Brasil: país de grande futuro…

Meditativo desde a mais tenra infância, Dr. Plinio teve ocasião de analisar o interior do Brasil durante uma viagem. A partir de então, concebeu para seu país um futuro de heroísmo e de glória.

 

Na vida de uma criança há um determinado momento em que ela começa a conhecer melhor os seus próximos e a analisar como é o pai, como é a mãe, como são os irmãos, os tios, o avô, a avó, como são os primos…

Estabelecem-se então, forçosamente, as afinidades e definem-se as heterogeneidades. Ela vai modelando um conceito e formando uma ideia da família em que nasceu e, também, de quem é ela mesma.

Essa criança passa a olhar-se no espelho, sem vaidade, e pensa: “Que fisionomia eu tenho? Que efeito causo nos outros e em mim mesmo? Como é o meu nariz? Como é a minha boca? E os meus olhos?” É mais ou menos como uma pessoa que vai dar início a um jogo e alguém lhe ensina quais são as cartas do seu baralho, para saber jogar…

Quando recebe um elogio, a criança presta atenção e reflete: “Então, sou capaz de tal coisa.” Ou, pelo contrário, ouve às vezes a deploração do pai ou da mãe:

— Coitadinho, para tal coisa ele não tem jeito.

E, assim, o menino vai fazendo o balanço da vida… Lembro-me de ter feito isso na minha infância.

Observando o país de origem

Depois, em certa ocasião, comecei a analisar também o meu próprio país, pensando: “Brasil… Dizem que é colossal. Aqui está o mapa!”

Nunca fui afeito a memorizar informações sobre quilômetros quadrados, mas, observando os espaços coloridos do resto da América do Sul, eu me dizia: “O Brasil tem um tamanhão mesmo!” Olhava um pouco o mapa da Europa e concluía: “Como a França, tão gloriosa, é pequena! Como a Itália, a Espanha, a Alemanha, a Áustria e a Inglaterra são pequenas em comparação com o nosso Brasil! Nosso querido Portugal, do qual descendemos: que mãe pequena para um ‘filhão’ enorme!”

O “miolo” do Brasil

Em certa ocasião, estando no litoral, de costas para o mar, eu olhava e pensava: “Aí está o Brasil… Que “Brasilão” grande! E pensar que isto se espicha até o Pará e, depois, até o Rio Grande do Sul… Que coisa extraordinária! Mas… isto é como um pão, do qual estou vendo apenas a casca, aqui na praia. Existe também o miolo do pão…”

Um dia, conheci o “miolo” do Brasil.

Eu era menino, tinha aproximadamente nove anos, quando fui com meus pais e minha irmã a uma estação termal que começava a se tornar conhecida no Brasil, e de cujas águas esperava-se muito benefício para o estado de saúde de minha mãe: Araxá, em Minas Gerais.

E fui, então, vendo o Brasil por dentro, entrando no “miolo do pão” até chegar ao coração de Minas Gerais. Eu ia tomando contato com os panoramas e conhecendo um pouco o interior do Brasil.

A certa altura da percurso, o automóvel em que viajávamos chegou diante de um rio muito vasto(1). Do outro lado havia umas montanhas, e continuava o Brasil. Mas eu percebi por algo imponderável que do outro lado tinha algo diferente.

Então perguntei:

— O que é que tem do lado de lá?

Disseram-me:

— Do lado de lá é Minas Gerais!

— Mas, então São Paulo acaba aqui?

— Sim, acaba aqui e ali começa o Estado de Minas Gerais.

— Mas é tudo Brasil?

— Tudo Brasil!

Um grande livro em branco

O panorama mineiro, feito de altas montanhas, de planícies muito grandes, me impressionava.

Ao longo da estrada, viam-se na planície alguns montículos. Perguntei, então, a algum dos mais velhos que viajavam comigo:

— Que montanhazinhas são essas?

Ele respondeu-me com naturalidade extrema:

— Ah! São cupinzeiros.

— Mas, como?! Estão cheias de insetos?

— Sim. Eles se reproduzem debaixo do chão e fazem galerias, às vezes até de um quilômetro, e isso causa certa pobreza no solo.

Aqueles montículos pareciam-me tumores que a terra não deveria produzir! Eu pensei: “É preciso raspar esses cupinzeiros. Como seria nobre e bonito apresentar uma terra restituída à sua fertilidade, porque o homem penetrou nas entranhas do solo e acabou com esses inimigos ridículos e pequenos, que são os cupins. As nações civilizadas, cujas fotografias são usadas como bonitas estampas nos livros de leitura para os meninos, não têm essas bolotas feias!”

De repente, vi passar umas aves grandes, semelhantes a cegonhas, mas feias, cor de chumbo, com pernas enormes, bico curto, que saíam correndo pela planície — planície sáfara, sem vegetação bonita.

Perguntei, então:

— O que é aquilo lá?

— São seriemas.

Eu pensei: “Por que essas aves são tão feias? Por que na Europa eu nunca vi essas feridas no chão que são os cupinzeiros? Qual é o papel de tudo isso num panorama? Isto é cenário para quê? Que gênero de fatos deve se passar aqui? Não há algo de futuro do Brasil no cenário que Deus pôs aqui?”

Em certo momento, avistei duas ou três seriemas e, por entre as pernas delas, vi uma parte das montanhas e um trecho da paisagem. Percebi a beleza que havia em tudo aquilo, e concluí: “Agora entendo para o que servem as seriemas: elas vão correndo por essas vastidões e me ajudam a compreender como é enorme o Brasil. As distâncias não são nada para elas, que correm com uma celeridade de deixar-me pasmo. Entretanto, elas estão apenas no começo de uma corrida pelo Brasil.”

Aquela imensidão me dava também uma ideia de bênção. De toda aquela natureza se desprendia uma certa atmosfera de possibilidades enormes de amar a Deus e de possibilidades de pecado pavorosas! Parecia-me sentir no ar uma promessa, se o Brasil procedesse bem, e uma ameaça medonha se, pelo contrário, agisse mal.

E, apesar da censura severíssima ao ambiente, foi-se formando no meu espírito, desde aquele tempo, a ideia de que o Brasil era como um grande livro em branco, onde os homens deveriam escrever uma história de heroísmo e de glória, numa atmosfera de serenidade e doçura, que um dia embelezaria as seriemas e acabaria com os cupins. Era a ideia de um grande futuro…

Era assim que o Brasil ia nascendo para o meu panorama.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/4/1985)

Revista Dr Plinio 158 (Maio de 2011)

 

1) Rio Grande.

 

No passado perene, o futuro…

Tomando parte na Liga Hanseática, a cidade de Bremen exerceu um importante papel histórico. Porém, foi a beleza de sua arquitetura que a fez atravessar os séculos.

 

No decorrer de tantos séculos de História, a cultura europeia revelou que possuía de forma incomum o gosto pelo maravilhoso, no sentido mais profundo do termo: almejava ela, coisas de grande valor e categoria, capazes de produzir no espírito humano uma sensação de enlevo e entusiasmo tão intensa que pareciam transcender a capacidade humana de maravilhamento. E que, ademais, por sua nobreza e distinção, preparavam, em última análise, os espíritos para que tivessem apetência das coisas divinas.

Esse anseio pelo belo era, portanto, um instrumento natural, utilizado para dirigir e dispôr as almas a fim de receberem o auxílio sobrenatural da graça de Deus, o qual reservara grandes dons para a vida futura, àqueles que Lhe foram fiéis na presente.

Não obstante, é possível verificar entre os povos outra atitude de alma diversa desta, na qual o maravilhoso não ocupa praticamente lugar algum. Tal como alguém que, vivendo diante de magníficos panoramas marítimos, edificasse sua casa de costas para o mar, não apreciando tão evocativo ambiente.

Como corretivo para tal defeito, nada há melhor do que exercitar a apetência pelo sublime. Ele pode ser facilmente encontrado nas construções, nos templos e até mesmo nas praças…

Um exemplo característico é a cidade de Bremen, Alemanha: uma gloriosa cidade medieval, à espera de quem vá contemplá-la.

Importante papel histórico

Bremen tomara parte na Liga Hanseática(1), que era constituída principalmente por Hamburg, Lü-beck e Dantzig. Tais cidades adotaram uma forma de governo pela qual a população elegia os representantes para constituírem a câmara municipal. Porém, na realidade, o governo acabava por tocar a uma aristocracia constituída por famílias que se dedicavam ao comercio e à indústria.

Tal era a pujança da famosa Liga Hanseática, que esta chegou a possuir marinha própria, auxiliando até mesmo aos imperadores do Sacro Império Romano Alemão, e sendo durante certo tempo uma das maiores potências da Europa.

Dentre as capitais desta Liga estava Bremen. Como essas cidades eram governadas pelas prefeituras, estas se tornavam os símbolos de autonomia da cidade, sendo ornamentadas com dignidade e beleza. Por esta razão, tanto na Alemanha como também nos Países Baixos, lugares em que o municipalismo muito se desenvolvera, encontram-se paços municipais que parecem ser verdadeiros palácios régios.

Irregular simetria?

Nesta pitoresca cidade há uma sede municipal chamada “Rathaus”, ou Casa do Conselho. Esta se encontra numa praça que tem ao fundo a Catedral da cidade. A Catedral forma um conjunto com o prédio e com as dependências e os edifícios análogos que se escoram graciosamente em suas paredes.

De forma irregular, que convém, entretanto, à simetria com a disposição dos edifícios, a praça, provavelmente mais recente, foi idealizada de modo judicioso e muito adequado, com um toque de leveza, devido ao mosaico de pedras que encontra-se no centro.

Caso fosse possível fazer em alguma parte desta praça uma fonte de água elegante, leve e bonita, até mesmo com as técnicas modernas de iluminação com coloridos diversos — como no Bois de Boulogne, em que há no fundo das fontes, luzes de magníficas cores, causando a impressão de pedras preciosas líquidas; são topázios, ametistas, rubis que estão continuamente elevando-se e caindo —, acrescentar-se-ia um toque ainda mais belo ao ambiente.

Colocada em lugar um tanto assimétrico, está uma torre antiga, condizente com os demais monumentos, que era provavelmente uma fonte. O urbanismo moderno infelizmente não utiliza fontes de água, o que poderia atenuar, em parte, a irremediável feiura das metrópoles modernas. Todo o ambiente é antigo e medieval, ou ao menos traz as reminiscências desta época, o que se faz notar pelas figuras que adornam os edifícios, a Catedral e até mesmo as ruas.

Um convite a elevar-se ou… a flutuar

Em certos períodos da História, o telhado foi muito utilizado pela arquitetura europeia como elemento de decoração. Como na Catedral de Santo Estevão em Viena, e em outros prédios, utilizavam-se diversas cores de ardósia formando belos desenhos. O cobre era também empregado na decoração dos telhados, pois com o passar do tempo ele azinhavra, adquirindo um lindo tom verde-esmeralda, assemelhando-se a uma grande pedra preciosa. O tipo perfeito de telhado não deve pesar, e por outro lado dar a ideia de algo que eleva e convida para subir. Tanto a cor quanto a forma pontiaguda comunicam ao edifício alegria e leveza, pois há um contínuo convite para elevar-se.

Como se tratava de edifícios públicos, havia reuniões e concentrações populares nas quais era preciso que o povo pudesse reunir-se no edifício, abrigado da chuva. Por essa razão a parte térrea dos prédios é composta de uma série de ogivas que dão para uma galeria aberta, onde as pessoas podiam inclusive passear.

A totalidade das construções dessa praça causa uma impressão encantadora de leveza, pelas formas pontiagudas e esguias que quase não tocam no solo, com um aspecto de conto de fadas. Para essa leveza concorre também a diferença de cores: verde-esmeralda, vermelho claro entremeado com o bege que se prolonga pelas pedras. Um jogo de cores tão delicado, tão leve, que se tem a impressão de que, colocados sobre uma jangada, esses edifícios passariam para as ondas a flutuar e não iriam para o fundo — aliás, seriam lindíssimos palácios flutuantes. O imponderável que deflui do prédio é de uma grande nave flutuando nesse mar de pedra que é a praça. Este é o Paço Municipal de Bremen.

Enquanto esse prédio sorri, a Catedral, pelo contrário, transmite uma atmosfera de majestade e de força. Aspecto majestoso, forte e sério que relembra uma das facetas da Santa Igreja, que é sua divina severidade. Quando bem construída, toda igreja espelha um aspecto da Religião Católica.

O efeito produzido pelas lindas e imensas torres da Catedral é como alguém que afirmasse: “Isso mesmo! Não só afirmo e finco o pé no chão, mas levanto a cabeça, e com toda a altura de minha estatura te olho, ó transeunte, para te dizer que a Igreja nunca muda, que a Igreja não passa, que Ela é eterna, e que tu tens que olhar com respeito para a severidade dos princípios que Ela emite.”

O tempo passou inclemente, mas as pedras aguentaram altaneiras os percalços e as intempéries, produzindo a impressão de consistência pelo embate de mil tempestades pelas quais tiveram de passar, o que lhes dá um aspecto de seriedade e de sabedoria. Isso produz um choque ou uma discrepância harmônica com o restante dos edifícios que compõem a praça. É o maravilhoso da severidade, do combativo, do altaneiro, ao lado do maravilhoso, do delicado, do gracioso, do harmonioso, do flutuante. São duas formas diversas do maravilhoso que, juntas, constituem pelo seu próprio contraste uma só única e harmoniosa maravilha. Essa é uma das mil maravilhas da maravilhosa Europa antiga…

A alma medieval era profundamente embebida pelo sobrenatural, ao ponto de realizar, mesmo sem a intenção expressa, maravilhas como esta. Era uma sabedoria esparsa por toda a Idade Média, e um patrimônio comum da Cristandade, que levava as pessoas a agirem bem e fazerem as coisas retamente, muitas vezes até sem saber bem o porquê; era o dom de sabedoria entranhado nas almas. Nesse estado de alma, era-lhes possível encontrar todos os tesouros da sabedoria. Pois os sentimentos mais profundos do homem apresentam-se muitas vezes da seguinte forma: para uma mãe que sabe tratar de seus filhos, não é necessário estudar Pedagogia para ser uma excelente mãe. Do fundo de seu amor materno, instintivamente, ela retira os recursos para ser uma boa mãe. É melhor do que se ela tivesse estudado.

A arte perfeita na era da perfeição!

As técnicas atuais descreveriam esse edifício de modo inteiramente oposto ao que foi aqui realizado. Entretanto, a técnica pura não move e, pelo contrário, tende a matar o espírito. Talvez dissessem: “Rathaus” da cidade de Bremen, século tal; material empregado: pedras especiais que se encontram em tal montanha, de onde lhe vem, por uma reação química, a consistência e a durabilidade de seu vermelho. Foram trabalhadas em estilo românico e renascentista, sob as ordens de tal mestre no século tal. Existem arcadas que medem tanto por tanto. Neste edifício passaram-se os seguintes fatos históricos: foi aí proclamada a famosa insurreição de Bremen contra seu governador; também aí soou pela primeira vez o alarme pela penetração das tropas napoleônicas em Bremen, em tal ocasião; duramente bombardeada durante a Primeira Guerra Mundial, serviu de Quartel-General aos aliados.

A explicação apresentada desta forma causa-nos a sensação da descrição de um cadáver reduzido ao esqueleto, onde não restou nada mais que a ossatura. Um jovem que fosse a um museu e lá ouvisse uma explicação como esta, dificilmente sairia entretido.

De outra forma, quando são realçados os aspectos sublimes e elevados desse ambiente, dos costumes aí vividos e da civilização que edificou este local, tudo parece tomar novo vigor, produzindo a sensação de perenidade. Pois se é verdade que Deus existe, não seria possível que uma coisa como esta estivesse definitivamente morta. Ele não pode permitir que algo assim desapareça, e que nunca mais algo de análogo venha a brilhar como um valor que oriente os homens. Se isso acontecesse, certamente o mundo acabaria, porque a glória de Deus não poderia permitir que haja novos séculos e novas civilizações construídas sobre o conspurcado.

A certeza de que virá algo imensamente superior e mais belo do que foi realizado no passado, enche-nos a alma, robustecendo nossa esperança na vinda de uma era onde Nossa Senhora reinará plenamente: o Reino de Maria. E nisso consiste a perspectiva última do maravilhoso: ver no passado o perene; no perene, o futuro.

Compete, portanto, aos filhos da luz, explicitar tudo aquilo que o medieval possuía implicitamente, pois esse é o requinte da perfeição. Explicitar para viver, mas também para dar maior coesão e consistência ao Reino de Maria, criando uma escola de pensamento que comunique uma intenção consciente e harmônica, porém não-racionalista, vinda do sentimento em sua boa espontaneidade, para a elaboração de um estilo artístico inédito.

Será a arte medieval? Será outro estilo de arte? Os românicos não podiam imaginar o gótico, e inesperadamente o gótico apareceu. Não se pode saber, mas não sendo o gótico, será algo mais gótico do que o próprio gótico. Pois o caminho foi encontrado, e desse caminho não se sairá mais. v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/8/1967)
Revista Dr Plinio 146 (Maio de 2010)

 

1) Aliança de cidades mercantis que manteve o poder de comércio sobre quase todo o Norte da Europa e o Mar Báltico.

 

Maria vivendo em seus escravos

Quando lemos a Oração Abrasada de São Luís Maria Grignion de Montfort, que dá o perfil moral de um Apóstolo dos Últimos Tempos, percebemos serem aqueles varões ali descritos capazes de ir até o último ponto das realizações, porque têm uma estrutura de alma inteiramente metódica, uma convicção profunda e um amor completo.

Assim é a alma de um verdadeiro Santo(1).

Entretanto, para alcançar esta santidade a que se referia, Dr. Plinio considerava indispensável — tal como São Luís Grignion — uma completa união de alma com a Santíssima Virgem. Como “Christianus alter Christus — o cristão é um outro Cristo” — todo católico deve também, de certo modo e guardadas as devidas proporções, identificar-se com Nossa Senhora, como nos explica a seguir Dr. Plinio:

Ao manifestar meu desejo de que Nosso Senhor viva em mim vivendo em Nossa Senhora, não me refiro a um mero existir, mas isto significa Nossa Senhora vivendo, operando, fazendo tudo em mim. De maneira que de mim só saia o que Ela quiser, minha vontade e minha inteligência ficam ligadas às d’Ela e assumidas por Ela. Assim, só penso o que Ela quer que eu pense, só faço o que Ela deseja, só consinto nos sentimentos que Ela queira que eu tenha, minha vida é a d’Ela. Este é o sentido da palavra “vida”, e é este o significado da afirmação “Maria vive em seus escravos”.

Ainda mais: é importante considerar que quando Maria vive em alguém, não é Ela quem vive, mas é Jesus Cristo que vive nesse alguém. Estabelecer limites a Nosso Senhor seria um verdadeiro absurdo. Portanto, devo querer uma entrega ilimitada à Santíssima Virgem.

Essa entrega supõe, antes de tudo, um enlevo completo, seguido de uma veneração e uma ternura completas.

Nessa perspectiva, a atitude perfeita é dar tudo, dar-se a si mesmo, por uma exigência do enlevo e como uma necessidade de sobrevivência, para não decair na vida espiritual, a ponto de amar o espírito que Nosso Senhor pôs em Maria, de maneira a querer ser para Ela como Eliseu foi para Elias.

Quer dizer, ter o espírito d’Ela, porque vejo ser um espírito vindo de Nosso Senhor Jesus Cristo e, portanto, de Deus. É o espírito da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Se eu estiver inteiramente unido a Nossa Senhora, terei a graça inefável de unir-me a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Outros aspectos do mesmo tema poderão ser contemplados na seção “Reflexões teológicas”, à página 22 da presente edição.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

1) Conferência proferida no ano de 1967.

 

A "Virgo Potens" vencerá

Sem dúvida, uma das características mais marcantes do espírito de Dr. Plinio é sua entusiástica devoção à Virgem Maria. Profundamente “cristocêntrico” — como o provam incontáveis matérias já estampadas nesta Revista —, compreendeu ele, desde muito cedo, que o caminho mais rápido e seguro para chegar a Jesus e glorificá-Lo é unir-se a sua Mãe Santíssima.

Se, pois, o amor deste varão católico ao Divino Salvador é inseparável do amor à Rainha do Céu, também o é seu entusiasmo e sua fidelidade à Santa Igreja Católica.

Assim, Dr. Plinio não hesitava em associar à promessa de indestrutibilidade da Igreja — “as forças do Inferno não poderão vencê-la”(1) — Aquela que, por ser Mãe da Cabeça, o é igualmente do Corpo Místico.

Uma autêntica Teologia da História leva-nos a encontrar no afastamento dos homens em relação a Deus a causa das crises que, ao longo dos tempos, assolaram a humanidade.  Crises que, na era cristã, ameaçaram — e, por vezes, pareceram até conseguir — envolver a própria Esposa de Cristo.

Contudo, na medida em que os povos se abriam à salutar influência da Igreja, as borrascas se acalmavam, como os ventos e o mar de Tiberíades ao obedecerem à voz do Divino Mestre(2), emanada a partir da barca de Pedro.

Ora, essa voz era humana, porque produzida por um corpo também humano, gerado no claustro virginal de Maria. Entretanto, era ao mesmo tempo divina, pois as palavras foram pronunciadas pela Segunda Pessoa da Santíssima Trindade.

Depois da Ascensão de Jesus aos Céus, a Providência determinou que, para acalmar os ventos e os mares revoltos que arrastam e submergem no caos a Civilização Cristã, os homens obedecessem à Palavra, agora presente e viva na nau de São Pedro. Também nessa barca, a Santa Igreja, tem Nossa Senhora uma sublime missão: a de manter os fiéis unânimes e perseverantes na oração à espera do Paráclito(3).

O seguinte discurso, proferido provavelmente no início da década de 1940 e publicado por ocasião do mês de Maria(4), atesta uma vez mais a inabalável confiança de Dr. Plinio no poder da Mãe de Deus, sob cuja proteção a Santa Igreja encontrará sempre a solução perfeita para todas as crises.

Graças a Deus, cria raízes cada vez mais profundas entre os católicos brasileiros a convicção de que os destinos da humanidade contemporânea estão indissoluvelmente ligados à Igreja, de tal sorte que o único modo eficiente de trabalhar para a solução da crise tremenda em que nosso século se debate é trabalhar pela expansão da Doutrina Católica.

A História registra o caso de nações que conseguiram firmar seus alicerces sobre outras bases que não a Igreja, e que conheceram um relativo equilíbrio. Mas, enquanto esse equilíbrio falso se transformou no Oriente em estagnação letal, no Ocidente mostrou-se tão precário que provocou as revoluções sociais, a corrupção moral e, por fim, o desabamento da civilização greco-romana, humilhada nos seus últimos estertores pela vitória brutal das hordas dos bárbaros invasores.

Quanto à civilização ocidental, nascida da Igreja, criada sob o influxo dela, e constituída para a realização de um ideal de perfeição e de progresso que só a Igreja soube apontar ao homem, não lhe é possível encontrar fora da Igreja nem sequer o equilíbrio precário das civilizações que a antecederam.

A civilização europeia e católica foi inspirada no Cristo, e sua aurora na Idade Média refulgia com algo daquela insuperável majestade e daquela indescritível doçura com que o Cristo deslumbrou seus Apóstolos no alto do Tabor.

No recesso de sua prodigiosa fecundidade, continha ela os germes de um arcabouço moral e material superior, em grandeza e magnificência, às concepções mais ousadas dos filósofos gregos, dos estadistas romanos e dos poetas orientais. E está na inexorável ordem das coisas que, se essa civilização eleita não perseverasse na sublimidade de sua vocação, despencaria pelos abismos insondáveis e diabólicos da apostasia, cujos frutos políticos e sociais são estas duas irmãs gêmeas, paradoxalmente tão diversas e tão parecidas: a anarquia e a escravidão.

Para o mundo contemporâneo, não há outro caminho senão a ordem perfeita do Catolicismo ou o caos completo da aniquilação. Não é, pois, sem angústia que até mesmo alguns espíritos, nos quais não arde a Fé católica, indagam se a Igreja não soçobrará ao vendaval da crise moderna.

É para estas almas cegas que a invocação da ladainha lauretana “Virgo Potens” constitui tema de uma proveitosa meditação. Não é das baionetas, nem do ouro, nem de qualquer outro recurso humano que a Igreja espera o grande triunfo que salvará mais uma vez a civilização. A Igreja é divinamente indestrutível e sê-lo-á amanhã, como já o era ontem. É só de Deus, Nosso Senhor, que lhe virão no momento oportuno os milagres que asseguraram o triunfo de Constantino, o recuo de Átila e a vitória em Lepanto.

A respeito de Maria Santíssima, diz a Sagrada Liturgia: “Só tu esmagaste todas as heresias”. Mais forte do que os modernos Césares, há uma Virgem Poderosa que esmagará o mal em nossos dias; Ela que já esmagou outrora a cabeça orgulhosa da terrível serpente. Sua força, já o dissemos, não está no ouro nem nos canhões. Sua força está na sua caridade invencível, na sua humildade incomensurável, na sua pureza indizível.

Conjuguem-se, embora, contra a infalível Cátedra de São Pedro, o demônio, o mundo e a carne, a Virgem Potente triunfará. E, no momento da derrota, todo o ouro dos seus adversários ser-lhes-á inútil como se fosse lama, e seus canhões inoperantes como brinquedos.

Ao ouvir estas palavras, é possível que um sorriso desdenhoso exprima em certos lábios céticos uma desaprovação irritada. Um dia virá, porém — e quem sabe se não será amanhã — em que a Virgem Potente triunfará suscitando uma nova legião de cruzados, ou dando ao Santo Padre a vitória incruenta e gloriosa que teve outro Papa, São Leão I, quando, armado só com a Cruz de Cristo, fez recuar o terrível Rei dos Hunos.

A despeito do riso dos céticos, das injúrias dos perversos e da incredulidade dos medrosos, é a “Virgo Potens” que vencerá!

 

1) Mt 16, 18.

2) Cf. Mt 8, 26-27.

3) Cf. At 1, 14.

4) Excertos de um pronunciamento cuja data exata não consta dos nossos arquivos.

QUANDO VIRGINDADE E GRANDEZA RÉGIA SE OSCULAM

Não há louvores que não se possam fazer à virgindade.

Ela é o auge da dedicação em relação a Deus, porque o homem inteiramente casto renuncia às comodidades e aos legítimos  atrativos e aspirações da vida de família para servir um ideal superior. Um ideal que não lhe dá prêmios na terra, mas oferece recompensas no Céu. Trata-se, é claro, de um ideal católico, pois nenhum outro pode ser considerado autêntico e verdadeiro, quando desprovido do sentimento católico.

A virgindade é, então, o ápice da dedicação. É, outrossim, uma forma de grandeza. Mais ainda, é a grandeza por excelência. Consideremos um rei santo. São Luís IX era um soberano puríssimo que tinha, entre outras missões, a de perpetuar a dinastia da França. Casou-se, teve filhos, e guardou plenamente a fidelidade conjugal. É maravilhoso.

Contudo, quando ouvimos falar do Infante Dom Sebastião de Portugal — o rei casto, puro, virginal, imolado numa batalha contra os mouros nos vastos campos de Alcácer-Quibir — sentimos exalar-se um conjunto de idéias e grandezas, que adquire seu maior fulgor no fato de Dom Sebastião ser virginalmente casto.

Resplandece nele aquela auréola da castidade perfeita, não a respeitável castidade do matrimônio, mas a da inteira abstenção de qualquer contato carnal. Um varão régio e virginal, numa couraça lisa e rutilante, brilhando sob o sol da África, com uma lança na mão e uma coroa de Rei Fidelíssimo na fronte.

O trono da França era mais elevado que o de Portugal. São Luís foi um santo autêntico, canonizado pela Igreja. Esta não canonizou o Rei Dom Sebastião, e talvez houvesse certa temeridade em suas ousadias guerreiras, razão para não inscrevê-lo no rol dos Santos.

Não obstante, sua figura é cercada de uma auréola, de uma poesia, de um perfume típico de grandeza que nem o grande São Luís, nem o grande São Fernando de Castela tiveram. Nem o próprio Carlos Magno possuiu. É a aliança entre a majestade régia e a castidade perfeita, entre a virgindade e a coroa.

Anjos proféticos

Há certamente um Anjo da Guarda específico para cada vocação. Assim como houve espíritos angélicos agindo na criação do canto gregoriano, devem existir Anjos que estimulam dotes naturais em quem possui uma vocação profética.

Muitas vezes a linguagem da Escritura, da Igreja, da Liturgia se dirige a Deus pedindo a Ele alguma coisa diretamente. Outras vezes nós rogamos a Deus, mas considerado Nosso Senhor Jesus Cristo, quer dizer, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade encarnada. Às vezes nós pedimos por meio dos Santos, dos Anjos e principalmente de Nossa Senhora.

Cadeia de intermediações até Deus

Esses pedidos são feitos tomando em consideração que Deus age, em um imenso número de casos – se não sempre – por intermediários.

Quando analisamos mais detidamente, vemos que esses intercessores estão colocados, eles mesmos, numa linha de intermediação. De maneira que, por exemplo, nós rezamos para os Anjos da Guarda, mas estes, de fato, atuam sob a direção de outros Anjos mais altos.

A cadeia de intermediações até Deus é tão intensa que não podemos escolher de modo totalmente lógico este ou aquele intercessor, porque o número é grande demais para termos tudo isso em vista. Então nós agimos de acordo com certas apetências internas da alma que eu creio serem, na maior parte dos casos, moções da graça. Assim, por exemplo, dirigimo-nos ao nosso padroeiro, ou a um Santo que praticou especialmente uma virtude que nos é penoso exercer, ou, pelo contrário, um Santo que teve particular facilidade em praticar certa virtude; nós admiramos isso e pedimos a ele, ou recorremos ao nosso Anjo da Guarda, ou ainda a alguma pessoa falecida de nossa família, em cuja virtude confiamos.

É um tal quadro que, apenas por essas moções interiores, a pessoa pode de fato escolher um procedimento próximo daquilo que Deus quer.

Não se trata aqui de não fazer a vontade do Criador. Porque se Ele quer que nós tateemos na penumbra; procedendo assim estaremos fazendo sua divina vontade. Portanto, o problema de quem tateia na penumbra não é saber como tatear, de cada vez, como Deus deseja, mas é, sobretudo, este: “Uma vez que a Providência quer que eu tateie, resigno-me em tatear. Embora eu possa não tatear direito, estarei fazendo o que Deus quer até quando eu erre, porque Ele me pôs na penumbra”.

Por isso, devemos agir com o espírito livre e confiante, segundo a propulsão que tenhamos internamente, pedindo ora uma coisa, ora outra, desde que tudo esteja na direção de fazer a vontade d’Ele, que é condição de todo bem.

Ter a maior liberdade possível dentro da linha dos Mandamentos

Assim, quando um religioso roga algo por meio de seu Superior, ou do Anjo da Guarda, ou de Nossa Senhora, sou propenso a acreditar que se move toda uma engrenagem sobrenatural, se é que se pode usar uma palavra tão vulgar como “engrenagem”, para designar uma realidade tão magnífica como é a interligação de todos os servidores de Deus, até chegar aos pés do trono d’Ele.

Eu compreenderia uma oração assim: “Ó vós que eu não conheço, no Céu, mas por meio de quem Deus quer ser especialmente servido nesta ocasião, eu vos peço que…” Seja Anjo, seja Santo canonizado, seja uma alma santa que está no Paraíso.

Ou então, se Deus quiser a especial intercessão de uma pessoa que eu não conheço, posso pedir ao meu Anjo da Guarda que, por meio do Anjo da Guarda dela, leve-a a rezar por mim. Com toda a abertura, com todo o espírito filial devo caminhar assim.

Sou muito propenso, em matéria de vida espiritual, a que se tenha a maior liberdade possível dentro da linha dos Mandamentos, naturalmente. Quer dizer, naquilo que não contrarie a Deus, muita abertura.

Santa Teresinha do Menino Jesus usava esta expressão: “Dis au juste que tout est bien!” – “Diga ao justo que tudo está bem!” Ou seja, se está seguindo a boa regra, viva sossegado, não se atrapalhe nem se incomode.

Eu seria propenso a achar que Deus habitualmente – e talvez sempre – não age diretamente. E quando rezamos diretamente ao Criador, a nossa oração deve passar pelos caminhos das intermediações para chegar até Ele. Então pedimos a Deus porque sabemos ser o Doador de todos os bens, mas o correto seria nós supormos que todas as graças passam por um número incontável de intermediários, que nem sabemos bem como e quem são.

Cada vocação tem seu Anjo da Guarda, e às vezes é um Serafim

Para termos uma ideia, consideremos o seguinte: cada um de nós, para chegar até Adão, quantos antepassados tem? São incontáveis!

Porém, se não conhecemos a lista dos nossos antepassados até Adão, os nossos ancestrais que estejam no Céu, muito provavelmente, têm conhecimento de todos os seus descendentes. Quantos dos nossos antepassados estarão no Céu? Quantos se encontrarão no Purgatório? Quantos não estarão nem no Céu nem no Purgatório…? Não podemos saber. Entretanto, os que se salvaram não rezam de modo especial por todos os seus descendentes? Eu acho que sim.

Ora, na linha dessa descendência, alguns têm mais realce e outros menos nos planos divinos. Naturalmente, os ancestrais amarão mais aqueles com maior importância nos desígnios de Deus e, portanto, rezarão especialmente por esses.

Não seria uma coisa muito razoável fazer uma oração especial para pedir aos nossos antepassados que rezem por nós? A mim me parece muitíssimo razoável, assim como rezar para que saiam do Purgatório os que lá estiverem, à maneira de um dever anexo à obrigação de honrar pai e mãe.

E o que dizer do recurso aos Anjos?

Todos nós temos nossos Anjos da Guarda. Há certamente um Anjo da Guarda específico para cada vocação. Não me espanta que sejam espíritos da categoria de um Arcanjo e até de um Serafim, conforme as condições especiais de cada vocação. Pois bem, não seria razoável rezarmos ao Serafim que, aos pés de Nossa Senhora, está mais especialmente rogando por nós, e pedir que ele e toda a coorte dos espíritos angélicos dependentes dele rezem continuamente por nós para realizarmos a nossa vocação? A meu ver, nesse abandono em que nos encontramos, se não recorrermos aos espíritos celestes, privamos a nossa luta de elementos de defesa incomparáveis.

O cantochão e o polifônico

Que relação isso tem com o profetismo? No espírito dos que possuem uma missão profética, até que ponto os Anjos inspiram aquilo que eles devem pensar? Qual é o papel do Anjo e qual o do Profeta na execução de uma determinada missão terrena?

Tomem o cantochão. Não houve um “Cristóvão Colombo” do cantochão, que tenha descoberto essa “América” do mundo sonoro… Existiram, sem dúvida, grandes compositores, muitos deles anônimos. Embora provavelmente em sua grande maioria eles não tenham sido canonizados, o surto do cantochão corresponde a um movimento de santidade dentro da Igreja.

Apesar de não se confundir com a santidade, esse movimento constitui uma certa forma de virtude, que pode estar no conjunto das virtudes de um santo e fazer um bem enorme. O bem que o cantochão tem feito, não há palavras para exprimi-lo! Mas, por um desígnio qualquer da Providência, talvez os maiores homens desse estilo de música tenham ficado no anonimato.

Então, alguém dirá: “Tal Santo não sabia cantochão, enquanto tal outro era ‘o rei do cantochão’. Algum dos dois não foi santo?”

Não. São formas de virtudes especiais. Como, por exemplo, um é grande filósofo, outro um excelente artista, etc. São dons naturais que Deus fez iluminar pela graça. Nesses casos, a santidade consistia também em fazer valer aquele dom, natural e sobrenatural, recebido de Deus. Se não fizessem valer isso, não seriam santos. Mas não quer dizer que todos os santos deveriam ter tido esse dom.

Parece que no surto que levou ao canto gregoriano entrou uma ação angélica. Porque há nisso uma forma qualquer de beleza superior à cogitação humana.

Essa ação angélica se fez sentir enquanto Anjos atuando sobre homens provavelmente com talentos afins. E da conjugação do talento afim com a ação do Anjo saiu uma beleza que o talento, só por si, nunca daria. De maneira que ao ouvirmos certas músicas do cantochão – a meu ver, também do polifônico – dizemos: “Não é possível; isto um homem não compôs!” Entrou ação angélica.

Então, assim como podemos imaginar Anjos das melodias celestes e terrenas, não poderíamos conjeturar Anjos que agem estimulando dotes naturais, reflexões em quem tem uma vocação profética? Anjos, eles mesmos, tendo por natureza e por graça muita coisa de profético, e que seriam Anjos proféticos, patronos daqueles que devem exercer uma missão profética? Compraz-me muito essa hipótese.

Plinio Corrêa de Oliveira, (Extraído de conferência de 4/10/1986)

 

A rainha dor e a irmã alegria

Nas décadas de 20 e 30, eu percebia que havia duas linhas na Moral. Uma afirmava, no fundo, o seguinte: todo sofrimento é um mal, e tudo que se faz para eliminar a dor é um bem. Portanto, a virtude é uma batalha contínua contra toda espécie de sofrimentos.

Outra linha dizia: toda regra posta por Deus é um bem, e tudo quanto é violação dessa regra é um mal. A virtude é a observância da Lei de Deus custe o que custar, tanto no impulso e na alegria da alma, como na dificuldade, na luta, na batalha. O que é mais belo: o homem virtuoso que, tomado por uma espécie de ventania onde sopra o que há de mais nobre nele, voa sem obstáculos interiores para a prática da virtude; ou o homem que, pelo contrário, sentindo as hienas e as cobras da oposição à Lei de Deus, freia, pisa e diz: “Eu cumprirei a lei divina!”? Ambas as coisas têm o apoio da Igreja.

Mas não é aprovado pela Moral católica o pensamento de que todo bem consiste em evitar o sofrimento.

Há ocasiões jubilosas da vida. Ocasiões em que a alma inteira voa para a virtude. Há ocasiões difíceis, em que o homem inteiro parece fugir da virtude e tem que se segurar a si mesmo pelo pescoço e dizer: “É assim! Custe o que custar e não tem conversa. Tem que ser assim!” E há uma conjugação harmoniosa de ambas as coisas, segundo os desígnios de Deus para cada alma. Às vezes, Deus envia o sofrimento do modo mais inesperado possível.

Quando, nas ocasiões mais inesperadas, a dor bate à nossa porta, como devemos fazer? Ir solícitos de encontro a ela! Recebê-la como uma rainha, abrir largas as portas para ela e colocá-la num trono. Para quem tem Fé, ela não se chama “dor”, mas sim a “Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo”.

Em sentido oposto, se a alegria irrompe, também devemos abrir-lhe as portas. Mas se recebemos a dor como rainha, a alegria deve ser recebida como uma irmã: de maneira amável, agradável, prazenteira, dando graças a Nossa Senhora por receber a visita dessa irmã.

Recebe-se a dor com coragem, e a alegria com este receio: Qual será minha atitude quando esta minha irmã me disser “adeus!”, desaparecer, e eu perceber, de repente, que houve uma mudança, e a dor está no lugar dela?

A dor é ciumenta. Ela quer que eu pense nela até no momento de receber a visita da alegria.

Não sei se a linguagem está muito metafórica, mas é assim: na hora da alegria eu tenho que me preparar para não fechar a porta para a dor. Na hora da dor eu não preciso me preparar para não fechar a porta para a alegria. A alegria eu sempre receberei bem. Eu não tenho que me preocupar. A questão é receber a dor .

(Extraído de conferência de 26/2/1983)

A “Carta circular aos Amigos da Cruz” – VII Amoroso apelo de Jesus

Na seqüência de seus comentários ao opúsculo de São Luís Grignion de Montfort, Dr. Plinio nos coloca diante desta imperiosa questão: temos retribuído como devemos — isto é, pelo nosso empenho em perseverar na virtude — aos sofrimentos que o Divino Redentor e sua Mãe Santíssima padeceram por nós no caminho do Calvário?

 

Na exposição anterior sobre a “Carta circular aos Amigos da Cruz” consideramos o pensamento de São Luís Grignion acerca dos dois partidos que se enfrentam na história humana: o de Jesus, constituído pelos que se despojam das coisas terrenas para segui-Lo com sua Cruz,  e o do mundo, composto pelos homens que se deixam levar pelas vãs ilusões mundanas.

Pungentes palavras de Nosso Senhor a seus seguidores

Na seqüência, o santo autor assim escreve:

Lembrai-vos, meus caros confrades, que nosso Bom Jesus vos olha neste instante e diz a cada um de vós em particular: “Eis que quase todos me abandonaram no caminho real da Cruz. Os idólatras cegos zombam de minha Cruz como de uma loucura; os judeus obstinados se escandalizam com ela, como se fosse objeto de horror (1Cor 1, 23); os hereges quebram-na e a derrubam como coisa digna de desprezo. Mas, e isto só posso dizer com lágrimas nos olhos e com o coração transpassado de dor, os filhos que criei em meu seio e que instruí em minha escola, os meus membros que animei com meu espírito abandonaram-me e desprezaram, tornando-se inimigos de minha Cruz (Is 1, 2)! “Numquid et vos vultis abire” (Jo 6, 67)?

“Quereis vós também abandonar-me, fugindo de minha Cruz, como os mundanos, que nisto são outros tantos Anticristos: antichristi multi?” (1 Jo 2, 18) Quereis, enfim, conformar-vos ao século presente, desprezar a pobreza de minha Cruz para correr após as riquezas? Evitar a dor de minha Cruz para procurar os prazeres? Odiar as humilhações de minha Cruz para ambicionar as honras? Tenho, na aparência, muitos amigos que me fazem protestos de amor, mas no fundo me odeiam, pois não amam a minha Cruz; muitos amigos de minha mesa, e pouquíssimos de minha Cruz.”

A este apelo amoroso de Jesus elevemo-nos acima de nós mesmos; não nos deixemos seduzir pelos nossos sentidos, como Eva; não olhemos senão o autor e consumador de nossa fé, Jesus crucificado. Fujamos da concupiscência do mundo corrompido; amemos Jesus Cristo da melhor maneira, isto é, através de toda sorte de cruzes. Meditemos bem estas admiráveis palavras de nosso amável Mestre, que encerram toda a perfeição da vida cristã: “Si quis vult venire post me, abneget semetipsum et tollat crucem suam, et sequatur me!” [Se alguém quiser vir após Mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me] (Mt 16, 24).

Sendo fiéis, podemos diminuir as dores de Jesus na Paixão

O que vimos até aqui é, portanto, uma espécie de prêmio do estilo de vida de renúncias que Nosso Senhor Jesus Cristo traçou para seus fiéis seguidores. E essas palavras exortam e preparam a alma a receber bem um programa tão austero.

Façamos uma análise desse trecho.

Lembrai-vos, meus caros confrades, que nosso Bom Jesus vos olha  neste instante, e diz a cada um de vós em particular: “Eis que quase todos me abandonaram no caminho real da Cruz”.

Esta imagem tem um fundamento histórico, ou seja, Jesus Cristo, do alto do Céu, vê todas as almas e lamenta que tantas delas O tenham abandonado no caminho da Cruz. Além disso, possui um sentido mais profundo, que sempre devemos tomar em consideração, referente às disposições de Nosso Senhor durante a Paixão.

Sabemos que Ele sofreu na previsão do mal que faríamos. E, portanto, de um modo misterioso, mas muito real, podemos diminuir as dores d’Ele na Paixão, de acordo com o bom procedimento que tenhamos. Nosso Senhor, em vários momentos de sua Paixão, se não em todos, teve-nos em vista, considerando as alternativas de nossas almas em seguir o caminho da Cruz, em aceitar ou não os sofrimentos.

Ser-nos-ia possível fazer essa meditação tomando cada passo da Via Sacra. Por exemplo, quando o Redentor caiu três vezes sob o peso da Cruz, poderia ter pensado: “Plinio Corrêa de Oliveira aguentará as cruzes sob as quais deverá cair? Ó Pai Eterno, eu Vos peço por ele, para que tenha força e ânimo, a fim de carregá-las”. Nossa Senhora, acompanhando seu Divino Filho, teve presente Plinio Corrêa de Oliveira e cada um dos que estão aqui, na previdência que ambos tinham dos acontecimentos vindouros, e se perguntavam o que faríamos das cruzes com as quais nos visitariam: se bem as receberíamos ou se as abandonaríamos; que proveito tiraríamos da imensa quantidade de sangue derramado, de seus gemidos, prantos, dores e tudo o mais que estavam sofrendo.

Não é, portanto, despropositado fazermos esse raciocínio, cheio de compunção. Para compreendermos tudo quanto esse pensamento tem de pungente, devemos imaginar um pai que fez tudo por seu filho e, ao chegar o momento de receber uma retribuição, pergunta-se: como meu filho vai me recompensar? Corresponderá ao bem que lhe fiz? Ou, pelo contrário, pagar-me-á com uma injúria, uma blasfêmia, um abandono? Ou, então, com uma dessas friezas que naturalmente enregela a alma de um pai?  Essas são algumas considerações — todas elas válidas, e haveria outras — a fazer a propósito desse trecho de São Luís Grignion de Montfort.

A necessidade da graça para compreender essas verdades

A partir da fé essas perguntas são muito coerentes e lógicas. Cumpre dizer, entretanto, que quando temos cogitações como essas, sentimos a necessidade da graça. Porque sabemos que tudo isso é muito razoável, porém muitas vezes nada disso nos fala sensivelmente à alma. Se recebermos uma graça, podemos nos transformar ao calor de raciocínios assim, baseados na fé. Compreendemos, desse modo, como a graça divina é indispensável para avançarmos na vida espiritual.

Alguém poderia indagar: “Por que, então, o senhor perde tempo com esses comentários, se acha que sem a graça não é possível aproveitar isso?”

São feitos na esperança de que Nossa Senhora, em certo momento, faça-os frutificar, concedendo graças que me ajudem, e a cada um dos meus ouvintes, a corresponder a essas verdades. Deve-se agir assim: repetir, repetir, até o momento em que Ela tenha pena de nós e nos obtenha uma grande graça para mover nossas almas. O valor disso, portanto, é exatamente o da repetição, à maneira de um mendigo que, do lado de fora da porta, bate, bate, bate até ela lhe ser aberta. Ou daquele homem importuno, elogiado por Nosso Senhor no Evangelho: para conseguir pão, bateu tanto à porta da casa de seu vizinho que este pensou: “Ainda que seja só nesta ocasião, para acabar com o incômodo, vou abrir e dar-lhe o que pede”. Assim também devemos fazer.

A Cruz: razão mais profunda pela qual se abandona Nosso Senhor

É interessante notar que, por esse trecho, percebe-se ter tido São Luís Grignion uma concepção do agir humano inteiramente de acordo com os princípios que procuramos traçar em nosso livro “Revolução e Contra-Revolução”. Ou seja, para ele, assim como pensamos nós, a razão mais profunda pela qual as pessoas abandonam Nosso Senhor é a Cruz. O Redentor quer que os homens carreguem a Cruz, e muitos não a aceitam. Donde poderem ser classificados de acordo com a atitude que tomam em função do sofrimento. Então diz ele:

Os idólatras cegos zombam de minha Cruz como de uma loucura.

Os idólatras, isto é, os que vivem para os prazeres, vêem a cruz e a consideram uma loucura. O gênero de vida levado pelos católicos coerentes com sua religião é tido como uma demência pelos mundanos.

Os judeus obstinados se escandalizam com ela, como se fosse objeto de horror. Os hereges quebram-na e a derrubam como coisa digna de desprezo.

Ele se refere aos protestantes que, em sua época, estavam ainda, sob certo ponto de vista, no auge de suas iniciativas, e quebravam as cruzes ao longo dos caminhos da Europa inteira. Diziam que venerar a cruz é uma forma de idolatria.

Mas, e isto só posso dizer com lágrimas nos olhos e com o coração transpassado de dor, os filhos que criei em meu seio e que instruí em minha escola, os meus membros, que animei com meu espírito, abandonaram-me e desprezaram, tornando-se inimigos de minha Cruz!

Por “membros” entende-se aqui os integrantes do Corpo Místico de Cristo, ou seja, da Igreja. Muitos abandonaram e desprezaram a Cruz, e não quiseram seguir Nosso Senhor. Vemos, assim, como muitas apostasias que presenciamos ocorrem em função da Cruz. Quer dizer, muitos homens não querem o sofrimento, por isso abandonam o Divino Salvador. Se Ele somente oferecesse vantagens terrenas, muitos O seguiriam.

 

(Continua em próximo artigo. Extraído de conferência em 8/7/1967)

 

Ápice da cultura

Não raras vezes nos deparamos com tentativas de definir o significado da palavra “cultura”, sem que se tenha a elevação de pensamento religioso para entender tratar-se ela do conhecimento global que o homem deve adquirir sobre o universo. Conhecimento este, acompanhado de uma sensibilidade a respeito das coisas da criação que não se verifica igual para todos. Antes, comporta certa acomodação, determinados matizes, dependendo do indivíduo, da família, da região, do país, constituindo uma visão própria, característica — embora sempre objetiva — do que são os elementos componentes do universo e da maneira como refletem a Deus.

A verdadeira cultura seria, portanto, esse conjunto de conhecimentos, mentalidades e sensibilidades incidindo sobre a realidade criada, sob o influxo de uma postura fundamentalmente religiosa. Destarte, a ordem temporal não pode ser dada como bem considerada a não ser à luz das reflexões católicas, assim como a religião católica e a ordem espiritual não serão bem empregadas se não auxiliarem o homem a formar uma noção civilizada do universo.

Portanto, embora se admita que essa cultura e as noções da beleza da criação que ela traz consigo possam ser analisadas sob o ponto de vista natural, com base em regras da estética, etc., acima disso há algo que nos toca mais intensamente, e que constitui, a meu ver, uma das razões mais profundas da fé do católico. Quero falar dessa experiência como que mística, não da mística dos santos e determinadas almas favorecidas por visões e êxtases, mas dessas sensações do sobrenatural, essas sugestões da graça que completam em nosso espírito aquele mencionado conhecimento.

Neste sentido, é dado a qualquer católico possuir um acabamento cultural, isto é, uma vasta compreensão do universo, pela qual percebe a presença da graça em inúmeras coisas, às vezes não diretamente ligadas à religião, nas quais entretanto lateja a raiz religiosa. E sentindo a raiz religiosa, a pessoa, com a “fé do carvoeiro”, brada: “eu creio!”

Um exemplo colhido em minhas lembranças. Numa das ocasiões em que visitei o Castelo de Chambord, na França, deixei-me ficar ali, em frente ao palácio, não sei por quanto tempo…

Na verdade, podia sobrevir a noite, e eu a passaria na contemplação de Chambord. Atraído, não pelos aspectos majestosos da construção renascentista, mas pelos imponderáveis ali presentes da França de Clóvis, de Saint-Remy, de Santa Clotilde, enfim, de todas as Franças gloriosas e heroicas, que marcaram a história do mundo. É a raiz religiosa percebida em inúmeros monumentos como o Castelo de Chambord, e que nos proporciona essa superior compreensão da criação.

Esta compreensão, creio eu, é o ápice da cultura.

Sagrada Família: três auges de perfeição

Na humilde casa de Nazaré verificava-se uma ascensão em graça e santidade, perante Deus e os homens, das três pessoas excelsas que ali moravam. Três perfeições que alcançaram o auge ao qual cada uma devia chegar. Eram três auges desiguais, que se amavam e se intercompreendiam de modo intenso, e que constituíam uma hierarquia — disposta pela Divina Providência — admiravelmente inversa: o chefe da casa no plano humano era o menor na ordem sobrenatural; e o menino, que devia obediência aos pais, era Deus.

A Sagrada Família, modelo de todas as famílias, compunha-se portanto de três perfeições altíssimas, magníficas, mas distintas, realizando uma extraordinária harmonia de desigualdades, como nunca houve nem haverá semelhante na terra.