Brasilidade…

Como muitos de meus conterrâneos, percorri parte considerável do Brasil e conheci brasileiros de todas as latitudes e longitudes. Comprazendo-me na observação de nossas características, sempre me maravilhei diante da seguinte ­realidade que pode passar por trivial e inexpressiva.

Apesar da imensa extensão geográfica deste País, das influências locais centrífugas como, por exemplo, a predominância das imigrações hispânica, alemã e outras no Sul, e não obstante a nossa tão decantada heterogeneidade racial, acaba-se revelando no Brasil uma força centrípeta, discreta, doce, incessantemente ativa e invencível, que é a de aglutinação. Força tão assombrosa que nos permite conversar com alguém do Amazonas ou do Pará, do Rio Grande do Sul ou de Santa Catarina, sem que se notem — ou quase não se percebam — diferenças.

Travemos contato com um brasileiro de olhos amendoados e nariz pouco adunco, ou com um de predominância indígena, um negro ou qualquer habitante típico de determinada região, e notaremos um denominador comum, um predicado que penetra todos os espíritos, e merece ser chamado de “brasilidade”.

Essa peculiaridade nacional é uma das nossas grandes riquezas, consoante e harmônica com os tesouros naturais, as paisagens exuberantes, o litoral de beleza insuperável, nossas obras e monumentos históricos, coloniais e outros, que atraem a admiração de pessoas do mundo inteiro.

Encanta-me igualmente reparar o fato de haver recantos da alma brasileira ainda mais ou menos intactos, ilesos, aonde aparecem em certos momentos lampejos dessa força de aglutinação sob aspecto diverso: traços psicológicos, intelectuais e morais.

É quase proverbial a rapidez de intuição e a facilidade de correlações, tão típicas da inteligência do brasileiro de todos os quadrantes. Assim como qualquer coisa de filosófico e até de metafísico, que aflora muito nas canções caipiras e outras expansões populares. Filosofia, metafísica que não têm a claridade do sol, mas a da lua: difusa, esparsa e geral. Contudo, existe!

Além disso, há no meio de toda a psicologia do brasileiro uma característica que julguei perceber nos mais variados ambientes, regiões e panoramas de nossa pátria: uma certa esperança — quase diria uma precognição — de que o Brasil ainda será um grande País. A Providência permitiu que não tivéssemos o progresso acelerado da Europa dos séculos XIX e XX, e assim estamos prestes a ingressar no século XXI com vastidões do nosso território que são, nas mãos de Deus, como folhas de pergaminho ainda em branco.

E vivendo ao lado das gigantescas montanhas, das igrejas barrocas, das praias luminosas e acariciadoras, de uma Baía da Guanabara, ou dos pampas gaúchos, o brasileiro, imbuí­do como que naturalmente da Fé cristã, possui essa elevação de alma por onde sabe que algo acontecerá um dia que o colocará à altura de suas grandezas e dos valores depositadas pela Fé no seu coração.

Tenho a convicção de que, quando chegar essa hora, pelos rogos de Maria Santíssima o Espírito Santo agirá sobre nós. E então, o mesmo fator determinante para que a antiga civilização européia se convertesse e desse origem à Idade Média, fará com que brote deste solo, não uma cristandade medieval, mas o que esta deveria ter sido se houvesse correspondido aos planos divinos. Persuadido estou de que as extensões do chamado “pulmão verde” do mundo estão reservadas para esse dia.

Hífen de ouro

Diante de tantas maravilhas criadas por Deus no universo, pode-se pensar que seria talvez incompreensível que Ele não as coroasse com uma beleza complementar e suprema.

Imaginemos um joalheiro que possua um escrínio repleto de pedras preciosas, avulsas, ainda não articuladas como jóias. Ele as toma e as espalha em cima de um lindo feltro que cobre sua mesa de trabalho, faz incidir sobre elas uma luz que realça o esplendor e o valor de cada uma, e se põe a admirá-las. O homem se encanta com aquele tesouro. Se for um joalheiro inteligente, breve lhe ocorrerá a seguinte idéia: “Como constituir um conjunto com essas pedras? Pois são tão belas que merecem ser reunidas num todo que as exceda em pulcritude. Como fazê-lo?”

De fato, se as pedras são lindas, a jóia na qual se encaixarão o será mais, posto que o conjunto das coisas ordenadas adquire beleza superior ao mero amontoamento desarticulado dessas mesmas coisas. A ordem é um degrau a mais para o esplendor, e este, propriamente dito, decorre não só da graciosidade de cada parte, mas da ordenação com que as partes estão dispostas. Esta é a beleza das belezas.

Portanto, o joalheiro inteligente não poderia deixar de pensar: “Essas pedras têm tais e tais características, tais e tais encantos; mandarei fazer com elas uma jóia”. Ele analisa suas pedras e elabora o desenho segundo o qual elas estarão melhor dispostas para formar a jóia desejada: “No centro virá aquele brilhante magnífico; e para que o broche seja mais refulgente, incrustarei de um lado rubis, depois uma camada de safiras e outra de esmeraldas…” E assim por diante, seguindo sua valiosa inspiração, ele acaba compondo o objeto precioso.

Sendo um grande joalheiro, sem hesitações nem contradições, decidido a executar o plano primeiro traçado por sua idéia, ele chama um de seus funcionários e lhe entrega aquele esboço: “Leve este desenho ao ourives e peça que me monte essa jóia, usando ouro do melhor quilate, a fim de que a beleza do metal complete o esplendor das pedras.”

Dias depois, o ourives entrega a encomenda ao joalheiro. Este abre a caixa lavorada com esmero, abre as dobras de veludo, de seda, até que seus olhos se rejubilam com o fulgor da linda jóia ali encerrada. E o ourives lhe diz: “Senhor, aqui estão as suas pedras, e aqui está a jóia que idealizou. Eis a beleza que minhas mãos lhe entregam! Minhas homenagens!”

Ora, Deus tendo criado todas essas maravilhas esparsas no universo, quais as gemas avulsas do joalheiro, haveria de lhes traçar uma ordem. Como centro dessa ordem, governando-a, resumindo-a num conjunto precioso, Ele pôs o gênero humano. E neste, foi intenção do Criador que existissem homens mais perfeitos, mais santos e mais admiráveis, e existisse o ápice, a jóia máxima: o Homem tão perfeito, tão inteligente, tão sábio e poderoso que excedesse em beleza, sabedoria, virtude e poder a todas as criaturas humanas.

Em torno desse Homem, como os rubis e safiras ao redor do brilhante, dispor-se-iam todas as perfeições do universo. Esse é o Homem-Deus, hífen de ouro ligando de modo magnífico o Céu e a Terra.

Todas as belezas do mar e do firmamento, todos os tesouros escondidos nas entranhas do solo, todos os variados encantos da fauna e da flora, todas as grandezas e maravilhas engendradas pelos homens em todos os tempos não constituem senão pré-figuras ou ecos d’Aquele que é o ápice da História: Nosso Senhor Jesus Cristo, de cujo Sangue infinitamente precioso vertido por nós em sua Paixão e Morte, nasceram todos os esplendores da Civilização Cristã. v

Hífen de ouro(Extraído de conferências em 24/3/1984 e 13/10/1989)

Florença e a perfeição das formas – II

Cidade com edifícios de proporções perfeitas, Florença, como todas as antigas urbes, viu transformarem-se em museu seus palácios e outras bonitas residências. Isso se deve ao fato de que seus habitantes, em determinado momento, quiseram romper com Aquele que disse de Si mesmo: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14, 6).

 

Por certo, nesse casario há residências onde as escadas devem ter alguns degraus podres, as donas de casa brigam umas com as outras, de andar para andar, ameaçando-se com aquele rolo para fazer macarrão, e se vê um velho subir até o quarto andar, no qual ele foi morar por ser mais barato, mas tem medo por causa do coração… À noite ele sentiu umas dores no peito e não sabe se é bronquite ou começo de enfarte; então saiu muito preocupado e agora sobe devagarzinho, levando sua bengalinha e o jornal do dia debaixo do braço, e fumando o último cigarrinho que ele aspira até o fim, porque não pode comprar muitos; e vai curtir sua pobreza e seu isolamento junto a um gato no quarto que ele ocupa.

O povinho que a Revolução massacrou

Entrevê-se um formigamento de gente nesse casario. De gente vivaz, que fala, comenta, canta, trabalha, que quando dorme ronca; enfim, gente estuante de vida e, exceto o meu velho do gato, o resto todo com muita saúde. E esse velho, a doença dele é só velhice. Mas essa é inevitável…

Esse formigamento de vida não há em um arranha-céu moderno, nem nas pobres “vilas-Moscou” das periferias de certas cidades. Ora, é este o povinho que a Revolução massacrou, proclamando a soberania popular. Em Florença, e em outros lugares, algo disso ainda vive.

Notem, agora, aquela outra ponte que não tem construções colaterais e cujo traçado pode ser melhor apreciado. Vejam a beleza da ponte e também da iluminação pública. Que lampadários bonitos, delicados! Comparem com a iluminação que encontramos, por exemplo, em determinadas avenidas de São Paulo: as luminárias parecem esqueletos de não sei que animal pré-diluviano, que tinha um pescoço compridíssimo encimado por uma cabecinha inútil. Nesta ponte, ao contrário, tudo é proporcionado.

A propósito da arquitetura desta ponte, vem-me à memória a seguinte comparação. A Ponte Alexandre III, de Paris, é muito bonita, construída no século XIX, porém ultra enfeitada.

Esta aqui não tem um enfeite. A beleza está na linha dos arcos, mais nada. É o que se chamaria, na linguagem de hoje, um estilo despojado. Isso faz lembrar, em relação aos enfeites, um caso que se contava na Grécia.

Realizou-se um concurso de arte — creio que de pintura, não me lembro bem —, no qual concorriam artistas de vários lugares. Um deles, persa, representou uma mulher com um traje riquíssimo que visava realçar a beleza de sua obra. Outro pintor, um grego, figurou uma grega com uma simples túnica branca.

O júri deu a primazia à pintura grega.

O persa protestou, argumentando que a sua estava muito melhor vestida. Os gregos responderam: “Tu a fizeste rica porque não soubeste fazê-la bela”.

Uma construção estética reputada perfeita

Vemos em outra fotografia a Catedral de Florença, toda feita de mármore branco e preto. A mesma coisa que nós encontramos nas fachadas laterais da Catedral de Orvieto, onde há mais mosaicos. Notem o choque: Florença, muito mais importante e mais rica do que Orvieto, nem tem comparação, ousa fazer para si uma catedral que não possui um mosaico na frente. Mas a superioridade de Florença, segundo o meu modo de entender, está exatamente em que cores bonitas, mosaicos, etc., são enfeites fáceis, para imaginações débeis. Na Catedral de Florença existe uma proporção perfeita entre a torre, o corpo da igreja e a abóboda com aquela torrezinha em cima. E depois o tamanho das naves laterais. E isso está tão bem calculado, como as rosáceas nas portas, as colunatas, a rosácea grande, que é uma construção estética reputada perfeita. Então, a reflexão, o equilíbrio, a profundidade, zombam do ornato, do charme, da graça, e Florença tem uma beleza autêntica a qual resiste à metralhagem dos olhares analíticos que querem encontrar um defeito.

A Catedral parece dizer: “Eis-me aqui, despojada e sem maquiagem; eu sou eu, veja como sou linda!”

Não sou um especialista em matéria de arte. Não afirmo, portanto, como quem se acha entendido, o seguinte. Mesmo porque o valor do argumento da autoridade de incontáveis críticos, que têm achado isto perfeito, pesa mais do que o meu. Mas, em minha opinião, essa cúpula se fecha muito belamente em cima, tem uma proporção bonita com a barra branca sobre a qual ela se pousa, porém ela é muito pesadona para o conjunto do edifício. Ao menos eu a sinto assim.

Vemos na torre da Catedral, por exemplo, alguns vestígios do gótico nos vários andares, mas muito poucos. É muito bonito como os andares vão se afinando discretamente para cima. O branco está utilizado aqui magnificamente. Os vários espaços e dimensões, os ornatos dos diversos elementos, tudo está perfeitamente bem posto, e é muito bonito, não tem dúvida.

Mania do despojado

No interior da Catedral o despojamento vai bem mais longe. Não se pode negar que as dimensões, a altura das colunas são muito bonitas, que os arcos estão muito bem colocados, e que tudo quanto a Catedral apresenta é muito belo. Mas se tomamos, por exemplo, o altar do fundo, vemos como ele é pequeno em comparação com o tamanho da igreja, e como fica um espaço em cima, provavelmente destinado ao arejamento e à entrada de luz, mas que não traz nenhuma ideia piedosa. São meras janelas.

Se fosse uma arquitetura elaborada segundo outra escola artística, essas colunas teriam, em cada ângulo, um nicho com a imagem de um Santo portando seu instrumento de martírio. Ali não: tem-se a impressão de que uma tropa de ladrões entrou e roubou os ornatos da igreja.

Minha posição pessoal diante do monumento: respeito, admiração, vejo inegavelmente grandes valores artísticos, mas minha afinidade não vai para isso. A mania do despojado parece-me conter uma censura a Deus que não fez um universo despojado. É bonito que apareça, de vez em quando, alguma coisa despojada. Com isso eu concordo. Mas que haja a mania do despojado, com isso eu não posso concordar. E é como se apresenta a arte florentina.

Os entusiastas do despojamento dirão: “Mas Dr. Plinio, assim aparece melhor a linha lógica”. Eu respondo: “Está bem, mas nem tudo que aparece melhor é bem feito”. Isso é para pessoas incapazes de perceber a linha dentro da pluralidade dos ornatos. Não julgo que eu esteja afligido por esse mal. Em uma obra de arte com uma muito bela linha e lindos ornatos, estes não estragam a linha.

Residência de uma antiga família transformada em hotel

Ainda em Florença, mas nos arrabaldes da cidade, há um hotel excelente. Ao que tudo indica trata-se da residência de uma antiga família de banqueiros — Florença foi um centro bancário muito grande — ou de nobres que viviam fora da cidade na opulência, e cuja propriedade foi transformada em hotel.

A mim, que impressão dá? Como se trata de uma casa de uma família — seja de nobres ou de banqueiros — portadora de certa tradição, esta eleva e dignifica a vida de família, porque dá a ela uma nota de eternidade. A família percebe melhor as obrigações que lhe impõe um grande passado ao qual se sente ligada. Os mortos parecem ornatos dos vivos. E por outro lado, os que estão para nascer parecem a luz que entra para a família, a qual vive há séculos e pretende viver séculos ainda, na beleza de uma grande continuidade familiar.

Vemos ali uma casa grande construída para se levar uma vida de família, não como se entende hoje, dentro de um apartamento, mas com quartos de dormir grandes, salões espaçosos; uma residência feita para que se passe muito tempo nela, com conforto, tempo para pensar, ler, conversarem uns com os outros, para formarem grupos de dois ou três e irem passear pelo jardim que, aliás, é magnífico.

Podemos imaginar a magnificência de uma recepção dada numa propriedade como essa, à noite, com orquestra tocando, senhoras e senhores com trajes de gala, condecorações, desse tipo de recepções com tanta categoria que até os prelados do lugar apareciam. Então a hora da chegada do grão-duque, do cardeal-arcebispo, de tal autoridade militar, de tal grande artista que vai cantar, outro que vai acompanhar ao piano… Tudo isso em meio à conversa que rumoreja, enquanto incessantemente garçons fazem circular grandes pratos com pequenas delícias, bandejas repletas com taças e garrafas com bebidas. Se a noite é quente, uma parte dos convidados sai e conversa também do lado de fora.

Tudo isso foi transformado em um hotel muito bem mobiliado, onde se paga para estar, e no qual um turista anônimo entra, mete-se nas cobertas durante a noite, e no dia seguinte sai.

Notem o conforto, a estabilidade, a dignidade. Não é verdade que uma família como essa pareceria estar destinada a durar séculos? Entretanto, está morta, como uma concha que se encontra na praia, na qual o respectivo caramujo morreu. Por que morreu? Porque essa gente toda foi rompendo com Aquele que disse de Si mesmo: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14, 6).

Paganizou-se, estancou.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/11/1988)

 

Guerra de tendências

A vida de Dr. Plinio, analisada à luz da batalha das tendências por ele travada e transposta para a história dos povos, permitiu-lhe formar princípios dos quais deduziu uma teoria e com esta elaborou o livro “Revolução e Contra-Revolução”, que constitui, em grande parte, as memórias dele.

A primeira sensação que tive, relacionada com a Revolução tendencial, foi a da pressa. Entre a geração de mamãe e a minha havia uma intermediária, de primos. Dona Lucilia tinha, em números redondos, trinta anos a mais do que eu. Assim, entre ela e mim havia primos quinze anos mais velhos do que eu, parentes e vários amigos da família.

Choque entre dois modos de ser

Pouco depois de Dona Lucilia, começava a aparecer uma geração na qual a alegria do viver estava deslocada. Não era mais o bem-estar daquela placidez, com tempo diante de si, mas uma forma de vivacidade que consistia em andar e falar depressa, em estar continuamente alegre, satisfeito, em contar coisas tendentes ao engraçado, ao divertido, ao sensacional.

Eu presenciei, mas de forma confusa, o choque desses dois modos de ser e notei que, ou me engajava nesse modo de ser novo e mudava minha personalidade, abandonando essa placidez e tomando esse trem que ia para a frente, ou seria tido como sem graça por essa gente nova. Era toda uma orquestração tendencial que ia nascer, na qual a estabilidade fecunda, pensativa, forte, mas compassada, cedia lugar ao corre-corre em busca de prazeres, agitação e excitação.

Conferi esse modelo comigo mesmo, perguntando-me, entre outras coisas, se me adaptaria a isso. E pensava: “Eu não sou assim. Sou tranquilo, gosto das coisas plácidas e que andam passo a passo. Não quero essa alegria saltitante.”

Por exemplo, via determinada pessoa entrar em casa assobiando a última música da moda. Alguém perguntava:

— Que música é essa?

Gargalhada…

— Ah, você não sabe?! É tal música assim.

E sentava-se com uma cara radiante, quando eu não via razão para estar radiante. Aliás, não vejo nenhuma necessidade de passar a vida radiante, mas sim de modo tranquilo. É uma coisa completamente diferente. E concluía: “Não tenho embocadura para isso. Se fosse meter-me nisso, falsearia minha personalidade. Mas, pior, não se deve ser assim. Deve-se ser como quem? Como mamãe. Ali está certo, está direito, está bom…”

Estabelecia-se entre mim e os adeptos da nova mentalidade um diálogo de surdos que terminava amavelmente porque todo mundo era amável, mas com um pensamento assim na cabeça deles: “Esse menino não tem jeito… É um desmancha prazeres mesmo!” E eu com outra reflexão: “Essa gente não tem jeito. Não se pode viver perto deles. Eu vou destoar mesmo.”

Mecanização geral da vida

Essa impressão acentuou-se à medida que a influência do pós-guerra, carregada de vida mecânica, se intensificou. Em São Paulo, os carros puxados a cavalo foram ficando mais raros, enquanto os automóveis e bondes mais numerosos. A mecanização geral da vida foi entrando e dando um ritmo mais apressado a todas as coisas.

Fiquei colocado diante da seguinte situação: eu tinha tendência à lentidão e à preguiça. Sentia a preguiça como uma espécie de peso em cima de mim, que me tornava todos os movimentos lentos, lerdos, pesados, desagradáveis, e me fazia encontrar gosto na inação. Isso devia ser vencido por uma vida ativa. Ora, vida ativa só era possível no ritmo daquela que todo mundo levava, porque era necessário tomar o bonde, ir para o colégio, voltar correndo, ir ao dentista, depois passar por casa para fazer não sei o quê, e isso precisava ser feito dentro daquela velocidade, não tem remédio, do contrário “perdia o bonde”.

Donde uma espécie de reajuste interno tendencial para combater a preguiça, nunca permitindo deixar para mais tarde o que eu pudesse fazer logo. E começando sempre, se  pudesse optar, pelo mais desagradável. Porque para o mais agradável se tem ânimo; o difícil é fazer logo o mais desagradável, de maneira a nunca me permitir, nesse ponto, moleza nenhuma, mas dentro do corre-corre dos pés conservar a tranquilidade do modo de ser e da alma, de molde a dar, com a estabilidade antiga, uma force de frappe1 nova, juntando as duas reações.

Contraste entre a posição tendencial da pureza e da impureza

Ligada a isso, outra coisa tornou-se clara para mim: o contraste entre a posição tendencial da pureza e da impureza. A castidade tem isto de próprio: quem a vive verdadeiramente é comedido e encontra sabor em tudo, até nas menores coisas. Ela se contenta com pouco e se alegra muito com coisas pequenas; não precisa viver correndo atrás de delícias. Um pequeno prazer, um pequeno atrativo já a regozija inteira. Quando lhe acontece de receber uma delícia, o homem puro se alegra também e, cessada a delícia, ele não entra na depressão, mas continua a vida animado pela alegria que teve.

No homem impuro é tudo ao contrário. As alegrias pequenas não lhe satisfazem, parecem bagatelas. As coisas que se repetem lhe parecem enfadonhas. Ele só quer alegrias enormes e, quando elas passam, cai na depressão. Antes de chegar a alegria, ele fica na torcida; depois da alegria, vem a frustração. Essa é a vida do impuro. Não preciso entrar em descrições, porque todos nós vemos o mundo encharcado disso.

Eu notava muito o contraste nesse ponto entre pessoas de minha geração, em torno de mim, sonhando com maravilhas, e o desdém que tinham pelas coisas agradáveis e pequenas que a vida oferece. Eu me regozijava, às vezes, com essas coisas, mas não comentava com eles. Por exemplo: sábado à noite, tendo todo um domingo diante de mim, eu me deitava. Era o dia em que, em minha casa, se trocava a roupa de cama. A cama dava impressão de inteiramente nova; quarto tranquilo, todo revestido com um papel de parede de que eu gostava muito, um quadro de Nossa Senhora em esmalte, uma mesinha com pequenos objetos. Eu me deitava e pensava: “Como me sinto bem e estou contente! Vou ter amanhã o dia inteiro de repouso; irei de manhã à Missa, depois voltarei para casa e vou brincar com os soldadinhos de chumbo; chegada a hora do almoço, terei um superalmoço. À tarde, vou ao cinema e depois é o desfile nas confeitarias. Por fim, janto. Como é agradável deitar-me agora na previsão desse dia!”

Mas eu via os outros de minha idade indo dormir; era completamente diferente. Não tinham vontade de que chegasse a hora de repousar, queriam ficar conversando e mexendo. Era preciso ir arrancando-os para a cama, meio brigados com a governanta. A hora de dormir era triste porque iam entrar nas sombras da noite. Para mim as sombras eram amigas. Apagada a luz, eu ainda ficava ouvindo um pouco os grilos num terreno baldio perto de casa, com um cheiro de vegetação que vinha dali. Logo passava da reflexão para o sono. Contudo eu não ousava elogiar isso diante de ninguém, pois percebia que não sentiam isso assim.

A hora de levantar também me era agradável. Mas levantar sem corre-corre; sentar na cama e rezar, tomar um pouco a noção das coisas que me rodeavam: a luz que entrava pela veneziana, os sons domésticos, os ruídos da rua, a vida que começava a pulsar em torno de mim. Depois me levantava com calma e, primeira coisa: “Bom dia, mamãe!”, depois fazia minha toilette e começava a vida.

Outros se jogavam para fora da cama. Eu pensava: “Mas o que é isso? Essa eletricidade perto de mim!” Tinha vontade de dizer: “Fora!” Mas não podia, tinha de engolir por inteiro. Se fosse algum primo que ia passar a noite comigo e conversava com exagero, eu respondia pausadamente até que ele também se domasse um pouco. Outra coisa altamente apreciável para mim, mas não para ele: tomar café com leite, pão com manteiga. Não tinha geleia, nem queijo, nem outras delícias. Era o comum. Mas um pão no qual se sentia o bom gosto do trigo, uma manteiga feita do genuíno leite, passada abundantemente sobre o pão. Um prazer simples, mas cheio de suco para uma alma equilibrada.

Uma espécie de xadrez humano

Eram tendências que se chocavam. Resultado: eles gostavam de brigar, eu detestava a briga. Discussão, sim, é agradável, pois entra o florete do argumento. A meu ver, é a mais bela forma de esgrima que o espírito humano excogitou. É lindo! Disso eu gostava. Mas, brigar…! Então um diz para o outro: “Eu te parto a cara!” Que intenção é essa? “Primeiro, com a minha não pode. A sua, não tenho o menor intuito de partir, pela simples razão de que não perco tempo com ela. A sua cara me desinteressa do modo mais total possível. Nem sequer para quebrar, ela me importa. Concebo bem que você tenha as mesmas disposições a meu respeito. Portanto, cada um com sua cara, e não quebre a do outro.”

O senso da hierarquia, muito desenvolvido em mim, vinha de todo o ambiente doméstico de que falei, marcado pela recusa à pressa. No momento em que recusei a pressa revolucionária, preservei dentro de mim o senso da hierarquia. Porque a vida com pressa é feita sem hierarquia, as pessoas não têm hierarquia de valores e, no convívio, não existe a hierarquia de pessoas. Elas se cortam a palavra umas às outras. E me causava muita estranheza exatamente a vida igualitária dos meus companheiros de colégio.

Ficam assim apresentados alguns problemas com os quais me deparei ainda em pequeno: uma escolha e uma definição temperamental e tendencial; um choque entre uma posição e outra; depois esses choques se multiplicam, porque a posição inicial se desdobra em posições afins, tanto de um lado quanto de outro, formando uma guerra de tendências.

Então, havia pessoas com as quais eu estava em guerra total, ou seja, eram completamente opostas a mim. Elas percebiam isso, como eu também, e inaugurava-se uma verdadeira batalha, disfarçada pela educação comum. Quer dizer, não se podia mostrar, mas havia luta.

Eu notava também a existência de indivíduos divididos tendo, em parte, tendências boas que afinavam comigo e, em parte, tendências más que afinavam com a Revolução. Esses constituíam uma “terra de ninguém” entre os dois extremos de tendências opostas, e que estavam na guerra total, procurando acentuar nos intermediários as tendências afins para puxá-los ao seu próprio campo, constituindo uma espécie de xadrez humano. Eram a Revolução, a Contra-Revolução e o semicontrarrevolucionário, apresentados tendencialmente e já entrevistos no tempo de pequeno. Assim, minha vida de criança e de mocinho era levada nessa batalha das tendências, mas sem uma conscientização inteira.

Montando um vocabulário como quem confecciona uma joia imensa

Que papel faz dentro disso a conscientização?

Por incrível que pareça, sentia tudo isso em pequeno, mas, foi tal a inibição causada pelo fato de ninguém aludir a tais considerações, que só vim a explicitar essas coisas mais ou menos a partir dos meus vinte e cinco anos, e devagar. Implicitamente, eu tinha torrentes disso; porém, não saberia explicitar para os outros, como não saberia fazê-lo para mim. Ademais, para saber por em termos é preciso ter toda uma linguagem. É quase outra ordem da realidade e outra paragem do espírito humano, que exige um vocabulário próprio para se chegar a explicitar.

Esse vocabulário não se procura no dicionário. Encontra-se testando: “Tal palavra serve, tal outra não serve. O que quer dizer essa, o que quer dizer aquela?” No uso do dia a dia, reter as palavras: “Essa serviu para explicar tal coisa, vou reter; aquela outra palavra vai me servir, mas em tal ocasião…” Assim ir montando o vocabulário como quem monta uma joia imensa, com milhares de pedras preciosas ou semipreciosas, para poder explicitar essas coisas. Isso não faz uma vida mole, mas uma existência sumamente entretida. No dia em que o homem pode dizer antes de dormir: “Hoje encontrei uma palavra!”, esse foi um dia positivo na vida dele.

Quando explicitei isso para mim mesmo, consegui montar as regras que instintivamente eu tinha seguido. Então, em grande parte, a obra Revolução e Contra-Revolução constitui minhas memórias. Não que eu tenha pensado naquela ordem teórica, histórica, filosófica. Esses pensamentos não afloraram em minha cabeça assim, mas constituíam um magma fecundo no qual as ideias iam se ordenando.

As batalhas internas de um povo são parecidas com as de uma alma

Em sentido figurativo, cada povo tem uma cabeça, um espírito, uma alma, à maneira de um homem: o que neste são tendências diversas, naquele são partidos políticos, correntes filosóficas ou artísticas. As batalhas internas de um povo são extraordinariamente parecidas com as de uma alma. Logo, é conhecendo as lutas internas de nossa própria alma e da dos outros que interpretamos bem os fatos históricos.

Minha vida analisada e reanalisada à luz da batalha das tendências por mim travada, e transposta para a história dos povos, permitiu-me uma remontagem da minha experiência, formando princípios, dos quais deduzi uma teoria e com esta elaborei um livro.

Neste sentido, esse livro constitui as minhas memórias, mas não só. É a minha previsão. Porque, como na luta das tendências, percebi, com a ajuda de Nossa Senhora, quais eram as regras do jogo, daqui por diante sei como esse jogo deve continuar. Sempre aprenderei algo de novo, porque as tendências são insondáveis, e não presumo esgotá-las. Qualquer alma humana tem um fundo incognoscível. Entretanto, é possível conhecer muita coisa e, por aí, saber o traçado do futuro. A previsão política é, em boa medida, a análise de como estão as tendências hoje e no que elas vão dar amanhã. Com isso, a previsão política é fecundada como a água fecunda a raiz de uma planta. Na raiz do pensamento previsor está o conhecimento das regras das tendências. Essa é a vantagem de conhecer as tendências.

Entretanto, todas as coisas verdadeiramente muito elevadas são passíveis de serem exploradas. Por exemplo, a música. Quanta coisa magnífica se faz com ela, mas também quanta vilania! Todas as artes são assim. Ora, agir nas tendências é uma arte; logo, pode ser tomada para o melhor e para o pior.

Onde está a dignidade disso? Quando se vive toda essa intensa vida das tendências, há determinados momentos em que o espírito se distancia desse jogo e faz a pergunta: “Mas, afinal, o que aqui é verdade, o que é erro? O que é bem, o que é mal?” Passo, então, a fazer disso uma análise lógica, com argumentos, raciocínios, para saber como uma coisa se costura na outra. E faço, eu mesmo, a crítica do meu pensamento para verificar se ele enfrenta as objeções. Então, vemos surgir, à maneira de um píncaro de neve sobre uma montanha muito verde, a lógica fria, rutilante e, dentro da sua frialdade, espelhando melhor o Sol do que a relva nas encostas da montanha. E podemos formular a teoria.

Um modo de ser eminentemente hierarquizante

Por exemplo, eu tenho um modo de ser eminentemente hierarquizante. Não basta dizer que possuo esse modo de ser para provar que é justo que isso seja assim. Quem me dá o direito de ser assim? A ordem natural das coisas feita por Deus é assim? Se for, então é bom que eu seja assim. Do contrário, não é bom. Porque a medida de todas as coisas de nenhum modo sou eu, que fui criado por Deus. A medida de todas as coisas é Ele. O que Ele ensinou a esse respeito? Por que Ele ensinou? Qual foi a intenção d’Ele?

E aqui entraria a teoria esplendorosa, magnífica, de São Tomás que contraria o igualitarismo. Explica o Doutor Angélico que, ao criar seres que refletissem suas infinitas perfeições, Deus não poderia fazer um único ser, porque qualquer criatura é tão insuficiente para realmente espelhá-Lo que ela seria caricata.

Mas essas criaturas, por sua vez, para O refletir têm que ser diferentes umas das outras. Se Deus criasse dois seres iguais, Ele cometeria o erro que um gago pratica quando pronuncia duas sílabas inúteis: “Eu que-quero.” Porque na palavra humana cada sílaba tem um som. O resto é linguagem de criança, ou de uma pessoa que não tem a locução normal, bem construída. Então, por causa disso, Deus formou criaturas diferentes, e assim sendo, criou-as desiguais, pois não há seres diferentes sem que um seja superior ao outro em algum ponto. Logo, ou não haveria Criação, ou existiria hierarquia.

Então, Gloria in excelsis Deo! (Lc 2, 14). No fim, o cristal de rocha do raciocínio, em arestas tomistas definidas que rutilam ao Sol, é o encanto e a glória da montanha. Assim, nos entusiasmamos tanto com as tendências quanto com o raciocínio, e glorificamos a Deus que nos deu esta riqueza: sermos verdadeiros instrumentos de música de tendências e cristais reluzentes de raciocínio.               v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/7/1979)
Revista Dr Plinio 257 (Agosto de 2019)

1) Do francês: força de ataque.

Il Gesù

Edificada em frente à Sede Generalíssima da Companhia de Jesus, a igreja “Il Gesù” é riquíssima em formas e cores. Contemplemos alguns de seus detalhes em companhia de Dr. Plinio.

 

Ao contemplar a famosa Igreja do Gesù, em Roma, dada a propensão que tenho pelas cores, a primeira coisa que me ocorreria seria analisar os mármores que lá estão colocados.

Altar forrado de belos mármores

Em um dos altares laterais, onde está o corpo de Santo Inácio, nota-se a distinção entre duas coisas. No altar propriamente dito, sobretudo nas duas colunas de mármore que se encontram de cada lado da imagem do santo. Cada uma delas é peça monolítica, uma pedra só de baixo até em cima. E esse mármore dá a nota dominante de todo o colorido.

Logo depois dessas colunas há uma faixa de mármore por onde as colunas das extremidades, de certo modo, se encostam à parede. E é um salpicado, um misto da cor de noz com o branco, preparando a transição para o branco total.

Depois existe um grande quadrilátero, dentro do qual se nota uma cor parecida com a das colunas; há uma transição que prepara a passagem para o marrom-claro absoluto, através do branco também absoluto. É uma coisa muito bem feita, um jogo de cores entre o marrom e branco muito bem calculado, que se repetem no próprio altar.

Harmonia entre cores e formas

Em cima do arco que serve de dossel para a imagem de Santo Inácio de Loyola, encontram-se alguns anjinhos. E mais acima algumas figuras brancas, são anjos também; e bem acima, a Santíssima Trindade: a glória de Deus, eterna, imutável e absoluta.

O jogo de cores e as formas são muito agradáveis de olhar. Todas as formas são muito definidas, proporcionadas, e fazem do altar uma obra de arte.

O altar é a glorificação de Santo Inácio de Loyola. Mas contém um pensamento sério: por mais elevado que Santo Inácio tenha sido, infinitamente acima dele, portanto em uma outra ordem de coisas, por assim dizer, além do altar, está Deus Nosso Senhor. Deus, ótimo, máximo, que brilha no mais alto da glória. Abaixo d’Ele está um santo, com os braços abertos em uma espécie de êxtase, olhando para o Céu, quer dizer, com o pensamento dele todo voltado para o Criador: Deus e seu servidor.

Vejam a diferença que há entre o servidor de Deus, o santo canonizado pela Igreja, de um lado, e, de outro lado, um simples fiel que reza ajoelhado junto à mesa de Comunhão, à grade que está colocada abaixo do altar. Observem a hierarquia das coisas. A Igreja militante, tendo acima de si a Igreja gloriosa, a qual está toda voltada para Deus e absorta na consideração e na contemplação d’Ele. Um santo é um cidadão, um membro eminente da Igreja gloriosa.

O gesto de Santo Inácio é exclamativo, como quem está em um êxtase e todo absorvido na contemplação do esplendor de Deus, de um lado; de outro lado, nota-se que é um gesto muito harmonioso, muito digno, que não tem nada de demagógico.

Seriedade do altar renascentista

Trata-se de uma peça caracteristicamente renascentista; apesar disso tem uma seriedade que não chega a ser de nenhum modo a seriedade sublime do gótico, mas é uma seriedade real. Os próprios anjinhos não são como os de Bernini; é tudo sério, pensado, bem ordenado, articulado. É o espírito de Santo Inácio de Loyola.

Se este fosse o altar-mor de uma grande igreja, nós diríamos: “Que igreja!” Mas, esse é um altar lateral…

Madonna della Strada

Entre o altar de Santo Inácio e o altar-mor, venera-se a imagem da “Madonna della Strada”.

Alguém dirá: “Mas não é esquisito que haja um altar entre o de Santo Inácio e o altar-mor? Não se compreenderia melhor que ele estivesse bem junto ao altar-mor?” Onde está Nossa Senhora todo mundo recua. E uma imagem da Santíssima Virgem não pode figurar depois da imagem de um santo. A imagem miraculosa de “Madonna della Strada” é muito venerada por todos que vão ao Gesù.

É realmente uma muito bonita imagem, muito expressiva, séria, como muito sério é também o Menino Jesus. Nossa Senhora dá vagamente a impressão de ter os trajes de uma imperatriz bizantina; a imagem é um tanto orientalizante.  E o Menino Jesus está todo vestido, cheio de pudor, diferente dessa mania de apresentar o Divino Infante nu, ou quase nu, como se Nossa Senhora fosse uma Mãe despreocupada e indolente, que não tivesse vontade nem disposição de cobrir o corpo de seu Menino.

O altar de São Francisco Xavier

Em frente ao altar dedicado a Santo Inácio há outro em honra de São Francisco Xavier, o grande apóstolo das nações de raça amarela, que evangelizou uma boa parte do Japão, e morreu numa ilha entre o Japão e a China, olhando para a China, com vontade de chegar lá e de evangelizar aquela nação.

Ele era súdito de Santo Inácio, por quem foi convertido. Mas ele era um tão grande apóstolo que mereceu ser colocado em frente a Santo Inácio, embora do lado esquerdo de quem entra na igreja. Lá está o braço incorrupto de São Francisco Xavier, encastoado em um relicário que muito vagamente toma a forma de um braço com a mão na extremidade. Eu chamo a atenção dos presentes para o lacerado da mão, como também para os dedos, que são finos, delicados, exprimindo assim um feitio de alma especialmente delicado.

Tomem em consideração que São Francisco Xavier foi um grande professor da Universidade de Paris, antes de se tornar jesuíta. Todos os dias em que dava aula, ele encontrava um seu conterrâneo, baixo, de olhos como dois sóis, coruscantes, penetrantes, pobre, malvestido, que se aproximava dele enquanto os alunos lhe prestavam homenagem. São Francisco Xavier era tão homenageado como professor que frequentemente, quando terminava a aula, os alunos — que naquele tempo usavam capas — punham suas capas no chão para que ele ao sair pisasse sobre elas. E Santo Inácio esperava a São Francisco Xavier do lado de fora da porta e perguntava: “Francisco, de que serve isto tudo se perderes a tua própria alma?” Aquilo foi tocando a alma de São Francisco, o qual afinal se converteu e pertenceu ao primeiro grupinho de jesuítas. Depois foi o imenso apóstolo do Oriente, tendo também trabalhado na Índia.

Comungando na Igreja do Gesù 

Para encerrar, eu gostaria de narrar um fato que se deu comigo.

Fui comungar, certa vez, na Igreja do Gesù.

Ao ajoelhar-me junto à mesa de comunhão notei que ela era magnífica, toda incrustada com figuras geométricas, de mármores das mais diversas cores — aliás, sabe-se que a Itália é a terra dos lindos mármores.

Quando me dei conta, eu estava tentado a ficar prestando atenção nos mármores em vez de prestar atenção no Autor dos mármores, que Se dignava entrar dentro deste peito do qual Ele também é o Autor. Precisei fazer um solavanco violento para que o esplendor da mesa de Comunhão não afastasse o meu espírito da consideração d’Aquele que é o esplendor subsistente, em relação ao Qual todo o resto não é senão imagem ou semelhança.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 4/8/1979 e 11/11/1988)

Todos serão julgados pelo que fizeram por suas nações

No Juízo Final os indivíduos serão julgados, entre outras coisas, pelo bem que poderiam realizar a favor das nações às quais pertenceram, mas por terem sido preguiçosos, ambiciosos, hereges ou cismáticos, não o fizeram. Se desejamos que os nossos países sejam grandes, queiramos antes de tudo que a Igreja Católica seja glorificada.

Há duas espécies de povos que desapareceram: uns sumiram definitivamente; outros preenchem o vácuo deles na História e a vida vai para a frente. Exemplo característico são as ruínas, que se encontram em certas partes da Ásia e da Polinésia de modo especial, de civilizações bastante desenvolvidas, das quais ninguém sabe o que foram, quando existiram e por que desapareceram. São os navios fantasmas da História!

Embarcações vazias flutuando sem rumo pelos mares

Até a navegação obter o progresso que ela tem hoje, era frequente haver mares ermos os quais passavam anos sem que um navio neles entrasse. Às vezes, quando dois navios se encontravam, costumavam se aproximar e, se não eram inimigos – pois nesse caso saía tiro! –, chegavam a se encostar para saber qual deles tinha estado em terra firme a menos tempo e que notícias trazia. Compreende-se isto perfeitamente.

Essa história de os navios se aproximarem perdurou por muito tempo. Lembro-me que quando eu tinha cinco anos mais ou menos, vinha de Gênova para Santos num navio de passageiros chamado Duca D’Aosta, quando nos chegou um telegrama passado do bordo de outro navio, parece-me que era inglês. Eles avisavam que tinham tido notícia de que o Duca D’Aosta ia passar por lá e pediam que se aproximasse, para que os passageiros pudessem se saudar, tal era a aventura de estar em alto-mar. Todos os passageiros de ambos os navios foram para o tombadilho, e as duas tripulações se saudaram, como poderiam fazer hoje dois navegantes no espaço, que se movimentam em sentido contrário.

Lembro-me de ver distintamente os passageiros do outro navio, onde, aliás, havia parentes muito chegados nossos, que sabíamos estarem viajando nele. Então nos reconhecemos, houve saudações, as senhoras trocavam beijos, etc. Não lembro se todas, mas algumas pelo menos compareciam ao tombadilho preparadas para resistir ao vento e à deslocação de ar no navio, com chapéus grandes, uns tules protegendo o rosto e ainda echarpes. Porque quando se está num alto-mar ínvio como aquele, é melhor estar preparado para tudo!

Nesses tempos, e também em épocas anteriores, encontravam-se, por vezes, navios aos quais se mandava um sinal e não se obtinha resposta. Então, o capitão do navio que não recebia resposta aproximava-se para ver o que se passava, porque podia haver casos de necessidade. E várias vezes foram encontrados navios completamente vazios, em situações muito curiosas. Num deles, por exemplo, tudo indicava que uma parte dos passageiros estivesse tomando refeição, porque foram encontrados nos pratos de sobremesa restos do que comiam. E sem nenhum sinal de luta interna – ninguém lutou, não houve começo de incêndio nem infiltração de água. O navio estava perfeito, flutuando sem rumo pelos mares.

Nações que se tornaram os navios errantes da História

Qual foi o mistério que levou a tripulação inteira – supõe-se que sejam navios de passageiros, pais, mães, filhos, enfim, parentelas e outros avulsos – a saírem do navio para irem a outra embarcação? E por que motivo os que transportaram essa gente não levaram reservas de comida? Podem imaginar que prejuízo para um navio levar bocas e não água doce, alimentos? O que houve?

Em uma revista histórica francesa li um artigo muito bem feito e cheio de casos desses, que levantava a seguinte hipótese: Tudo bem analisado, só há uma conjetura cabível, mas que não tem base científica: terem vindo entes de outros astros e levado essa população inteira para outro planeta.

Não estou opinando nem pelo sim nem pelo não, porque acho impossível opinar, mas é um mistério enormemente pitoresco, interessante, acho até atraente… Eu, por mim, gostaria de visitar um navio assim!

Há navios cujas ruínas estão em ilhas e desertos, dentro dos matos… uma população viveu lá, floresceu, morreu. E não se sabe quando e por que deixaram aquele lugar. Não foram mortos, porque não se encontraram cadáveres. Não foi guerra, porque não há sinal de combate. O que aconteceu? É pitoresco.

Pois bem, há civilizações que se tornaram os navios errantes da História.

O homem responde pela sua nação perante Deus

Nossa civilização tanto entrelaçou o mundo, que não nos passa pela cabeça de sermos algum dia um povo navio errante da História. Mas imaginem que venham os castigos previstos em Fátima, e restem uns punhados populacionais pelo mundo. Pode ser que os componentes de alguns desses punhados morram muito velhos e não tenham descendência, está acabado. Mas, há outras nações que têm contas mais severas a prestar a Deus, porque muito tempo depois de extintas as suas descendências ainda deveriam marcar a História. É uma possibilidade.

Então, no dia do Juízo Final tudo isso vai se apurar? Sim e não. Porque, no Céu, não há nações. E o Juízo Final é um juízo individual, vai julgar os indivíduos. Então, o que fazem as nações dentro disso? Os homens serão julgados, entre outras coisas, pelo que eles fizeram às nações a que pertenceram. É evidente. E aqueles que poderiam ter modificado muitas nações para o bem serão julgados por aquilo que elas não receberam deles, porque foram preguiçosos, ambiciosos, hereges ou cismáticos.

Uma nação desapareceu na História, mas o homem responde pela nação perante Deus: “Por que tal país que Me deveria ter prestado tais e tais serviços não prestou? Tu tinhas na mão a possibilidade de fazer isto, aquilo, aquilo outro. Por que não fizeste?” E, sobretudo, e essencialmente o que se refere ao apostolado: “Tu poderias ter feito que tua nação espalhasse meu Nome em tais outros lugares. Isso não aconteceu.”

Tomada de Saigon pelos comunistas

Causou-me um arrepio ler a queda de Saigon1. De manhã, antes de os comunistas chegarem a esta cidade – todo mundo sabia que iam chegar –, o comércio abriu, tudo funcionava normalmente. No melhor clube da cidade, a piscina cheia de banhistas e o bar vendendo champagne e outras bebidas de luxo. Nos grandes hotéis, também de luxo, os correspondentes de imprensa, os diplomatas, etc., divertindo-se, esperando que os comunistas chegassem. Perguntam:

— Mas vocês não fazem nada?

Na piscina, um nababo que tomava champagne deu esta resposta:

— Só eu? Não é possível fazer nada mesmo. Deixe-me beber aqui a última taça de champagne!

Muito inteligentemente, os primeiros contingentes comunistas que entraram em Saigon eram compostos de rapazinhos adestrados e, naturalmente, com gente mais velha atrás para fazer a coisa trotar. Pulavam dos caminhões em que estavam e se espalhavam pela cidade. As pessoas os olhavam, achavam-nos tão jovens e inofensivos que davam risadas e os saudavam amistosamente. Eles tinham a palavra de ordem de tomar conta dos postos-chaves.

Quando as tropas começaram a entrar, toda a resistência era impossível porque elas estavam armadas e os lugares-chaves, de onde podiam desencadear alguma resistência, já estavam nas mãos desses meninos. Se matassem esses meninos havia o risco de atrair sobre si uma vingança da qual eles tinham medo. Compor com os comunistas era a coisa melhor que tinham para fazer, imaginavam eles.

Os católicos eram numerosos em Saigon e poderiam ter feito uma resistência. Mas eles tinham um arcebispo a favor da conciliação com os comunistas. E esse arcebispo trazia consigo uma série de gente que era do mesmo naipe, leigos e eclesiásticos.

Estes não vão prestar contas pelo fato de que Saigon caiu? Os homens que pregaram a rendição não entregaram irremediavelmente seu país ao inimigo, quando tinham a obrigação de defendê-lo? Então, não vai ser julgado o Vietnã, mas sim todos os homens que resistiram ou não, que amoleceram. Todos vão prestar contas por sua vida individual e pelo que fizeram de seu país.

Veneza e Florença: duas vertentes do espírito humano

Entretanto, as nações pagam nesse mundo os pecados que cometem, precisamente porque não haverá nações no Céu nem no Inferno. Logo, Deus pune com castigos terrenos os pecados das nações. Resultado: as nações se tornam infelizes, mesquinhas, sem importância, por causa dos pecados que cometeram.

Quando a nação não peca e corresponde à graça, qual a recompensa que ela recebe nesta Terra também pela sua virtude? Recebe toda espécie de grau de glória, de grandeza que Deus lhe tinha destinado. Com uma alegria especial, que é a ufania justa e razoável daqueles que pertencem a essa nação.

Então, encontramos nações que tiraram de si o que podiam. O exemplo mais característico disso talvez tenha sido a Itália. Nos séculos XV e XVI, a Itália não era uma nação, mas um conjunto de pequenas nações independentes. Florença, por exemplo, era um grão-ducado à testa da Toscana. O povo havia correspondido durante muito tempo à graça, e com isso tinha desenvolvido o seu perfil intelectual e moral extraordinariamente. E houve um pulular de grandes homens, de Santos, que faziam da vida interna da Toscana um dos ápices do acontecer do mundo. A Catedral de Florença, os monumentos, as bibliotecas, o Palácio della Signoria, mil coisas, constituem um tesouro. Todo mundo que deseja ter cultura precisa se informar um pouco sobre Florença. Ela foi ou não uma grande cidade? Foi inclusive um grande Estado.

Veneza é mais ou menos contemporânea de Florença. Vai-se de uma cidade à outra em poucas horas, mas são dois mundos completamente diferentes. Eis um lado por onde se pode ver a característica de cada uma: os artistas de Florença eram peritos, sobretudo, no desenho das figuras que pintavam, porém davam menos importância às cores, enquanto os de Veneza eram exímios pelo colorido. São dois feitios de alma: um é aberto, afável, ameno, dos que gostam mais da cor do que da forma; outro é lúcido, penetrante, inteligente, daqueles que dão mais importância à forma do que à cor.

Em Veneza os coloridos são feéricos, não só dos quadros, mas também da natureza. Aquela laguna com toda a sua beleza, os coloridos que se fazem durante o dia quando o Sol se levanta ou se põe, os palácios construídos ao longo daqueles canais onde se refletem indefinidamente, tudo é de um colorido estupendo! Vai-se para Florença e se vê uma coisa diferente: é a precisão do desenho carregado de expressão. Então, que glória: duas cidades próximas, pequenas, republiquetas, engendraram essas duas escolas de arte representando dois feitios, duas vertentes do espírito humano. É uma maravilha!

Poder-se-ia perguntar: O espírito do povo brasileiro vai mais pelo gosto das cores ou do desenho? Nos panoramas do Brasil, o que é mais bonito: o colorido ou o desenho? Procurando – não como um argumento de certeza, mas de probabilidade – um traço do espírito nacional, como seria interessante tratar disso!

Portugal sobreviverá, mas precisa mudar muito

São Luís Grignion de Montfort, contemporâneo de Luís XIV, diz que no tempo dele o mundo já estava invadido por uma torrente de iniquidade, mas haveria um momento em que Nossa Senhora interviria, venceria e implantaria o Reino d’Ela. A Santíssima Virgem falou de nações inteiras que desapareceriam; serão os “navios fantasmas” da História. Com certeza, Ela já escolheu as nações que sobreviverão.

Garantia de sobreviver, a Virgem de Fátima só deu a uma nação: Portugal. Ela escolheu esse país para lá aparecer, quer dizer, foi o pedestal do alto do qual a Mãe de Deus quis falar ao mundo. No entanto, poderia perfeitamente não ter dito que Portugal, depois de todos os castigos por Ela profetizados, conservará o dogma da Fé2.

Como será Portugal no Reino de Maria? Por certo, Portugal terá que mudar muito até lá… É uma nação que se deixou semientregar aos comunistas. Aquela porcaria da Revolução dos Cravos3, poderia haver algo de mais contrário à índole de um povo guerreiro como o português, tendo o passado de batalhas que tem? Portugal daquele tamanhozinho, com um império colonial formidável! E mais ainda, nenhuma colônia de país europeu resistiu tanto a favor da metrópole quanto Moçambique e Angola em relação a Portugal. Entretanto, depois disso, Portugal ir na onda daquela Revolução dos Cravos, e por causa desses cravos acreditar nas intenções pacíficas daqueles bandidos!

Ora, Portugal conservará o dogma da Fé. Conclusão: para que haja o Reinado de Nossa Senhora é preciso que a nação lusa mude muito, porque não podemos imaginar no Reino de Maria um Portugal com o Estoril rachando de imoralidade em épocas de turismo, e daí para fora.

No Reino de Maria, as nações católicas constituirão um concerto de beleza sublime

Mas no Reino de Maria deve realizar-se a descrição famosa de Santo Agostinho, a respeito da nação católica. Disse ele: Imaginem uma nação onde o rei e o povo, os generais e os soldados, professores e alunos, esposos e esposas, pais e filhos, todos vivem em estado de graça e no cumprimento do amor de Deus; esse país sobe assim ao mais alto de sua glória.

Será que para isso acontecer vão desaparecer as características dos diversos povos, e todos se fundirão por terem a mesma Fé? Absolutamente não. Pelo contrário, as características se acentuarão, constituindo entre todas as nações católicas um concerto com harmonias de uma beleza sublime. Se víssemos o mundo assim, diríamos: “Mas isso é o Céu ou é a Terra?”

Este “sonho” viveram-no tantos povos da Idade Média. A Cristandade era a família das nações cristãs católicas, na qual se cumpria a Lei de Deus. São Pio X disse isso em uma de suas encíclicas: se a Europa estava acima de todas as nações do mundo, por causa do esplendor de sua civilização cultural, artística e material, era devido à Fé Católica.

Conclusão: preocupemo-nos, sobretudo, em que todas as nações sejam inteiramente católicas, e então se aplicará a promessa de Nosso Senhor Jesus Cristo: “Procurai o Reino de Deus e a sua justiça – quer dizer, a virtude que nele se pratica – e todas as coisas vos serão dadas por acréscimo” (Mt 6, 33).

Se desejamos que os nossos países sejam grandes, queiramos antes de tudo que a Igreja Católica seja glorificada, que todas as nações pratiquem a Lei de Deus e tenham o espírito da Santa Igreja; o resto nos será dado por acréscimo e teremos o Reino de Maria.          v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 4/9/1986)
Revista Dr Plinio 257 (Agosto de 2019)

1) Nome da capital do antigo Vietnã do Sul, tomada pelos comunistas em 30 de abril de 1975.

2) Cf. IRMÃ LÚCIA. Memórias I. Quarta Memória, c. II, n. 5. 13ª ed. Fátima: Secretariado dos Pastorinhos, 2007, p.177.

3) Ocorrida em 25 de abril 1974.

Admiração: suprema alegria!

Deus colocou uma nota de admirável em tudo quanto fez, porque quis incutir nos homens a convicção de que seu espírito deve estar voltado para o mais alto, através da admiração. Essa admiração supõe dois graus: um é por aquilo que a pessoa tem diante de si; outro é o de reportar tudo a Deus Nosso Senhor.

 

Ouvimos a descrição da investidura de um cavaleiro, tão bem apresentada por Léon Gautier(1). Não é verdade que achamos muito agradável presenciar toda essa cena? Por quê?

Uma alegria que somente as almas admirativas possuem

Sem dúvida, devido à beleza da cena, mas também porque essa pulcritude nos trouxe uma determinada forma de alegria que o mundo hoje em dia não conhece mais. É um modo de alegria ligado à admiração. Nós admiramos tudo isso, mas num enfoque, numa luz tal que nos produziu a alegria. E enquanto o mundo atual só concebe a alegria no deboche, na desordem, no extravagante, no grotesco, no ridículo, no dissipado, nós tivemos exatamente um júbilo que pudemos tocar com as mãos, sentimos em nossa própria alma, e que foi decorrente da contemplação de um ambiente e de uma cerimônia, e de pessoas vivendo nesse ambiente todas elas cheias do sentimento de admiração e de respeito pelo que faziam. Pareceu-nos agradável ser esse cavaleiro, e por certo houve aqui pessoas diante de cujo espírito passou a ideia: “Como eu gostaria de ser armado cavaleiro!”

Ser armado cavaleiro é algo que o mundo de hoje detestaria, porque leva a se preparar para o contrário da vida securitária oferecida aos homens pela sociedade atual. Não é inscrever-se num instituto de aposentadoria e pensões, nem conseguir um direito à promoção para poder comprar um automóvel melhor. Pelo contrário, é expor-se ao risco sem ganhar dinheiro, pelo mero amor ao heroísmo, à virtude, à Igreja Católica; expor-se a morrer transpassado por uma lança num deserto, ou naufragado num barco que conduz cavaleiros para a Terra Santa e que, numa procela do Mediterrâneo – diminuta para os transatlânticos de hoje, mas considerável para os pequenos barcos daquele tempo –, afunda repleto de cavaleiros; ou morrer numa luta contra albigenses ou mouros no próprio território europeu.

A perspectiva do risco trazia para os homens daquela época a admiração ao heroísmo, com a ideia de um grande destino. A esperança de vencer ou morrer na realização dessa obra magnífica e, por esta forma, dar à sua vida um grande sentido, a admiração pelo que significa viver para consumar esse holocausto é a causa dessa alegria. Daí a cena tão alegre do jovem que inicia a vida de sacrifício e vai para ela jubiloso, satisfeito por causa do grande holocausto de sua vida. Ele conhece o sentido de sua existência, ama, admira o sacrifício e tem aquela forma de alegria especial que só as almas que admiram possuem.

 Tudo quanto é admirável incute nos homens a convicção pelo que há de mais elevado

Deus colocou pelo menos uma nota de admirável em tudo quanto fez, e sem nenhuma exceção. Essa nota de admirável, ora se mostra evidente de maneira a encantar os homens, ora aparece no fundo de uma longa e árida pesquisa científica. Em certo momento o homem encontra o admirável. Se o Criador pôs o admirável em tudo é porque Ele quis incutir nos homens, de todos os modos e de todas as formas, essa convicção de que seu espírito deve estar voltado para o mais alto, para algo que lhe causa admiração e que a luz de sua vida é a admiração das coisas verdadeiramente admiráveis.

Tudo quanto Deus fez é admirável e Ele quer que vivamos numa contínua admiração das criaturas, para admirarmos a Ele que se reflete nelas. Por essa admiração feita de veneração, de adoração, deseja que nós O sirvamos heroicamente a nossa vida inteira.

Então, essa admiração supõe dois graus: um é a admiração próxima por aquilo que a pessoa tem diante de si; outro grau é reportar a Deus Nosso Senhor, de maneira a estar no termo final da admiração. O Criador, que é o Autor disso que estou admirando, tem essa maravilha de um modo infinito. E quando algum dia, pela misericórdia d’Ele e pelo mérito do preciosíssimo Sangue que Nosso Senhor derramou por mim, pelas lágrimas e pelos rogos da Mãe d’Ele, eu chegar ao Céu e admirá-Lo face a face, isso que estou vendo agora vou contemplar diretamente n’Ele por toda a eternidade.

Isso se verifica nas menores coisas. Por exemplo, sou muito sensível ao belo das pedras; é uma peculiaridade individual. Outro será mais sensível ao pulcro das aves, da música, etc. A mim me agrada, enquanto estou fazendo esta conferência, olhar para a superfície deste molhador de dedos que tenho diante de mim, adornado com uma pedra verde. Sei muito bem não se tratar de uma esmeralda maravilhosa, e não seria posta na coroa do Xá da Pérsia, nem de longe. Entretanto, é um verde que me agrada olhar. Mas não fico no agrado puramente sensitivo de um bicho que olha para uma coisa verde, e abana bobamente a cabeça sem saber por que, pois Deus fez-me homem e, muito mais do que isso, fez-me católico, apostólico, romano; batizado na minha infância, nasci na Igreja pela misericórdia d’Ele.

Devo, então, perguntar por que esse verde me agrada, pois não existe apenas um motivo sensitivo, mas uma razão de caráter mental, uma afinidade de temperamento e de modo de ser, por onde o fato de eu gostar dessa cor exprime algo de minha pessoa. Mas há uma consideração infinitamente superior: se algo de minha pessoa se exprime porque eu olho para esta pedra e gosto, algo da Pessoa que a criou se exprime pelo mesmo princípio. Logo, Deus considerou isto belo e digno de exprimi-Lo, e pôs este objeto diante de mim para, desde que eu reflita um pouco a respeito d’Ele, dizer-me esta verdade fundamental:

“Meu filho, você que vê e gosta disto por haver nisso uma afinidade com sua personalidade, saiba que minha perfeição infinita tem também uma expressão aqui, e que você e Eu nos encontramos na consideração dessa pedra. É misterioso, mas é verdade. Vendo-a e gostando dela, você de fato nota algo que é um lampejo de Mim. Contemple-a, um dia você Me verá face a face.”

Se sou capaz dessa reflexão, eu digo: “Que mistério! Quando, meu Deus, chegará esse dia em que, afinal, poderei ver-Vos face a face e descobrir o mistério que pusestes por detrás dessa pedra?”

Assim, essa pedra não é um objeto para o qual olhei de qualquer jeito, calculei o preço, verifiquei se é adequada para conter esponja com água, e avaliei apenas mercantilmente. Ela deve ser até considerada mercantilmente, porque tem o seu preço, mas não é essa a razão mais alta para eu avaliar a pedra. Nela encontrei uma espécie de ângulo de incidência por onde o Criador e eu nos encontramos. Eu admirei e, ao admirar, fiz uma reflexão que me elevou até Deus.

Meditar a partir de um ato de admiração

Isso que se dá com uma pedra, passa-se evidentemente ainda mais em relação a um animal. Por exemplo, um leão rugindo, magnífico, com aquela força, aquela juba, aquele domínio, aquela capacidade de ataque, se quisermos olhá-lo do ponto de vista sobrenatural, presta-se a considerações verdadeiramente de primeira ordem. Estou olhando o leão, vejo aquele furor magnífico e pergunto: “Mas, afinal de contas, contra quem esse furor? Contra mim? O leão ainda nem me viu, está lá longe furioso com o quê?”

Se me reporto à cólera divina contra o pecado, vejo como é lindo o furor da majestade, do direito, da força contra aquilo que é errado, torto, sujo, revoltado, arrogante. Um rugido do leão não tem alguma coisa da beleza do rugido da cólera de Deus por todos os espaços celestes? E quando eu vejo tanto pecado, tanta impiedade, tanta tibieza pútrida e asquerosa que se espalha em torno de mim, desejo uma retificação disso e uma punição, e me lembro do furor do leão, compreendo por que a Escritura chama Nosso Senhor Jesus Cristo de “Leão de Judá” (cf. Ap 5, 5). O Redentor, embora morto, derrotado, quando ressuscitou implantou a derrota de tudo aquilo que se pôs contra Ele. Foi o vencedor e sobre todo o mundo suas catedrais magníficas levantaram as suas torres. É verdadeiramente o rugido do Leão de Judá.

Compreendo que Deus, ao criar os leões, quis, sobretudo, que nós, católicos, à vista do leão fizéssemos uma meditação sobre a magnificência da cólera d’Ele. E nunca, ainda que víssemos todos os leões do passado, do presente e do futuro, veríamos algo de tão magnífico, tão divinamente leonino como no momento em que Deus, no Juízo Final, se voltar para os réprobos e mandar todos para o Inferno. São palavras de rugidos que aos réprobos deixarão horrorizados e enfurecidos.

Creio que eu desmaiaria de encanto vendo o furor do Leão de Judá. “Afinal Vos vingais, afinal afirmais a vossa glória! Ah, como Vos aplaudo, ó Deus, terrível perseguidor dos vossos adversários! Adoro o vosso direito, a vossa cólera e a vossa força!”

Não é bom, pensando num leão, elevar assim meu espírito? Não se faz, deste modo, uma boa meditação? É um ato de admiração por onde admirei o leão em tudo quanto Deus de Si quis simbolizar nele. Mas depois admirei no leão fatos da História no passado ou preditos para o futuro sobre as relações de Deus com os homens, para compreender toda a História da humanidade e, atrás dela, Deus Nosso Senhor. Assim fiz uma meditação a partir de um ato de admiração.

A admiração deve estar presente em todas as atitudes da alma

Eu poderia fazer o mesmo ato de admiração, por exemplo, em relação a uma pomba para ser comida. Com que suavidade e inocência ela está nas mãos daquele que a mata! Como ela é linda, pura no momento em que vai ser morta!

Lembro-me de um padre jesuíta que, durante uma aula, pôs o seguinte problema: Todo ser se alegra quando realiza o seu fim. Ora, ao criar a galinha, Deus tinha como uma de suas finalidades que ela servisse de alimento para o homem. Portanto, transpondo o exemplo para a pomba, se esta pudesse entender que vai ser morta em holocausto a um homem, ela se alegraria por cumprir com sua finalidade. Então, devemos imaginar a frustração da pomba velha que morre sem ter sido devorada, porque ela não realizou a sua finalidade natural; ou, pelo contrário, o instinto de conservação, que faz o ser sentir pavor de sua própria destruição, a levaria a não querer ser destruída?

Disse o sacerdote que tanto uma hipótese quanto outra é admissível, pois ambas partem de um pressuposto absurdo, isto é, um ente irracional pensar. Com efeito, de si, repugna à inteligência a ideia de um ser racional feito para o holocausto a outro ser criado.

A meu ver, o padre respondeu muito bem. Mas eu gostava de pensar como resolveria a coisa se fosse o animal imolado. Alegando a favor da alegria de se deixar imolar, o sacerdote imaginava o animal olhando para um homem e pensando: “Como esse homem é superior a mim, e me alegro em saber que daqui a pouco a minha carne vai ser carne dele! Que honra e promoção para mim ser devorado por ele! Ó momento como que de êxtase a hora em que eu sentir minha vida se exalar, mas sabendo que, de algum modo, vou ser humanizado e promovido”.

O raciocínio do padre me parecia evidentemente claudicante, e ele o apresentava como tal, pois era um bom professor e sabia bem o que dizia. Mas tinha um lado bonito que apresento aqui para compreendermos a beleza da pomba que se imola, representando algo de infinitamente mais alto do que isso: Nosso Senhor Jesus Cristo, Vítima que Se deixou imolar por nós, o Cordeiro de Deus que lavou os pecados do mundo inteiro com o seu preciosíssimo Sangue. Como é bonito, estando junto a um tabernáculo e vendo pintado um cordeiro imolado, pensarmos que ali está o Cordeiro de Deus realmente presente! Que coisa magnífica é admirar o cordeiro para adorar o Cordeiro de Deus, Nosso Senhor!

Por aí percebemos como em absolutamente tudo deve estar presente a admiração, em todas as atitudes da alma humana e de um modo preponderante. Essa admiração assim presente, nós a devemos considerar não apenas para com seres inferiores a nós – portanto, um animal, uma planta, uma pedra –, mas, sobretudo em relação aos seres iguais e superiores a nós.    v

(Continua no próximo número)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/2/1977)

Revista Dr Plinio 256 (Julho de 2019)

 

1) Cf. Revista Dr. Plinio n. 255, p. 31.

 

Catedral de York: Obra-prima de bom gosto e arte

Comentando a imponente e aconchegante catedral de York, Dr. Plinio procura ensinar a arte de saborear belezas subtis que, à primeira vista, podem causar certo choque; mas por isso mesmo, quando bem compreendidas, são motivo de ainda maior admiração.

 

Gostaria de comentar uma catedral bastante conhecida, porém não célebre. Ao menos não me parece que o seja. Esta catedral é de York, na Inglaterra, cidade conhecida no mundo inteiro, sobretudo pelo fato de seus habitantes terem fundado a Nova York, nos Estados Unidos; mas também por ser uma cidade muito importante na vida cultural, política e econômica da Inglaterra.

É preciso saber saborear

A catedral apresenta algumas características que, à primeira vista, impressionam pouco, e cuja beleza é preciso saber saborear.

Por exemplo, a torre sem ponta. O gosto pelo princípio de unidade e transcendência nos levaria a desejar que a torre central terminasse bem mais alta, devendo ser constituída por uma série de lances menores, terminando com uma ponta altiva e elegante.

Se analisarmos a construção que está ao lado — provavelmente deve ser a sala capitular —, com uma ponta cônica, veremos como a ponta a torna bonita. Mas, na torre central não há ponta.

Considerando ainda as duas torres do fundo, as quais não têm ponta, vemos que nos ângulos delas estão flanqueados florões que causam à primeira vista a impressão de torreões.

Onde está a beleza dessa torre assim? Não se diria tratar-se de uma torre inacabada, portanto, não tendo toda a beleza sonhada pelo arquiteto?

A poesia do cone inexistente

A resposta, a meu ver, é a seguinte:

Assim como o Fujiama tem sua beleza própria por não ter cone, há qualquer coisa nessas torres que faz sonhar vagamente numa ponta que não existe. Assim como na ordem da natureza as sombras têm sua beleza, e, às vezes, são mais belas do que a realidade, assim também os cumes e as pontas que não existem, quando o que está embaixo é feito com talento, ficam insinuados. E, por essa insinuação, qualquer um pode formar uma ideia, ainda que vaga e subconsciente, daquilo que não existe.

Então, nas duas torres do fundo, há algo que ajuda a imaginação a se elevar até o cone. Na torre do meio não: é rasa mesmo! Mas, de fato, prestando atenção, desprende-se dela uma certa poesia: é a poesia do cone inexistente!

Aconchego do convívio íntimo entre as pedras 

Eu queria chamar a atenção para outro aspecto da questão.

Observando a catedral, vê-se ser toda ela, por assim dizer, imbricada dentro de um casario, o que se nota, sobretudo, no tocante à peça mais avançada, octogonal, a qual está quase imersa no meio de um emaranhado de dependências da catedral e de casas que estão ao seu redor. Próximo desta está um arvoredo; este também está um pouco entrelaçado com as construções.

Aí se nota o contrário do urbanismo moderno, no qual nada é entrelaçado. Segundo esta concepção, se deveria derrubar todo este casario, para com isso a catedral ficar à vista de todos os lados; naquela área se faria uma praça vazia com gramado, e esse casario, se existisse, deveria existir para longe.

O resultado é que se perderia algo da sensação do aconchego do convívio íntimo entre pedras diferentes.

Note-se também que tais casas são um tanto ligadas umas às outras, sem nada de muito ordenado. Porém, formam um todo agradável e interessante, diferente do perpétuo quadrilátero, ou então do sinuoso, artificialmente poético, das ruas das cidades modernas. Este conjunto formado em torno da catedral causa a impressão de um urbanismo vivo.

Fruto de almas católicas

Hoje a catedral não é católica, mas foi construída por almas católicas, para orações católicas se erguerem daí de dentro, junto ao Santíssimo Sacramento, e aos pés das imagens de Nossa Senhora e dos santos.

A beleza da ogiva e da harmoniosa galeria lateral dá-nos uma ideia de dignidade, de majestade, de recolhimento. Tem-se impressão que a forma da ogiva ajuda as orações a se levantarem ao Céu, até o trono de Deus.

Acho de uma harmonia, de uma distinção e de uma beleza admirável essa catedral, e de um equilibro extraordinário.

Chama a atenção a beleza da pedra, de um colorido que dá a impressão de ser feita de uma espécie de mel claro, de um tom parecido com o da madeira.

Na entrada do coro vê-se uma sucessão de nichos, e entre cada duas colunas um santo; essa parede separa a nave central do coro. Nas asas laterais é muito bonito ver aqueles maços de colunas que se entreveem, e em cima, a construção que não chega até o teto, mas termina com uma balaustrada de colunetas góticas. Todo esse conjunto é uma verdadeira obra-prima de bom gosto e arte.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/5/1985)

Conhecimento de Deus através do belo

Por meio da contemplação dos esplendores que o Criador espargiu pelo universo, chega-se ao amor de Deus. Seria necessária, diz Dr. Plinio, uma escola desses exercícios de admiração para inaugurar uma nova e rica via de conhecimento divino, sobretudo conveniente para aqueles que vivem na era da “civilização da imagem”.

 

No seu livro sobre a estética medieval(1), Edgar de Bruyne se refere à escola vitorina(2), o que nos faz pensar na conveniência de haver tratados do amor de Deus ensinando, por meio do belo, a praticar a admiração e o elevar-se ao Criador, ao mesmo tempo metódica e degustativamente, assim como há tratados para outras vias da vida espiritual.

Um novo caminho para a piedade

Compreende-se melhor a oportunidade de um tal ensinamento se considerarmos que, em matéria de livros para formar as almas no amor divino, um tratado dessa espécie seria o único capaz de reeducar as pessoas da “civilização da imagem”, porque parte da figura e tende, através desta, para uma reflexão que nunca se distancia inteiramente da imagem, nem sequer em seu ponto terminal. E constitui, entretanto, um profundo pensamento.

A esse título, trata-se de um caminho novo de piedade e vida espiritual.

Exemplifico. Tome-se, digamos, a estrada de ferro que liga Curitiba ao porto de Paranaguá, no Paraná. Um trajeto famoso pela beleza dos panoramas que ele percorre. Ora, dever-se-ia mostrar fotografias desses cenários e, com essas imagens na retina, explicar como através dos esplendores naturais ali contemplados se chega ao conhecimento e amor de Deus.

Do mesmo modo, com outras incontáveis belezas esparsas pelo Brasil e pelo mundo, seria mais do que benéfico proceder a tais exercícios — atraentes e sistemáticos — de elevação da alma às coisas celestiais. Isto significaria, como acima dissemos, inaugurar para os homens uma nova e rica via de conhecimento divino.

A beleza do espírito transparecendo na da matéria

A arte gótica, aliás, é fecunda no favorecer exercícios dessa natureza. Por exemplo, o Castelo de Saumur, cujos torreões parecem dispostos desordenadamente dentro de um quadrilátero muito rigoroso — e o gênio francês é exímio em unir elementos díspares — nos remete para realidades superiores às terrenas.

Nesse sentido, porém, embora arquitetada num estilo próprio, creio ser mais audaciosa a igreja de São Basílio, em Moscou. Ao vê-la, tem-se a impressão de que suas torres, como que nascendo do solo, são minúsculas e carregam tetos imensamente maiores que elas. Estes, por assim dizer, quase esmagam o edifício, mas são coberturas magníficas. É um conglomerado de torres onde quase tudo é teto, constituindo um jogo de fantasia e imaginação em extremo bonito, e, a seu modo, elevando a alma para o infinito esplendor de Deus.

Dessas análises se deve concluir que, na beleza da arte engendrada pelo talento humano, importa fazer transparecer a beleza mais alta de caráter espiritual que nos fala de Deus.

Então se pergunta: como uma pessoa, percebendo a transparência do espírito na matéria — desde que tal transparência apresente essas qualidades sobre as quais acabamos de falar — tem a noção do belo?

Ela o tem, porque nota através do elemento material que lhe cai comumente sob os sentidos, uma realidade ontológica mais elevada. De algum modo, ela percebe a riqueza de espírito ali presente e, de certa forma, a beleza do próprio Deus. Ou seja, é um degrau para a consideração do Onipotente, do Ser perfeito, eterno e criador de todas as coisas.

A habilidade do artista enriquece a obra

Portanto, não basta dizer — e esse ponto acrescenta algo às nossas elucubrações anteriores —  que a pessoa, ao contemplar a obra de arte, percebe uma virtude e, através disso, Deus. Há outra coisa: ela conhece melhor, com uma cognição mais preciosa que a comum, o espírito humano que concebeu aquela beleza artística, o qual representa uma realidade ontológica superior e independente de considerações de caráter moral, e que remete para Deus, puro Espírito.

Por isso, segundo de Bruyne, às vezes a mensagem espiritual transmitida pela obra de arte não consiste em que seja em si mesma muito expressiva, mas em revelar a enorme paciência e habilidade do artista, em nos dar a conhecer algo de sua própria alma.

Harmonia de opostos não contraditórios

Para concluir, um comentário a respeito da fórmula empregada por Cassiodoro e consignada por de Bruyne, para exprimir a harmonia das coisas opostas e não contraditórias: “ex diversis, non ex adversis”.

Julgo-a perfeita, lapidar e digna de ser retida. Parece-me muito agradável o emprego de palavras semelhantes — diversis, adversis — que, devido à inversão de uma sílaba ou de algumas letras, exprimem conceitos distintos, tornando o pensamento mais nítido ao espírito.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 23/4/1973)

 

1) Todas as referências a Edgar de Bruyne nesta seção reportam-se à sua obra L’Esthétique du Moyen Âge [A estética da Idade Média].

2) Escola de pensamento fundada em Paris por Hugo de São Vitor e Ricardo de São Vitor.

Admiração transformante

A experiência da vida nos confirma o princípio segundo o qual aquilo que admiramos penetra em nossa alma e nos transforma. Exemplo arquetípico dessa verdade encontramos em Nosso Senhor. Percorramos as páginas do Evangelho sob este ângulo e veremos como Ele, durante todo o tempo de sua passagem pelo mundo, procurou despertar admiração.

O povo que O ouvia não cabia em si de tanto admirá-Lo. E como se tal não bastasse, o Divino Mestre ainda se transfigurou no Tabor. Para quê? Para transformá-los, para obter o amor daquela gente, pois o autêntico amor começa pela admiração.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 30/9/1969)