de minha obra aos olhos de Deus, dos Anjos e dos homens, uma risota da Revolução e um vexame a mais a pesar nas costas cansadas da Contra-Revolução.

Eu me levantaria do desastre com a impressão de ter cumprido o meu dever, e ele sairia edificado, porque não tomaria consciência do que faltou e do que deixei entrever. Mas na hora do julgamento – e é por isso que falo da justiça de Deus e da grandeza da morte – eu seria interrogado:

— Presta as tuas contas!

Eu olharia para Nossa Senhora e A veria gélida. Só não me desintegraria porque o poder de Deus não me daria meios para isso. Se Nossa Senhora está fria comigo, acabou.

— Por exemplo, em tal hospital… – continuaria o Divino Juiz.

— Senhor, eu estava inconsciente!

— Agora Eu vou te explicar. Em tal ocasião Eu te dei tal graça, depois tal outra, porque te queria de tal maneira. Queria que fosses isto. Tu respondeste e passaste por essa ocasião de modo insuficiente. Não manifestaste a tua alma como ela deveria estar. Não tinhas culpa naquela hora, tinhas culpa na causalidade. O efeito era tua culpa porque a causa era tua culpa. Estava em ti aquela graça mal correspondida. Agora presta contas! Aconteceu isto e aquilo, deixou de acontecer isto e aquilo. A culpa é tua. Em última análise, teu espírito deveria ter sido mais absoluto, mais categórico, ter sabido chegar com mais ímpeto às últimas consequências e vê-las mais claramente. Ficaste a oitenta, a noventa por cento do caminho, a cem não chegaste, e era nos cem que Eu te esperava. Terás a minha misericórdia, mas experimentarás antes o meu desagrado.

O que teria faltado? Superficialidade foi a causa. O espírito não foi a fundo, não aderiu, não se persuadiu como devia porque não prestou atenção e não se enlevou como devia.

Até que ponto devemos lutar contra o relativismo?

Deus continuaria:

— Houve um momento primeiro em que o “lumen rationis”(4) acendeu em teu espírito tal conclusão que o discernimento interno dado por Mim te fez ver. Aquilo tu deverias ter amado. Porém, por causa de tal bagatela, de tal egoísmo, de tal outra tolice fizeste exatamente o contrário. Resultado: todo o ritmo ficou prejudicado. Dei-te depois outras graças, tu as recusaste de tal maneira. Aqui está a tua história. Olha para os teus passos; pode ser que ao longo do caminho até tenham saído estrelas, mas uma sombra também se projetou. Eu estou aqui para te pedir contas dessa sombra.

Por que digo isto com esta ênfase? Pela saturação de ver, desde nem sei quando, espíritos superficiais pensarem que cumprindo o dever mais ou menos, às pressas, sem aprofundamento, sem adesão inteira da alma, por trivialidade, cumprem-no completamente, e julgam bastar a ação externa para que a obra esteja inteiramente boa. Pensam eles: “Se não fiz externamente tais atos, se não consenti internamente em tais coisas, estou perfeito.” Para manter o estado de graça, eu creio bem que sim. Mas basta manter o estado de graça quando se é chamado para uma vocação como a nossa? Até que ponto está firme no estado de graça uma alma que acha bastar-lhe estar em estado de graça? Eis a pergunta. Até que ponto devemos lutar contra essa fraude a nós mesmos, que é o relativismo?

O que é o relativismo propriamente?

Quando as graças do Batismo vão se tornando a nós conscientes e vamos vendo no ímpeto de nosso senso do ser, vamos imaginando desde logo as coisas com toda a perfeição possível – intuitivamente, mas tão verazmente – e nossa alma voa para aquilo; nós vemos coisas magníficas e nossa alma tende para o magnífico, para o grande, com todas as forças. Isso nos dá uma certeza e um contato com algo de paradisíaco, maravilhoso, verdadeiramente arrebatador.

Isto está provado não apenas pela voz dos católicos, mas até dos ímpios. Poucos homens experimentaram triunfos maiores do que Napoleão. Para não falar de outra coisa, a coroação dele, quando trouxe um Papa acorrentado de Roma a Paris para coroá-lo na presença de toda a Cristandade, naquela Catedral de Notre-Dame para cuja magnificência a humanidade sacudida pela Revolução Francesa começava de novo a abrir os olhos, na presença de representantes de reis da Europa inteira, de todas as sumidades que a França tinha naquele tempo. Pois bem, ele se fez coroar naquela ocasião. Que gáudio para aquele homem vaidoso, orgulhoso e vitorioso! Perguntaram uma vez para ele: “Qual foi o dia mais alegre de tua vida?” Pensavam que ele falasse do dia de Austerlitz, ou de Marengo, ou da coroação dele. Sua resposta, sem nenhuma dúvida, foi: “O dia da minha Primeira Comunhão”.

O que esse homem teve no dia de sua Primeira Comunhão que deixou de lado tudo o que veio depois? Tudo aquilo que para obter ele remexeu céus e terras não era comparável à alegria que tivera por ocasião da Primeira Comunhão. Como se explica isso?

Cada um de nós pode dar esse depoimento. Se não foi matematicamente no dia da Primeira Comunhão, houve, entretanto, momentos de uma alegria, de um enlevo, de um estado de alma que não se pode repetir. Na infância, quantas vezes isso se dá!

Uma velha harmonia enriquecida com tonalidades marciais

Para dar outro exemplo, aqui no Brasil, o nosso Casimiro de Abreu escreveu: “Oh, que saudades eu tenho da aurora de minha vida, da minha infância querida…” Era a inocência que ele tinha perdido e que cantava gemendo. Ele fugiu de dentro dela, saltou para as coisas do mundo, onde o ambiente brasileiro o glorificou, é bem verdade. Mas o que ele vendeu por isto! Que coisa horrorosa!

Nós, mais ou menos, desviamos os olhos desse senso do ser que nos apresenta as verdades primevas, e com elas algo que seria como que a matriz de todas as verdades iluminadas pela Fé. Muitos de nós chegamos a pecar, às vezes até reiterada e gravemente.

Entretanto, em certo momento, tivemos a impressão de que todas as alegrias da “Primeira Comunhão” se renovaram para nós, ainda mais intensas, com mais definição, com tonalidades mais ricas, porque eram elas mesmas, analisadas com as maturidades adquiridas ao longo do tempo, mas, sobretudo, porque vinham com graças muito insignes.

Aparece-nos de repente e nem percebemos. Antes, porém, passamos por um processo: começamos a nos desagradar de tudo quanto o mundo oferece. O fútil, o vazio, o sórdido de tudo começa a nos saltar aos olhos. Observamos em torno de nós os amigos que parecem alegres e julgávamos que eram felizes, e damo-nos conta de que a alegria deles é nada. Eles riem, saltam, brincam, gastam, fazem-se bajular, mas não estão felizes, não há paz neles. E concluímos que isso tudo está errado e precisa ser mudado. Mais ou menos quando a alma chega a este ponto, toca no fundo do horizonte dela uma velha harmonia enriquecida com tonalidades marciais: “Como se explica que eu tenha me deixado levar por isso? Se este mundo pagão deve vir abaixo, qual é o mundo que eu quero?”

Então, uma luz brilha aos nossos olhos e nos atrai. É a vocação, e com ela tudo renasce. Às vezes com embates duros. Que belas batalhas as da emenda da vida! Como elas são diferentes daquela escorregadela horrível por onde uma alma cai na impureza! Batalhas acirradas, difíceis, mas, afinal de contas, as graças vêm e a alma recupera a virtude. São novos horizontes, a pessoa se põe a combater e pensa: “Agora compreendo! Os que se entregam ao mundo pensam que a felicidade consiste em não ter desventuras nem lutas. Tontos! Nesta vida sempre as teremos. Mas há um recanto da alma onde paira uma felicidade, uma convicção, uma segurança, uma certeza, uma saúde que vale muito mais do que a saúde do corpo, do que o dinheiro e tudo mais. Esta eu tenho, e vou para a frente!”

Composição típica de um medíocre

Contudo, se no primeiro momento o homem não se enlevou como devia, mas conservou um pouco de concessão ao estado de espírito que ele tinha abandonado, aquilo vai minando-o lentamente. Em pouco tempo ele inventa uma composição: “Em linhas gerais eu cumpro meu dever, mas em tais pontos vou fazer mais ou menos. Minha consciência não fica chocada, não rompo com esse arcabouço sagrado onde me sinto realizando a vontade de Deus, mas não renuncio a umas “vontadinhas” que não extirpei e às quais estou apegado. Faço uma composição”.

Eu tenho vontade de dizer: “É verdade. Um copo d’água com três gotas de veneno, essa é a tua composição. Medíocre! Se eu fosse comparar a tua alma a um copo que só tem veneno, mentiria. Mas mentiria ainda mais se dissesse que sua água é cristalina. Entretanto, são só três gotas que tu consentiste que se pingassem ali dentro. Ainda que fosse uma gota, aquilo já não é mais a água que imaginas. Medíocre, o veneno está em ti.”

Se há venenos que fulminam, existem outros que matam aos poucos. Por exemplo, se alguém nos servisse, todos os dias, água um pouco envenenada não nos mataria imediatamente, mas vergaria a nossa saúde. Depois viria a morte. Assim também na nossa alma, as águas da mediocridade vão nos envenenando, intoxicando aos poucos.

Há pessoas que perderam a memória de tudo quanto a verdadeira saúde de alma lhes dava e se julgam saudáveis, até o momento em que o Médico Divino apareça e faça seu diagnóstico…

Fomos suscitados contra o relativismo

Isto posto, volto à pergunta: o que é o relativismo? É a atitude de alma por onde diante daquilo de belo, bom e verdadeiro que nos falou pela Fé, pela razão, pelos sentidos da alma e, às vezes, até pelos sentidos físicos, e que pedia de nós um brado de adesão, de devotamento e dedicação, nós nos movemos um pouco, dizendo: “Talvez, é possível. Daqui a pouco eu vou. No momento, quero saber sobre esse automóvel, como deu trombada no outro, ou tal coisinha como aconteceu; desejo uma bagatela, porque quero permanecer no mundo das bagatelas, reservando para elas pelo menos uma parte de minha alma”.

Esse é um pacto ilusório, uma esperança de que a graça presente em nós consinta em ficar íntegra quando deixamos entrar na alma o demônio. Seria mais ou menos como imaginar que uma casa onde more uma mãe de família pudesse ser habitada, ao mesmo tempo, por uma prostituta que ali exerce seu ofício. Alguém diria: “Bem, elas estão em quartos diferentes. No total, a mãe de família não nota.” Não é possível. Onde está uma, a outra só fica em estado ultrajado e diminuído. Diante do relativismo, a graça só fica em estado coarctado e humilhado.

Nossa Senhora deu-me a graça de odiar o relativismo com toda a minha alma. Porque no pecado declarado perdem-se os ruins, no relativismo se perdem os bons. Sempre me pareceu tremendamente triste, sinistro que um homem desse a sua vida para um ideal e o servisse mediocremente. E depois tivesse um resultado pífio. Então ele viveu para o pífio? Isso é viver ou é agonizar a vida inteira, sem glória e na lama?

Se há uma coisa que nossa vocação não permite é o relativismo. Assim como a Companhia de Jesus foi constituída contra o Protestantismo, os franciscanos contra o espírito de corrupção do uso das riquezas terrenas, os dominicanos contra as heresias, e daí por diante, assim fomos suscitados contra o relativismo. Logo, habitar uma gota de relativismo em nossas almas não é um erro, é uma aberração!

Essa seriedade que chega às últimas consequências é nossa vocação. Nossa força de impacto está no grau em que tenhamos deixado longe de nós o relativismo. Concessão ao relativismo dá em tibieza, apostolado estéril.

O que diríamos de um jesuíta semiprotestante? Ou de um franciscano que guarde moedas ocultas debaixo de seu burel? Ou de um dominicano meio cátaro? É um absurdo! Pois bem, uma concessão ao relativismo que habite em nossa alma é pior do que isso.

Necessidade de ter a consciência em estado de exame

Sugiro fazer um exame de consciência centrado no ponto do relativismo: “Sou inteiramente sério para esperar que aquilo que eu faça seja totalmente coroado do êxito esperado?” Que êxito é esse? Se sou sério, não é um êxito de imediato, mas profético, cheio de vaivéns, de problemas, em face dos quais tudo sai errado, exigindo que eu confie na Providência, reze, peça o auxílio de Nossa Senhora e, afinal de contas, mais cedo ou mais tarde – por vezes muito tarde… – acaba-se conseguindo. Então a coisa vai bem. Mas é preciso fazer um exame de consciência sério, do contrário não vai.

Aliás, mais do que isso é preciso ter uma seriedade viva, de maneira que qualquer coisa que destoe desse estado de espírito a seriedade nota. É uma consciência em estado de exame, não é só um exame de consciência. Eis o que nós devemos desejar.

Talvez um ou outro pensará: “Onde encontrarei a energia, o espírito de sacrifício para ser assim? Eu não consigo”.

A este eu teria vontade de dizer: “Meu filho, eu passei por isso. Saia como creio que saí, rezando ‘Salve, Regina, Mater misericordiæ, vita dulcedo et spes nostra, salve!’” Onde eu percebo que sou tão inconsistente que não dou um passo, devo olhar amorosamente para Nossa Senhora e pedir: “Minha Mãe, vede onde me deixei cair. Mas sinto o convite para me integrar nesse voo que passa diante de meus olhos. E se é verdade que não quero, ao menos, por vossa intercessão, é verdade que eu quereria.”

Lembro-me de ter rezado assim e até ter dito: “Minha Mãe, eu quereria querer. Nem tenho coragem de Vos pedir que eu queira mesmo. Mas atendei a esse meu anseio de que eu quereria querer. Fazei-me querer e depois ser: ‘Salve, Regina, Mater misericordiæ’…”

Truculência e confiança na misericórdia

Quantos de nós, embora tendo às vezes a alma pugnaz, decidida, combativa, possuímos algum recanto que a preguiça nos retém no chão! Para sanar esse lado de alma que é ruim, diga um “Memorare”: “…gemendo sob o peso de meus pecados, me prostro aos vossos pés…” Portanto, o pecador, gemendo sob o peso da sua própria preguiça, pode ajoelhar-se diante de Nossa Senhora e dizer: “Minha Mãe, eu não conseguirei nada enquanto não me ajudardes. Ajudai-me!”

O demônio gostaria de sugerir este pensamento: “Se Dr. Plinio conhecesse meu estado de alma, ele me excluiria com horror. Portanto, não posso dizer isso a ele. De outro lado, não posso me corrigir porque sou mole mesmo…” Então, vergonha, má consciência, tapeação.

Nada disso! Quantas vezes, ao ver alguém nessas condições, eu gostaria de dizer o contrário: “Meu filho, ânimo! Nossa Senhora é Mãe de misericórdia, Ela tem pena dos pecadores. Peça mais, porque está dito no Evangelho: para quem bater, abrir-se-á”. Logo, a quem pedir dar-se-á. Isso que diz respeito, na aplicação mais direta, às graças materiais, Nosso Senhor afirmou, sobretudo, para os dons espirituais, para situações, por exemplo, como esta.

Assim, esta reunião que passeou pelos píncaros da truculência, termina num ato de confiança na misericórdia.

Alguém dirá: as duas coisas não são contraditórias? Eu afirmo que não. Uma prepara a outra. Porque só pede mesmo misericórdia quem está convencido de que é devedor. Quem não reconhece o próprio estado não pede misericórdia. Procura tapear.

São duas posturas diferentes: uma é a do devedor que tem uma escrituração limpa, sabe quanto deve, procura o credor e diz: “Tenha pena de mim, não tenho dinheiro para lhe pagar. Não achincalhe o meu nome e não confisque meus bens. Vou trabalhar e pretendo pagá-lo no momento oportuno. Agora, lembre-se de que hoje o necessitado sou eu, amanhã poderá ser o senhor. E o senhor quererá que tenham consigo uma misericórdia que o senhor terá se tiver comigo. Faz favor”. Outra situação é a do tapeador que falsifica contas, nega que está devendo, pede testemunhas, etc. Esse é um ladrão.

A qual dos dois o credor tem mais vontade de perdoar: ao ladrão ou ao devedor probo? Evidentemente ao segundo. Assim é Nossa Senhora conosco. Ela tem mais facilidade em obter para nós o perdão quando nossa alma está limpa.

— Mas, Dr. Plinio – objetará alguém –, além de ser mole, minha alma não é limpa.

— Meu filho, comece por pedir a Nossa Senhora a limpeza de alma, por onde você tenha ideia clara de seus pecados. Qualquer ponto é bom para começar desde que na outra ponta do caminho esteja Nossa Senhora.

Estas são reflexões feitas à margem da minha operação. Apresento-as com o desejo de que façam bem às suas almas. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/2/1982)

 

1) Em 3 de fevereiro de 1975, Dr. Plinio sofreu grave acidente de automóvel, que o obrigou a usar muletas e depois cadeira de rodas até o fim de sua vida.

2) Dr. Plinio se refere a seu secretário pessoal e fiel discípulo, João Scognamiglio Clá Dias, hoje Monsenhor.

3) Do francês: o cavaleiro sem medo e sem reproche.

4) Do latim: luz da razão.

A vitória da confiança – II

Durante o cerco de Jasna Gora Frei Kordecki mostrou ser um homem de espírito sobrenatural, que sabe ver nos acontecimentos o momento da espera e do ataque, combatendo não só o adversário fora dos muros, mas os “quinta-coluna” dentro do mosteiro. Em todas as suas ações revelou esplendidamente o espírito militar. O verdadeiro sacerdote, na força do termo, deve ser assim. Para sermos clericais como devemos, é preciso recorrer a esses grandes exemplos do passado.

 

Até esse momento, tinham se dado atritos pequenos entre os sitiantes protestantes e os católicos de Jasna Gora, uns tiroteios de cá e de lá.

Enfurecidos, os protestantes concentraram um ataque contínuo de três dias contra Jasna Gora, lançando granadas e projéteis incendiários, procurando incendiar as instalações do mosteiro e do santuário. À noite, ocupavam-se em abrir trincheiras em direção aos muros.

O católico verdadeiramente piedoso é um guerreiro de primeira classe

Trata-se, agora, de um ataque maciço, completo, que não poupou sequer o mosteiro e a própria igreja. Travar-se-á, então, uma batalha em regra, durante a qual poderemos ver como se manifesta esplendidamente o espírito militar desse grande frade, Frei Kordecki, e o que é a combatividade segundo a boa tradição católica.

Em dado momento, em meio ao fragor do bombardeiro, ouve-se um piedoso hino sacral procedente do alto da torre do santuário, comunicando novo ânimo aos seus defensores. Desde então, tornou-se costume ouvir todos os dias, em meio à luta, os hinos que emanavam da torre sólida e majestosa. Os suecos, com isso, tanto mais se enfureciam, pois entendiam como uma manifestação de desprezo por eles.

O cântico de hinos indica, naturalmente, alegria, festa, despreocupação, ou então, luta. Ali, não. Eram hinos religiosos, enquanto os protestantes estavam se lançando ao combate. O que não fica claro nesta narração é se esses hinos eram entoados por monges do mosteiro ou por Anjos. Porque, como veremos mais adiante, aparecerá de modo resplandecente o caráter milagroso da defesa. Entretanto, podemos imaginar o efeito bonito produzido pelos canhões troando, o barulho da batalha enquanto do alto da torre majestosa evolam hinos. É uma coisa realmente bonita!

Equipes de prevenção foram distribuídas nas bases dos telhados a fim de dar combate às bombas incendiárias lançadas pelo inimigo. Algumas destas rebatiam nos telhados e caíam para fora dos muros. Uma bomba lançada contra a capela onde se encontra o milagroso quadro de Nossa Senhora de Czestochowa, como se fosse tocada por uma força invisível, voltou-se contra o campo inimigo, espalhando um terrível fogo pelos ares.

Isso é bonito também: o teto da capela repele aquela bomba sacrílega, como uma raquete rebate uma bola. Então, aquela bomba vai cair no campo do adversário.

O senhor Piotr Czarniecki, Castelão de Kiev, um dos cinco nobres que participavam da defesa de Jasna Gora, distinguido em guerras anteriores, decidiu dar um golpe de audácia nos suecos. Saindo à noite com um destacamento de soldados, conseguiu colocar-se na retaguarda do acampamento dos inimigos, sem que esses o notassem, e fez um belo trabalho: matou o comandante da artilharia, vários oficiais e muitos soldados e, tendo capturado dois canhões, voltou para o interior dos muros.

Chamo a atenção para o lado combativo do espírito católico. É um autêntico católico que luta como um grande batalhador. Isso tudo para espadanar com aquela noção do católico mole e imbecil apresentada pela “heresia branca”(1). Pode-se e deve-se ser muito religioso, e quando se é verdadeiramente muito piedoso, se é um guerreiro de primeira classe. Esta é a tese sobre a qual jamais será suficiente insistir.

Aproveitando a confusão e o pânico que se estabeleceram entre os suecos, e tendo muitos deles saído a campo aberto, os canhões de Jasna Gora completaram o golpe de Czarniecki, eliminando outros sitiantes. Czarniecki perdeu apenas um de seus homens na expedição.

A vida religiosa bem levada prepara o herói

Miller, convencendo-se de que não lhe seria fácil tomar a fortaleza, enviou mensagem a Wittenberg, comandante dos exércitos suecos em Cracóvia, pedindo que lhe enviasse canhões de potência suficiente para romper as muralhas, e lhe reforçasse o número de infantes.

É o fracasso, portanto, do General Miller. Ele, com suas tropas iniciais, ameaçou e não conseguiu nada, teve que pedir reforços. Jasna Gora, que não tinha quem a defendesse, estava ganhando a batalha.

Paralelamente, um nobre polonês, respeitável pela idade e pela linhagem, à primeira vista insuspeito, é enviado à fortaleza para tentar persuadir seus defensores a se renderem. Veio propor a capitulação, pois lhe parecia uma pretensão desmedida querer opor-se um mosteiro ao poderio sueco, quando o país inteiro se havia dobrado. Em seguida, dá um conselho de “amigo”:

“A continuação da resistência só poderá suscitar a violência da vingança. É melhor entrar em acordo com o inimigo enquanto o mosteiro está inteiro. Procedam como os outros, se tendes amor a vosso bem. Aliás, a arma de uma Ordem Religiosa é se abster de questões temporais. O que tendes de comum com as turbulências da guerra, vós, cujas regras chamam à solidão e ao silêncio? Ponderai bem para que as armas que empunhastes em vez de rosários, não vos tragam a perdição.”

Aqui é muito interessante o lado doutrinário. Pode-se imaginar esse homem, que é um “quinta-coluna”, um nobre venerável, talvez com barbas brancas, maneiras distintas, uma voz pausada, dizendo: “Tomai cuidado! É por amizade para convosco que eu sugiro…” Mas, no fundo, ele dá a seguinte doutrina: a solidão do padre é feita para não combater, só para rezar. O padre que combate está fora de sua posição.

Ora, essa é exatamente a doutrina “heresia branca”. A Doutrina Católica verdadeira ensina o contrário: a solidão e o silêncio preparam o herói e, se assim não fosse, não adiantava guardar nem solidão, nem silêncio. O Rosário é uma devoção esplêndida! Mas se serviu para formar um imbecil incapaz de combater quando deve, ele foi mal rezado.

A vida religiosa bem levada prepara um ânimo forte e combativo. O isolamento, o recolhimento, a clausura, ao invés de atrofiarem o indivíduo, o desenvolvem. Essa é, aliás, a antiga tese da Igreja Católica que, sendo Santa, nunca manteria uma instituição que atrofiasse seus membros. Porque atrofiar, evidentemente, é o contrário de santificar. Não se pode imaginar uma santificação que atrofie o caráter.

A atitude enérgica, intransigente, sempre alcança a vitória

O Padre Kordecki tinha estabelecido um armistício, com que ele esperava ganhar tempo, de maneira que as tropas eventuais de algum nobre inconformado com a situação da Polônia, de algum aliado, pudessem libertar o mosteiro.

Enquanto isso se passava, respeitava-se um armistício. Mas os suecos começaram a tomar posições mais e mais próximas das muralhas, diante do que os sitiados rompem o cessar fogo, impondo sérias baixas ao inimigo.

É bonito isso porque eles eram os mais fracos, poderiam contemporizar. Não. Os suecos aproveitam-se do armistício para aproximar os canhões das muralhas, tornando o pequeno alcance dos canhões daquele tempo mais eficaz. Frei Kordecki desencadeia a guerra. Solicitado a ceder, ele irrompe as hostilidades.

O General Miller volta a enviar novo mensageiro, exigindo a rendição de Jasna Gora. Frei Kordecki responde que, preliminarmente, exigia o respeito à palavra dada, pois que garantia poderia ter de que os suecos cumpririam os acordos feitos, se mantinham como reféns os dois delegados enviados pelo mosteiro? Iludido pela esperança de tomar Jasna Gora por vias pacíficas, Miller finalmente manda libertar os reféns.

Vejam como a atitude enérgica, intransigente sempre alcança a vitória. É questão de ser intransigente até a fim.

Nos dias que se seguiram, o general enviou insistentemente delegados à fortaleza sitiada, tentando convencer os seus defensores a abrirem os portões a uma guarnição sueca e discutirem os termos do acordo.

Notem a velhacaria: primeiro entra a guarnição, depois vão discutir o acordo… Como se pode propor isso a alguém? Mas o Télémaque, de Fénelon(2), e Luís XVI aceitariam.

Mas para desespero dos hereges, o padre Prior, para ter a garantia de que os acordos seriam respeitados, exige agora que os mesmos sejam discutidos diretamente com Carlos Gustavo, o qual se encontrava muito distante de Jasna Gora.

O Prior, Frei Kordecki, era inteligente, capaz, soube fazer a coisa.

Entrementes, um nobre polonês se aproxima dos muros e se dirige aos nobres fiéis: “Para nós, traidores, também é muito cara a salvação da Pátria; a nós igualmente interessa, como a outros nobres, a preservação de sua integridade. Quando esta se encontra cada vez mais ameaçada de ruína, é preciso que nos dediquemos a ela com sinceridade. Por isso decidimos prudentemente auxiliá-la, passando para o partido de sua majestade, o rei sueco, senhor e defensor benigníssimo. Cessem, pois, as resistências!”

Novamente uma atitude própria à “quinta-coluna”: “Nós, para defender o país, resolvemos passar para o inimigo. Vamos agora fazer a paz.” Ora, eles estão traindo e isso é defesa?!

As boas e as más notícias

O próprio Wittenberg, comandante das tropas em Cracóvia, envia uma carta aos sitiados indicando todos os benefícios que adviriam aos monges se entrassem em acordo com o General Miller, e ameaçando-os com represálias cruéis se continuassem a resistência.

Enraivecidos pela intransigência dos sitiados, os suecos, perdendo já a esperança de qualquer acordo, lançam pesados ataques contra Jasna Gora, mas os canhões de defesa não lhes permitem aproximar-se de suas muralhas.

Houve, portanto, uma defesa vitoriosa. Não podendo chegar perto, ou seja, o ataque era pouco eficaz. Praticamente era Frei Kordecki que tinha vencido mais uma vez.

A 7 de dezembro, véspera da festa da Imaculada Conceição, um nobre polonês, Piotr Sladowski, detido pelos suecos quando voltava à sua aldeia procedente da Prússia, foi enviado à fortaleza com a incumbência de pressionar os monges a capitularem. Mas, pelo contrário, ele os animou a não se entregarem, dizendo que os exércitos invasores começam a sofrer suas primeiras derrotas, e que as contínuas violências dos hereges – saques nas propriedades da nobreza, assassinato dos sacerdotes, profanação dos templos – estavam despertando grande reação no país. Todas essas violências sucediam, acrescentou, por permissão de Deus e para castigo daqueles que faltam com a fidelidade a João Casimiro.

Aparece, portanto, uma nobre figura de nobre, um guerreiro, um batalhador, que é dos poucos que dão ao Padre Kordecki o apoio moral de incitá-lo à resistência. É de grande valor para quem está lutando receber da parte de alguém o aviso: “Você faz bem, continue a lutar!” Tal benefício esse homem fez e nós devemos esperar que, por causa disso, a alma dele já esteja no Céu.

No dia seguinte, festa de Nossa Senhora, um dos aldeões de Czestochowa, disfarçado de soldado sueco, conseguiu chegar até os muros e comunicou aos seus defensores que os sitiantes estão por receber de Cracóvia seis canhões pesados para demolir as muralhas, mais duzentos infantes de reforço. Por outro lado, numerosas tropas tártaras estão acorrendo a se unir a João Casimiro. É atirada uma carta assinada por Frei Antônio Paszkovski, prior do convento paulino de Cracóvia, o qual descreve as atrocidades cometidas pelos hereges e recomenda aos defensores de Jasna Gora não se deixarem iludir pelas palavras gentis do inimigo, pois não há entre os suecos nenhuma fé, nenhuma religião; nada, divino ou humano, é para eles inviolável. Não costumam cumprir nenhum acordo puramente político.

Pouco antes, um tártaro, ao qual fora permitido adentrar os muros, após contemplar o santuário, surpreendeu os monges com palavras de encorajamento, incitando-os a não permitirem que os “porcos e perjuros”, dizia o tártaro, ocupassem o lugar consagrado à Virgem Puríssima. Com todos esses fatos, anota o Padre Kordecki, seus camaradas recobraram a confiança e o ânimo, embora soubessem que Miller receberia em breve seis canhões pesados para fustigar as muralhas.

Esse episódio nos faz ver que a luta estava aumentando de intensidade e caminhava para se tornar trágica. De um lado, o Rei de Polônia, João Casimiro, estava fora, mas recebeu um grande auxílio dos tártaros, que são guerreiros violentos, ferozes. A ferocidade de um guerreiro tinha muita importância numa época na qual as armas de fogo não eram determinantes na batalha, em que havia sempre o risco dos adversários entrarem e exterminarem uma população. À vista disso, a vinda dos tártaros representava um reforço importante.

De outro lado, as tropas suecas estavam recebendo canhões de grande potência e isso criava de um e outro lado da fortaleza pressões enormes. Ela podia receber bons auxílios, mas também ser dizimada de um momento para outro. Esse conjunto de circunstâncias punha à prova psicológica os defensores do mosteiro, porque embora seja verdade que as boas notícias, de si, animam principalmente os fracos que ficam logo autoconfiantes, corajosos, cheios de iniciativas, isso dura pouco pois nesta Terra o que há de mais incerto e raro são as boas notícias. Ora, quando chegam as más notícias, os fracos não aguentam.

É mais fácil manter a fidelidade de um fraco na constância das más notícias do que na alternação de notícias boas e más. Isso porque, ao receber novidades alvissareiras, uma pessoa fraca, de pouca combatividade, se distende, pois é otimista. De repente chega uma nova hecatombe e o fraco precisa retomar a posição desagradável da qual se julgava livre. Então é muito mais difícil para ele voltar à situação anterior, porque durante algum tempo ele se habituou à distensão.

Vemos os sitiados colocados nessa situação: ora uma notícia boa, ora uma ruim. Chega a má notícia, já estou vendo um fraco qualquer emburrado, que pensa: “Esse Frei Kordecki está me levando aonde não devia. É um louco, não tem bom senso!” Vem depois uma boa notícia: “Que herói é esse Frei Kordecki!” Não é à toa que estou dizendo isso. Poderão vir dias em que tenhamos de sofrer essas compressões e descompressões, e devemos nos habituar a sermos fortes.

Sob um bombardeio, é feita uma procissão em honra do Santíssimo Sacramento

Os católicos presenciam clara intervenção da Providência no meio dessas aflições. Enquanto transcorriam as cerimônias da Imaculada Conceição, um soldado sueco que voltava da aldeia de Redzin, onde blasfemara contra a honra de Nossa Senhora, tombou atingido por uma bala procedente de Jasna Gora, e que não era a ele dirigida, mas que rebateu na neve e o atingiu. Frei Kordecki registrou o fato, comentando: “Recebeu o justo castigo das mãos de Deus, como indigno de olhar o Sol aquele que insultou o brilho e a glória sempiterna da Santíssima Mãe”.

Esse é um comentário de um homem de espírito sobrenatural.

No sábado, os hereges recomeçaram a fustigar o mosteiro, e no domingo o bombardeio ganha tal fúria que parecia que o próprio inferno vomitava contra o sagrado ícone. Os monges, entretanto, realizaram nessa manhã, como de costume, uma cerimônia em honra do Santíssimo Sacramento.

É uma verdadeira beleza! Um bombardeio tremendo. Enquanto os soldados lutavam os monges realizavam, como de costume, a cerimônia em honra do Santíssimo Sacramento, impávidos.

Após a Santa Missa, o Santíssimo Sacramento foi levado em procissão ao longo das muralhas. Os projéteis passavam rente às cabeças dos defensores, mas só ao término da cerimônia estes responderam ao fogo inimigo.

É outra atitude de uma grandeza extraordinária, que só se justifica por um movimento interior da graça. Enquanto o Santíssimo passava pelas fortificações, os suecos atiravam mais do que nunca, mas os católicos não reagiram. Quando o Santíssimo Sacramento acabou de passar, eles recomeçaram a lutar; estavam adorando a Santíssima Eucaristia sem se importar com a fuzilaria.

Nesse dia, trezentos e trinta projéteis caíram sobre a fortaleza e três dos seus soldados entregaram a alma a Deus.

É bem pouco para essa quantidade de projéteis.

Cerca do meio-dia, o inimigo cessou o fogo e enviou uma mensagem perguntando se os monges haviam se persuadido a aceitar a proteção do rei sueco. Mas o Prior não tinha pressa. Disse-lhes que enviaria a resposta no dia seguinte. Imediatamente os suecos recomeçam o cerrado bombardeio. No dia seguinte repete-se a cena, e os monges tornam a responder: “Em questões tão importantes é preciso uma longa ponderação…”

Era bem feito, porque eles estavam esperando com certeza os tártaros chegarem.

Nessa época o inverno tornava-se mais intenso, o que levou os soldados suecos a acenderem fogueiras à noite para se protegerem do frio. Entretanto, revelavam assim suas posições, sendo alvejados pelos defensores de Jasna Gora. Convenceram-se logo de que entre o frio e a morte, era melhor escolher o frio.

Notem como os católicos souberam aproveitar bem a ocasião.

Já então os sitiados preparavam-se para o assalto que o inimigo lançaria, cedo ou tarde contra os muros. Prepararam as maças cravadas de pregos para repelir os que atingissem as muralhas, as varas de ferro, as vigas, as pedras.

Portanto, eles estavam pressentindo que o supremo ataque viria.

Uma névoa mandada pelo demônio

Quando os suecos se lançaram para o primeiro assalto foram repelidos com facilidade, pois a neve denunciava seus movimentos e os tornava alvo visível para os sitiados.

Nos dias seguintes, uma densa neblina envolveu o Monte Claro, possibilitando aos suecos aproximarem suas grandes máquinas de assalto sem serem percebidos.

Em vista disso, o Prior determinou a um dos religiosos que clamasse pelo auxílio dos poderes de Deus contra os feitiços do inimigo, limpasse com exorcismos o ar escurecido e benzesse as armas dos defensores. Isso resultou tão eficiente que, neutralizando os esforços dos feiticeiros, afastaram-se do ar as trevas e os tiros novamente se tornaram certeiros, fazendo tombar o inimigo, apesar de protegido pelo auxílio abjeto do demônio.

Considerem com que espírito sobrenatural Frei Kordecki lutava. Ele suspeitou que aquela névoa tinha sido mandada pelo demônio. Então, usou a “operação antinévoa”. É uma bonita cena: um nevoeiro denso, no qual não se vê quase nada, o Prior que dá suas ordens e o padre vai exorcizando os ares para expulsar os demônios, e benzendo as armas dos guerreiros para que os tiros fossem certeiros e as espadas entrassem a fundo no corpo dos adversários, apesar de qualquer ação do demônio. Pouco depois a névoa se dissipa, os feiticeiros protestantes ficam desapontados e a operação frustrada, porque todo o ataque estava planejado com base em máquinas de guerra que os sitiantes iam aproximando da muralha, protegidos pela névoa. Desfeita a neblina, o contra-ataque era triunfal.

A um general de exército contemporâneo não ocorreria esta ideia: “Esta névoa veio do demônio.” Provavelmente um técnico em matéria de meteorologia diria a ele que a neblina se devia à umidade saída do rio tal. Pode ser, mas talvez os demônios dos ares agravem ou até produzam esse fenômeno. Então, esse frei, com discernimento dos espíritos, percebendo a ação diabólica, dissipou o fenômeno meteorológico preternatural, e com isso alcançou uma vitória.

Eu gostaria de ser pintor para pintar uma cena assim: as muralhas na bruma, alguns guerreiros com armaduras meio resplandecendo à luz de umas tochas, o frade benzendo e exorcizando, e os demônios fugindo de todos os lados. Deve ser uma coisa magnífica pintar um quadro desses!

Enquanto os hereges continuavam fustigando Jasna Gora, dois nobres poloneses ali refugiados, temendo que a fortaleza fosse tomada, tencionaram abandoná-la levando duas pessoas: um deles, a esposa, e o filhinho, o outro. Tinham até obtido permissão de Miller para atravessar a linha de fogo, mas Frei Kordecki impediu-os terminantemente de cumprir o intento, a fim de que esse fato não refletisse mal na moral de seus comandados.

Sem dúvida, esse fato está muito resumido aqui. Para esses nobres terem essa promessa do comandante protestante era preciso que tivesse havido tratativas de lado a lado. Portanto, havia uma verdadeira “quinta-coluna” dentro do mosteiro tratando com os protestantes. Nessa situação qualquer um seria levado a dizer: “Quer sair, mande embora, para não atrapalhar aqui dentro.” Entretanto, Frei Kordecki é irredutível, por onde se vê a fibra desse religioso: “Não pode sair, porque se começam a sair fugitivos, abate-se a fibra de nossa gente. Ficam aqui dentro presos. Entraram, agora aguentem a batalha até o fim.”

Por atitudes assim entendemos o que é um verdadeiro padre, na força do termo. Isso deve nos levar a ter admiração pelo clero, compreendendo bem como o clero atual se distancia disso. Mas para sermos clericais como devemos, é preciso recorrer a esses grandes exemplos do passado.

Mas esse acontecimento, somado à insistência dos ataques inimigos e à morte de um jovem defensor, não tardou em influenciar o espírito de alguns monges. Estes, em contínuo temor, começaram a incitar à rendição, argumentando que se a Providência, em cujas mãos está o poder de colocar os tronos em mãos alheias, entregou a coroa polonesa aos suecos, não cabia a eles, monges, oporem-se à vontade de Deus, mas aceitá-la; tanto mais que o inimigo lhes assegurava a defesa da fé e a liberdade de culto.

Esses monges afirmavam o seguinte: “Deus permitiu que o rei saísse, porque se Ele quisesse o rei de volta, era só repô-lo. Por que vamos lutar pelo rei se Deus não quer que ele ocupe o trono?” É bem exatamente o que os judeus diziam a Nosso Senhor quando Ele estava pregado na Cruz: “Se és Deus, salva-te a Ti próprio e desce da Cruz!” Ora, Deus não intervém assim nos acontecimentos humanos. Ele dá aos homens os meios de agir e os ajuda. Mas quer a sua colaboração.

Quando tais insinuações se tornaram mais frequentes nas reuniões da congregação, o Prior chamou-os à ordem, de um modo fraternal, mas não sem energia. Bradou ele: “Que fé é a nossa, que reconhecimento a um Deus tão generoso para conosco que um tão pequeno dano nas comodidades terrenas consegue desviar-nos da guarda e proteção dos cofres dos tesouros celestes do Rei Eterno? Consideremos que de longe é mais prudente defendermos a integridade da casa de Deus, a santa fé e, ao mesmo tempo, nossas próprias liberdades, do que perdermos tudo, e além disso irmos para o exílio e para a escravidão eterna.”

Em outras palavras, não adianta defender bens perecíveis, fazendo correr risco os bens eternos.             v

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 3 e 14/7/1972, 4/8/1972)

Revista Dr Plinio 263 (Fevereiro de 2020)

 

1) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.

2) Les aventures de Télémaque – As aventuras de Telêmaco. Obra de autoria do escritor francês François Fénelon (*1651 – †1715), Arcebispo de Cambrai, na qual propugna uma educação desprovida da virtude da fortaleza. Esse livro foi utilizado na formação de diversos príncipes da França, causando-lhes graves deformações na mentalidade.

Harmonia na arte, harmonia na vida

Ao considerar a arte grega, Dr. Plinio discerne a profunda tendência desse povo para a harmonia.

Dotados de bom gosto extraordinário, os gregos tinham o talento de fazer coisas lindíssimas, até imortais, sem gastar muito dinheiro. O que custa, por exemplo, levantar uma coluna? Não é muita  coisa.

Colunas que ficaram imortais

Com um muito bom golpe de vista, eles entendiam o que precisa ter uma coluna para ser maravilhosa. Que relação deve haver entre a base e o topo, por exemplo. Ela precisa ir estreitando  lentamente, de tal maneira que em cima seu diâmetro seja menor do que o da base, e o observador tenha a impressão de que a coluna é mais alta, porque afinou e está longe da vista dele.

É feia a coluna gorducha em baixo e que vai ficando, de repente, mais fina. É preciso que ela vá adelgaçando-se de tal maneira que a pessoa, à primeira vista, não perceba que ela afinou.

Coluna lisa, sem graça, é um tubo que não vale nada.

Deve-se fazer coluna com adornos, com reentrâncias e saliências. Que profundidade devem ter as reentrâncias, que largura os bordos das saliências para serem bonitas? Qual é o tamanho de cada gomo da coluna em comparação com a altura e a largura? Como precisa ser a base para dar a impressão de que a coluna é forte? Como deve ser o capitel para causar a impressão de que ela é  graciosa?

Por que razão a coluna precisa proporcionar a impressão de forte na base e graciosa no alto? Não seria bonita uma coluna graciosa na base e pesadona no alto? Não pode ser assim, a sugestão é desagradável. Uma coisa graciosa que aguenta uma pesadona é um pesadelo! Que proporção de força e de leveza deve ter uma coluna para agradar ao homem? Há colunas que ficam imortais. Às vezes, com o passar dos séculos, o templo inteiro cai, e uma coluna que reste é um monumento histórico, guardado hoje em dia com todo o cuidado, estudado nos álbuns de arquitetura do mundo inteiro.

Que indicam essas colunas? A tendência profunda desse povo para a harmonia, a capacidade de estabelecer as relações entre os vários elementos de um todo, de maneira a ficar agradável de ver.

Esta é a harmonia dentro da obra de arte.

Mesmo as praças de aldeolas eram de uma beleza, de uma harmonia célebre até o fim do mundo. Os gregos viviam ladeados, inundados pela harmonia, mas uma harmonia inteligente que exigia trabalho para perceber, e era filha do desejo de perfeição.

Vivacidade e distinção em ânforas de barro

As ânforas de barro fabricadas pelos gregos são admiradas até hoje em todos os museus bem equipados da Europa, porque se conservaram muitas. Ânforas de uma cor de terra avermelhada com uma faixa preta em cima, na ponta mais larga da ânfora. Eles não pintavam a parte que não tinha figura, de maneira que esta ficava com a cor vermelha do barro.

Eram as coisas mais comuns. Por exemplo, um homem levando um bezerro pela corda para vender no mercado. Nota-se a elegância do homem, o bezerro anda com classe e a própria corda tem uma linha extraordinária! O indivíduo que puxa o bezerro tem um estilo natural ao de um homem do campo, não é um nobre. Mas é todo distinto.

Na porta da casa está a mulher esperando. É uma figura de tragédia grega: uma Penélope qualquer com aquelas saias sucessivas e aquele ar, ao mesmo tempo simples, natural e distintíssimo. De maneira que se tem a impressão de um teatro vivo. Entretanto, é apenas uma moringa comprada na feira!

A harmonia na arte era a meta deles para ter harmonia na vida.

Plinio Corrêa de Oliveira (Revista Dr Plinio, fevereiro de 2017, p. 34)

A ordem dos Servitas

A Ordem dos Servitas é uma das mais antigas entre as especialmente fundadas para propagar a devoção à Mãe de Deus. O título de Servos ou Escravos de Maria, que os sete fundadores quiseram dar a esta Ordem, prenuncia a devoção de São Luís Grignion de Montfort, que é a da escravidão a Nossa Senhora. Quer dizer, um despojamento completo de todos os bens materiais e espirituais, e até dos méritos de nossas boas obras, presentes, passados e futuros para serem postos nas mãos da Santíssima Virgem.

Com a canonização dos sete fundadores e a aprovação desta Ordem, a Igreja indica que, em relação a Nossa Senhora, devemos ser servos.

Peçamos aos Santos Fundadores dos Servitas que intervenham na Terra e ajudem a estabelecer uma verdadeira devoção a Maria Santíssima entre os homens, e com ela o senso da hierarquia e da Contra-Revolução.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/2/1965)

Força, bondade, contemplação

Dos meus recuados tempos de aluno do Colégio São Luís conservo ainda certa lembrança de uma pitoresca descrição, comentada e analisada na aula de literatura portuguesa. Trata-se de uma cena da história lusitana, em algo enriquecida pelo grande estro do escritor que a tornou merecedora de figurar em todas as antologias daquele tempo.

O Rei Dom João I havia feito a promessa de construir um imponente mosteiro, caso lograsse a vitória em decisiva batalha para o futuro de Portugal. Seu exército tendo triunfado, ele se empenhou no cumprimento do voto que fizera. O edifício já estava quase terminado, faltando apenas retirar as estacas que sustentavam a imensa cúpula armada. Outras haviam ruído no fatídico momento, porque, dizia-se, não tinham sido levantadas conforme a planta original, desenhada por um velho arquiteto, agora cego. Esse valoroso mestre, antigo amigo do monarca, insistiu para que  erguessem mais uma vez a cúpula, obedecendo em tudo às suas diretrizes.

— A abóbada não cairá! — afirmava ele com todas as veras de seu intrépido coração. E para garanti-lo, tomou a arriscada decisão de permanecer sentado embaixo da abóbada, enquanto os  andaimes e escoras eram retirados. Debalde os seus conhecidos, e até o próprio Rei Dom João, procuraram demovê-lo de atitude tão temerária. Como outro herói de legenda lusitana, ali ficou, mudo e calmo, confiante na sua obra, prestando ouvidos ao que se passava. À medida que as armações de madeira iam sendo deslocadas, o barulho diminuía, e assim ele, privado das vistas, percebia que o momento crucial se aproximava. Afinal, fez-se silêncio, e uma ansiosa expectativa estremeceu o espírito de todos ali presentes…

A abóbada não caiu. Era a glorificação dele. Do seu talento, sem dúvida. Porém, glorificação ainda maior dessa qualidade que tanto o distinguia — a coragem.

Décadas depois de me encantar com essa passagem antológica, visitei meu Portugal avoengo. E aquele fato me veio novamente ao espírito quando um dos meus amáveis anfitriões propôs de irmos conhecer o glorioso Mosteiro da Batalha. Sem hesitar, aceitei o convite.

Habituado a ver as catedrais e outros edifícios religiosos erguidos dentro das cidades, pensava eu que o nosso automóvel entraria num centro urbano qualquer, e encostaria ao lado do Mosteiro. Qual não foi minha surpresa quando, à certa altura do percurso, vejo ao longe levantar-se num campo raso (como o era naquela época), de chão batido, não cultivado, aquele monumento colossal!

A primeira impressão que ele desperta em nós é a de uma maravilhosa façanha no gênero da arquitetura, que somente foi possível de se tornar realidade porque construída por um povo entranhadamente católico. Difícil não se notar nele um reflexo da própria alma portuguesa, na sua condição de batizada, devota, fiel a Nossa Senhora e, portanto, repleta das graças que Deus concede aos povos que O servem com intenso e fervoroso amor.

Impossível não discernir, também, naquelas paredes lavoradas com esmero, naquelas arcarias e torres ogivais, a robustez lusitana. É uma nação forte, que se compraz em fazer força. Assim foram todos os seus grandes varões de seu grande passado histórico, vigorosos e empreendedores de extraordinárias proezas, e assim é aquele Mosteiro, no qual proeza e vigor estão representados de maneira estupenda. A tal ponto que, se construíssem à sua volta uma muralha, ele poderia ser tido por um magnífico castelo feudal.

Por outro lado, essa alma portuguesa, tão forte, é igualmente muito bondosa, voltada a querer bem e que se agrada com essa benevolência. Ao encontrar um próximo em quem pode confiar, fica satisfeita, contente, dilata-se, expande a sua generosidade e seu desejo de ajudar. Ora, essa bela qualidade de espírito também se acha muito refletida no Mosteiro da Batalha. É um edifício protetor, no qual sentimos a presença de um Deus que nos ama e nos ampara, que gosta de nos amar e de ser amado por nós. E no seu interior, a par da força expressa nas suas colunas, da bondade acolhedora sob suas ogivas, do recolhimento e respeito que nos tomam debaixo de suas abóbadas, vamos encontrar nas irisações suaves dos seus vitrais, na luz especial que coa por toda a parte, uma resplendente cintilação da calma e do caráter contemplativo do espírito português.

Breve, no seu esplendoroso conjunto, o Mosteiro da Batalha é um símbolo fabuloso daquela grandeza de ideal que soía mover os nossos valorosos antepassados lusitanos — no célebre dizer de Camões — a mais cristãos atrevimentos…!

Plinio Corrêa de Oliveira

Grandeza infinita

Ao adorar o Homem-Deus, Dr. Plinio buscava explicitar o cume de suas perfeições infinitas, cujos maravilhosos aspectos, aparentemente antagônicos — compaixão, cólera, serenidade, seriedade, perdão, gáudio, tristeza — deveriam enfeixar-se em um ponto supremo.

Durante toda a vida, na contemplação de Nosso Senhor Jesus Cristo, o ponto mais alto da minha admiração é considerar como Ele é perfeitíssimo debaixo de todos os pontos de vista. E procurar na personalidade d’Ele o ponto supremo, no qual todas as virtudes convergem para uma que é um sol de todas as outras.

Píncaro de toda a Criação

Como é esse ponto? Se pudéssemos ver isso n’Ele, como O consideraríamos?

Imaginem uma catedral composta de numerosas ogivas que se sucedem umas às outras, desde a porta principal até o presbitério, e — existe isso em certas catedrais — há uma ogiva mais alta que abarca todas as outras. Qual é, em Nosso Senhor, essa ogiva suprema?

Gosto de figurar que é uma grandeza a qual contém todos os abismos de perfeição d’Ele. Por exemplo, analisando toda a Criação, considerar aquilo que podemos chamar o ponto alfa de todo o criado, o ponto mais alto que, em última análise, é Ele mesmo, porque é o Homem-Deus. Enquanto Deus, Ele está infinitamente acima dos seres criados, mas enquanto Homem é o píncaro de toda a Criação.

Outro aspecto: uma seriedade infinita, olhando todas as coisas pelos seus mais altos e mais profundos aspectos, pela ordenação que as coisas têm entre si, e amando-as enquanto tais, porque são e devem ser assim.

Depois, uma serenidade insondável, que absolutamente não é indiferença para com os outros. Pelo contrário, um amor a cada ser, sobretudo às criaturas humanas, um amor transcendente do qual não podemos nem ter uma ideia!

Se o olhar d’Ele pousasse sobre uma multidão com dez milhões de pessoas, e nós pudéssemos acompanhar esse olhar enquanto incidindo sobre uma delas, ficaríamos conhecendo como ela é, como é o amor d’Ele para com ela, qual o gáudio que Ele tem se essa pessoa for fiel, e a tristeza se for infiel. Que amor, que alegria e que tristeza!

É um olhar cheio de serenidade e de seriedade, compreendendo o que vale cada criatura humana, disposto a fazer-lhe todo o bem possível, e amando-a totalmente. De maneira que essa pessoa, se salvando, é para Nosso Senhor um estremecimento de alegria.

Mas se ela se perde, é uma iracúndia sublime! As tempestades do mar mais terríveis não são senão brincadeira em comparação com isso. E quando Ele expulsa alguém para o Inferno, então ficamos pasmos do horror que Jesus tem àquela criatura que até o fim não quis atender o chamado d’Ele, e que por causa disso se precipita no Inferno. Não podemos ter ideia do que é a cólera se não pensamos na cólera divina de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Grandeza fulgurante de Nosso Senhor

Ao mesmo tempo em que n’Ele existe esse amor e essa cólera, há uma compaixão enorme, porque Nosso Senhor sabe perfeitamente que todos nós, homens, fomos postos nesta vida para sofrer, somos filhos de Adão e Eva e, portanto, herdamos o pecado original, temos defeitos e estamos na Terra para purgá-los e expiá-los, sermos fiéis e irmos para o Céu.

Jesus manda as provações, as dificuldades, as tormentas, e Ele mesmo prepara para nós a solução, arranja um jeito de, suportando-as e vencendo-as, acabarmos sendo fiéis.

Considerar que tudo isso em relação a todos os homens, desde o primeiro até ao último, cabe naquela mente e naquele Coração, nos dá uma ideia da grandeza d’Ele. Perto da qual, o que adianta dizer que fulano é um grande homem? Ninguém é grande, todo o mundo é pequeno, insignificante diante da grandeza fulgurante de Nosso Senhor.

A consolação d’Ele quando via — porque conhecia o futuro — os cruzados montarem a cavalo e irem até a Terra Santa para libertar Jerusalém! Que alegria! Ele via São Fernando tomar Sevilha, e pouco depois Isabel e Fernando conquistarem Granada, e o reino maometano acabar. Nosso Senhor exultou de alegria pensando no grande São Fernando, que vingaria a glória d’Ele. Tudo isso são grandezas fulgurantes.

Mas, ao mesmo tempo, lembrando o bom pastor que tem pena de sua ovelha, tira-a do carrascal, leva-a sobre os ombros e a cura. E o pai do filho pródigo que perdoa, etc. Há uma pluralidade tão grande de aspectos, que ficamos sem ter o que dizer.

Eis a grandeza, a majestade de Nosso Senhor, fazendo com que queiramos muito a invocação que está na Ladainha do Coração de Jesus: Coração de Jesus, de majestade infinita, tende compaixão de nós!

Majestade do abandono

Este é também o divino equilíbrio que há no Coação de Jesus. Por exemplo, a serenidade, a calma e a visão geral das coisas que Ele conservou durante sua Paixão.

A agonia no Horto é uma perfeição de equilíbrio e de majestade. Ali Nosso Senhor entra diretamente em colóquio com o Padre Eterno e tratando de todos os destinos do mundo, vertendo gotas de seu Sangue. E, depois, a majestade do abandono! Quer dizer, tão grande que nenhum homem conseguiu ficar junto d’Ele.

Portanto, a soledade, a tristeza, mas tudo tão equilibrado, tão extraordinário, que se a pessoa tomasse o trabalho de raciocinar um pouco sobre isso, sairia mais equilibrada e menos nervosa.

Uma pessoa que conhecesse o grande São Fernando — o qual conquistou terras sem conta aos mouros e que, de fato, foi quem os expulsou da Espanha — e tratasse com ele, seria impossível falar com o Santo sem ter diante dos olhos continuamente a ideia: esse expulsou os mouros. E na hora em que ele pedisse água para beber, talvez se pusesse de joelhos por causa dessa ideia, indissociável da noção da mouraria enxotada da Espanha, e da coragem do grande São Fernando.

Ao menos eu não saberia olhar para ele sem ter isso em mente.

Assim também, se eu conhecesse São Tomás de Aquino — o Doutor que é como um sol da Igreja Católica —, como me seria possível vê-lo passar por uma estrada, ainda que distante, montado a cavalo e meditando sobre um ponto de Filosofia, e não imaginar que dentro daquela cabeça estava nascendo um sol? Sol de inteligência, de sabedoria, de santidade. E o que vale mais do que tudo é a santidade, evidentemente.

Antegozo do Céu

Diante de Nossa Senhora também pensaríamos tudo isto, mas com uma particularidade.

Imaginar, por exemplo, Nossa Senhora, que foi virgem antes, durante e depois do parto. Durante o nascimento de Nosso Senhor Ela se conservou virgem; como esse mistério se deu?!

Outro episódio da vida de Maria Santíssima: quando Ela notou a perplexidade de São José, viu seu esposo passar por aquele sofrimento sem nome, e percebeu a santidade dele que não duvidou d’Ela em nenhum momento. O demônio com certeza queria que ele duvidasse de Nossa Senhora; São José não duvidou em nenhum instante, mas resolveu retirar-se. E a tristeza com que ele se acomodou sobre a cama para dormir, antes de partir pela estrada para o desconhecido, porque era o homem que estava colocado na maior perplexidade que houve na História.

Quem sabe se Ela o olhou dormindo em paz, mas afogado na dor? E se Ela de repente notou — quando já era quase madrugada, perto da hora de ele se levantar e partir, no último sonho noturno — a fisionomia de São José se iluminar como um sol, e percebeu que na última hora Deus teve pena dele e revelou-lhe o que havia?

Ele no sonho viu o Anjo, não acordou logo, mas pouco depois um vulcão de alegria estourou dentro dele. São José ficou junto à porta do quarto de Nossa Senhora prostrado, à espera do momento em que Ela saísse, osculou o chão e os pés d’Ela, e a Virgem Santíssima entendeu tudo e nunca falaram sobre nada. É uma coisa para lá de sublime!

Conversar sobre temas desses é antegozar o Céu. Imaginem a hora em que cheguemos ao Paraíso e vejamos, de repente, São José com aquele bastão e aqueles lírios, cercado de uma coorte intérmina de Anjos, mas com uma alegria enorme no olhar porque estava vendo Nossa Senhora a pouca distância dele. E um pouco mais adiante Nosso Senhor, que sem ser filho dele segundo a carne, mas sim segundo a lei, sorriu para ele e disse: “Meu pai!”

Só de vermos essa cena teríamos uma felicidade própria para encher a eternidade.

Tenho a impressão de que, diante de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, o tema é tão grande que a graça penetraria em torrentes dentro de nós para, por assim dizer, pensar em nós e por nós a respeito desses temas, porque não somos dignos, nem estamos à altura de cogitar convenientemente sobre isso.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 12/1/1992 e 31/1/1993)