Imponente e majestoso, mas sorridente e afável

No Castelo de Versailles há um contraste muito inteligente entre o imponente, majestoso, sério, forte, coerente, e o risonho, afável, amável, aprazível, convidando a pessoa que o contempla a ficar à vontade junto de tanta grandeza.

 

Na paisagem dentro da qual se insere a fachada do Castelo de Versailles que dá para os jardins, veem-se quatro elementos distintos. Em primeiro lugar, o próprio castelo, depois o lago ou tanque, os jardins e, por fim, o céu com as nuvens. Cada uma dessas coisas, dentro da perspectiva francesa, merece ser mencionada.

A arte que não tem mistérios manifesta a mediocridade

É interessante notar como tudo isso, para olhar de um relance só, é simples e completo. Porque ao se contemplar esse panorama gosta-se dele diretamente. É bonito, agradável e não oferece mistérios.

Aliás, uma característica da arte desse tempo, que por um lado manifesta a mediocridade e, por outro, a grandeza – mas onde o aspecto de mediocridade é enormemente maior do que o de grandeza –, é precisamente não ter mistérios; tudo está explicado.

Nota-se nos jardins uma riqueza de coloridos, de formas e de contornos extraordinária. Sucedem-se linhas sinuosas ora compostas de folhagem, ora de grama, ora ainda de flores em abundância, onde prepondera o formato arredondado.

O lago, com um bordo de mármore, tem no centro um chafariz. Nos ângulos há também pequenos esguichos, de maneira que, quando soltam as águas, forma-se uma espécie de imensa catedral  aquática com arcos e volutas; a água jorra de um lado e de outro produzindo uma fantasia de movimentos, todos muito harmoniosos e sóbrios, dentro da sua pluralidade, e constituindo uma  espécie de castelo de água em frente ao castelo de pedra.

O castelo propriamente dito é de uma cor meio indefinível, um pouco parecida com âmbar, um material um tanto dado a creme, tão discreta que quem olha acha bonita, mas não pensa diretamente na cor do castelo; a ideia da cor passa meio desapercebida.

O edifício apresenta em relação ao jardim um contraste flagrante porque, enquanto o jardim é todo feito de sinuosidade  e policromias, o palácio é composto de ângulos, linhas retas, onde há quase o excesso do duro contrastando com o quase excessivo do sinuoso. Exatamente ao se tocarem, esses quase excessos descansam a vista e dão uma espécie de harmonia.

As nuvens compensam o que falta ao castelo

Há, portanto, um contraste muito inteligente, bem pensado, entre o imponente, majestoso, sério, forte, coerente – de uma coerência cartesiana e quase hirta – e o risonho, afável, amável, aprazível, convidando a ficar à vontade junto de tanta grandeza.

A água confere ao panorama uma variedade agradável. Nem tudo é flor, mas também nem tudo é água. Imaginem que isso fosse um aguaceiro; esse castelo, todo hirto e reto, tendo sua hirteza dentro da água: que melancolia! Por outro lado, se não tivesse a água, mas apenas flores, ficava um pouco monótono. A água dá uma nota nova diante de tanta variedade e confere ao todo uma  poesia tão natural, que se tem a impressão de que isso não foi pensado. Para o gosto da época, o suprassumo era fazer algo artificial tão bem elaborado que desse a impressão de ser natural.

O mesmo se dava com as boas maneiras. A elegância deveria ser tão natural que desse a impressão de proceder da natureza humana, sem a necessidade de estudo nenhum. Daí um empenho em  apresentar as coisas de tal jeito, que a elaboração mais requintada não parecia senão uma decorrência suave e natural de todas as coisas.

Por cima de tudo isso, vemos o céu. O fotógrafo apanhou as nuvens num momento muito feliz. Evidentemente, essas nuvens não foram postas aí por Luís XIV, mas creio ter havido uma grande coincidência ou um fotógrafo muito inteligente que soube quais nuvens apanhar, porque elas estão com a configuração exata para adornar a fotografia.

Nota-se aí o gênio francês. Um suíço, por exemplo, preferiria um céu inteiramente azul, quanto mais azul, mais bonito. Isso ficaria bem em outro panorama, aqui não. Essas nuvens compensam o  que falta de mistério.

Inicialmente muito brancas e até luminosas, mas com uma massa um pouco grande, a partir de certo ponto vão se diluindo e escurecendo. Tem-se a impressão de ser algo que sobe e vai se avolumando por cima do castelo, construindo o começo de um drama sobre o castelo risonho e o céu azul. Dir-se-ia serem os primeiros sinais da Revolução Francesa misturados com as últimas  glórias da monarquia.

Tudo quanto é grande, ou tem algo de heroico ou de um pouco trágico, ou perde a sua grandeza. Ao Castelo de Versailles, em alguns dias falta essa nota trágica, heroica, misteriosa. As nuvens compõem isso perfeitamente.

Temos, assim, uma paisagem aparentemente tão simples que se diria que uma criança riscou essa fachada, outra plantou esse jardim e tudo ficou muito bonito por coincidência.

Confronto entre a mentalidade francesa e a norte-americana

Para compreendermos bem a diferença de uma civilização para outra e sabermos fazer o confronto entre essa mentalidade e a norte-americana, por exemplo, tomemos o papel da costura na moda francesa e na moda norte-americana.

Na moda francesa, quanto menos a costura aparecer, mais bonito é. Porque as coisas devem dar a impressão de não modeladas, espontâneas. E quando numa roupa não há remédio senão  aparecer costura, na moda francesa de outros tempos punham-se sobre a costura alamares de ouro e de prata para dar a entender que aquele tecido não tinha sido costurado, mas constituía um pedaço homogêneo da fazenda, no qual com toda a naturalidade o marquês, por exemplo, tinha entrado.

O sapato era de verniz e, quando o homem era nobre, com salto alto e vermelho, fivelas de ouro ou de prata. O ideal era também dar a ideia de que o calçado não tinha costura, de maneira tal que o único lugar onde ela aparecia era atrás, porque era inevitável, e assim mesmo, a menor possível, por onde só uma pessoa com olho agudo percebesse.

O norte-americano transformou a costura numa pretensão a adorno. Então, sapatos em que a costura é feita no peito do pé e ainda se faz um babado e cose por cima para ficar uma sutura  evidente. Nas roupas, bolso postiço por fora numa tentativa de transformar a costura, outrora escondida, num enfeite.

São dois mundos, duas épocas, duas mentalidades. A época simbolizada por Versailles é a da naturalidade diáfana, leve risonha, ultra pensada, e que, depois de chegar à obra-prima de si mesma, apresenta-se com naturalidade e diz: “Eu sou assim”. É a última expressão de elegância, dentro da concepção francesa.

Poder-se-á dizer a respeito dessa concepção tudo quanto se queira; entretanto, ninguém poderá afirmar que ela é medíocre. A meu ver, ela é propriamente extraordinária.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/6/1969)

Confiança especial para cumprir a vocação

Nossa Senhora concede a certas pessoas a vocação especial de lutar pela Santa Igreja e pela Civilização Cristã. Ela as chama para uma via que supõe renúncias, privações, exigindo delas esforços para os quais se sentem fracas; por vezes, na hora da tentação elas cambaleiam e correm o risco de não terem coragem de seguir esse caminho. Mas devem ter a confiança inabalável de que a Santíssima Virgem lhes dará graças especiais para o cumprimento da vocação.

 

A virtude da confiança, como descrevê-la? No que ela consiste, definidamente? Para termos disso uma ideia, valeria a pena entrarmos nos pormenores do problema da vida de um homem.

Providência geral e especial

A Providência Divina é Deus enquanto amoroso para com cada homem, e provendo todo o necessário a fim de que ele realize aquilo para o que foi destinado.

Há homens que estão debaixo da regra comum da Providência, os quais recebem uma intenção de Deus a respeito deles muito genérica. Por exemplo, é intenção de que os homens se casem, com o  próprio trabalho ali mentem suas famílias, tenham uma progênie numerosa que se multiplique e deixe uma descendência vasta sobre a Terra.

Esses são os desígnios divinos sobre o comum dos homens, e que fazem parte da providência geral. Deus guia e auxilia de um modo genérico essas pessoas que Ele ama.

Assim, as chuvas se sucedem ao bom tempo e irrigam, preparam a terra, as plantações se formam, são colhidas, alimentam os homens, estes caminham para os seus trabalhos, os governos administram o trabalho humano, as pessoas dão uma educação cada vez melhor aos seus filhos, há uma cultura cada vez mais aprimorada, os povos progridem e, de um modo geral, a humanidade vai indo para a frente.

Existem certas pessoas sobre as quais Deus tem uma providência especial, ou seja, quer delas uma vida que não é a do comum dos outros homens e deseja que elas realizem uma missão especial. Para essas pessoas,  A Deus dá auxílios também incomuns. A Providência chama-as de um modo especial para o serviço da Santa Igreja em dois ramos distintos: inscrevendo-se nas fileiras sagradas do clero, das ordens religiosas; ou, continuando no estado laical, servindo a Esposa de Cristo por meio de um trabalho prestado à Civilização Cristã, esforçando-se para que a sociedade civil se organize de acordo com a Lei do Evangelho e, por esta forma, colabore com a Igreja para a salvação das almas. Dou um exemplo.

Também o Estado precisa cumprir o primeiro Mandamento

Deus ordenou dois Mandamentos a respeito da família: o sexto e o nono. Diz o sexto Mandamento: “Não pecarás contra a castidade”. E o nono: “Não cobiçarás a mulher do próximo”. Esses dois Mandamentos devem ser cumpridos por todo o mundo, são imperativos; enquanto o homem não se case, ele deve ser casto.

Quando se casa, ele vai praticar não mais a castidade perfeita, mas a castidade segundo o seu estado, que vem a ser a fidelidade matrimonial. Se a sociedade é toda católica, as pessoas não vão procurando praticar o ato impuro antes do casamento, também não se tentam umas às outras.

O marido e a mulher têm horror à infidelidade e são mais resistentes às tentações. As famílias se mantendo, a sociedade toda sendo assim, há poucas tentações para os homens, e as almas, então, se salvam em quantidade. A Civilização Cristã serve de meio para facilitar aos homens o  cumprimento dos Mandamentos. Com isso, ela dá  glória a Deus e ajuda aos homens a irem para o Céu.

Está escrito no primeiro Mandamento da Lei de Deus: “Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o coração”. Este é um preceito que todo homem deve praticar no domínio de sua vida particular, enquanto membro da Igreja. Mas também o Estado está sujeito ao mesmo Mandamento e toda nação é obrigada a servir e amar a Deus de todo o coração.

As cerimônias e solenidades da Igreja são grandes dias do Estado também. Por exemplo, dia 25 de janeiro é festa de São Paulo Apóstolo, patrono da cidade e do Estado de São Paulo. Em um país no qual a Igreja seja oficialmente unida ao Estado, todas as autoridades deveriam ir incorporadas assistir à Missa na catedral. Terminada a celebração, precisaria haver desfile solene de tropas diante das autoridades eclesiásticas e civis, reunidas no mesmo palanque. Seria natural que no dia de “Corpus Christi” o Santíssimo Sacramento desfilasse pelas ruas com as tropas formadas em alas de um lado e de outro, ajoelhadas ou apresentando armas. Por esta forma fica muito mais fácil aos homens darem toda a importância à Religião e, consequentemente, amarem a Deus sobre todas as coisas.

Compreende-se, assim, como a Civilização Cristã é preciosa para a realização dos desígnios de Deus. E Ele pode escolher determinados homens para a missão especial de figurar no mundo, como leigos, servindo a Civilização Cristã sob a inspiração da Igreja Católica. A esses, Deus escolhe e chama especialmente, dizendo: “Meu filho, olha como a sociedade civil está desgarrada! Não queres dedicar-te inteiramente para que ela sirva à salvação e não à perdição das almas?” A Civilização Cristã é fruto desse tipo de apostolado, e nós fomos chamados a fazer essa maravilha de dentro desse horror, de um mundo que caiu onde caiu, e está ao revés de tudo quanto Deus quer.

Como se constitui uma vocação

Se analisarmos como se constituiu essa vocação, notaremos, em quase todos os casos, verificar-se uma pequena história individual. Ora é um menino nascido em um ambiente ruim, cuja alma  anseia por algo melhor, o que o leva a sentir uma fricção, um desagrado em contato com os lados maus desse ambiente. Por vezes ele não sabe explicitar, mas é como se elevassem na sua alma harmonias que a inocência canta no seu interior. Ele experimenta em si algo de mais luminoso, e começa por se sentir incompreendido, com necessidade de migrar para um meio onde as coisas sejam de outra maneira.

Se, ao contrário, ele vive em um ambiente bom, digno, agradável, sereno, que convida à prática da virtude, mesmo assim em sua alma há anseios do maravilhoso e não apenas do suficiente. Ele pensa em combates, riscos e aventuras que não sabe como são, mas tem sede de outra coisa que não seja aquele casulo onde ele nasceu, e ao qual, entretanto, ele quer tão bem.

Como há larvas que em determinado momento se transformam em borboletas, assim também o menino sente que nasceu larva, mas há nele asas se formando e ele quer voar. Eis o início do chamado de Nossa Senhora, uma vocação, porque era a graça de Deus que punha na alma desse menino aqueles anseios que o levavam a procurar a Igreja, a Civilização Cristã.

Esses fatos são, mais ou menos explicitamente, passos da alma para conhecer mais de perto a Nosso Senhor Jesus Cristo e sua Mãe Santíssima, amá-Los e servi-Los.

Ora, ensina a Igreja Católica que ninguém é capaz de dar um passo em direção a Deus sem o auxílio sobrenatural da graça. Sem essa ajuda o homem não pode sequer dizer de um modo amoroso os nomes de Jesus e Maria.

Então, conclui-se que a graça, pondo na alma aquele desejo, chamou. “Vocare”, em latim, é chamar. Vocação é chamado. Não se trata, portanto, de uma fantasia, mas é uma questão de Fé.

Necessidade da graça para realizar qualquer boa obra

Como se insere nisso o tema da confiança? Aqueles sobre os quais Deus tem um desígnio geral precisam ter a confiança também geral de que realizarão esse desígnio. Mas aqueles a quem a Providência destina para uma missão específica, devem ter uma confiança especial de que Deus concederá auxílios excepcionais para o cumprimento daquela tarefa.

Suponhamos um clérigo que, sendo um grande orador, é sagrado bispo para dirigir uma diocese. Talvez ele julgue que, assim como outrora arrebatava as multidões com os seus discursos, agora, como bispo, irá ao púlpito e arrebatará as multidões para as verdades da Fé.

Por certo, a eloquência é um dom natural concedido por Deus e que, uma vez recebido, pode desenvolver-se naturalmente. Contudo, se esse bispo não acreditar que necessita de uma ajuda especial da graça, ele não converterá nenhuma alma, pois suas palavras não produzirão nenhum aumento do amor de Deus em quem as ouvir, e ele não trará ninguém para a Igreja Católica.

Dou outro exemplo. Imaginem uma pessoa que monta um grande orfanato católico. Um modo de combater a limitação da natalidade, o aborto, é erigir casas onde os pais desalmados, que não querem educar os seus filhos, os deixam nos braços amorosos da Igreja. Como para a primeira infância nada é comparável ao carinho materno, são Ordens religiosas femininas que se dedicam a acolher essas crianças.

Ora, essas Ordens têm problemas, falta de dinheiro, necessidade de remédios, de médicos, de mil coisas. São necessárias pessoas com boa capacidade administrativa para levar a bom termo a fundação e a organização de um orfanato.

Como se trata de uma obra destinada a servir a Deus, se o organizador do orfanato não entender que deve pôr sua principal confiança, não nas suas capacidades nem nos seus meios de ação – como parentesco, relações, etc. –, mas no auxílio divino, o orfanato vai água abaixo.

Prece do homem desconfiado e do confiante

Se Nossa Senhora nos chama para uma via que supõe renúncias, privações, exigindo de nós esforços para os quais nos sentimos fracos, e na hora da tentação cambaleamos, por vezes corremos o risco de não ter coragem de seguir esse caminho, então é preciso ter confiança de que a Santíssima Virgem nos dará graças especiais. Nunca é válido o seguinte raciocínio: “Esse caminho é muito  bom, mas não vou seguir, pois não tenho forças”. Porque o contrário é verdade: Dê um passo e mais outro… Basta que para este minuto você tenha força, o minuto que vem Nossa Senhora proverá. Ande para a frente e peça o auxílio d’Ela; a Virgem fará milagres! Maria Santíssima é a Mãe de Misericórdia  que nos pede muitas coisas, mas nos dá muitas outras também.

Às vezes, para realizar a nossa vocação, nós precisamos de certo dom natural. Por exemplo, uma boa saúde, um pouco de repouso para nos refazermos, e desejamos isso para tornar o nosso caminho um pouco mais leve. Devemos acreditar que, na maior parte das vezes, Nossa Senhora nos concederá tais favores. Então, precisamos rezar com confiança: “Salve Rainha, Mãe de  misericórdia, vida doçura, esperança nossa, salve!” Ou então: “Lembrai-Vos, ó piíssima Virgem Maria, que nunca se ouviu dizer que algum daqueles que tenha recorrido à vossa proteção, fosse por Vós desamparado. Animado eu, pois, com igual confiança, a Vós, ó Virgem singular, como a Mãe recorro e de Vós me valho…”

Nesse caso, a confiança é a virtude por onde confiamos na sabedoria e na bondade de Deus pelos rogos de Maria; no amor materno especialmente misericordioso e próprio a perdoar de Nossa Senhora, que fez d’Ela como que uma longa manus da misericórdia divina, pois até onde Deus, por assim dizer, não poderia chegar em sua misericórdia, Ele criou Nossa Senhora para que Ela chegasse.

A confiança é, pois, a virtude pela qual, tomando isso em consideração, pensamos: “Fui chamado, preciso de tais circunstâncias especiais para realizar meu apostolado. Confio em que Nossa Senhora as dará.” Quer dizer, Ela é lógica, segura, bondosa, Ela não fará essa coisa monstruosa de me chamar para que eu não realize aquilo para o qual Ela me chamou.

Essa certeza de que Ela dará, Nossa Senhora quer como condição para atender o nosso pedido. Ela atende, mas quer que confiemos. A prece do desconfiado sobe a Deus com mais dificuldade do que a prece do homem confiante. A prece do desconfiado em relação a Ela é como quem subisse ao Céu passo a passo. Pelo contrário, a prece do homem confiante faz com que ele voe.

Às vezes, a graça nos submete a provações tremendas

Há um matiz delicado nisso. Às vezes, não há uma razão especial para termos a certeza de que Nossa Senhora vai nos dar aquilo que que remos, e podemos pensar o seguinte: Nossa Senhora sabe o que me convém, eu não o sei. Como vou ter confiança nessa oração? Se Ela é minha Mãe e me dá o melhor, eu peço uma coisa que talvez não seja a melhor, não obtenho. É uma reflexão razoável, inteiramente conforme à Fé. Como é que vou confiar?

Às vezes, Nossa Senhora põe em nossa alma uma certa doçura, uma certa esperança especial de conseguir que é uma forma de promessa de que Ela dará se pedirmos. Quando vem essa moção interna da graça, a alma cometeria uma ingratidão se não compreendesse que, por causa daquilo que ela sentiu, deve esperar com confiança. É muito delicado, porque a pessoa pode se enganar e tomar como voz da graça algo que não é. Mas, normalmente, quando se sente uma forma de alegria especial e sobrenatural, um certo pressentimento bondoso de que aquilo se vai realizar, muitas vezes é algo dito pela graça que fala em nossa alma e nós devemos confiar.

Por vezes, a graça nos submete a provações tremendas. Considerem o episódio de São Pedro no Lago de Genesaré (cf. Mt 14, 22-31). Nosso Senhor estava caminhando vi sobre as águas, e chamou São Pedro para ir até Ele. O Apóstolo não teve dúvida, saltou da barca e principiou a andar. Em certo momento, olhou para a água e sentiu como aquilo era mole debaixo dos pés, teve medo e começou a afundar. Isso pode dar-se conosco. Começamos a fazer uma coisa desejada por Nossa Senhora, e aquilo parece afundar… Nesses momentos devemos nos ajoelhar e dizer a Ela:

“Minha Mãe, nesses transes permiti-me que Vos diga com todo o respeito que uma criatura Vos possa ter: Eu não tomo a sério o que está se passando. Sei que é uma provação permitida por Vós e que me põe numa situação dificílima, mas Vós fazeis isso para ver se eu confio. Se eu confiar, obterei. Minha Mãe, continuo a confiar em Vós e a ir para a frente!”

Às vezes, é preciso rezar e esperar anos, com uma série de fracassos pelo meio. Um dia, inesperadamente, aquilo tudo se realiza. Esta é a virtude da confiança!

Uma das maiores alegrias que o homem possa ter na vida é quando ele passa por um período onde parece que tudo vai contra a sua confiança, mas, apesar disso, em certo momento, ele vê que aquilo se realizou.

“Ainda que eu caminhe em meio às sombras da morte, não temerei os males”

Lembro-me de que eu era professor de História Medieval, Moderna e Contemporânea numa das faculdades da Universidade Católica de São Paulo, onde havia uma capela com o Santíssimo  Sacramento. Sempre que eu ia a essa faculdade, após as aulas, rezava diante do Santíssimo Sacramento, fazia uma visita à imagem de Nossa Senhora que estava lá e saía. Como em todas as épocas de minha vida, essa era também de muitas provações e da necessidade de muita confiança.

Certo dia, eu estava na capela – onde havia uma galeria de vitrais de um lado e de outro, com cenas da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo; e ao levantar-me, olho para um dos vitrais que estava mais abaixo, o qual representava, se não me engano, a Ressurreição do Redentor, onde estava escrito o seguinte: “Nam et si ambulavero in medio umbræ mortis non timebo mala…” (Sl 22, 4) – Ainda que eu caminhe em meio às sombras da morte, não temerei os males. E em outro vitral ao lado havia a frase: “…in lumine tuo autem vi debimus lumen” (Sl 35, 10) – Na tua Luz veremos a luz.

Aquilo me encheu a alma e compreendi: é preciso ter mais confiança. Plinio, anima-te! Nossa Senhora te ajudará! Então eu disse a Ela: “Nam et si ambulavero in medio umbræ mortis non timebo mala. Minha Mãe, ainda que eu ande nas sombras da morte, não temerei os males porque Vós me ajudareis. Minha Mãe, na luz de vosso olhar eu verei a Luz!” Pensei nessas coisas a propósito de Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzano. Maria Santíssima olha com o olhar tão interior, tão embevecido, não se sabe bem se para o Filho que Ela tem nos braços, ou para um filho ajoelhado diante d’Ela e que é qualquer fiel que vai ali rezar.

E temos a impressão de que podemos dizer-Lhe: “In lumine tuo videbimus lumen”. Na luz de vosso olhar veremos a verdadeira Luz, que é Jesus Cristo Nosso Senhor, que Vós trazeis nos vossos braços.

Vocação da Bem-aventurada Petruccia

Vejam a história da Bem-aventurada Petruccia. Ela recebe uma vocação: trabalhar para reconstruir e reformar uma igreja de Nossa Senhora nesse lugarzinho chamado Genazzano. De fato, a vocação era muito maior, ela não sabia. Não era só para Genazzano, mas para abrigar um dos maiores milagres da História, uma devoção que tem expansão pelo mundo inteiro. Ela gasta tudo o que tem e fracassa!

Aos 80 anos de idade, Petruccia, que esperava morrer depois de ver a igreja construída, recebe de todo o mundo sarcasmos e censuras: – Louca, gastou o seu patrimoniozinho, está aí vivendo de esmola, pesando sobre os outros e levantando aqui esses muros que nem chegaram até uma altura normal. Louca! Ela, com doçura, responde: – Não vos incomodeis… eu sei.

Ela poderia acrescentar: “Deus me falou na alma! Sei que antes de eu  morrer, essa igreja estará construída. Um dia, como tantos outros, a Bem-aventurada Petruccia devorava em silêncio a demora da promessa, quando, de repente, as nuvens se fazem sonoras, luminosas, e desce o afresco de Nossa Senhora, e permanece ali. Todos reconhecem o milagre: a pintura fica de pé, sem em nada se apoiar, e até agora ali está, sem ser segura por nada.

Entram as doações para a construção do templo que começa a se erguer logo, porque o afresco paira em cima da igreja apenas iniciada, no lugar onde, sem dúvida, Nossa Senhora desejava que fosse construído o altar.

Portanto, Ela queria aquela igreja. Assim, antes de Petruccia morrer, a igreja estava garantida. Pode-se imaginar a morte de Petruccia, em paz, dizendo um pouco como Simeão conforme narra o Evangelho: “Agora, Senhor, levai em paz a vossa serva porque meus olhos viram a igreja que me prometestes!” É a virtude da confiança.

“Você não morrerá sem ter realizado a finalidade de seu apostolado!”

No caminho que nós seguimos, devemos esperar de Nossa Senhora muito mais do que os outros homens esperam. Precisamos aplicar todos os nossos talentos e recursos para servir a Santíssima Virgem, mas compreendendo  que tudo isso, embora indispensável, não é suficiente. As coisas só funcionam se a Mãe de Misericórdia nos ajudar pela sua graça e pela sua providência.

É necessário termos confiança de que Ela nos ajudará, antes de tudo, para perseverarmos e sermos santos; e, em segundo lugar, para vencermos a grande batalha da Contra-Revolução. Em 1967, eu tinha passado por dissabores enormes devido a dificuldades de nosso apostolado. Foram tais os desgostos e os estorvos que adoeci gravemente. Fui levado ao hospital para exames médicos e, em face dos resultados, os médicos resolveram fazer-me uma operação.

Portanto, por cima de uma série de terríveis insucessos de apostolado, vinha uma doença grave que trazia, entre outros inconvenientes, o de constituir para minha mãe uma grande preocupação. No período que antecedeu a essa doença, caiu-me nas mãos fortuitamente – vejo que foi por desígnios da Providência, mas não lembro mais por que vias o fato aconteceu – um livro a respeito de uma devoção da qual eu já ouvira falar: Nossa Senhora do Bom Conselho, em Genazzano.

Apesar da amargura em que eu me encontrava, a leitura do livro causava na minha alma um bem-estar interno tão grande, que eu me dizia: “Não compreendo por que, mas isto me faz um bem espiritual extraordinário!”

Precisamente, alguém teve a caridade de me mandar vir da Europa uma estampa da Mãe do Bom Conselho, e levaram-me quando eu ainda me encontrava no leito do hospital. Quando fiquei colocado diante da estampa, deu-se comigo um fato que o livro, aliás, contava que acontecia frequentemente. Sem ocorrer nenhum milagre, sem haver movimentação na face de Nossa Senhora, a imagem mudava de expressão para estes ou aqueles que rezavam diante d’Ela.

E eu tive a noção de que a face da Santíssima Virgem mudava de expressão diante de mim e me olhava com muita ternura, muita bondade, muito materna, dando-me a certeza relativa ao ponto que mais me atormentava, e que era o seguinte: Quem sabe se esses insucessos de apostolado se devem a alguma imperfeição espiritual minha? Quem sabe se vou morrer prematuramente como castigo dessa imperfeição?

E por mais que eu faça exame de minha consciência, não encontro resposta para essas indagações. Há uma falta em mim e em que ponto? Tive a impressão de que a imagem respondia ao mais candente da pergunta: “Meu filho, esteja seguro de que você não morrerá sem ter realizado a finalidade de seu apostolado!”

Essa certeza me alentou depois em todas as outras provações. Posso garantir que os dissabores sofridos por mim posteriormente foram tão numerosos e terríveis que, se eu não tivesse essa promessa, teria morrido. Não tenho dúvida nenhuma. Se com os meus 76 anos tenho a alegria de estar rememorando esses acontecimentos, é porque essa imagem me deu esta confiança: a finalidade de meu apostolado, no fim, se realizará!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/2/1985)

“Momento há anos anelado!”

A visita de Dr. Plinio ao Santuário de Saint-Laurent-sur-Sèvre, onde descansam os restos mortais de São Luís Maria Grignion de Montfort,  marcou profundamente sua alma, pois desde a leitura  do “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem” desejara peregrinar por aquele abençoado local.

 

 

Em setembro/outubro de 1988, Dr. Plinio viajou à Europa movido por importantes intuitos de vida interior, e objetivos de apostolado em diversos países desse continente. Um dos pontos altos dessa viagem- peregrinação foi, sem dúvida, a visita que fez ao túmulo de São Luís Maria Grignion de Montfort, missionário francês e autor do Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, que tanto impressionara Dr. Plinio na sua primeira juventude.

Junto ao túmulo de São Luís Grignion

O automóvel que conduzia Dr. Plinio até Saint-Laurent-sur-Sèvre — pequena cidade na região francesa da Vendée, onde São Luís Grignion morreu e está sepultado — deslizava suavemente pela belíssima campina francesa. Desde o início do percurso Dr. Plinio ia recitando o Rosário, terços de jaculatórias e outras de suas orações diárias. Em certo momento, impactado pelo esplendor da paisagem, comentou: “Dir-se-ia que, em qualquer desses recantos, as árvores foram dispostas por um grande artista…” Quando já se aproximava de seu destino, o carro passou junto ao Rio Sèvre que atravessa a cidade, e Dr. Plinio pôde avistar as torres da Basílica onde se veneram as relíquias de São Luís Maria Grignon de Montfort. Ao distingui-las, exclamou: “Sim, senhor! Afinal, o encontro há anos por mim anelado. Desde o dia em que li o Tratado, formei o propósito de vir aqui”.

Uma vez na Basílica, Dr. Plinio dirigiu-se primeiramente ao túmulo de São Luís, situado numa ala lateral, e ali rogou por todos os seus discípulos e filhos espirituais, para que Nossa Senhora lhes concedesse a plenitude da devoção a Ela, o amor perfeito à Cruz, bem como o pronto advento do reinado de Maria, tudo conforme o ensina- mento de São Luís Grignion nas suas obras, especialmente no Tratado e na Carta Circular aos Amigos da Cruz. Ainda junto ao túmulo, rezou várias séries de jaculatórias, entre as quais a de “Regina Cordium” — Rainha dos Corações —, invocação muito fomentada pelo Santo, além de outra dezena de jaculatórias ao próprio São Luís.

A pedido de Dr. Plinio, os que o acompanhavam entoaram os cânticos do “Ave Maris Stella” e do “Veni Creator” (também recomendados pelo Santo), após os quais rezaram, em francês, a Consagração de si mesmo à Sabedoria Encarnada pelas mãos de Maria, composta por São Luís. Em seguida, como outra forma de súplica a São Luís Grignion, Dr. Plinio depositou seu próprio terço sobre o mármore da sepultura, gesto repetido pelos seus companheiros.

Um consolador sorriso do Santo

Logo depois, embora o tivesse feito durante a viagem, Dr. Plinio quis recitar novamente o Rosário, bem como a Ladainha Lauretana. Entre as intenções postas para essas preces, incluiu a da canonização das duas pessoas enterradas junto ao Santo: a religiosa co-fundadora do Instituto das Filhas da Sabedoria, Marie-Louise Trichet, (Marie-Louise de Jesus, em religião) e o Marquês de Magnanne, grande amigo e benfeitor de São Luis(1).

Quando terminava de rezar os Mistérios Gloriosos, um raio de sol penetrou através de um vitral da Basílica, coando uma bonita luz azulada que veio incidir apenas sobre ele. Após alguns instantes em que permaneceu iluminando Dr. Plinio, e conferindo essa coloração como que celestial àquele ambiente, a luz se dissipou, deixando a todos com a grata impressão de que, a partir da bem-aventurança eterna, São Luís lhes dirigia um consolador sorriso.

Cumpridas essas devoções junto ao sepulcro do Santo, e depois de venerar o crucifixo utilizado por ele em suas últimas missões apostólicas, Dr. Plinio se recolheu para receber a Sagrada Comunhão, ministrada por um dos padres do Santuário, no altar em que se encontra uma imagem de Nossa Senhora, diante da qual São Luís Grignion costumava rezar. Durante a ação de graças, outro raio de sol osculou os vitrais e veio tocar a face de Dr. Plinio, desta feita com uma linda coloração avermelhada.

Supérfluo dizer que ele e seus acompanhantes saíram do Santuário com a alma repleta, decididos a retornar ali ainda uma vez, naquele mesmo dia.

Venerando as relíquias de São Luís

Quando se afastavam, o automóvel o levou novamente através das belas paisagens francesas. Ao contemplá-las, recordou-se Dr. Plinio de um dos seus brinquedos de menino: uma caixa — feita na França! — na qual podiam ser formados diversos cenários e panoramas. Comentou ele: “Eu, então, ia dispondo aqui e ali o produto de minha imaginação, com uma macieira, uma montanha, uma aldeiola, etc., concebendo uma França maravilhosa. Já mais velho, comecei a pensar: ‘A França será mesmo o que sem- pre imaginei, ou aquela ideia que fazia dela era uma fantasia de criança?’. Ora, viajando pelo interior desse país pude ver que, como afirmou Santa Joana d’Arc, Deus é o Rei da França, e fez coisas muito mais bonitas do que aquelas paisagens de brinquedo. Há lugares onde se vêem uma árvore, uma pedra ou a curva de um rio, e se tem a impresdíssimo. Na realidade, foi o próprio Criador quem realizou essas maravilhas”.

A fim de se refazer um pouco da viagem, Dr. Plinio se hospedou num pequeno hotel, a poucos quilômetros da Basílica de Saint-Laurent-sur-Sèvre. Conforme havia planejado, à tarde retornou ao templo. Infelizmente, porém, o encontrou fechado, não lhe sendo possível rever o túmulo de São Luís. Contudo, uma religiosa teve a delicadeza de abrir para ele a sala das relíquias do Santo, onde pôde ad- mirar seus aramentos, oscular várias imagens esculpidas por São Luís, e repousar suas mãos sobre a escrivaninha utilizada pelo autor do Tratado da Verdadeira Devoção.

Saindo dali, Dr. Plinio visitou uma imagem miraculosa, também entalhada pelo Santo, numa capela das Filhas da Sabedoria, chamada por essa razão La Sagesse. Durante as perturbações da Revolução Francesa, essa imagem havia sido escondida dentro de uma parede. Tempos depois, freiras que passaram pelo local em diversas ocasiões ouviram uma voz que suplicava: “Tirem-me daqui!”. Mandaram então abrir a parede, e lá estava a preciosa imagem da Santíssima Virgem…

Mais do que mil Chambords!

Ao deixarem a Sagesse, um dos acompanhantes de Dr. Plinio comentou-lhe:

Este foi um grande dia, não? Ao que Dr. Plinio respondeu:

Este dia de peregrinação a Saint-Laurent-sur-Sèvre foi para mim inesquecível. Tudo ali nos falava mais densa- mente do Céu, da ordem espiritual, além de tonificar em nós a ideia de que nossa vocação está ligada à de ser mestre, profeta e homem de fogo que foi São Luís Grignion.

E quando perguntado se Saint-Laurent-sur- Sèvre o havia impressionado mais do que o Castelo de Chambord e a sala gótica da “Conciergerie”, em Paris, aos quais ele muito elogiara, Dr. Plinio ponderou:

“Não podemos nos esquecer de que as ordens espiritual e temporal estão uma para a outra numa relação parecida com a chama e a lamparina junto ao Santíssimo Sacramento. A lamparina é a ordem temporal: convém que a parte de metal seja muito bonita, o recipiente de cristal vermelho para o azeite seja ótimo, e o próprio azeite, mui- to puro. Porém, a chama é a ordem espiritual.

“Assim também, em Saint-Laurent, sentindo-se a presença de São Luís Grignion, conhecemos e desfrutamos algo que vale não sabemos quantos mil Chambords, “Conciergeries” e outros esplendorosos monumentos engendrados pelo genial talento francês…”

 

Plinio Corrêa de Oliveira 73 (Abril de 2004)

1 ) O Papa João Paulo II beatificou Marie-Louise em 1993, e, sendo devoto de São Luís Grignion, fez uma peregrinação ao túmulo dele em 1996.

 

 

Inocência e as noções primárias do ser

O desenvolvimento do senso do ser, a construção da mentalidade e das reflexões no homem fiel à sua inocência batismal era tema sobremaneira caro a Dr. Plinio, a respeito do qual discorreu em diversas oportunidades ao longo de sua vida. Sempre permeando tais exposições com expressivos e didáticos exemplos, como poderemos constatar nas considerações transcritas a seguir.

 

Pediram-me que tratasse sobre a inocência, tema tão vasto quanto complexo. Por isso, abordarei apenas um aspecto dele, fazendo o apanhado do ponto de vista filosófico-prático, sobre a coerência e a contradição na alma do inocente.

Aceitação, rejeição ou indiferença

Imaginemos uma criança nos passos iniciais de sua vida. Ainda não fala, exprime-se por gestos ou pelo balbucio de algumas sílabas, e em sua mente desenham-se esboços de pensamentos. Ao lhe ser mostrado algo, ela tem um conhecimento elementar e superficial, do qual decorrem três atitudes: deseja aquilo e estende a mão para apanhá-lo; rejeita-o, afastando-o ou virando o rosto para outro lado; ou pode não manifestar reação alguma em relação ao objeto. Portanto, a criança toma uma dessas posições: aceitação, rejeição ou indiferença.

Então, antes mesmo de formar um juízo elaborado a respeito do que tem diante de si, ela sente e assume uma dessas três atitudes.

Suponhamos que o menino esteja deitado num berço, coberto na parte da cabeceira por pequeno dossel. Alguém toma uma bonita bola, brilhante, usada para enfeitar árvore de natal, e a pendura no dossel. A criança pode ficar encantada e querer segurar a bola, ou permanecer indiferente, ou, se for de maus bofes, olhar meio vesga e fazer careta.

Por que razão ela toma tais atitudes? Se alguém analisasse várias reações assim de uma criança, poderia discernir alguns movimentos que irão determinar a orientação dela durante a vida?

Tais indagações me vinham freqüentemente ao espírito no tempo em que havia muitas crianças passeando na Praça Buenos Aires(1), conduzidas por uma “nurse”, “Fräulein”, “mademoiselle”, babá, ou pela própria mãe. Eu notava suas reações diante dos fatos. Passava, às vezes, um caminhão fazendo seu barulho característico e medonho, o menino permanecia indiferente. Dali a pouco um cachorro latia, a criança se assustava. Mais adiante via uma flor e queria apanhá-la. Sucedia em certas ocasiões que, levada pela mãe, esta encontrava uma pessoa conhecida e parava para conversarem. A amiga fazia um agrado no pequeno, e este virava o rosto, causando desapontamento na sua progenitora, desejosa de provar que seu rebento herdara o bom gênio da família…

Notícia e seletivo

Qual a razão desse movimento? O que se passa na alma da criança? Ela já conhece algo, tanto é que reage. Se não conhecesse, não reagiria.

Na realidade, ela não tem propriamente ciência, mas o que, em filosofia, chama-se notícia. A visão e os demais sentidos lhe transmitem notícia sobre os fatos. Mas, nota-se que a criança possui um seletivo. Selecionar é uma operação que supõe aceitação de umas coisas e recusa de outras. E esta última, por sua vez, apresenta duas modalidades: rejeição na sua totalidade (a qual é manifestada, por exemplo, empurrando o objeto que lhe é mostrado); e a segunda, por indiferença. Como já dissemos, se a criança aceita, ela procurar segurar o que lhe interessa.

Esse seletivo possui certos critérios de escolha antes mesmo de a inteligência ter elaborado raciocínios. Essa faculdade trabalha ainda de um modo rudimentar, incompleto, enquanto o seletivo já inicia seu operar.

Tal tabela de valores, de preferências, recusas e indiferenças é desenvolvida pela criança ao longo de sua vida, sofrendo algumas modificações, de vez em quando perdendo algum atributo, adquirindo outros, etc., mas em suas linhas gerais ela o conserva até o fim da existência.

Manifestação do senso do ser

Retomamos, então, a pergunta: quais são esses elementos iniciais, esse ponto de partida no qual se acha escrito o fim da vida?

 Pensemos naquela criança deitada no berço, olhando a esmo para o ambiente que a cerca. De súbito, uma mão materna, afável, pendura diante dela uma bola lustrosa, azul “bleu-de-roi”, dourada ou vermelha, presa por uma fita de seda cor-de-rosa ou azul claro. Ela tem noção de que ali não estava a bola, que em determinado momento surgiu à sua frente.

O bebê não se pergunta por que a bola apareceu, quem a pôs, etc. Sua reação simples, primária, é: a bola. Talvez nem saiba dizer “bola”, mas o primeiro pressuposto consiste na noção de que ele é e a bola é, e daí se estabelece uma relação entre os dois, aceitação ou recusa, etc.

Verifica-se aqui o processo mental humano de se desprender da noite do não-criado para o criado, do não-ser para o ser. A criança é, mas há pouco tempo atrás ela não era. Vê-se que na primeira atitude tomada por ela há um primeiro olhar da inteligência, no qual seu espírito capta, pelos dados que lhe fornecem os sentidos, o fato de que algo é: “a bola é, eu sou”.

O que significa o verbo “ser”? O menino nem chega a definir isso, a primeira noção é que ele é, e a bola é. Segunda: ela e a bola não são a mesma coisa. Terceira: uma vez que as duas coisas são, tem de haver uma relação entre ambas. Normalmente a criança não pode ser indiferente à bola e talvez a bola não seja, sob certo aspecto, indiferente a ela. O menino vê a bola e acha que esta constitui um bem para ele, o completa em algum ponto, estende a mãozinha e pega a bola. Logo depois, instintivamente, a põe nos lábios. É a ideia incipiente de que aquele bem contido na bola fica participando dele, se a lamber e morder.

O grande problema da vida: somos incompletos

Portanto, esse movimento vem acompanhado da noção obscura, profunda, de que a ela, criança, faltam coisas existentes em outros seres. Ela tem vontade de se apropriar daquilo que contém um grau de beleza que não sente em si mesma. E não só de possuir, mas também de comer. Suponhamos que ela visse uma bonita cereja ou nêspera. Estando ao seu alcance, ela iria diretamente comê-las, pois sente a necessidade de complementação.

A criança tem, então, a impressão de que algumas coisas a completam, e outras não. Ela quer as primeiras e afasta as últimas, pois as julga malfazejas. Assim, juntamente com o conhecimento de que ela é, aparece a ideia confusa, instintiva, tendente a ser quase um circuito de sensações, pela qual percebe no que é completa, e, por outro lado, os pontos em que não o é. E procura realizar em si uma totalidade de algo que ela sente não ter. Começa aí, para cada um de nós, o grande e verdadeiro problema da vida: eu sou incompleto. Sinto falhas, lacunas em mim, talvez instintivas, não sou capaz de exprimi-las em palavras. E sinto-as de tal modo que algumas coisas causam-me a impressão de me completarem, outras, pelo contrário, constituem uma demasia e me deformam. Outras, ainda, me deixam indiferentes.

Esse problema da complementação de si mesmo vai se estender ao longo de toda a vida do homem. E embora sem dizer, se formos analisar tudo quanto ele procura na sua existência, perceberemos tratar-se de algo que acha necessário ter; e todas as coisas que evita, o faz por julgá-las supérfluas ou nocivas. Ele tem, portanto, um seletivo originado de um conhecimento instintivo e elementar de si próprio, de suas atrações, fobias, bem como do que lhe é conveniente ou inconveniente.

Errôneo seria pensar que a criança não é passível de engano nessa seleção. Afirmo mesmo o contrário: com freqüência ela se equivoca. Por exemplo, deseja comer a bola a qual não é comestível e lhe causaria graves danos se fosse ingerida. Além disso, a criança toma toda a aparência como contendo a realidade, pensa que a bola é maciça, feita de uma substância daquela cor. De fato, a bola é vazia e quebradiça, como tantas outras coisas da vida.

A pergunta interessante que se põe é como seria esse seletivo no homem antes do pecado original. Suponhamos que Abel — o perfeito, o predileto, pré-figura de Nosso Senhor Jesus Cristo — tivesse sido concebido por Adão e Eva antes da queda, e nascido no Paraíso terrestre. Como seria a inocência de Abel? Como ele tomaria contato com as maravilhas do Paraíso? Qual seria a conduta dos animais, das plantas, etc., para com Abel pequenino?

  Respondendo a essas indagações teríamos ideia do “plano A de Deus”(2) quanto aos homens, e como se desenvolveria a inocência da criança de modo perfeito, sem as claudicações e desordens oriundas da culpa original.

Disso trataremos em próxima exposição.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Revista Dr Plinio 85 “Abril de 2005”)

 

1) Situada em frente ao apartamento em que Dr. Plinio residia com seus pais, desde o início da década de 1950.

2 ) Conforme ensinava Dr. Plinio, para cada pessoa, família, nação e até para a humanidade, Deus tem um plano, cumprido o qual elas atingem a perfeição e, assim, dão glória ao Criador: é o plano A. Sendo infiéis a este desígnio primeiro, o Altíssimo lhes oferece um plano B. Mas, além de ser justo, Deus é misericordioso. E, na sua infinita bondade, a alguns que não seguiram seu plano A, Ele lhes proporciona um plano A+A.

Despretensão: ensinamento e exemplo divinos

Formando os Apóstolos, Nosso Senhor deu-lhes o divino exemplo de despretensão: “Eu estou no meio de vós como aquele que serve.” Vindo ao mundo para remir o gênero humano, Jesus indicou que entre os católicos aquele que manda deve ser como quem serve; precisa ser o menor e mais apagado, deve sacrificar-se e imolar-se, a fim de que seu apostolado seja fecundo.

 

Comentarei um trecho do Evangelho de São Lucas, muito propício para as comemorações da Paixão de Nosso Senhor.

Ora, houve uma discussão entre eles sobre qual deles devia ser considerado o maior. Jesus, porém, lhes disse: “Os reis das nações dominam sobre elas, e os que exercem o poder se fazem chamar benfeitores. Entre vós, não deve ser assim. Pelo contrário, o maior entre vós seja como o mais novo, e o que manda, como quem está servindo. Afinal, quem é o maior: o que está à mesa ou o que está servindo? Não é aquele que está à mesa? Eu, porém, estou no meio de vós como aquele que serve. Vós sois aqueles que permaneceram comigo em minhas provações. Por isso, assim como o meu Pai me confiou o Reino, eu também vos confio o Reino. Havereis de comer e beber à minha mesa no meu Reino, e vos sentareis em tronos para julgar as doze tribos de Israel(1).

Desigualdade das classes sociais

Trata-se de uma discussão entre os Apóstolos durante a Ceia. É curioso que, depois de Jesus lhes ter lavado os pés, instituído a Eucaristia, eles discutam entre si a respeito de quem seria o maior.

Isso poderia ser chamado de pretensão, e tenho a impressão de que estaria perfeitamente bem designado. Na hora mais augusta, mais sagrada, quando eles deveriam se preparar para os maiores sacrifícios, sua preocupação era de quem seria o maior. É uma coisa completamente extrapolada, colocada fora da linha em que deveria estar.

E Nosso Senhor lhes dá uma lição, dizendo-lhes incidentalmente uma série de coisas, que valeria a pena comentar. Afirma o Redentor: Afinal, quem é o maior: o que está à mesa ou o que está servindo? Não é aquele que está à mesa? Eu, porém, estou no meio de vós como aquele que serve.

Vemos aqui uma afirmação muito interessante da legitimidade da desigualdade das classes sociais, feita por Nosso Senhor. Ele pergunta: o que é mais, ser servido ou servir? E responde: ser servido é mais do que servir; o servidor é menos do que aquele a quem ele serve.

A autoridade existe para o bem dos subordinados

Quer dizer, há uma desigualdade que vem da natureza das coisas. E essa desigualdade, que é um fato legítimo, o Divino Mestre toma como ponto de partida para exprimir a posição d’Ele: Jesus está no meio dos discípulos como aquele que veio servir.

E aqui está a enorme lição de despretensão, como quem diz: “Se Eu Me coloco como servidor, como cada um de vós quer ser considerado o primeiro em relação aos outros?” Aqui está a coisa acachapante. É contrária ao espírito de Nosso Senhor, a toda a lição de sua vida, à doutrina que Ele veio ensinar, a preocupação de se fazer valer, de se colocar acima dos outros. Em sentido oposto, diz o Redentor, os que mandam devem ser como os que servem.

Qual o significado disso? No caso d’Ele, o sentido é evidente: Jesus veio para remir, salvar os homens. Ele estava ali como pastor que salva suas ovelhas, portanto, para o bem deles. É a autoridade constituída para o benefício daqueles sobre os quais deve mandar. Daí vem a ideia de que a autoridade tem um fim dentro de uma ordem posta por Deus; ela precisa ser servidora desse fim, e por isso deve cercar-se de esplendor, de grandeza, de pompa. Nosso Senhor louvou a mulher que derramou unguento precioso sobre a cabeça d’Ele.

Quem manda existe para o bem de seus subordinados. E aqueles que obedecem devem compreender e amar a autoridade e o princípio de autoridade, o qual é altamente benéfico.

Megalice de certos soberanos da antiguidade

Continua o Divino Salvador:
Os reis das nações dominam sobre elas, e os que exercem o poder se fazem chamar benfeitores. Entre vós, não deve ser assim. Pelo contrário, o maior entre vós seja como o mais novo, e o que manda, como quem está servindo.

A megalice(2) dos reis nas épocas anteriores a Nosso Senhor era uma coisa incrível. Os monarcas assírios, por exemplo, mandavam esculpir nas pedras dos rochedos os relatos dos seus feitos. E, para que não se apagassem, era colocada uma espécie de porcelana coberta com vidro, de maneira que eles tinham a esperança de que durante séculos ainda se lessem aquelas inscrições. E em muitos lugares ainda hoje podem ser lidas. Eles contavam coisas que eram evidentemente falsas. Uma dessas inscrições, que eu li, narrava que, numa caçada, o rei tinha domado um leão, pegando-o pelas orelhas. Ou se tratava de um leão velho, que havia sido embebedado previamente pelos cortesãos, ou era simplesmente uma megalice sem nome!

Aqueles imperadores romanos… quanta megalice! A veneração que faziam lhes prestar, o modo pelo qual dominavam e oprimiam os outros, dirigiam tudo pela força, e tantas outras coisas. Já tive ocasião de comentar neste auditório o respeito que se tributava aos faraós. Li aqui certa vez uma carta ao faraó, escrita por seu agente consular na Assíria, na qual dizia: “Eu, que sou indigno de beijar os vossos pés, indigno de beijar as patas de vossos cavalos; beijo o pó onde as patas de vossos cavalos se puseram”. Esse era o clima de megalice que os soberanos daquele tempo criavam.

Nosso Senhor mostra que quem é católico deve servir. Embora sua autoridade seja muito grande e transpareça bastante, ele, como indivíduo, deve eclipsar-se por detrás de sua própria autoridade.

O princípio, o cargo, a missão, o poder valem muito, o indivíduo vale pouco.

Jorge V e Rainha Mary

Certa vez li numa revista de História um fato a respeito de Jorge V, esposo da Rainha Mary. Todas as noites em que não recebiam visitas no palácio, eles ficavam ouvindo vitrola, enquanto um secretário ia trocando os discos. Quando chegavam às dez horas em ponto, os monarcas se levantavam e o secretário colocava o disco com a música “God save the King” — Deus salve o Rei —; Jorge V tomava atitude de continência, e a Rainha ficava em posição de oração. Terminada a audição, iam dormir.

E Rudyard Kipling(3) comentou que isso era a verdadeira humildade. Jorge V, detentor da autoridade, compreendia que o cargo, a dignidade, era grande, mas a pessoa dele, nada. E por isso tomava uma atitude de respeito diante de seu próprio cargo. Nesse ato, o Rei prestava continência à realeza; e a Rainha rezava, como uma fiel qualquer, por aquela que era a Rainha da Inglaterra. Vemos aqui o eclipsar-se da pessoa e o engrandecimento do cargo.

Reis de França e Imperador Francisco José

Nos tempos de monarquia cristã havia fatos nesse sentido. Quando os Reis de França saíam da Catedral de Reims, após serem coroados, o povo acreditava — e parece que algum fundamento havia nisso — que eles tinham o poder de curar a escrófula(4). Então, filas de escrofulosos repugnantes ficavam à espera do novo Rei na saída da catedral, o qual tocava cada doente com a mão e dizia: “Le Roi te touche, Dieu te guérisse — O Rei te toca, Deus te cure”. Diziam os cronistas do tempo que muita gente ficava curada. Quer dizer, depois daquele esplendor máximo da realeza — a coroação de um Rei de França era uma cerimônia fabulosa, em que aparecia o cargo e não o homem —, o monarca condescendia em tocar com suas mãos régias os enfermos mais repelentes do seu reino, para curá-los, usando de um carisma que reconhecia não proceder dele. A frase “O Rei te toca, Deus te cure” queria dizer: “O Rei sabe que não cura nada, quem cura é Deus. O Rei é um mero instrumento para que a ação de Deus se exerça”.

O exemplo de Nosso Senhor foi imitado nos tempos em que a Igreja era unida ao Estado, em todas as monarquias europeias. Pouco antes da guerra de 1914-18, em que quase toda a Europa era monárquica, na Quinta-feira Santa os reis iam lavar os pés dos pobres. Francisco José, por exemplo, Imperador da Áustria-Hungria, lavava os pés dos pobres na Catedral de Viena. E um dos significados desse ato era este: uma é a dignidade do Imperador, e outra, a situação dele enquanto indivíduo, que devia estar sujeito a todas as humilhações, por mais que o cargo por ele ocupado fosse excelente.

O Papa, “servidor dos servidores de Deus

Os próprios Papas realizavam o lava-pés. De um lado o Papa imita Nosso Senhor Jesus Cristo — a dignidade pontifical, como a dignidade régia, deve tocar os pobres —; mas, de outro lado, esse ato significa a humilhação do homem, indicando o desaparecimento da pessoa, mesmo no esplendor do cargo e da função.

Vemos assim, na tradição cristã, a aplicação do ensinamento do Divino Mestre. O Papa, chamando-se a si próprio “servidor dos servidores de Deus”, evoca uma reminiscência do que Nosso Senhor disse.

Então, para praticarmos adequadamente a despretensão, devemos compreender que toda grandeza terrena deve existir — porque Deus quis que houvesse grandes na ordem espiritual, como na ordem temporal —, e precisa cercar-se do esplendor que lhe é próprio; mas o homem que está colocado nesse lugar de grandeza deve saber apagar-se. E aqueles que estão longe da grandeza, não possuem o cargo, não o devem invejar. Para o vaidoso, o que adianta ter um cargo se não pode se gabar dele? Nenhum cargo, nenhuma situação pessoal, na qual o indivíduo não possa consentir no envaidecimento, não lhe adianta de nada.

São Vicente Ferrer: “A vaidade esvoaça em torno de mim, mas não entra”

Lembro-me que li, numa biografia de São Vicente Ferrer, um fato muito curioso. Ao chegar a Barcelona — ele era grande missionário —, foi-lhe preparada uma recepção apoteótica. Todo o povo estava reunido, das janelas pendiam tapetes preciosos, ele caminhava debaixo do pálio, carregado pelos nobres da cidade. Durante o cortejo, alguém desconfiado perguntou-lhe: “Irmão Vicente, não estás vaidoso?” Ele respondeu: “A vaidade esvoaça em torno de mim, mas não entra”.

O que adianta para um homem receber todas essas homenagens, se ele é obrigado a resistir à tentação de se envaidecer? Não adianta nada. Porque, se é para ficar vaidoso, há um prazer terreno. Mas, se não pode se envaidecer, andar devagar no meio daquele povo aplaudindo, e ele resistindo contra a tentação, é muito cansativo. Quando termina, ele desabafa: “Uf! Acabou a tentação; ao menos estou trancado na minha cela, sozinho”. Esse é o verdadeiro dinamismo das coisas.

Quem deseja aparecer não imita Nosso Senhor Jesus Cristo

Precisamos ser muito cautelosos. Sempre que estamos apetecendo uma situação de mando, de destaque, de influência, devemos tomar cuidado, pois facilmente nos apegamos a isso para nos mostrarmos. E, se consentirmos ao desejo de aparecer, não estaremos imitando o exemplo de Nosso Senhor, o qual indicou que entre os católicos aquele que manda deve ser como quem serve; precisa ser o menor, apagado, sacrificado, e imolar-se.

Alguém poderia fazer uma pergunta-objeção: “Mas, Dr. Plinio, o senhor nos diz isso com uma ênfase, como se estivéssemos na iminência de sermos eleitos presidentes da república! Ora, acontece que nós, sendo membros do Movimento, não estamos em via de ser eleitos para nada e nem temos, ao menos de momento, um eleitorado muito grande. Então, por que o senhor nos fala essas coisas?”

Digo isto porque não se trata apenas de cargos, mas de situações nas quais se exerce alguma influência numa roda de pessoas: querer ser o primeiro numa conversa, numa mesa de refeições; aquele que conta a piada mais engraçada; conhece a última novidade ou comentário sobre nossa vida interna e o transmite para o pobre basbaque que ainda não sabe; está a par das coisas mais importantes; diz a coisa mais audaciosa em matéria de doutrina. Tudo isso são coisas que significam preeminência e dão apego. E disso tudo devemos mostrar-nos desapegados, lembrando o ensinamento e o exemplo de Nosso Senhor.

A pretensão torna estéril o apostolado

Quanto maior é a pretensão de uma pessoa, mais estéril é seu apostolado, porque só faz apostolado fecundo quem está unido ao Divino Mestre. Quem não está unido ao Redentor é como a vinha que está destacada do sarmento.

Como podemos estar unidos a Ele, se temos pretensão? Não estou afirmando que sejamos todos uns poços de pretensão. Mas quero dizer que todo homem, na melhor das hipóteses, é como São Vicente Ferrer: está sempre com a pretensão esvoaçando em torno dele. Isso é evidente. Então, cuidado! Ainda que recebamos manifestações tão mais modestas do que as prestadas a São Vicente Ferrer, devemos lutar contra a pretensão, de todos os modos e com todo o empenho.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 1/4/1969)

1) Lc 22, 24-30.
2) Megalice: termo criado por Dr. Plinio a fim de designar o vício de quem atribui a si mesmo qualidades que não possui ou então as exagera.
3) Joseph Rudyard Kipling (1865-1936), escritor inglês.
4) Infecção tuberculosa em gânglios linfáticos do pescoço.

O mistério da vida…

Quem nunca terá pensando no que consiste a vida? Analisá-la em seus mais variados graus pode deixar qualquer um estarrecido diante dos mistérios que ela contém. Diante de tão interessante tema, Dr. Plinio discorre magnificamente à maneira de um navegador que perscruta os mares desconhecidos.

 

O tema a respeito do qual me pediram que tratasse é de tal vastidão, imensidade e complexidade, que se fizéssemos um simpósio de um ano não teríamos senão aflorado o assunto.

Considerações sobre heráldica

Imaginemos, por exemplo, um leão heráldico. O leão é, sem dúvida, um espécime magnífico do que a vida pode produzir. Como a figura desse animal, pintada sobre uma superfície, é pouco em comparação com um leão de verdade! Entretanto, ela tem, sob certo ponto de vista, uma beleza maior do que o próprio leão vivo, pois apresentando suas formas de modo mais característico, pode ele ser mais bem compreendido. E, para se entender bem uma série de leões vivos, nada melhor do que ter visto um leão bem pintado.

Representar bem um leão, procurando, não propriamente imitá-lo, estilizá-lo, mas sublimá-lo, é o que faz a heráldica. Através desta, tudo é idealizado de um modo esquematizado, captando ao mesmo tempo a anatomia e a fisiologia; mais ainda, aquilo que se poderia chamar a vitalidade e a “mentalidade” do animal. E, se olharmos para cem leões vivos, teremos aprendido menos do que vendo um leão heráldico.

Leão heráldico, tintura-mãe da “leonicidade”

O que de misterioso tem a vida do leão, por onde ele parece melhor, em alguns aspectos, quando não está vivo, mas esquematizado? É que ele foi visto, considerado, por um ser com um tipo de vida mais alto, que é o homem. E o leão, depois de ter formado uma imagem na mente humana, ter criado no espírito humano uma impressão tão forte, propiciou ao homem talentoso, após uma análise, a vontade e os meios de exprimi-lo.  E isto pintado pelo homem tem, sob certo ponto de vista, mais vida do que propriamente quando vivo no leão.

Por quê? Porque a imagem do leão desprendeu-se deste e entrou na mente do homem, passando assim para um circuito e um grau de vida superior. O leão corre, salta, ruge, mas não entende a si próprio porque ele não entende nada. Mas alguém que entende e tem, portanto, um grau de vida incomparavelmente mais elevado, olhou para o leão e tirou de dentro dele algo mais alto do que o próprio leão e pintou este algo. Assim, o que há de precioso na vida do leão, mas meio escondido, disfarçado, a vida da alma conseguiu apresentar melhor à nossa atenção.

De maneira que o pensamento de quem concebeu o leão heráldico, hirto, “figé”(1), faz com que este seja como que o leão dos leões, uma tintura-mãe da “leonicidade”. O conceito de leão deixou de ser um leão concreto e passou a ser um leão de quintessência.

Talento de um pintor ao representar uma fisionomia

Outro dia, ao folhear um álbum e deparar-me com uma pintura representando uma mulher, eu pensava o seguinte: “O imponderável de um talento! A fisionomia desta mulher é de uma velha, mas neste rosto o artista pintou uma pele de moça”. Aquilo produzia uma sensação de contradição, que causava mal-estar.

Entretanto o mais curioso é que a pele, sendo ao mesmo tempo de moça, tinha qualquer coisa de ensebado, de uma pessoa que se lava pouco. E de uma forma de ensebamento que dá um brilho falso e ruim à pele. Não era o brilho da limpeza, mas um lustre de sujeira que foi aplicado naquela pele de moça.

Que talento tem aquele pintor para saber exprimir, por meio de tintas sucessivas sobre uma superfície lisa, até a sensação da ligeira pátina de sujeira que pode tornar repugnante a pele mais brilhante! O que há na pele de uma pessoa que parece agradável de ver, e o que nela existe por onde engendra algo que lhe é mortal e, se ela deixa durar, a torna repugnante? Que quintessência de talento precisa ter um homem para saber ver isto e passar, por cima de uma pele que ele pintou, não sei que lustrina ou verniz imitando exatamente a sujeira! Que tesouros de observação tem ele sobre a vida! O que existe na vida humana, por onde ela algumas vezes frutifica a plenitude de si mesma, e outras vezes produz sua própria deterioração e degenerescência? Fonte, ao mesmo tempo, do que há de mais admirável e mais repugnante? De uma pedra não sai nada de repugnante, também não emerge nada de admirável.

 Alguém poderia dizer:

— O brilho!

Eu digo:

— O brilho é uma coisa admirável, mas é algo que, posto na pedra, ela devolve. A pedra é inerte, não tem vida. O homem, entretanto, para elogiar um olhar, diz: “Esse olhar é brilhante”. Mas o olhar vivo é tanto mais, que ele nunca elogiará um brilhante dizendo: “Parece o olhar”.

Um dos brilhantes mais conhecidos e bonitos, o “Koh-I-Noor”, está na coroa da Rainha da Inglaterra. Pode-se fazer daquele brilhante qualquer elogio, afirmar que ele lembra uma inteligência rútila etc. O olhar humano tem tal vida que se pode dizer a uma pessoa: “Seus olhos são como o “Koh-I-Noor”. Mas não se pode afirmar a este último: “Tu és como um olho!”

Metáfora da floresta

Quais as reciprocidades, qual o jogo das analogias, o que é, no fundo, esse mistério da vida que se oculta e se mostra de um modo fugaz em todos esses exemplos que apresentei, de maneira a termos, ao mesmo tempo, a impressão de apanhar coisas finas e definidas, mas, quando se vai apalpar, vê-se que algo foge, é indefinido e resiste a qualquer definição?

Com efeito, a palavra “vida” não se define, e também o vocábulo “morte”; sendo a morte a cessação de algo que não é definido, ela mesma não pode ser definida. Porque o termo “não”, posto diante do indefinido, não define o indefinido.

Isso não nos impede de ter certa noção de vida e de vitalidade. Que uso fazer dessas noções, tendo em vista as finalidades para as quais estamos reunidos aqui? O que é a vida natural da alma? O que é vida sobrenatural? O que é a vida de Deus? O que é vida?

Aí nós esbarramos com um mistério; podemos apalpá-lo, como faz um cego, mas sem o ver, e é para apalpações que vos convido nesta reunião. Apalpações que faremos tanto quanto possamos, não procurando abarcar o tema inteiro.

Realizaremos algumas incursões no assunto, à maneira de um viajante que penetra numa floresta grande demais; ele sabe que jamais poderá percorrê-la inteira, mas, para ter algumas ideias a respeito da floresta, nela faz algumas incursões. Depois disso, ele não sai com um mapa da floresta, mas leva na alma exemplos do que há dentro dela, algumas noções sobre a vida da floresta. Percebendo que a floresta era variável quase ao infinito, ele compreendeu que as incursões o ajudariam a ter uma ideia dela, a qual é mais rica do que se apenas a contemplasse de fora para dentro.

A vida é uma floresta; alguns estão no meio da picada, outros perto do fim, e outros no começo, mas a picada é a mesma. Convém fazer nela, de um lado ou de outro, incursões, apalpar pontos, a fim de extrair ideias e depois fazermos algumas considerações. Mais do que isso não nos permite o tempo, ainda mais numa reunião como esta. Vou tomar a vida de baixo para cima, desde o que ela tem de mais elementar e mais simples, até chegarmos ao mais complexo.

Modo de agir dos antigos navegantes portugueses

Empregaremos a marcha de “proche en proche”. O espírito humano funciona exatamente à maneira dos antigos navegantes portugueses, que chegaram até a Índia. Eles desciam um trecho ao longo do litoral africano, depois voltavam para Sagres e desenhavam o mapa. Descansavam e desciam mais um tanto. Regressavam e anotavam o que tinham visto, em conexão com o anteriormente feito. E assim, navegando de ponto em ponto, chegaram até a dobrar o Cabo da Boa Esperança.

Lá, eles estavam tão longe que o caminho da certeza já não lhes era possível. Em vez de voltar para Sagres, resolveram seguir em frente. No Cabo, segundo Camões, apareceu o gigante Adamastor para intimidar o gênio lusitano. Nossos ancestrais portugueses vararam o espectro do Adamastor e entraram pelo Oceano Índico. Então, mais valia a pena continuar, e assim chegaram à Índia; e mais tarde até a China e o Japão.

Há certo ponto atingido pelo espírito humano, do qual ele não volta atrás para formar certezas, mas embarca nas hipóteses. Ou ele, pela experiência, encontra a certeza na ponta da hipótese, ou não sossega, não se sente satisfeito. Vamos então viajar um pouco e lançar algumas hipóteses; assim teremos obedecido à segurança e à ousadia do gênio luso, do qual tantos de nós procedemos.

A pedra, a grama, o homem

Consideremos a coisa mais simples, comum, que a ordem natural pode oferecer aos nossos olhos. Imaginemos que um indivíduo, andando pelo campo, encontre uma pedrazinha sobre uma graminha. Quantas pedrinhas e graminhas haverá pelo mundo?  Só a sabedoria divina conhece.

Sendo reflexivo, ele se detém e vê que a pedrinha está colocada ligeiramente em cima da grama, a qual cresceu inicialmente sob a pedra, fez algumas voltas e continuou a se desenvolver.

O indivíduo tem uma impressão de superioridade e, ao mesmo tempo, de inferioridade da pedra. Esta pesa sobre a planta de tal maneira que a tornou torta; a pedra é, portanto, mais forte do que a planta.

Entretanto, a planta tem algo dentro de si por onde ela não se conforma com a pedra; apesar de ser mais fraca, ela empurra a pedra como que com o cotovelo. Ela se adapta à forma da pedra e encontra o caminho do sol. A grama tem uma superioridade de outro gênero, que só uma palavra, de quatro letras, pode explicar bem: “v”, “i”, “d”, “a”. Ela tem vida, e por isso resiste, encontra um caminho, se esgueira, fura e brilha à luz do Sol, embora a pedra queira atrapalhá-la.

E a pedra, que foi colocada ali, fica estupidamente naquele local, se ninguém a retirar, enquanto o mundo for mundo. Se for uma pedra enorme, ela pode comprimir tudo quanto é vivo. Mas se quem tem vida não se deixar comprimir por ela, o ser vivo é tão superior à pedra que faz dela o que entende.  Assim, se compreende o que é a matéria não-viva, e se tem um sinal do que é a vida.

O Pão de Açúcar, por exemplo, tão colossal. Quantos milhares de homens ele esmagaria; entretanto, chegou um dia em que o homem conseguiu esticar um fio até seu topo e fazer passar uma carreta, dominando o Pão de Açúcar, servindo-se dele para um passeio. E o Pão de Açúcar não pôde nem mover-se.

Embora enorme e majestoso, ele não sentiu sequer o que lhe acontecia. E essa formiga chamada homem construiu um torreão em cima dele, amarrou-o com um fio de linha e se diverte com ele.

O que é então a vida?

Heliotropismo

No que diz respeito ao vegetal, a vida se apresenta — estou indicando sintomas externos — como uma possibilidade de tirar de si mesmo uma mudança de sua situação. A planta cresce, se desenvolve, fenece. Ela existe dentro do tempo, está sujeita a mil condições, a mil infortúnios, mas de si tem uma coisa que o mineral absolutamente não possui: uma energia pela qual, por um princípio que lhe é próprio, crava raízes na terra e seleciona o que lhe convém. Ela se expande na direção dos minerais que lhe são úteis.

O melhor dos mineralogistas não conhece tão bem os minerais como uma planta, incapaz de conhecer-se a si própria ou qualquer outra coisa. E o trabalho dela, por debaixo da terra, é de antenas delicadas, por onde ela faz esta coisa admirável que o ser inerte não é capaz de realizar: encontrar, sugar e transformar em si mesma algo que não é ela.

Quer dizer, ela faz um encontro e um trabalho de assimilação, de apropriação, que é o crescimento dela. E, da noite de suas raízes, ela tira a parte dela que brilha e frutifica.

O mais extraordinário é que ela não conhece nada; a planta não tem nem sequer sensibilidade. E sem ter sensibilidade ela, entretanto, porque tem isto chamado vida, possui determinada ordenação por onde pega o que lhe convém e se desenvolve.

O heliotropismo é a procura que a planta faz do sol. Algumas até giram, fazem torções para encontrar o astro rei, como o girassol. Se alguém quisesse caricaturar o Sol, imaginaria o girassol, que é a figura do bajulador procurando imitar o bajulado, voltando-se para este, mas sem conseguir imitá-lo em nada; sol vulgar, rasteiro, amarelo, quando o outro é dourado. O girassol tem uma bordadura que imita o dourado e um cebolão marrom, no seu interior. O marrom é o estado plebeu do ouro e o estado mortal do amarelo. 

O que é propriamente o heliotropismo? Os cientistas já o estudaram. Eles conseguem tornar tantas coisas sem graça; entretanto, aprofundando-se o que dizem, pode-se verificar a existência de alguma graça no assunto. O Sol traz consigo certas transformações do ar e determinados graus de calor necessários para que a planta, a qual, movida pela vida, procura — notem bem — a sua própria conservação e seu próprio desenvolvimento. Trata-se, portanto, de uma forma de energia nascida de dentro do próprio vegetal, que procura sua conservação e depois a plenitude — o que não se conserva não alcança a plenitude; mas às vezes o que não alcança a plenitude, se conserva. Isto que está na planta, e dessa forma se desenvolve, o que é?

A graminha e o “Koh-I-Noor”

É um mistério. Mas um mistério ordenadíssimo, que torna o vegetal muito superior ao mineral e faz da graminha — mesmo a mais insignificante, que não é alimento para o nobre cavalo, nem tapete para um leão, mas comida de formiga — algo intrinsecamente mais nobre do que o “Koh-I-Noor”.  Este não reage, não opera, não cresce, não tende para perfeição nenhuma, é parado; dentro dele não habita nenhuma energia vital. A planta, porque é capaz dessas coisas, vale mais que o “Koh-I-Noor”. Isso de tal maneira é verdade que se imaginássemos dois artistas, um fizesse o “Koh-I-Noor” e o outro elaborasse um vegetal, diríamos que muito maior é aquele que soube fazer uma planta. Em outros termos, a grandeza de Deus se reflete muito mais numa plantinha feita para alimentar formiga do que no “Koh-I-Noor”.

O “Koh-I-Noor” vai para a coroa da Rainha da Inglaterra. A graminha… Se um lacaio relaxado deixar que uma graminha fique no caminho da Rainha, no dia da coroação ou da inauguração do Parlamento, ela pisa em cima da graminha sem perceber. Ela calca o tesouro, mas leva sobre a fronte a coisa secundária!

Metafisicamente falando, a obra-prima de Deus é mais a graminha do que o “Koh-I-Noor”. De fato, o Criador colocou as coisas graduadas para nossas vistas, de maneira a podermos percebê-Lo mais no “Koh-I-Noor” do que na graminha; mas na realidade a graminha é mais do que o “Koh-I-Noor”.

A graminha não sabe nada, mas dela se pode dizer o que Nosso Senhor afirmou sobre os lírios do campo: “Olhai para os lírios do campo, não tecem nem fiam, entretanto Salomão, em sua grandeza, não se vestiu como eles!”(2). Poderíamos dizer: “Olhai para a graminha, não tem ciência nem sensibilidade, entretanto nenhum botânico sabe, com tanto acerto, o que convém a ela; a graminha procura nas trevas, na escuridão, aquilo que lhe convém e o encontra”.

Gramado de uma grande fábrica

Considerem uma fábrica moderna fabulosa. Ela não realiza o que faz uma graminha, quando deita um milímetro a mais de seu próprio vegetal.

Houve até quem dissesse que os vegetais eram fábricas feitas por Deus: por ordem de seu Criador, a natureza fabricava coisas que o homem não sabia produzir. A comparação só não me agrada porque diminui a importância da grama. A vida, que está no vegetal, é mais do que algo organizado pelo homem para produção de caráter material, remexendo coisas minerais, químicas etc.

Imaginem uma fábrica na qual há um gramado. Quem haveria de dizer que, no fundo, o gramado é mais do que a fábrica? Um técnico poderia explicar tudo o que se faz na fábrica, mas nenhum grande cientista seria capaz de dizer o que é a vida que anima aquele gramado.

Se compreendêssemos a lição de sabedoria que Deus nos dá! Enquanto estamos aqui conversando, a grama de nosso jardim está respirando. O Criador sabe o que cada folha de vegetal está fazendo, por causa desta vida que lhe deu. E numa hierarquia tão bem calculada que cada vegetal faz tudo quanto está na sua natureza, mas não sobe um milímetro, um grau, além de sua natureza; faz o que está de acordo com a ordem vegetal, mas não é capaz de realizar nada de animal; pelo contrário, serve de moldura e de comida para o animal. O gramado é um banquete das formigas e dos passarinhos, e não vive senão voltado para os seres de ordem superior. Então compreendemos que tesouros da sabedoria divina existem num simples canteiro.

Glorificar a Deus por ter criado os vegetais

Se fôssemos capazes de entender isto, nos ajoelharíamos e glorificaríamos a Deus pelo que a planta faz na sua raiz e na parte que aparece acima da terra. Diríamos:

“Meu Deus! Vós fizestes, entre outras coisas, as plantas tão feias na sua raiz e tão belas na parte que aparece. Mas, de outro lado, para que vossas regras, dentro do imobilismo de certos padrões, tivessem todas as mobilidades possíveis, fizestes em algumas plantas raízes tais que elas formam os mais bonitos parques para os palácios.

“E algumas dessas raízes se comparam ao trigo, para alimentar o homem: o cará, a mandioca, a batata e tantas outras. Vós quisestes que a planta, às vezes, desse no fundo da terra aquilo que ela costuma apresentar, a título de fruto, balançando ao céu. Desejastes fazer tudo isso diverso e, apenas neste grau primeiro de vida, nos destes uma possibilidade quase infinita de meditação.

“De todo esse formigamento de vida, Vós sois o Autor. Mas um Autor sem esforço, sem o trabalho da aplicação, que faz tudo isso com a serenidade e a facilidade que nenhum de nós homens conhece.”

Eis aí uma primeira noção da vida, que nos aproxima diretamente de Deus. E nos faz compreender que esse primeiro degrau da vida, debaixo de certo ponto de vista, já é um santuário. Nós nos sentimos pequeninos, desconcertados, mas temos uma experiência interna curiosa. Olhando para a planta, na perspectiva em que estou falando, nós dizemos: “Como somos grandes em relação aos vegetais!”

O que qualquer homem é capaz de falar sobre uma planta, ou fazer dela, é uma coisa fenomenal! Pobre planta! Mas Deus põe ali mistérios, perto dos quais somos pequeninos e então dizemos: “Aquele que conhece o que não conhecemos e fez o que não podemos fazer, e nos fez a nós mesmos, é superior a nós, assim como somos superiores à planta”

Podemos então imaginar, vagamente, como Ele nos vê. Somos incomensuravelmente superiores a um vegetal, o Criador é infinitamente superior a nós. Como será Ele, que criou a mim e a planta, e fez que eu pensasse o que acabo de dizer sobre ela, e quis esse contraste, essa comparação, para que me reportasse a Ele, tivesse uma figura d’Ele, e me enchesse de respeito e de amor para com Ele, mas me sentisse face a Ele menor do que a menor das plantas diante do Himalaia? Oh, meu Deus! Que lição! E quanta sabedoria d’Ele para que, sem me revelar nada, nem me falar nada a não ser o que está nos livros da Revelação, entretanto, me desse um espírito por onde eu fosse capaz de calcular tudo isso e ver quem Ele é!

O homem criou uma planta imaginária: o lírio heráldico

Deus aparece ao homem e lhe diz algumas coisas a respeito da vida que Ele criou; mas não se sabe quando surgiram os seres vivos. Que coisa gloriosa o homem receber essa comunicação de Deus! E como Deus me amou fazendo com que eu conhecesse tal comunicação; e, de outro lado, deu-me inteligência por onde algo eu descobrisse e me dignificasse. Porque descobrir não é de nenhum modo criar, mas tem analogia com criar. E o Criador, que é infinito, deu-me a possibilidade de fazer essa analogia.

Um homem colhe uma planta, um lírio, por exemplo, e o transforma num lírio que não existe: o lírio da heráldica. Esse homem criou uma planta imaginária. E nisso ele se parece um pouco com Aquele que criou a planta real.

Isso é uma analogia que Deus, a propósito dos vegetais, bondosamente concedeu ao espírito humano.

É bonito receber a Revelação! Mas também é bonito andar com os passos da inteligência e construir uma determinada coisa. Como é bonito viver! Porque isso é viver. E como é bela a vida!  v

 

Continua no próximo número…

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/2/1980)

Revista Dr Plinio (Abril de 2011)

 

 

1) Fixo, imobilizado.

2) Mt 6, 28-29.

Brasil, à espera de um grandioso porvir…

Na memória e na sensibilidade de quem contempla as belezas naturais com as quais Deus ornou o Brasil, resta a impressão de que elas exprimem, à sua maneira, a vocação deste gigantesco país.

Muitos de seus lindos e abençoados panoramas refletem a especial vocação da alma brasileira de ser profundamente católica apostólica romana, de estar disposta a receber uma extraordinária comunicação do espírito da Santa Igreja.

Como corolário dessa disposição, o brasileiro é convidado a ter uma mentalidade afim  com a formosura de seus mares e litorais, com a elegância de seus ipês em flor, com a variedade de suas montanhas, ora graciosas e suaves, ora rudes e desafiadoras, com a grandeza de suas íngremes penedias que escorrem e se confundem com deleitáveis planícies…

Que dizer das praias do Brasil? Ele tem uma só praia, com alguns intervalos, que se estende do Rio Grande do Sul ao Amapá. É um dos seus mais belos aspectos naturais.

Dificilmente nos cansamos de ver o mar imenso, envolvendo ilhas que dão aos panoramas litorâneos uma nota semelhante à de pedras preciosas encastoadas num anel. E as ondas, acompanhadas de nuvens que parecem icebergs colossais caminhando em direção ao continente, têm um curioso movimento que exprime também certas habilidades da alma brasileira, certos jeitos, seja para acariciar, seja para louvar a Deus, seja ainda para fazer diplomacia…

Irmã da imensidade e beleza marítimas é a abundância das águas fluviais, correndo às quantidades pelo Brasil afora. Exemplo paradigmático são as cataratas do Iguaçu, em cujas quedas se pode avaliar a caudal e o ímpeto do líquido que se precipita majestosamente por toda a parte. Que extraordinário e fragoroso domínio!

***

Das águas para os campos e serranias. Em geral, montanhas não muito altas, sem píncaros que pareçam galgar até os céus. Dir-se-ia que existem, confiantes e contentes, sob as vistas do firmamento, sem necessidade de tentar arranhá-lo, porque sentem que ele desce até elas. Deixam-se banhar pacificamente pela luz do sol, e permanecem à espera de um futuro talvez não remoto.

Uma espera tranquila, doce, cordata, de quem sabe que, sem dúvida alguma, esse dia chegar á.

Suaves ondulações de terreno, cobertas de um verde ora alegre e risonho, ora um tanto escuro e sombrio, sem nada de trágico porém. Aqui e ali, aninham-se restos de antigas florestas, sobejos de matas virgens: é o Brasil da selva, do mistério primitivo, repleto de surpresas.

Ao lado das montanhas e ondulações adocicadas, cabem também os grandes gestos geográficos, o estupendo e o extraordinário rasgando aquela doçura, como para dar a entender ao nosso povo que, na placidez de seu temperamento, há de contar, nas ocasiões dramáticas, com lances heroicos.

Então surge, por exemplo, o famoso Dedo de Deus, na serrania que conduz a Teresópolis (foto da página 31). Quando se repara nele, tem-se a impressão de que houve algum dia ali um forte, onde guerreiros impávidos lutaram contra invasores que tentavam conquistá-lo. E que um murro formidável de um avantajado demônio dos antigos tempos arrebentou com quase tudo no seu cimo.

Porém, restou um dedo em riste, dizendo: ‘Ainda voltarei! A minha altura natural é esta e a ela não renunciarei. Dia virá em que a montanha inteira ascender á ao mesmo píncaro, que continuo
a reivindicar, na figura ideal desta fortaleza sonhada!’

***

Se nos voltamos para a exuberante e variegada flora brasileira, parece nos faltar o vocabulário para comentá-la de modo satisfatório. Haja vista um ipê na plenitude de sua floração, na riqueza estupenda de sua beleza, ou seja, no que ele tem de verdadeiramente único. É uma árvore de ouro. Sua copa não desenha uma esfericidade perfeita, pois tem reentrâncias diversas as quais fazem com que os jogos de luz sobre o dourado mudem de tonalidade, e se evidenciem os diferentes matizes dessa cor.

E quando o ipê floresce contrastando com uma paisagem seca e desoladora, dir-se-ia que ele é um protesto do futuro, a proclamar: Esperem! Alguma coisa ainda virá!

***

Praias, rios, cordilheiras, ipês… Panoramas, cenários e ambientes que convidam a cogitações, que sugerem planos, anseios, ideais, tendo no alto de si um grandíssimo descortino, meio feito de imponderáveis que nos levam a esperar os desígnios de Nossa Senhora para o Brasil.

Pois algo há de se passar aqui, à altura dessas imensidões. Elas não foram criadas sem que um dia surgissem homens a elas proporcionados. Por isso sobre elas paira uma graça carregada de belos prognósticos, uma bênção que faz dessas paisagens panoramas- argumentos. Dizem-nos da parte da Providência: “Esperai, porque este será o Brasil do Reino de Maria! Confiai! Vós não maginais
como será! Esses panoramas são apenas um sinal, um prenúncio daquilo que virá, se fordes fiéis. Um Brasil ainda mais lindo, maior e mais extraordinário. E que aí, na proporção do que virá, esse povo também se despertar á e estará à altura!

Sim, para isso foi criado o Brasil. O Brasil da Terra de Santa Cruz. O Brasil de Nossa Senhora Aparecida,  que vive à espera de seu grandioso futuro.

A Fé em Cristo Redentor

Não posso me esquecer de uma noite em que eu estava no Rio de Janeiro, na qual eu tinha os olhos fixados na estátua de Cristo Redentor no Corcovado, cercada pela neblina levantada do mar.

Durante algum tempo era apenas um foco de luz, no qual eu não discernia nada; em determinado momento, batia o vento, fazia-se um pouco de claridade e eu percebia um dos braços e uma das mãos do Cristo Redentor, iluminados com aquela luminosidade especial, pois a pedra sabão, de que é revestido o monumento, reflete a luz projetada sobre ele.

Continuando o vento a soprar, aparecia a face do Cristo Redentor, depois o seu peito onde pulsa seu Sagrado Coração, em seguida os seus pés divinos que todos nós gostaríamos de oscular. E eu prestava atenção: em nenhum instante, por mais densas que fossem as névoas, a luz deixava de encontrar certo ponto de apoio no monumento; sendo apenas uma luz fixa sobre uma silhueta ou uma das mãos, que protege e abençoa, um coração palpitante de amor, ou uma face cheia de solicitude, em nenhum momento a neblina conseguiu apagar a figura do Redentor.

Com esta fé caminhamos para o futuro, quaisquer que sejam as circunstâncias. Pode ser que provações muito difíceis toldem nos nossos olhos as perspectivas da vitória, ou circunstâncias imprevistas coloquem para nós problemas que hoje ainda não são os nossos. Mas, para além das névoas, para além de tudo quanto pode tapar a verdade, no horizonte visual do brasileiro há algo que nada tira: é a imagem do Cristo Redentor, a Fé em Nosso Senhor Jesus Cristo. Esta Fé há de nos salvar!

Meus caros, o Brasil há de vencer, e é rumo a esta vitória que todos caminhamos com o passo resoluto e a alma cheia de fé.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência 17/10/1978)

Uma das obras-primas da piedade católica

A família Scrovegni, muito poderosa em Pádua no início do século XIV, mandou construir um palácio e uma igrejinha. A família e o palácio desapareceram; ficou apenas a capela cujas paredes Giotto marcou com os tesouros de seu gênio de pintor

Antes de passar aos comentários de algumas pinturas de Giotto, é interessante tomar conhecimento de dados históricos a respeito da Cappella degli Scrovegni(1).

Restou a capela por causa das pinturas de Giotto

O trabalho de Giotto na Cappella degli Scrovegni – ou Capela Arena, pois ela está situada no interior de uma área outrora ocupada por um anfiteatro romano – data possivelmente do ano 1305. Os documentos do tempo nos informam que Enrico Scrovegni, membro de uma poderosa família de Pádua, comprou em 1300 todo o terreno das arenas romanas para ali construir sua própria residência, hoje inteiramente destruída, com a capela anexa.

Então aquela igrejinha cujas paredes Giotto marcou com os tesouros de seu gênio de pintor – e, ao que parece, também de sua grande piedade, porque os quadros são muito piedosos – foi capela  do palácio de uma família. A família e o palácio não existem mais, porém a capela ficou por causa das pinturas de Giotto.

A construção da pequena igreja, autorizada em 1302 pelo bispo local, desenvolveu-se rapidamente, sendo consagrada no ano de 1305. O Papa Bento XI concedera, no ano precedente, indulgências aos visitantes dessa mesma capela. Analisemos, agora, algumas dessas pinturas.

Nosso Senhor entra em Jerusalém com a fisionomia triste

No dia em que Nosso Senhor ressuscitou Lázaro, os fariseus comentaram entre si que era preciso matá-Lo. Realmente organizaram um caso, em torno do qual provocaram a morte de Jesus.

Vemos nesse afresco Nosso Senhor dar uma bênção e Lázaro, com seu corpo todo enfaixado, sair da sepultura. E ele e mais uma irmã, provavelmente Marta, estão empenhadíssimos em que se  preste atenção no acontecimento, porque um grande milagre está sendo praticado.

Esses dois santos, no primeiro plano do quadro, estão pasmos com o assombroso milagre realizado pelo Divino Mestre. Notem Lázaro, todo enfaixado como os judeus costumavam fazer com os seus mortos, e um pouco mais adiante um personagem com uma veste verde-claro, que está falando com muita animação. Parece ser da turma de canalhas que resolveu a morte de Nosso Senhor
Jesus Cristo.

Outro quadro representa o Domingo de Ramos. Observem a inocência da apresentação: Ao fundo, para dar a entender que Jerusalém estava em seu início, aparece um pedacinho de fortificação e uma torrezinha que não daria para defender-se contra um batalhão de cem homens. Porém, é evidentemente uma imaginação. Nosso Senhor entra em Jerusalém com a fisionomia triste, o rosto muito varonil, uma abundância extraordinária de barba, e a atitude de um prelado de altíssimo poder ou de um chefe da Religião verdadeira. Ele era muito mais do que isso: o Messias. No meio da multidão que O acompanhava percebe-se uma ou outra pessoa com o aro da santidade. Ele mesmo tem esse aro muito definido, quer dizer, sinal de santificação. Sem dúvida, Jesus era o maior de todos os Santos.

Descem os azorragues

Uma pintura nos mostra a parte do Templo de Jerusalém, onde havia mercadores vendendo suas mercadorias. Nosso Senhor, não conformado com isso, desce os azorragues nesses negociantes.

Vemos dois homens de pé, apoiando-se um no outro, e o Redentor, com uma fisionomia evidentemente indignada, açoitando como quem tem o direito de bater, de verdade e com força. Os dois estão apenas procurando defender-se contra as pancadas porque, na concepção de Giotto, não tinham muita facilidade de fugir no momento.

Dentro de uma gaiolinha veem-se uns pássaros, que estavam à venda para serem oferecidos como sacrifício. Ao lado, os Apóstolos assistem a essa cena para lá de edificante.

Na representação da traição de Judas, os dois personagens ao lado estão confabulando, urdindo. O homem que conversa com Judas é um fariseu velho, experiente, com ar sacerdotal, e que recomenda discretamente como o traidor deve proceder. Judas, inimaginavelmente cruel e sem-vergonha, ouve as instruções para aplicá-las bem exatamente, numa atitude respeitosa. Sem sabermos o  que dizem, temos a impressão de quase ouvir o murmúrio da voz deles.

Evidentemente, Judas já está recebendo o saquinho com o preço da traição, que vai junto com as últimas recomendações. Atrás do traidor se encontra o demônio que está mandando em tudo.

Gosto muito mais desta representação da Santa Ceia do que a de Leonardo da Vinci. São João encosta a cabeça junto ao Coração de Jesus e pergunta quem é o traidor. Nosso Senhor o recebe com carinho, mas não indica o nome. Todos estão confabulando entre si sobre o que quererá dizer isso, mas numa relativa calma, a qual é uma das vergonhas da atitude deles durante o prenúncio da Paixão. Por certo, o católico não deve perder a calma, porém não precisa ter esta fleuma que denota uma certa indiferença, à espera da chegada do banquete para eles comerem.

Cerimônia do lava-pés. O Divino Mestre está lavando os pés de uma pessoa, e Ele se humilha a ponto de praticamente Se ajoelhar para executar esse ofício de caráter servil. Os Apóstolos estão comentando, estranhados com o fato. Mas Nosso Senhor não faz questão da opinião alheia e vai realizando o que deve fazer.

A revolta dos anjos e o ósculo de Judas

Depois da revolta dos anjos, e talvez certos episódios ainda ocultos da História contemporânea, não creio ter havido na História dos homens nada de comparável a esse fato do ósculo de Judas.

Para mim, esse “face a face” entre Nosso Senhor e Judas é das coisas mais espantosas que um pincel humano tenha pintado.

Nosso Senhor está sério e olhando o traidor até o fundo  da alma. E Judas procurando mentir. É a Verdade eterna e subsistente, encarnada, a qual olha para um homem que mente.

Judas, procurando tornar a mentira dele aceitável, abraça seu Mestre e O olha com ares de quem quer dar a entender ser seu grande amigo. Nosso Senhor fita-o e diz: “Judas, com um ósculo trais o Filho do Homem?” (Lc 22, 48).

De fato, Judas combinou com os guardas que o homem procurado para ser preso, Jesus de Nazaré, era aquele a quem ele beijasse. Então, foi até Nosso Senhor e, aproveitando-se de sua intimidade de apóstolo, aproxima-se do Divino Mestre e oscula a Sagrada Face. Jesus recebe com paciência esse beijo imundo, acompanhado provavelmente de um mau cheiro asqueroso, cheiro do Inferno.

Giotto quis representar em Nosso Senhor Jesus Cristo o auge de todos os predicados intelectuais e morais, e em Judas o extremo de todas as abjeções. Consideremos os recursos de que o artista se serviu para isso. Primeiramente, a cabeça de Nosso Senhor é provida com certa largueza de cabelo, mas não é uma cabelama que dá a impressão desses tapetes felpudos, feitos para serem postos do lado de fora da casa a fim de limpar os pés. Judas, não. Ele está com uma grenha suja, abundante, e que ele tratou de pentear direito antes de cometer seu crime infame, pois não queria que nada atrapalhasse o “bom negócio” que ele ia fazer. Quiçá, se ele estivesse desgrenhado na hora do beijo, o Divino Mestre não o quisesse aceitar. Ora, era preciso que tudo se passasse com ares de cordialidade.

Então ele se enfeitou. Comparem a desordem capilar de Judas com a proporção e a ordenação adequada de Jesus.

Comparemos também a implantação da barba de Nosso Senhor e a de Judas. A barba de Jesus possui boas dimensões e se dispõe muito belamente em cima da pele, tudo muito direito, com muita proporção. O mesmo se deve dizer do bigode. Prestem atenção na barba de Judas! São uns fios raros, formando arquipélagos peludos em uns e outros lugares do rosto. Nem se sabe bem o que é barba e o que não o é ali.

Por outro lado, no traidor a parte que vai do alto da maçã do rosto até o queixo é enormemente desenvolvida em comparação com a de Nosso Senhor, em quem tudo é proporcionado.

Judas dá a impressão de uma gulodice porca, horrorosa, enquanto Jesus manifesta uma austeridade delicada e verdadeiramente divina.

O apóstolo traidor não responde à pergunta de seu Divino Mestre. Logo depois de tê-Lo entregue, ele se põe a delirar e começa a correr de um lado para outro à procura de um sacerdote a fim de ver que jeito dava no caso. Mas, não tendo sucesso, acaba recorrendo ao suicídio.

Nossa Senhora de pé, com força e determinação

No recinto de Caifás – onde este Sumo Sacerdote se apresenta com autoridade, sentado sobre um estrado com dois degraus –, percebe-se uma algazarra e uma politicagem. Os personagens falam, mexem-se, Caifás está raivoso e agitado, e todos querendo encontrar um meio de arrancar dos lábios de Jesus uma palavra que justifique a sua condenação, mas não conseguem.

Nosso Senhor está calmo, sereno, sem ódios, mas sem abandonar sua posição em nenhum instante, e confessando a verdade corajosamente em todos os momentos.

Por causa disso – e Ele o sabia – haveria de acontecer que os seus tormentos iriam crescer cada vez mais até o fim.

Eis a Flagelação: não pode ser mais triste a atitude d’Ele, penetrado de dor física como de sofrimento moral – já alheio a tantos desaforos, ultrajes, insultos que lhe dizem e aos quais Ele não deve responder –, com a vara de bobo na mão e padecendo sem fim para resgatar os nossos pecados.

“Baiulatio Crucis Domini Nostri Iesu Christi”, Nosso Senhor Jesus Cristo carregando a Cruz. O Redentor vai sozinho, com aro de santidade, todos os outros são pessoas estranhas a Ele, indiferentes, exceto um que eu suponho ser São João Evangelista, acompanhando veladamente e de longe. Jesus carrega a Cruz com decisão rumo à sua própria imolação. Os outros estão totalmente alheios, pouco lhes importa. É a crueldade dos adversários d’Ele.

Crucifixio et mors Domini Nostri Iesu Christi”. Trata-se, portanto, do que nós contemplamos e veneramos no quinto mistério doloroso do Rosário. O Corpo está lívido, parece que o Redentor já emitiu ou está por emitir o último suspiro. Uma das santas mulheres oscula seus pés. Nesse grupo de três pessoas vemos Nossa Senhora,
a sua esquerda São João Evangelista, e a sua direita parece estar outra das santas mulheres; os outros personagens não são mostrados.

Por esse cantinho do lado esquerdo da Cruz, observamos como o local se está enxameando de gente que quer assistir aos acontecimentos. Mas o céu se encontra crivado de Anjos cantando a glória d’Ele. Entretanto, os espíritos angélicos, por enquanto, estão invisíveis, de maneira que os homens viam apenas a dor e a vergonha.

Nossa Senhora como está? Muito contundida, mas de pé, com força e determinação para tudo. Ademais de ser concebida sem pecado original, Ela amava tanto a Deus que era capaz de, por causa desse amor, frear a sua própria dor em alguma medida, de maneira a sustentar-Se de pé o tempo inteiro. Esta é a Paixão segundo Giotto, para mim uma das obras-primas da piedade católica. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/11/1988)

Contemplar maravilhas nos prepara para o Céu

Descrevendo as belezas existentes no palácio de Versailles, sua solidez e dignidade, Dr. Plinio afirma que todo católico precisa desejar o maravilhoso para amar a Deus, enquanto que a Revolução visa a abolir o amor ao belo.

 

O palácio de Versailles foi construído por ordem de Luís XIV, segundo os preceitos e princípios da arte francesa e do espírito francês, para simbolizar a glória da monarquia e o brilho da majestade real.

Le Nôtre: o maior jardineiro de todos os tempos

Notemos, em primeiro lugar, a vegetação. O europeu cuida extremamente da vegetação e tem por jardins, árvores e parques um zelo todo especial. Esta coloração tão bela é fruto do trabalho, ao longo de séculos, de pessoas que aspiravam ao píncaro em matéria de relva, e que por isso plantaram relvas maravilhosas.

O resultado é que olhamos para este panorama e temos uma sensação de verdor, de vida, de saúde, de frescor que descansa os olhos. Mas repousa principalmente a alma, ao considerar uma criatura de Deus tão cheia de viço primaveril. Trata-se, portanto, de alta cultura em matéria de relva, como encontraremos também em Versailles uma elevada cultura em matéria de arquitetura. Porque tudo ali é alta cultura e custou esforço, vontade de produzir maravilhas por parte de gerações inteiras.

É interessante considerar como a vegetação está toda ela bem aparada, formando desenhos, o que evidentemente dá trabalho também. Esses desenhos foram elaborados pelo maior jardineiro de todos os tempos: Le Nôtre(1). São desenhos geométricos nos quais entrou um mundo de pensamentos e o cuidado de estabelecer a harmonia com a fachada do castelo.

Dignidade, fortaleza, estabilidade

Analisemos agora o castelo. Ele visa exprimir a dignidade, a fortaleza e a estabilidade da realeza. São os três valores que caracterizam todo poder na Terra. Quando este é digno, forte e estável, ele impõe o respeito. Há, portanto, como pressuposto dessa obra, uma teoria do poder.

Ao contemplar Versailles surge logo a exclamação: Que bonito este castelo! Mas somente prestando atenção notamos como esta beleza é obtida. Encontramos três zonas de leveza diferentes no castelo: primeiro, o que chamaríamos o rés do chão. Tem-se a impressão de algo forte, que toca no solo e constitui um fundamento vigoroso. O robusto da base é acentuado pela abundância de pedras, todas rajadas, que dão a impressão de estarem postas umas sobre as outras, quase como um muro. É a ideia da solidez.

Vem depois a ideia da dignidade. Consideremos o andar de cima: são janelas altas, constituindo uma fachada muito longa. Mas enquanto no andar inferior os arcos não têm colunas, no superior cada janela está entre duas colunas. Por ser esbelta, a coluna dá um ar de leveza e confere a esta parte do castelo um caráter de nobreza. Este andar é leve e fidalgo, enquanto o anterior, forte e serviçal.

De vez em quando se destacam corpos do edifício formando terraços, para quebrar a monotonia da fachada. É o cenário apropriado para aparecer, por exemplo, o rei com a família real e outras pessoas da nobreza, constituindo moldura para o monarca. Quer dizer, é uma apresentação, para todos, de uma hierarquia política e social ornamental, decorativa, nobre, pomposa, que mostra a sua beleza, mas ao mesmo tempo manifesta-se afável, risonha, numa proporção humana com os que estão embaixo; sem esmagá-los pela sua altura, mas isolando-se.

O último andar é tão pequenino que a vista quase abstrai dele. O olhar se concentra no restante e quase prescinde desse pequeno andar que parece servir apenas para suportar troféus guerreiros e estátuas. E, por cima, tem o céu. Forma-se, assim, uma espécie de transição entre a ordem política e social, e Deus. O castelo parece não ter fim, ele se perde em figuras alegóricas, em formas etéreas, e se funde com o horizonte celeste. Foi esta a intenção ao construí-lo.

Degustar sua beleza como se prova um fino licor

Esta concepção arquitetônica corresponde bem aos erros da época: a atenção está toda voltada para o rei, para a esfera política e social; o elemento forte e o leve são quase molduras para ressaltar a realeza. Temos, assim, a glorificação da realeza feita pelo castelo.

Para explicitarmos o que o castelo tem de maravilhoso, é necessário que o contemplemos algumas vezes por espaços de tempo bem diversos. Só então essas considerações vão se destacando e percebemos toda a realidade. É como provar um licor fino: às vezes sentimos seu sabor somente depois de tê-lo engolido. Aqui também: é a segunda ou a terceira análise que nos torna mais palpável o que acabo de explicitar, e nos faz degustar completamente o que o castelo de Versailles diz para aqueles que o visitam.

Embora esse castelo exista como uma concha vazia, pois tudo quanto nele era vivo foi exterminado ou levado embora, até hoje os turistas do mundo inteiro vêm vê-lo. É uma fama de beleza que se mantém pelo consenso de todos que o visitam.

Como é bonito ter havido todas essas ideias no espírito dos que compuseram esse castelo e, séculos depois, alguém, olhando para ele, recompor essas ideias e, por assim dizer, dar-lhes vida! Tal é a densidade de pensamento que uma obra de arte pode conter.

Essas considerações ajudam-nos a readquirir o gosto pelo maravilhoso. A alma de um católico tem que desejar o maravilhoso para amar a Deus. Somos criados para ver a Deus face a face; e contemplar essas maravilhas é uma preparação para o Céu. Preparam-se para o Céu os povos dotados desse amor ao maravilhoso que a Revolução de tal maneira quer abolir.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/3/1967)

1) André Le Nôtre (1613 – 1700). Foi jardineiro do Rei Luís XIV de 1645 a 1700.