Quem vive no pantanal da incompreensão, deve saber voar

Ao analisar as impressões causadas pela observação de uma bela ave, Dr. Plinio as correlaciona com a vida de quem faz apostolado.

 

Há uma ave que sempre me encantou e, ao mesmo tempo, me deixou um tanto desconcertado: a garça.

Em primeiro lugar, por causa da cor branca nívea, que me agradava muito. Depois, devido à sua — se assim se pode dizer — construção, pela qual ela tem o corpo todo branco, de onde sai um pescoço delicado e elegantemente torneado, com uma cabecinha para conter olhos, narinas e um bico muito grande, causando a impressão de um símbolo da capacidade de captar, prever e agir à distância.

E tudo sobre duas pernas fininhas, que parecem ser de ar. À primeira vista têm-se a sensação de que a garça não está pisando em nada, mas flutua no ar. Só se percebe que ela se move quando, com suas pernas compridas, abre a pata de palmípede e marcha num passo elegante. Ela avança com elegância, distinção e império; “manda” com tanta finura e autoridade no minúsculo território onde é rainha que dá gosto, a quem aprecia o princípio da autoridade, ver a garça mover-se.

Se fosse capaz de pensar, ela faria um raciocínio assim:

“Que vida eu levo! Tenho pernas tão frágeis que preciso andar com muito cuidado, pois qualquer coisa pode quebrá-las. Sou feita para caminhar no meio dos pântanos a fim de encontrar minha comida nos vermes, que todo mundo reputa sujeira. Na minha brancura nívea, sou uma coletora de insetos repugnantes dos quais tenho que fazer a minha delícia. Meu bico tão comprido, seletivo, exigente, é um captador de coisinhas que todo mundo rejeita… Que vida eu levo!”

A garça poderia julgar que está condenada ao império dos pantanais e aos banquetes repugnantes. Como ela deveria achar triste a sua existência! Em determinado momento, movida por algum instinto, abre as asas e voa! Adeus, pântanos! Adeus insetos, ela também possui o ar, as vastidões, o sol que bate em suas asas e a torna rutilante como se ela fosse feita de neve; suas pernas parecem filamentos que prolongam garbosamente sua estatura. Ela corta o ar com um voo muito mais elegante do que elegantes são seus passos.

Assim são também certos movimentos de idéias, obrigados a fazer na vida de todos os dias apostolado nos pantanais das indecisões e incompreensões. Assim como a garça voa, a Providência propicia favores para que o homem de ideal voe também. São as consolações celestes, as recompensas e as horas em que nosso movimento, por exemplo, pode abrir largamente as suas asas, diante de todo o mundo e brilhar… refletindo — na alvura e pureza de seus ideais, no rigor de sua ortodoxia, no entusiasmo de sua dedicação, sem intuito de remuneração ou recompensa terrena — a santidade do próprio Deus, como a garça reflete o brilho do próprio sol. É a luz que voa e se espalha, longamente, parecida com a trajetória gloriosa da garça.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/8/1990)

Corrigi-me em minha oração

Minha Mãe, Vós sabeis o que me convém, entretanto eu nem sempre o sei. Às vezes eu não peço o que me convém, porque não sei. Outras vezes eu peço o que não me convém, porque imagino que é bom.

Senhora, eu Vos peço, ponde um seletivo em minha oração. De forma que Vós, que bem sabeis o que me é conveniente, me obtenhais, ainda que eu não peça, porque eu não sei o que de fato me convém. Corrigi-me em minha oração, caso peça algo que me pareça muito razoável, porém por razões que ignoro e Vós sabeis, não seja conveniente.

Fazei o que me convenha!

“Oportet semper orare et non deficere!” É preciso rezar sempre e não desanimar nunca!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/12/1987)

Admirável, austera e silenciosa Trapa

O verdadeiro apostolado não é feito em meio à aparente prosperidade de uma vida sem cruzes; pelo contrário, o sofrimento bem aceito promove o crescimento das obras de Deus. Estas são as considerações feitas por Dr. Plinio ao narrar um maravilhoso fato da Ordem Trapista.

 

Os trapistas constituem um ramo da ordem de Cister, que segue a regra de São Bento, o qual se dedica inteiramente à vida de recolhimento. Eles vivem enclausurados em mosteiros sem nem sequer receber visitas. Alternam a oração litúrgica — na qual aplicam a maior parte do seu tempo, sete horas por dia — com trabalhos manuais e estudos de caráter ascético e místico.

Os monges da Trapa têm por objetivo levar uma vida de muita penitência: jamais falam — a não ser em ocasiões da mais estrita e imperiosa necessidade —; praticam estritamente o jejum, jamais comendo carne, peixe ou ovos, a não ser por recomendação médica. Com um detalhe: nesses casos, os ovos podem ser comidos no refeitório, porém, a carne e o peixe só na enfermaria.

Essa Ordem admirável passou — como todas as coisas admiráveis passam — por muitas peripécias.

O verdadeiro conceito de admirável

O conceito que, hoje em dia, as pessoas têm de admirável é um tanto diferente daquele que se tinha antigamente.

Para os homens de hoje, alguém é admirável quando triunfa com facilidade sem jamais passar por provações sérias e duras. Quando, na realidade, é verdadeiramente admirável — no sentido cristão da palavra — quem passa por reveses e derrotas, por perigos e angústias, mas, com a graça de Deus, as acaba vencendo.

Percebe-se isto na vida de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele operou inúmeros milagres, foi aclamado Rei em Jerusalém no Domingo de Ramos, e passou por aquilo que, para os espíritos superficiais da época, pareceu súbita e inesperada derrocada: sua Paixão e Crucifixão.

Uma obra de apostolado só é autêntica quando as pessoas que nela trabalham compreendem o valor das cruzes. As luzes são fáceis de compreender. Todo labor apostólico passa, necessariamente, por altos e baixos, por luzes e por cruzes.

Narro-lhes um fato curioso que se deu numa Trapa durante a Revolução Francesa.

O exílio da Trapa

Com a Revolução Francesa foram extintas todas as Ordens Religiosas que havia na França.

Houve, entretanto, um Abade da Trapa, que, no dia 26 de abril de 1791, resolveu não permitir que sua Ordem se extinguisse e deliberou então sair da França: era Dom Augustin de Lestrange (1754-1827), homem muito empreendedor e corajoso. Com outros vinte e quatro monges empreendeu uma viagem em direção à Suíça, pois este era o ponto mais adequando para obter o êxito da iniciativa.

Num dos cantões suíços — espécie de província —, o cantão de Friburgo, havia um convento abandonado, antes propriedade dos Cartuxos, e, por uma graça da Providência, as autoridades locais o puseram à disposição de Dom Augustin e de seus monges.

Como fizeram eles tal viagem?

Empreenderam todo o percurso, da França até a Suíça, num grande carro fechado onde cabiam os vinte e cinco religiosos. O veículo era todo cercado por uma tela, a fim de que não rompessem o recolhimento religioso olhando para o exterior. Iam, durante todo o dia, cantando o Ofício e cumprindo o programa regular do mosteiro, dentro da carruagem.

À noite, dormiam ao relento — sobre um monte de feno ou sobre o chão diretamente — e nunca em hospedarias. Antes de dormir, se reuniam para cantar a Salve Regina, como faziam no Mosteiro da Trapa.

Depois de chegarem à Suíça e se instalarem, quando ainda agradeciam a Deus, que de um modo tão maravilhoso os tinha levado a esse remanso de paz onde podiam continuar sua vida religiosa, outro tufão: as tropas revolucionárias francesas invadiram a Suíça, e eles foram obrigados a fugir novamente, passando para a Rússia. Tudo isto com o mesmo estilo de vida, dentro do famoso carro. Resolveram, depois dirigir-se para a Inglaterra, e como lá não puderam ficar, viajaram para os Estados Unidos!

Fixaram-se nos Estados Unidos, lá permanecendo por algum tempo, até que a notícia da queda de Napoleão e da ascensão de Luís XVIII ao trono os fez voltar para a França e instalarem-se na mesma Trapa que tinham abandonado anos antes.

Derrocada ou triunfo?

Qual o resultado de tantas viagens? Durante o tempo das fugas, em todos os lugares por onde passavam, formavam novas Trapas, de maneira a constituir um número considerável de mosteiros fora da França, com um total de seiscentos religiosos. Quando eles partiram da França eram apenas vinte e cinco!

Admiremos os desígnios de Deus: a Providência quis espalhar essa Ordem, voltada ao sofrimento, pelo mundo inteiro.

Construíram, congregaram e venceram

Tarefa dificílima foi, sem dúvida, a de obter que tantas pessoas amassem a dura vida de contemplação e isolamento de um trapista. Para tal, era preciso possuir um senso apostólico extraordinário.

Esses homens, no auge da destruição, construíram; no auge da dispersão, congregaram; no auge da derrocada, venceram, transformando a derrota numa verdadeira apoteose. Vê-se com isto do que é capaz a Fé e o devotamento sem limite a um ideal.

Para humilhar os revolucionários, a Providência fez que tal perseguição fosse a ocasião da disseminação da Trapa. Sem essa perseguição, a Trapa jamais teria se expandido tanto.

Isto é uma verdadeira maravilha! Vinte e cinco homens que possuíam um ideal e, apesar de todos os reveses, dele não desistiram: não há mais convento, porém vive-se o cerimonial dentro de um carro; não há cama, dorme-se no chão; é-se expulso para um lugar, aproveita-se para lá fazer apostolado; e de lá enxotado, deixa-se uma semente plantada. Apesar de tudo pelo que passaram, o ideal trapista se manteve e, em vinte e cinco anos, sua Ordem atingira um assombroso desenvolvimento.

A árdua vida de um trapista

A vida de um trapista é, sem dúvida, árdua. Em certos dias, eles acordam à 1:00 hora da manhã, em outros à 1:30 ou 2:00. Quando no silêncio da noite toca o sino, todos se levantam.

O monge trapista dorme vestido com o hábito religioso e, ao levantar-se, vai com rapidez para a igreja — segundo a recomendação de São Bernardo — a fim de cantar as Matinas.

Alguém poderia objetar: “Apesar de tudo isto, a vida de um trapista não é tão difícil, pois ele não tem mais o choque que o comum dos homens tem com o mundo. O monge da Trapa rompeu com o mundo, de modo que as atrações deste já não o atraem mais”.

É verdade que o trapista cortou com o mundo, e o mundo não existe mais para ele. Entretanto, dou um exemplo que é o seguinte: quando, estando fora de um trem, alguém o vê passar, com aquelas cortininhas nas janelas dos vagões e a chaminé da locomotiva — no tempo que se usavam locomotivas com chaminé — deitando uma fumaça poética, e as pessoas que estão dentro serem levadas vertiginosamente para destinos complicados e épicos, tem a impressão de que o trem é uma coisa sedutora! É preciso entrar nele para se compreender que tal viagem é um verdadeiro horror, e que basta ele parar nas estações para todos saírem a fim de passear, porque não se aguenta estar ali dentro por muito tempo.

Pois bem, “tranca-se” o monge no convento e o que acontece? Ele perde a noção do que era o mundo e começa a ver o trem do lado de fora. É fatal! Começam então as ilusões, as tentações.

Poderia então alguém perguntar: “Ora, o que é mais fácil: viver no mosteiro ou fora dele?”

Quem não tem uma graça especial para a vida de clausura, não a aguenta; quem a tem, trate de não imaginar que o outro estado de vida é muito mais leve e compreenda que Deus põe a cruz no caminho de todos aqueles a quem Ele ama.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/6/1970)

 

Bendito o dia que viu Nossa Senhora nascer!

Segundo a Liturgia, foi no mês de setembro que, há mais de vinte séculos, veio ao mundo a Mulher destinada a ser Mãe do Divino Salvador. Ao recordar esse nascimento entre todos venturoso  para o gênero humano, Dr. Plinio teceu os piedosos e admirativos comentários que ora transcrevemos.

 

O nascimento de Nossa Senhora trouxe para a humanidade um valor que, devido à falta de nossos primeiros pais, era então desconhecido: uma criatura isenta de qualquer mancha, um lírio de incomparável formosura que deveria alegrar os coros angélicos e a terra inteira. Era, em meio ao exílio do gênero humano corrompido, o aparecimento de um ser imaculado, concebido sem  pecado original.

Considere-se ainda que Nossa Senhora trazia consigo todas as riquezas naturais que podem caber numa mulher. Deus lhe concedeu uma personalidade valiosíssima, e, a esse título também, sua  presença entre os homens representava um tesouro verdadeiramente incalculável.

Entretanto, se aos dons naturais acrescentarmos os tesouros das graças incomensuráveis que com Ela vinham, as maiores que Deus Nosso Senhor tenha concedido a alguém, podemos compreender o enorme significado de seu advento ao mundo. O nascer do sol é uma pálida realidade em comparação com a resplandecente aurora que foi o aparecimento de Nossa Senhora nesta   terra! A entronização mais solene que se possa imaginar de um rei ou de uma rainha, ou os fenômenos da natureza mais grandiosos, nada são diante do nascimento de Maria, momento bendito  certamente saudado pela alegria de todos os Anjos do Céu, e pode-se conjecturar que tenha provocado inusitados sentimentos de júbilo nas almas retas esparsas pela terra.

Esse sentimento de alegria bem pode ser expresso com uma paráfrase das palavras de Jó: “Bendito o dia que viu Nossa Senhora nascer, benditas as estrelas que A viram pequenina, bendito o  momento em que veio ao  mundo a criatura virginal destinada a ser Mãe do Salvador!”

O início de nossa redenção

Se se pode dizer que a redenção dos homens teve início com o nascimento de  Nosso Senhor Jesus Cristo, pode-se afirmar que o mesmo se aplica — guardadas as proporções — à natividade de Nossa Senhora. Pois tudo quanto o Salvador nos trouxe, começou a nos vir com Aquela que O daria ao mundo.

Daí se compreendem todas as esperanças de salvação, de indulgência, de reconciliação, de perdão e de misericórdia que se abriram, afinal, para a humanidade, naquele bendito dia em que Maria nasceu nesta terra de exílio. Feliz e magnífico momento, marco inicial de uma existência insondavelmente perfeita, pura, fiel, e que seria a maior glória do gênero humano em todos os tempos,  abaixo apenas de Nosso Senhor  Jesus Cristo, o Verbo de Deus encarnado.

Afirmam muitos teólogos que, concebida sem pecado  original, Nossa Senhora foi dotada do uso da razão desde o primeiro instante de seu ser. Vivendo no seio de Sant’Ana como num tabernáculo,  á tinha, portanto, altíssimos e sublimíssimos pensamentos. Pode-se traçar um paralelo dessa situação com o que narra a Sagrada Escritura a respeito de São João Batista. Ele, que fora engendrado no pecado original, ao ouvir a voz de Nossa Senhora saudando Santa Isabel, estremeceu de alegria no seio de sua mãe.

É possível, assim, que a Bem-aventurada Virgem, com a altíssima ciência que recebera pela graça de Deus, já no seio de Sant’Ana tenha começado a pedir a vinda do Messias, estabelecendo-se, em  seu espírito, o elevadíssimo intuito de vir a ser, um dia, a servidora da Mãe do Redentor.

De qualquer modo, sua presença na terra era uma fonte de graças para todos os que d’Ela se aproximavam, quando ainda se encontrava no seio de Sant’Ana, e mais ainda depois de seu  nascimento. Se da túnica de  Nosso Senhor, como conta o Evangelho, irradiavam-se virtudes curativas para quem a tocasse, quanto mais da Mãe de Deus, Vaso de Eleição!

Recém-nascida e já vitoriosa sobre o demônio

A vinda do Salvador seria a derrota de todo o mal no gênero humano. Portanto, no bendito momento do nascimento da Santíssima Virgem, a vitória do bem começou a ser afirmada e o demônio a  ser esmagado, ele mesmo percebendo que algo de seu cetro estava irremediavelmente partido. Era Nossa Senhora já começando a influir nos destinos da humanidade.

O mundo de então achava-se prostrado no mais radical paganismo. Uma situação em tudo parecida com a de nossos dias: todos os vícios imperavam, todas as formas de idolatria tinham  dominado a terra, e a decadência ameaçava a própria religião judaica, que era o prenúncio da religião católica. Por toda parte, o erro e o demônio eram vitoriosos. Porém, no momento decretado por Deus em sua misericórdia, Ele derruba a muralha do mal, fazendo nascer Nossa Senhora. E com a vinda d’Ela — que era a raiz de Jessé, da qual nasceria o divino lírio, Nosso Senhor Jesus  Cristo — tinha início a irreversível destruição do reino de satanás.

“Nascimento” de Maria em nossa vida espiritual …

Esse triunfo de Nossa Senhora sobre o mal, já por ocasião do nascimento d’Ela, sugere-nos outra reflexão.

Quantas vezes, em nossa vida espiritual, vemo-nos imersos na luta contra as tentações, contorcendo-nos e nos revolvendo em dificuldades! E não temos ideia de quando virá o bendito dia em que  uma grande graça, um insigne favor, colocará fim a nossos tormentos, a nossas lutas, e, afinal, nos proporcionará um grande progresso na prática da virtude. É então que se verifica um como que  nascimento da Santíssima Virgem em nossa alma. Na noite das maiores provações e das mais espessas trevas, Ela surge e desde logo começa a vencer as dificuldades com que nos defrontamos.

Nesse momento, Ela se levanta também  como uma aurora em nossa existência e, em nossa vida espiritual, passa a representar um papel até então desconhecido por nós.  Esse pensamento nos  deve encher de alegria e de esperança,  e nos dar a certeza de que Nossa Senhora nunca nos abandona. Nas horas mais difíceis por que passamos, Ela como que irrompe entre nós, resolve todos os  nossos problemas, alivia nossas dores, e nos dá a  combatividade e a coragem necessárias para cumprirmos nosso dever até o fim, por mais árduo que este seja.

A maior consolação que Ela nos traz é, precisamente, o fortalecer nossa vontade, para empreendermos a luta contra os inimigos da nossa salvação.

… e nas tramas da história

Como nos fortalece, também, para nos tornarmos zelosos filhos da Igreja e defensores da religião católica. Elementos históricos existem para se poder afirmar que todas as grandes almas que  combateram as diversas heresias, ao longo dos séculos, foram especialmente suscitadas por Nossa Senhora. É o que insinua, de modo muito bonito, o brasão dos claretianos, onde, além do  Imaculado Coração de Maria, figuram São Miguel Arcanjo e a divisa: Os filhos d’Ela se levantaram e A proclamaram Bem-aventurada.

Esse levantar dos devotos da Santíssima Virgem para glorificá-La não é também uma forma de nascimento d’Ela, como magnífica aurora, nas tramas da história? Assim, os verdadeiros filhos de  Nossa Senhora devem desejar e pedir a Ela a graça de serem indomáveis e implacáveis contra o demônio e seus sequazes que, em nossos dias, procuram conspurcar a glória da imortal Igreja de  Cristo.

Plinio Corrêa de Oliveira

De ferro em ouro

São Luís Grignion de Montfort compara Nossa Senhora a uma fornalha ardente e contínua de amor de Deus, na qual todo ferro que nela se lança fica abrasado e se transforma em ouro (Tratado, nº 261).

Bela imagem, que nos deve encorajar na devoção à Santíssima Virgem: tributando-Lhe nosso amor e nossa confiança, Ela há de transformar por completo nossa alma — antes dura e fria como o  ferro — em ouro, em nobre metal incandescente de piedade e adoração a Deus.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 5/6/1972)

A medula da Contra-Revolução em Plinio Corrêa de Oliveira

Desde a infância, pode-se dizer que Dr. Plinio teve uma verdadeira troca de vontades com a Igreja, e foi recusando, uma por uma, as coisas revolucionárias que passavam diante dele. E, em sentido oposto, gradualmente foi concebendo uma Ordem Religiosa contrarrevolucionária, através da qual vislumbrou o Reino de Maria.

 

Comigo, as devoções se inserem dentro de ciclos de pensamento e vão sendo assim relacionadas. É uma coisa muito singular. Suponho ser assim com todo o mundo, mas as pessoas não tomam o trabalho de explicitar.

A tintura-mãe mais sacral, forte, perfeita, insondável da Contra-Revolução

As graças que recebi quando pequeno, e até mocinho, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, foram muito profundas como visão de Quem e de como é Nosso Senhor. De tal profundidade e alcance que pude, depois, crescer em explicitação, mas duvido que eu pudesse — salvo um fenômeno da vida mística que não tive — conhecer mais do que conheci.

E isso foi acompanhado o tempo inteiro pela devoção a Maria Santíssima, a partir daquela graça de Nossa Senhora Auxiliadora, que se deu quando eu era ainda muito menino(1).

Na minha impostação, toda a luta da Contra-Revolução é uma defesa do que poderíamos chamar a mentalidade, o espírito do Sagrado Coração de Jesus contra a Revolução; porque é a tintura-mãe mais sacral, mais forte, mais perfeita, mais insondável da Contra-Revolução.

E daí se dar, com o passar do tempo, um contínuo relacionar disso com a luta Revolução e Contra-Revolução, por onde eu ia conhecendo o mesmo espírito, a mesma mentalidade, mas já no contraste com o oposto, aplicando e crescendo muito mais em fidelidade do que compreensão, nessa segunda fase. Em compreensão também, naturalmente, pois ia maturando com a idade; mas o crescimento da fidelidade era muito maior, porque, uma por uma, as coisas revolucionárias passaram diante de mim, e eu tive que recusá-las.

O lado positivo desse processo foi a elaboração gradual do que eu chamaria nossa Ordem Religiosa e, através dela, o vislumbre do Reino de Maria, que antigamente era para mim a mera Idade Média.

Isso levou anos e anos — quase toda a minha vida — correspondendo a elucubrações que, afinal de contas, pressupõem não haver uma concepção cultural, artística, política, moral, ou de qualquer outro caráter, que não gire direta e especificamente em torno disto: o Sagrado Coração de Jesus.

A certa altura, entrou o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, de São Luís Grignion de Montfort, e com isso uma ideia muito maior da intimidade com Nosso Senhor, por meio da sagrada escravidão a Nossa Senhora.

Então, a devoção a Ela cresceu muito, enquanto que a Ele continuou, dando numa dessas adesões estáveis, tranquilas, profundas, se Deus quiser da vida inteira, mas que parece não se mover. Precisamente por ter chegado a um certo ponto onde tem todo o necessário para alimentar o resto da trajetória.

Reflexões a partir da infinita nobreza de Nosso Senhor

Lembro-me de coisas ínfimas. Por exemplo, quando eu era pequeno, e até moço, meu quarto na casa de vovó ficava numa posição em que da janela avistava-se a escada de serviço, por onde entravam os empregados. E eu os ouvia, subindo, descendo e conversando.

Ademais, minha avó era caritativa e apareciam umas figuras populares pitorescas por lá, para pedir esmolas. Por exemplo, uma italiana, velhinha, muito branca, nariz aquilino, com umas veias azuis aparecendo pelo rosto, mãozinhas pequenas, arqueadas, as quais ela não conseguia fechar inteiramente, de tão velha que estava. Ela se arrastava, não sei de que porão das redondezas onde morava, e ia comer, juntamente com o “Antônio cego” e uma mulher chamada Serafina, embaixo da escada, que era um pequeno “Pátio dos Milagres”(2).

Eu ficava deitado na cama, fazendo a sesta, mas acordado, e ouvia o borbulhar daquela gente. Depois, olhava para meu quarto que era muito bem arranjado, agradável, espaçoso, com um papel de parede que me encantava, vindo de Paris.

Chegavam-me também os ecos da sala de jantar: minha mãe, minhas tias, minha avó conversando, com risos, exclamações, o telefone que soava, o cachorrinho lulu da minha prima, que ladrava, etc.

Ora eu analisava o meu quarto, ora os ruídos vindos de fora, e fazia reflexões sobre classes sociais que eram, no fundo, pensamentos sobre a transcendência, mas a partir da ideia da infinita nobreza de Nosso Senhor Jesus Cristo, que me parecia a própria personificação do nobre.

Mas percebia que se não abrisse os olhos e não fizesse essas classificações direito, na ambiguidade de todas as coisas, eu acabaria sendo devorado para baixo. E, portanto, precisava evitar, a todo custo, decair porque deixaria de assemelhar-me a Nosso Senhor Jesus Cristo.

As maneiras “hollywoodianas” pareciam-me o contrário da sacralidade, e um atentado contra Ele. A tintura-mãe do conceito de nobreza é a sacralidade.

Podia ser que, terminada a sesta, eu conseguisse encontrar aberta a sala de visitas, a mais fina da casa. Entrava, então, escondido e ia me ambientar ali. E me regalava com aquela ambientação, que era o extremo da meditação iniciada junto à escadaria, onde estava o meu quarto, e que ia subindo, subindo, até aquele ponto.

Tudo isso representava destilações e aplicações ao concreto da fidelidade ao Sagrado Coração de Jesus. Quer dizer, era uma verdadeira meditação, por onde Ele me acompanhava nisso tudo.

Sucessão de dois estados de espírito

Lembro-me de uma espécie de dualidade que havia em mim a qual mais ou menos se resolveu, cicatrizou de todo em todo quando entrei para o Movimento Católico.

Não era a dualidade clássica, que naturalmente havia e há em nós até morrermos, entre o homem mau e o homem bom, entre o estado de graça e a tentação para o pecado mortal. Não se tratava disso. Nem a matéria de pecado estava diretamente envolvida no assunto.

Eram dois estados de espírito que se sucediam, mais ou menos como uma luz que se apaga ou se acende dentro de uma sala, por exemplo.

Um era de um personagem menino, já muito sério, com as vistas muito voltadas para o maravilhoso, para tudo quanto há de mais elevado, para todas as harmonias, todas as profundidades; portanto, para uma coisa que eu não sabia que se chamava recolhimento — mas que era uma espécie de recolhimento contínuo — e algo que eu não sabia que era piedade — porque piedade para mim existia só na hora estrita de rezar —, mas noto hoje que era piedade. Era, então, um menino muito voltado para os assuntos relacionados com a Revolução e a Contra-Revolução.

Este menino não era um asceta e julgava como natural próprio dele fruir as coisas normais que, dentro do estado de graça, o menino pode desfrutar. Não tinha ideia de santidade, não possuía o intuito de alcançar a perfeição moral, mas apenas o de realizar uma obra para a qual se sentia chamado. Entretanto, tinha um propósito firme de se manter no estado de graça.

Este estado de espírito, no fundo, apesar das misérias, era profundamente bom, elevado e revelando um chamado muitíssimo marcado, que transpassava a minha alma de lado a lado. Era congênere com este estado de espírito uma certa seriedade um tanto melancólica, tristonha, mas carregada com ânimo varonil. E detestando tudo quanto era superficial, brincadeira idiota, etc.

De repente, havia uma amnésia de tudo isso e vinha, durante uma, duas, três horas, um estado de espírito diferente, superficial, brincalhão, e me deixando arrastar pelas formas de alegria dos anos 20 — que eram muito vivas, muito comunicativas, muito “hollywoodianas” —, sempre que eu não notasse nelas qualquer coisa de revolucionário. E elas comportavam muitas coisas que não eram revolucionárias, mas constituíam uma espécie de embalagem para entrar na Revolução. Esta eu não bebia, mas o que não era Revolução eu tomava e gostava, até muito.

Por exemplo, quando tinha entre 13 e 15 anos, de repente eu cantarolava a plenos pulmões esta ou aquela música que estava na moda — e em casa toleravam, não sei como, pois sempre tive uma voz muito forte. Cantarolava ou intimamente me lembrava de alguma coisa divertida, que assistira em algum teatro, repetia aquilo e achava graça.

Nas conversas com minha irmã e meus primos, sobretudo nas quintas-feiras, quando eles iam jantar em casa, havia uma mesa dos mais moços, na qual a brincadeira era debandada e eu era um dos chefes desse divertimento. Nunca havia coisas imorais, mas eram brincadeiras de mocinho, de mocinha, com toda intimidade. Então falando mal deste, daquele, da sociedade, dos parentes deles, empregando apelidos, debicando a minha família do norte… Sem nada de insultante. E às vezes um acentuando o defeito do outro, etc.

Eram coisas que contrastavam com o estado de espírito dessa seriedade que eu devia tomar. E, se me deixasse entregar, isso me levaria depois para uma atitude de alheamento em relação à minha própria vocação, e estremeço em pensar até onde esse alheamento me poderia conduzir.  Mas disso tudo eu não tinha noção.

Como eu vivia continuamente na companhia desses primos, minha presença também determinava, excetuadas as quintas-feiras à noite, muitas conversas sérias sobre História, às vezes discussão a respeito de religião com o marido de uma prima, que era ateu, mas muito meu amigo. Chegava à discussão furibunda, e entrava muito de seriedade pelo meio.

Aos poucos fui me dando conta da contradição entre aquelas brincadeiras e o meu perfil de contrarrevolucionário, e eu mesmo comecei a acentuar o corte com aquilo, até cortar completamente.

Ouvindo músicas de Chopin e Verdi

Certas músicas e formas literárias do século XIX pareciam contrarrevolucionárias, em comparação com o que a Revolução apresentava nesse período descrito por mim. E levei algum tempo para perceber que elas, no fundo, eram revolucionárias também, embora correspondessem à Revolução atrasada.

Então, havia certos compositores que me diziam muito. Desde logo e sempre, mas com prolongamentos de condescendência até hoje — não cumplicidade, mas compreensão —, Mozart. Eu ainda não conhecia Boccherini…

Mas tinha uma certa admiração, por exemplo, por Chopin. Então, na Polonaise Triunfal eu apreciava o lado heroico, contrário ao cinema norte-americano. Na Marcha Fúnebre, via um hino da seriedade, que era o oposto dos funerais hollywoodianos, com o cadáver maquiado sentado numa sala, bem como outras coisas que já naquele tempo se faziam e repercutiam sobre mim muito desfavoravelmente.

Certos trechos de Lamartine e outros literatos franceses do século XIX me pareciam elevados, grandiloquentes, e eu não percebia diretamente o aspecto revolucionário.

Nessa idade eu não tinha conivência com a Revolução; isto posso afirmar. Havia falta de percepção. Por ingenuidade, eu via um lado que existia mesmo e, por contradição, era contrarrevolucionário. Mas não notava o aspecto revolucionário. Com o tempo, percebendo que era ruim, fui deixando também.

Confesso que até Verdi teve uma certa repercussão na minha alma. A Marcha da Aida eu reputava o auge da Contra-Revolução! Eu tinha uma vitrola, um gramofonezinho, comprava discos e certo dia adquiri o dessa marcha. Ao mesmo tempo, comprei-o pela música e pelo fato de ser feito de uma matéria vermelha. Por aí podem ver as cogitações infantis, misturadas com o encanto pelas cores, desde o começo.

Aqueles atores italianos cantavam a plenos pulmões, e eu colocava o gramofone a todo volume e a Marcha da Aida enchia a casa! Não havia quem se lastimasse com aquilo. Fico pasmo e, rememorativamente, agradecido pela paciência que todos tinham, pois eu também não percebia. Não existia a mínima ideia sensual ou sentimental com a Aída, nem nenhuma Aida no meu espírito. Mas aquilo me parecia grandiloquente, o grande drama do teatro.

Eu imaginava o Scala de Milão repleto de gente, o rei, a rainha — a Itália ainda era uma monarquia naquele tempo — assistindo em camarotes, e os atores cantando a plenos pulmões, sustentando aquela espécie de desafio, de maneira a simbolizar a pompa social e a monarquia real em termos culturais no seu esplendor.

O teatrinho ”João Minhoca”

Dou um outro exemplo.

Havia em Santos, onde íamos passar as férias no meio do ano, um parque de diversões próximo ao Hotel Parque Balneário, onde existia o “João Minhoca”, teatro de fantoches animados por um italiano. As figurinhas entravam, cantavam, diziam isto, aquilo, etc., e o bom italiano, talvez sem se dar conta, era extremamente pitoresco.

Um colega descobriu isso e convidou-me para assistir, com mais três ou quatro amigos. Fomos e fizemos propaganda. De maneira que, em certas noites, ia um farrancho de gente do Parque Balneário para ver a representação do “João Minhoca”.

Como a sociedade daquele tempo era muito mais hierarquizada do que a atual, reservavam espontaneamente os primeiros lugares para os eventuais espectadores do Parque Balneário. Então, ficávamos sentados na primeira fila, acabando por dar a nota ao ambiente, cujas pessoas aplaudiam o que aplaudíamos e achavam graça naquilo em que também achássemos.

Um dos bonequinhos representava um engraxate que entrava no palco cantando, em português macarrônico, toda uma ária. Nós achávamos muita graça quando chegava a hora do engraxate, e aplaudíamos vigorosamente. Eu, naturalmente, era dos puxadores de palmas. Depois, em casa, eu cantava a “ária do engraxate”. E todo mundo tolerava de modo surpreendente.

Mas isso revelava uma tendência para súbitos cansaços da clave superior, meio subconscientes, e repentinos anseios de levar uma vida desengajada, não responsável e feita para meu próprio lazer. Mas eu não percebia, no começo, uma incompatibilidade absoluta entre uma coisa e outra; notava serem diferentes, mas julgava que podiam coexistir bem.

Com o tempo fui percebendo que não. Nesse período, os meus olhos foram se abrindo mais para esse problema, e quando me engajei no Movimento Mariano cortei com isso completamente.

Já moço, nas fotografias tiradas antes de me formar em Direito — na Linha de Tiro, nas Congregações Marianas e em outras ocasiões —, nota-se como esse lado desapareceu e o outro preponderou, graças a Nossa Senhora.

Esperança de encontrar pessoas mais contrarrevolucionárias

Ao mesmo tempo, a consciência de minha vocação se apresentava em termos tão altos, que eu podia dizer — sem me comparar, nem de longe, com Carlos Magno — que a missão tinha um porte carolíngio. E o futuro se apresentava a mim com lufadas de caráter profético, de uma grandeza enorme!

Nessa mesma época em que, de vez em quando, eu tinha esses acessos – um misto de infantilidade e de evasão dessa grandeza, que constituíam uma tentação —, ficava na dúvida sobre o real valor dessas previsões que sentia.

Que estava diante de mim a Revolução eu não tinha dúvida nenhuma. Que era preciso fazer a Contra-Revolução e eu teria de trabalhar muito para fazê-la, eu não tinha dúvida nenhuma.  Que ao longo de minha vida não encontrasse pessoas mais contrarrevolucionárias do que eu, tinha receio, mas uma esperança enorme que não fosse assim; pelo contrário, esperava encontrar tais pessoas, investidas de um verdadeiro direito ao mando nessa matéria, e das quais eu pudesse ser um campeão, mas nunca um diretor, um mentor.

Pensava eu: “Nas fileiras das classes sociais que a Revolução pretende destruir, devo encontrar os contrarrevolucionários perfeitos, com direito a mando, e junto aos quais eu possa exercer uma influência na linha do que está no meu espírito”.

Mas, às vezes, a esse pensamento seguia-se outro: “Coitada de Nossa Senhora! Desconfio que Ela terá que se contentar comigo. Porque vejo que fazer Ela fará, pega qualquer ‘dois de paus’ e o utiliza para realizar sua obra, se os naturalmente chamados não quiserem”.

Isso eu considerava sem ambição e, sobretudo, sem qualquer vaidade, sentindo bem minha desproporção. Aquela expressão de São Luís Maria Grignion de Montfort, “petit vermisseau et miserable pécheur”(3), entrou na minha alma até o fundo. Assim sou eu e assim é todo o mundo.

De outro lado, tinha até certo receio de que isso fosse verdade, pois exigiria de mim mais esforço para chegar ao píncaro de mim mesmo, e mais luta do que eu teria se seguisse um chefe. Mas, poderia ser eu, e deveria me preparar inclusive para isso.

Troca de vontades com a Igreja Católica

Depois de minha viagem a Europa, em 1950, a ideia de uma missão pessoal se vincou muito mais em meu espírito, dando-se uma espécie de união entre esta vocação e eu, no sentido de que, na Terra inteira, quem abriu o coração de par em par para isso, pelo menos naquela ocasião, fui eu. E mais ou menos como a pomba de Noé, que teve de voltar para a arca por não encontrar lugar onde pousar, eu sentia incidir sobre mim a vocação.

Com a convicção de que era preciso amar, mais do que nunca, todas as grandezas do passado. E não somente amá-las, mas de algum modo sê-las! De maneira tal que eu percebia tratar-se de uma tradição quase milenar que estava expirando, e que não morria inteiramente porque habitava em mim; e a partir de mim teria o seu renascimento.

Tenho até dificuldade em descrever a união de alma, a verdadeira troca de vontades com a Igreja Católica, enquanto oposta a tudo quanto a Revolução tinha feito, e trazendo em si todos os gérmens para realizar o contrário. E na Igreja Católica, ao pé da letra, com Aquele que era para mim a personificação, por superação, da Igreja Católica: o Sagrado Coração de Jesus.

Para ser bem positivo, essa espécie de troca de vontades começou em menino. E com a minha compenetração, com o exercício progressivo do papel que eu devia realizar, foi-se estabelecendo em minha alma, cada vez mais, uma união com aquilo que em determinado momento se tornou completa.

Tudo isso num processo interior do qual estou marcando algumas etapas, sem cronologia muito definida, porque não me lembro. Recordo-me apenas de que uma etapa sucedeu a outra.

Comecei a frequentar a igreja desde não sei quando. Mamãe me levava à Missa aos domingos no Coração de Jesus, e o edifício material da igreja exercia sobre mim um efeito sobrenatural da graça, que naquele tempo eu não sabia discernir. Eu pensava que decorria do aspecto do templo — de uma majestade doce, suave, acolhedora, embebida de uma tristeza compassiva, mas que ao mesmo tempo pedia compaixão —, de algo em que minha alma se sentia como diante do seu analogado primário(4) do modelo perfeito que queria ter. Tudo me falava de seriedade, de bondade, até o extremo concebível! Eu via que isto se exprimia muito nas cerimônias do culto, nos paramentos, na liturgia, no órgão, etc.

O órgão me maravilhava! O que eu tinha de pendor pelo órgão, era impossível dizer. Mas eu fazia raciocínios assim: “Este órgão parece a imitação de uma voz humana. E dir-se-ia ter havido uma vez na História um homem que falou de tal maneira, que todas as sílabas pronunciadas por ele tiveram o timbre de um órgão. Quem teria sido esse homem? Como é que o espírito dele chegou até quem compôs esse instrumento?”

A imagem do Sagrado Coração de Jesus e o Santo Sudário

Não custei a perceber que a imagem do Sagrado Coração de Jesus ali presente representava isso, ou seja, a Pessoa da qual emanavam todas essas coisas. Era Ele, especificamente enquanto fazendo ver seu Coração aos homens, com todas as perfeições, todas as maravilhas de alma possíveis, tudo quanto pode haver de bom realizado de um modo que eu não podia ter imaginado.

Por não possuir ainda suficiente formação catequética, supunha discernir tudo isso n’Ele pela análise psicológica da imagem. Hoje, quando a observo, vejo como ela está distante, na realidade, daquilo que a graça me fazia ver. É uma imagem digna de respeito, não tem dúvida, a qual quero muito, mas não diz o que eu via nela.

Era uma graça obtida por Nossa Senhora para mim. Eu “arquetipizava” corretamente a imagem. De maneira que, por exemplo, quando vi o Santo Sudário, eu disse: “É Ele!”

Mas hoje posso afirmar que isso que eu via, por ação da graça, na imagem era ainda mais fielmente Ele do que o Santo Sudário. O que se compreende, porque o Santo Sudário é a posição d’Ele como morto e como vítima. E a imagem do Sagrado Coração de Jesus representa-O vivo, acolhedor, afável…

Donde eu deduzia o seguinte: Jesus merece adoração, e eu O adoro inteiramente. É preciso querer até o fim, ter esta mentalidade completamente, assim se deve ser, isto é o meu ideal. Eu só sou congênere com quem é congênere com Ele. E quem não é congênere com Ele não o é comigo. Eu tenho parte com Ele, e quem não tem parte com Ele, não a tem comigo também.

Por conveniências sociais, educação, necessidade de apostolado, posso conduzir um convívio cordial. Mas ter parte com minha alma, querer bem, só quem for como Nosso Senhor.

Ele é Deus, porque ninguém tem inteligência nem virtude para inventar esta figura, a começar por mim. Se eu não tivesse visto isto na Igreja, não seria capaz de ter esta ideia que tenho d’Ele.

De onde longas orações ao pé da imagem, Ladainha do Coração de Jesus, etc.

E isso era o ponto de partida da Contra-Revolução na minha alma. Porque eu via o mundo “hollywoodizado” como o contrário daquilo tudo. E o mundo que a Revolução Francesa destruiu, e que eu também “arquetipizava”, eu o via como realizando em grande parte aquilo que Ele era. E percebia que quando se destruiu aquilo, quis se destruir a Ele, e não se desejou o que era conforme a Ele.

Donde a medula da Contra-Revolução, em mim, ser a devoção ao Sagrado Coração de Jesus.

Alguém poderia perguntar: “Mas por que o Sagrado Coração de Jesus, e não Jesus expirando na Cruz, por exemplo?”

A graça chama a cada um para certo tipo de devoção. É legítimo. Deus me livre de negar as outras mil formas magníficas de devoção, com que a Igreja Católica não cessa de louvar a Nosso Senhor Jesus Cristo durante a História. Mas sinto que fui chamado para adorá-Lo especialmente assim.

Dona Lucilia e o Sagrado Coração de Jesus

Meu afeto para com mamãe era por isto. Em geral, eu me sentava ao lado dela na igreja, e a olhava rezar e pensava: “É curioso, isto tudo vive nela”.

Eu a via rezar em casa para a imagem do Coração de Jesus que ela possuía em seu quarto, naquele oratório, a qual é muito anterior à imagem de alabastro do salão, e pensava: “Há uma atração entre Ele e ela. Mamãe é assim porque reza para Ele”. De onde o benquerer derivado. Eu a queria enormemente bem, mas por isto.

Para mim, a Igreja Católica é santa porque é como Ele. A influência e a presença d’Ele estão totalmente nela. A própria auréola que nimba a cabeça de Nosso Senhor é a Igreja Católica. É por isto que a amo.

A primeira coisa que me chama a atenção n’Ele é a presença de algo — que eu sei ser a divindade, mas estou procurando descrever o que vejo e não o que conheço pela Fé — de excelso, altíssimo, e que leva todas as qualidades que Ele tem a um grau inimaginável. Por mais que eu tente imaginar, qualquer qualidade d’Ele é de uma elevação, uma altitude, uma plenitude que não chego a compreender, mas vagamente entrevejo.

Por exemplo, Jesus ensinando os doutores no Templo. Aquele grupo de imagens, na Igreja do Coração de Jesus, é interessante, exprime mais ou menos isso. A crítica de homem maduro àquilo tudo eu fiz de modo completo, mas guardei com o máximo cuidado o que interessava.

Ali está Ele difundindo em torno de Si um halo de virtude divina, por onde todas as virtudes de um adolescente eram conduzidas a um elevado grau e procediam de uma fonte altíssima, insondável; por onde tudo o que no adolescente existe, por exemplo, de irrupção de vida, n’Ele era uma vida que irrompia tão cheia de elevação, de grandeza, de nobreza, que nem se sabe o que dizer. E também tão repleta de bondade, de misericórdia, de sabedoria, que galopava muito além da idade; mas que se exprimia com o timbre de voz e num vocabulário que não era inadequado para a idade. Entretanto, dizia muito mais do que todos aqueles doutores juntos.

O píncaro dos píncaros o qual nunca sonhei que existisse, a minha alma entreviu!

É mais ou menos como um monte altíssimo, no cume do qual vejo nascer um fio de água, que pode chegar até mim; mas tenho presente, durante todo o tempo em que bebo a água, que ela vem do alto daquela montanha, que eu vi nascer, a bem dizer, dentro do azul do céu.

A obra-prima
de Maria Santíssima

Isto para mim é a primeira impressão, diante da qual a tendência imediata é, ao mesmo tempo, de aproximar-me de Jesus, ajoelhar-me e, se Ele tolerasse, segurar seus pés para tê-Lo junto comigo, para ver se Ele me impregna mais.

Daí eu gostar tanto do “Anima Christi, sanctifica me”(5). Porque, se eu O visse, a primeira coisa que Lhe diria é: “Santifica-me!” Porque quero ser parecido com Ele. Depois desta elevação, vem tudo quanto uma alma inocente, habitada pela graça, pode imaginar no Menino Deus adolescente: o modo de Ele responder uma pergunta audaciosa, de ser afável com outro, de liquidar uma questão com três palavras simples que os deixavam boquiabertos. Mas com a despretensão e a naturalidade de quem diz: “Olhai os lírios do campo, não tecem nem fiam…”(6). Uma coisa superior, mas de tal superioridade, que junto a ela minha alma respira. Sinto falta de ar em tudo o que não é isto.

Tudo quanto é virtude, que vejo reluzir na Igreja, brilha daquela maneira porque tem n’Ele a fonte, e que em Jesus é de um modo a perder de vista!

Por exemplo, uma procissão nos bons tempos, que sai da Basílica de São Pedro com o Santíssimo Sacramento, o Papa levado numa espécie de estrado e ajoelhado diante da Hóstia; e a longa fileira dos Cardeais, dos Arcebispos, dos Bispos, dos Superiores Gerais das Ordens religiosas, etc., que dão a volta na Colunata de Bernini e entram na Basílica pelo outro lado; os sinos que tocam, o incenso que enche o ar, as pombas que esvoaçam e a multidão genuflexa que pede perdão. Tudo isso é reflexo d’Ele.

Compreende-se como é, no fundo, a Igreja reportando todas essas coisas a Nosso Senhor e, imaginado n’Ele, tudo isto fica tão alto… Mas, nos momentos em que se tem a experiência do “petit vermisseau et miserable pécheur”, vem à nossa mente, de vez em quando, a noção aflitiva da desproporção. Porque, enquanto a afinidade é empolgante, a desproporção é acabrunhadora.

Então, Jesus mesmo preencheu essa distância com a bondade d’Ele. A obra-prima do Coração d’Ele é Aquela de quem Ele é a obra-prima. Nosso Senhor é a obra-prima de Maria, mas antes de todos os séculos Maria foi ideada como a obra-prima da misericórdia d’Ele para preencher essa desproporção. Sem Ela, eu me sentiria ao mesmo tempo atraído indizivelmente, mas apavorado e aniquilado, pensando diante d’Ele: “Si iniquitates observaveris, Domine, Domine, quis sustinebit?”(7) A Mãe d’Ele me sustenta.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 26/11/1985 e 12/12/1985)
Revista Dr Plinio 197 (Agosto de 2014)

 

 

1) Ver Revista Dr. Plinio, n. 122, p. 18-23.

2) Cf. Revista Dr. Plinio, n. 32, p. 27.

3) Do francês: vermezinho e miserável pecador.

4) Termo utilizado em Filosofia, significando matriz, padrão.

5) Do latim: Alma de Cristo, santifica-me.

6) Cf. Mt 6, 28.

7) Do latim: Se consideras as culpas, Senhor, quem poderá se sustentar? (Sl 130, 3).

Monte Saint Michel – expressão da alma humana e simbolo de Deus

Se me fosse dado passar uma tarde diante do Mont Saint Michel, ditosos e abençoados seriam para mim esses momentos. Ali me agradaria estar, ora contemplando e analisando o mosteiro, ora  pensando em temas elevados que teriam com ele uma certa afinidade, sentindo sempre o calor de sua presença como ponto de referência para o voo variegado da cogitação de alguém que  descansa. Por onde enveredariam essas análises e reflexões?

* * *

O Mont Saint Michel é um conjunto de aspectos, uma unidade na variedade, que simboliza de modo muito eloquente determinados valores sobrenaturais, bem como certos movimentos e qualidades da alma humana. Esse simbolismo é mais bem compreendido se considerada a relação entre os diversos elementos que compõem o cenário.

Primeiro, o mar e a elevação rochosa. Para se medir a importância do mar nesse panorama, basta imaginarmos que, depois da praia, não houvesse mais o oceano, mas começasse a se alastrar ali uma megalópole contemporânea. Como tudo mudaria e perderia sua beleza tão singular!

Pelo contrário, como esse conjunto lucra e se enriquece com a presença do mar e seus diversos movimentos! Ora ele vem meio caprichoso, “boudeur”, fazendo um pouco de fronda, inunda a praia, enche todos os espaços em volta do monte e acaba por se chocar contra os rochedos que ele mesmo talhou, e com os quais construiu uma espécie de muralha natural para conter seu próprio  ímpeto. Ora ele se aproxima manso e se retira, deixando seu cartão de visitas nas franjas da areia. Ora são ondas que vêm e vão, lambendo a praia em todas as direções, como se o mar inteiro estivesse se espreguiçando e olhando para o mosteiro que, sobranceiro, do alto o observa.

E nisso temos a expressão de um estado de alma. Pois uma das formas de admirar o Mont Saint Michel seria a de alguém que, morando em frente a ele, ao acordar de manhã, e enquanto se  espreguiça, de sua janela o contempla. A admiração comporta essa atitude de espírito. Considerando o mar, poderíamos ainda ver seus diferentes movimentos se acercando ou não do mosteiro,  admirá-lo a distâncias diversas, como um símbolo dos movimentos — legitimamente vários — da apetência humana.

* * *

Há, depois, a extensa faixa de solo arenoso que aparece junto ao monte, quando as águas refluem e dele se afastam. A pergunta que nos vem à mente é esta: seria mais bonito que o mar tocasse  continuamente no mosteiro, e nunca deixasse à vista esse pedaço de terreno? Certamente, não. Porque, nesse conjunto, a grande praia tem seu papel. Em determinados momentos, ela permite ao  mosteiro conter o mar à distância, e como que dominar em torno de si uma periferia, tendo a seus pés areias  submissas e rasas.

E nesse aspecto do Mont Saint Michel encontramos também analogia com outro estado de alma do homem, quando este exerce alguma  função de mando e senhorio. Por sua vez, o rochedo lucra  bastante em ser único dentro de uma praia lisa e imensa. Parece-me inegável que sua beleza ficaria diminuída se houvesse quinze morros como ele, encostados uns nos outros, formando uma  espécie de cordilheira que avançaria para o mar.

O fato de ser único quase nos faz esquecer de sua altura. Pois quem está cercado de areia por todos os lados, tem todas as  alturas. Ele, nessa planície, não é um anônimo: é supremo.

Ele é ele, envolto por elementos rasos, dominando-os só por si. Muito mais do que sua altura, vale sua unicidade. A esta característica do Mont Saint Michel correspondem também algumas  disposições da alma humana. De fato, há coisas que ela admira quando são únicas e não vêm acompanhadas de outras igualmente belas. Por exemplo, uma joia constituída apenas de uma fina   corrente  de platina, da qual pende um brilhante  grande e claríssimo, posta sobre um fundo de veludo negro, pode ser mais esplêndida do que uma outra emoldurada por cem pedras preciosas. Às vezes é mais bonito ostentar essa valiosa companhia, outras vezes é apresentando- se como único. São estados do belo, que equivalem a estados do espírito humano: ora cada um de nós lucra  sendo visto no seu contexto, ora considerado na sua unicidade.

E para alçarmos logo o supremo voo dessas comparações, digamos que esse aspecto do Mont Saint Michel é uma pequena imagem do por onde o próprio Deus é único. Essa  é uma rocha firme e  alta, no meio de areias e praias movediças, como Deus é eterno e supremo no meio do movediço das coisas que Ele criou.

* * *

O rochedo e a vegetação. Destruamos esta e veremos como a aparência daquele fica prejudicada. Porque é agradável vislumbrar algum aspecto do mosteiro a perder-se na mata cerrada, a qual  imaginamos fresca, coberta de sombras, e talvez umedecida por duas ou três fontes que, nascidas do alto, por ela  correm num suave e apaziguante murmúrio…

Sem dúvida, é interessante ver o edifício como que se desfazendo em sombras e mistérios. Tanto ou mais bonito é vê-lo claro, altivo, agarrando-se ao rochedo que lhe serve de alicerce e  dominando-o; é contemplá-lo na elegância de suas linhas que avançam para o céu, e na solidez de suas pedras que resistem e se afirmam diante dos elementos adversos.

É bela a alma humana quando, com franqueza, proclama sua personalidade, se exprime e se define. É igualmente bela quando, com discrição, conserva alguma coisa consigo, exclusivamente sua.  Ter seus mistérios e suas explicações, ter suas proclamações mas também suas intimidades, constitui um jogo de aspectos muito nobre para o espírito humano. Então, não será algo em nós que  aprecia sua própria penumbra, e se deleita em olhar para o Mont Saint Michel? E não será algo em nós, sedento de proclamar-se, de afirmar-se e de ser uma fortaleza, que se identifica com esse  monte que assim se declara à luz do sol?

Sim, em todo homem se encontram essas várias disposições. Temos,   em nossa alma, facetas que  gostariam de se mostrar inteiras, sem véus; temos zonas delicadas que confiamos a poucos; e  outras  que, embora façam parte de nossa riqueza, nem nós conhecemos e tão-só as pressentimos, pois são vistas apenas por Deus. Resultado, a alma humana encontra na variedade do Mont Saint Michel uma expressão de si mesma, uma semelhança e uma alegria.

* * *

O mosteiro, mais bem um conglomerado de prédios distintos, tem algo de fortaleza, algo de residência e algo de igreja. Ombreando-se por entre as irregularidades do morro, as casas de uma pequena aldeia se eclipsam à sombra do grande e proeminente edifício religioso. No interior deste, um claustro que exprime ordenação e sabedoria extraordinárias, nascidas da piedade medieval,  filha ela mesma da ordem e da sapiência da Igreja Católica. Imaginemos a vida entre essas paredes sagradas: monges estudando em magníficas bibliotecas ou cantando o Ofício na igreja; um que  se acha recolhido em sua cela, desenhando lindas iluminuras num pergaminho, enquanto outro na oficina entalha um bonito  capitel para uma coluna ainda desprovida de ornatos.

Depois, na periferia das construções, há espaços para a luta e a guerra. Confundindo- se com as rochas, erguem-se como que muralhas nas quais podemos figurar monges cruzados resistindo e  expulsando, passo a passo, os invasores que debalde intentam conquistar a fortaleza  inexpugnável.

Como tudo se encaixa bem no Mont Saint Michel! Síntese de oração, de estudo, de recolhimento, de arte e de luta. Unicidade que encontra sua máxima expressão na torre do campanário, forte,  desafiante, inamovível, como se fora um pesa-papéis colocado sobre papéis diferentes, como quem diz: “O vento não os faz esvoaçar nem os tira daqui!” No alto dessa torre, uma flecha. No cimo da  flecha, a estátua do Arcanjo, que parece proclamar: “A síntese, a correlação de todos esses aspectos é tão vária e tão imensa que se perde nas nuvens, abisma-se no céu!”

E então poderíamos dizer que, no seu conjunto, o Mont Saint Michel é um magnífico símbolo do Sapiencial e Imaculado Coração de  Maria, Rainha dos Doutores, Rainha dos Profetas, Rainha dos  Mártires  e dos Guerreiros, Rainha de todos os Santos. Mais. Símbolo d’Aquele que veremos  face a face na bem-aventurança eterna, no seu vulto inteiro, embora não na totalidade de cada uma das  suas perfeições: Deus Nosso Senhor, infinitamente claro e infinitamente misterioso, pelos séculos  dos séculos. Amém!

Hierarquia e amor de Deus

O homem com espírito hierárquico se enleva com tudo de superior que ele vê, está voltado para Deus e dispondo sua alma para adorá-Lo por toda a eternidade, no Céu. E o indivíduo que, diante das qualidades dos outros, sente-se espezinhado ou indiferente, está se preparando para o antro de todas as revoltas, que é o Inferno.

 

Mais de uma vez tenho exposto a doutrina clássica da Igreja sobre a desigualdade, mostrando no que ela dá glória a Deus, por que é necessária, enfim, tudo quanto São Tomás de Aquino afirma a esse respeito.

Entretanto, tenho a impressão de que a mera explanação doutrinária não basta, e seria preciso fazer uma exposição vivencial do assunto por onde pudéssemos, por assim dizer, apalpá-lo, para depois aplicarmos mais facilmente a doutrina. E vou tentar, portanto, tocar o tema com a mão; vejamos como ele se deixa manusear.

Diante dos pombos, na Praça de São Marcos…

Estive algumas ocasiões — podem imaginar com que encanto! — na Praça de São Marcos, em Veneza. Sempre que vejo a Catedral, é com o mesmo entusiasmo, como se fosse a primeira vez. A laguna, as gôndolas, as duas colunas com o leão alado e com São Teodoro e o dragão, — entre as quais figura o lugar onde eram decapitados os réus de morte —, a entrada do Palácio Ducal… Oh! Que palácio! Se ali morasse, não um doge veneziano, mas um imperador — não das margens do Adriático, mas um imperador do Oceano Pacífico — aquele palácio ainda estaria superior ao personagem, de tal maneira é magnífico.

Depois de considerar todas essas maravilhas, o olhar cai naturalmente para as bagatelas, entre as quais os pombos que existem em quantidade na Praça de São Marcos. Os turistas costumam levar saquinhos com miolos de pão e outros alimentos semelhantes, que eles compram por ali, os jogam e os pombos vêm comer.

Eu ficava prestando atenção nos turistas — porque é interessante viajar olhando não só os monumentos, mas os homens e, no caso, também os pombos e os turistas lidando com eles. E eu analisava a reação de almas humanas em relação às aves, e diante do problema da desigualdade.

Quer dizer, eu me transformava de admirador da Praça de São Marcos em observador de uma criatura de Deus, a qual vale mais do que qualquer monumento. Porque qualquer alma humana, enquanto espiritual, sobretudo enquanto batizada, vale incomparavelmente mais do que a Catedral de São Marcos, o Palácio Ducal, e é até mais interessante, quando se sabe analisá-la.

…as atitudes dos turistas

Observando os turistas, eu notava que muitos deles tomavam uma atitude de superioridade em relação aos pombos. É natural: criaturas humanas, seres inteligentes que jogavam no chão a comida e os pombos vinham comer.

De vez em quando, alguns pombos pousavam na mão de um turista, pois se tornaram aves muito mansas à força de serem bem tratadas pelos transeuntes. Outras vezes, os pombos voavam junto ao rosto das pessoas, e estas queriam pegá-los, iam atrás deles, mas não conseguiam; as aves esvoaçavam e saiam elegantes, para voltar de novo.

E eu percebia que aquela sensação de superioridade, ligeiramente depreciativa, cedia lugar a uma impressão de encanto. No pombo, aquele movimento da cabeça, aquelas asas cor de chumbo muito matizado, aquelas pequenas estrias coloridas no pescoço — verde um pouco nacarado —, a graça e, sobretudo, a vitalidade, a variedade, sua instabilidade ordenada  fazem desta pequena ave uma maravilha criada por Deus.

Tendo passado da sensação de superioridade para a do fascínio, os turistas querem agarrar o pombo para terem tempo de observá-lo, mas percebem a instabilidade da ave que pode levantar voo a qualquer momento. Eles ficam meio inseguros e, de repente, começam a sentir, por algum lado, uma certa inferioridade em relação aos pombos. Porque estes possuem um tipo de vitalidade que, para dizer pouco, poucos homens têm. Ademais, o pombo é tão engraçadinho, tão pequenininho, tão vivo, e tem um jeitinho de olhar, que o observador percebe um mistério que ele não chega a explicitar, mas lhe vem à mente o problema: “Como é que um simples bicho tão inferior a mim é, entretanto, por alguns lados, tão superior a mim?”

Em determinado momento, o pombo que estava na mão de um turista se destaca e voa. E, no voar, afirma sua independência e sua alteridade. Há um modo de o pombo ir embora pelo qual parece dizer: “Não me incomodo contigo. Estive um pouquinho em tua mão, mas agora voo.” E o voar dá ao pombo uma certa superioridade em relação ao homem, pois este não voa, é pesadão, atraído pela terra, seus passos o cansam. Então, olhando o pombo que corta o ar, o homem vai se entusiasmando, até que em determinado momento tem vontade de se apoderar da ave. Se ele pudesse, prendia-a numa gaiola e tentaria haurir aquilo de superior que há dentro dela.

São poucas as almas que manifestam a seguinte reação: “Como esse pombo, que agora voa, é bonito e superior a mim, por algum lado! E eu gosto de contemplar essa superioridade dele!”

O homem deve se alegrar ao contemplar a superioridade de outro

Penso ter filmado, assim, em câmara muito lenta, o drama do igualitarismo.

Essas sucessivas atitudes de alma de uma pessoa face ao pombo são uma espécie de apólogo, de conto, no qual se pode perceber a evolução do homem diante daquilo que é superior a ele em todas as ordens; não apenas na sua relação com uma ave, mas, sobretudo, com outros homens. E aí o problema da igualdade ou desigualdade entre os seres humanos encontra um meio de se exprimir.

Por que é natural ao homem reto — ao ver em outro algo mais belo ou melhor do que aquilo que ele possui — exclamar: “Que bom! Então isto existe!”?

Sendo bem entendida a ordem profunda das coisas, a qualidade de cada pessoa é complementar com a da outra, de maneira que aquele predicado, existindo isoladamente, não teria razão de ser.

Exemplifico. Alguém tem um grande talento artístico e pinta um quadro. O pintor, enquanto tal, é muito superior ao homem que simplesmente admira o quadro. Entretanto, que sentido teria pintar se não houvesse outros que admirassem a pintura? Não é verdade que a capacidade de admirar de quem vai ao museu para ver o quadro — aptidão mais modesta do que a do pintor — é um complemento do pintor, e este não se explica sem o admirador? Mas não é verdade também que o admirador seria um órfão e um pobre coitado se, gostando de pinturas, não houvesse pintores que as realizassem?

Portanto, se o pintor, ao invés de desprezar quem não sabe pintar — falando-lhe: “Animal! Dou-te um pincel, borra essa parede, vamos ver o monstro que sai! Olha a bela figura que eu fiz!” —, dissesse ao homem admirativo: “Tu és meu irmão ou meu filho, porque tua alma compreendeu aquilo que eu admirei”, e se unissem, nós teríamos, então, a harmonia da desigualdade.

Sem dúvida, um belo quadro é uma grande coisa. Mas imaginem se Deus tivesse criado o mundo só com pintores. Que pesadelo! É preciso haver o pintor, mas também o padeiro, o ferreiro, o homem letrado; é necessário ter de tudo porque todas as qualidades são diferentes, mas se completam, formam um todo, a sociedade humana, a qual possui uma perfeição como conjunto, que um mundo constituído só de pintores ou de padeiros não poderia ter.

Quer dizer, se considerarmos as coisas retamente, veremos que toda superioridade de outro homem deve constituir um gáudio para quem a contempla. Esta é a ordem reta posta por Deus.

Reação de certos meninos diante de um colega que obtém prêmios na escola

Alguém dirá: “Mas um homem, vendo um outro muito superior, pode pensar sempre o seguinte: Ele possui qualidades que eu não tenho, e que me completam?”

Eu afirmo: Vamos devagar… Ele tem qualidades que desenvolveu e você não. Você foi o preguiçoso que deixou as qualidades dormindo dentro de si; ou foi o homem desatinado que deu a elas um desenvolvimento errado, fora da trilha da Doutrina Católica e do espírito da Igreja. Se você se tivesse desenvolvido como deveria, compreenderia melhor aquele que se desenvolveu como devia. E essa sensação de inferioridade contundida é a sua consciência, que geme sob o peso de sua preguiça.

Não é raro encontrarmos em colégios a seguinte rea­ção: um menino tira uma série de prêmios no fim do ano; certos colegas dizem: “Esse é pretensioso!” Na realidade, aqueles são vagabundos, não querem estudar, não gostam de fazer qualquer esforço. O mínimo que se pode desejar é que eles batam palmas e declarem: “Graças a Deus que alguém fez o que não fizemos!” E cada um precisa pensar: “Se tenho vergonha na cara, ao menos devo aplaudir o mérito dos outros, já que eu não fui capaz de conquistar méritos para mim.”

Se o menino que recebeu prêmios dissesse isso para os colegas que o chamam de pretensioso, o linchariam. Mas se esse colégio tivesse educadores bons, estes diriam aos alunos vagabundos, porque é uma coisa que eles precisariam ouvir.

Muitas vezes, esses sentimentos invejosos de inferioridade vêm do fato de a consciência dizer à pessoa que ela deveria ter feito o que não fez, e o remorso dá uma dentada. A dentada do remorso converte a uns, por exemplo, São Pedro, e perde a outros, como Judas.

Independente disso, Deus Nosso Senhor criou as pessoas desiguais, deu a alguns o talento de pintar, a outros de fabricar pincéis. Podemos estabelecer uma hierarquia: pintar quadro, o principal; excogitar, misturar e compor tintas, em segundo lugar. Para imaginar cores e produzi-las é preciso ser um grande artista; muitas vezes é o próprio pintor quem o faz, como por exemplo, Fra Angélico. Mas pode-se conceber como especialidades separadas. Em terceiro lugar está quem fabrica os pincéis.

A complementaridade

Isso forma uma hierarquia à maneira de graus nobiliárquicos, numa linha que não é estritamente nobiliárquica, mas uma escala de valores. E esses valores estão em relação uns com os outros, como os vários graus de nobreza, por exemplo, do duque ao plebeu, na medida em que a arte vai cedendo lugar ao trabalho meramente manual. Mas é a plebe digna, simpática, necessária dentro dessa ordenação geral posta por Deus.

Então, esta ordenação, na qual habitualmente se quereria ver uma nota meramente política, é política apenas “per accidens”(1), pois se trata, fundamentalmente, da ordenação de todos os valores, inerente a qualquer atividade humana.

Menciono esta hierarquia para sustentar a tese da complementaridade. Cada grau existe em função do outro, o maior deve amar o menor, o menor precisa amar o maior, cada um deve procurar a perfeição dentro do seu próprio grau, e assim se complementarem todos. Esta é a harmonia querida por Deus; as coisas andam bem quando funcionam assim.

Apliquemos essas verdades à parábola inicial das pombas. Se um turista, vendo a pomba levantar voo, admira: “Como é bonito haver seres que voem. Como é belo voar!” Se ele sente, portanto, essa complementaridade admirativa, e pensa: “Nós compomos um todo, e neste todo há algo magnífico, superior e que transcende cada uma das partes, e me faz pensar em Deus”. Então, ele acertou e está na boa via.

Mas se, pelo contrário, ele diz: “Ladrão, você tem reações que eu não teria, e possibilidades que não tenho. O fato de você estar vivo me machuca e me lesa. Fico com a impressão de que você me roubou; vou acabar com você”. Neste caso, ele romperia a obra de Deus.

Donde o homem com espírito hierárquico, que se enleva com tudo de superior que ele vê, ama e se encanta, está voltado para Deus e dispondo sua alma para adorar o Criador, quando colocada durante toda a eternidade à vista da infinitude de Deus.

Pelo contrário, o indivíduo que, diante das qualidades dos outros, sente-se amarfanhado, espezinhado ou pelo menos indiferente, está se preparando para o antro de todas as revoltas, que é o Inferno.

Doutrina de São Tomás sobre a desigualdade

Essas considerações servem de esboço para nos lembrarmos, em duas palavras, da doutrina de São Tomás a respeito da desigualdade. Muito elevada e belamente, ele não considera a questão em termos tão concretos, mas abstratos. Diz o seguinte(2):

Deus, sendo infinitamente sábio, poderoso, bom, enfim, tendo todas as qualidades do Ser perfeito que é Ele, só poderia criar seres nos quais sua infinita perfeição reluzisse. Do contrário não Lhe dariam a devida glória.

Mas, se é assim, Deus não poderia criar um único ser. Porque, sendo Ele infinito, um homem ou um Anjo não O espelharia adequadamente. Seria mais ou menos como um espelho tão pequeno que só refletisse uma pequena parte do rosto; não dá a imagem do indivíduo por inteiro, e nem sequer de sua fisionomia.

Como afirma São Tomás, Deus não precisaria criar, mas tendo criado, era obrigado, por sua própria perfeição, a criar vários seres, e todos diferentes, para exprimir as diferentes perfeições d’Ele. Ora, acrescenta o Doutor Angélico, quando há diferença, não pode deixar de haver hierarquia.

A condição para a sociedade humana espelhar bem a Deus é ser constituída de desigualdades. Na medida em que amamos essas desigualdades e, portanto, amamos um superior pela superioridade que ele tem, estamos, no fundo, amando a Deus.

O espírito igualitário é frontalmente oposto a isso. E como ele odeia a Deus, odeia também todas as desigualdades. Porque cada desigualdade, estabelecendo uma relação entre superior e inferior, é uma imagem da relação entre Deus e o homem. Isso em qualquer terreno: superior de uma Ordem religiosa, general de um exército, diretor de um observatório ou dono de uma barbearia. O superior tem funções que lhe habilitam a olhar o seu inferior como Deus olharia uma criatura.

Cuidado, superiores! Deus, amando as criaturas, amou-as de tal maneira que Se encarnou por elas. E o Verbo de Deus Se fez carne e habitou entre nós. Mais ainda: padeceu tudo quanto sofreu para nos salvar! Assim o superior deve amar o inferior. A missão do superior, como modelo de abnegação, não é deliciosa, mas terrível!  Prestai atenção, ó superiores!

Feita esta ressalva, superior é superior, e para o inferior ele é a imagem de Deus.

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/1/1982)
Revista Dr Plinio 185 (Agosto de 2013)

 

 

1) Do latim: por acidente, por acaso.

2) Cf. Suma Teológica, I, q. 47, a. 1-2.

Senso do maravilhoso: padrão para o conhecimento da verdade – I

Desde criança, Dr. Plinio tinha encantos pela Europa; e, sendo moço, quando conheceu a Baía de Guanabara ficou maravilhado e se perguntava se poderia haver algo mais belo. Possuía ele em sua alma um padrão de maravilhoso, pelo qual avaliava todas as coisas.

 

Toda criança tem uma tendência para o maravilhoso. De maneira tal que, colocando vários brinquedos diante de uma criança, normalmente ela se inclina para o mais colorido, que chama mais a atenção e dá mais a ideia do maravilhoso. E o espírito dela também tende a fixar-se de preferência nas coisas maravilhosas que vê.

O mais alto padrão de civilização a que chegou o mundo

Lembro-me de mim mesmo, em pequeno, em várias circunstâncias, vendo coisas maravilhosas e fixando minha atenção. Isso ia preparando o meu espírito para dar o primado da preferência e da atenção para certas coisas lindíssimas, mais do que outras. Com o fundo da ideia de que era possível haver uma ordem de coisas muito mais bonita do que aquela que eu tinha diante dos meus olhos. E, por causa disso, eu deveria tender a conhecer e admirar essas coisas mais bonitas.

Então, desde muito pequeno, tive admiração pela Europa. Porque é o mais alto padrão de civilização a que tenha chegado o Ocidente, ou o mundo. E quando eu observava ilustrações da Europa em revistas, lembrava-me de coisas que tinha visto em menino e dizia: “Tudo isso é de todo teto superior ao que eu tenho aqui. Portanto deve haver um mundo assim, e a alma humana foi feita para considerá-lo, estimá-lo, amá-lo, respeitá-lo. E, não podendo estar lá, pode-se ver em fotografias — é a única missão verdadeira da fotografia! — as maravilhas que não se tem, e se encantando com elas!”

E em certas ocasiões eu pensava: “Isto é maravilhoso!” E, levado por esse desejo do maravilhoso, cogitava a respeito de qualquer coisa: “Poderia ser ainda mais maravilhosa! Deus não é obrigado a criar o mundo mais bonito possível para os homens, nem há um mais bonito possível para o Altíssimo, porque, sendo Deus infinito, Ele pode sempre fazer o mais belo, que não tem limite. Por mais maravilhoso que Ele faça, nunca tocará n’Ele. Não há um limite do máximo. Vai até onde minha imaginação puder ir, até onde a sabedoria e a bondade do Criador quiserem que vá”.

Um episódio tão conhecido entre nós: eu, em menino, querendo comprar Versailles com uma libra esterlina… Isso porque, na minha inteligência infantil, aquilo rompia todos os padrões de maravilhoso que eu tinha concebido até então. Lembro-me de vir-me à mente a seguinte ideia: “Nunca imaginei que pudesse haver uma coisa tão maravilhosa!”

Assistindo a um filme sobre os funerais de Francisco José

Mais tarde, fiquei encantado assistindo a uma fita de cinema que representava os funerais do Imperador Francisco José(1) — executados com precisão, uma coisa estupenda! —, e a Fräulein(2), que era uma senhora da nobreza e conhecia bem os personagens, ia indicando: “Agora o funeral vai passar em frente à igreja tal, e é a hora do Conde tal fazer uma saudação para a Duquesa tal…” Acontecia exatamente como ela dizia, e o funeral continuava.

Aquilo me encantava! Por quê? Por causa de uma medida vaga de perfeição em matéria de funeral, muito incompleta, que eu concebera vendo os enterros, tão mais modestos, em São Paulo. E de repente me esbarrar com aquela cerimônia, que ultrapassava tudo quanto eu tinha imaginado, o meu senso do maravilhoso se abria e se escancarava! Daí uma espécie de respeito e entusiasmo por aquelas coisas, que a crítica da idade madura não fez senão confirmar.

Baía de Guanabara

Indo em moço para o Rio de Janeiro, analisei várias vezes as três enseadas clássicas: Flamengo, Botafogo, Copacabana. Depois um trecho de mar mais adiante, que creio chamar-se Leblon — uma maravilha também!  Em todas, perguntei-me, subconscientemente, se era possível imaginar uma coisa mais bela. E cheguei à conclusão de que, mar por mar, eu não conseguiria imaginar mais bonito. Não quero dizer que não haja, mas minha inteligência não chegou a imaginar algo mais belo. E porque não chegou, vem meu assentimento inteiro de que aquela Baía é realmente uma maravilha.

De onde vinha minha inteira adesão à Baía de Guanabara? Do fato de haver uma coincidência entre o que eu via e aquilo que, mais ou menos subconscientemente, representava a ideia que eu podia ter do maravilhoso de uma baía.

Padrão de maravilhoso a respeito de todas as coisas

Uma das perfeições do espírito humano é ter uma noção do que seria o ideal de todos os seres. Quer dizer, um conceito de maravilhoso a respeito de todas as coisas, e o hábito de confrontá-las com esse padrão maravilhoso que se deveria formar a respeito de tudo quanto se vê.

Quando se diz, habitualmente, que alguém conheceu uma coisa inteiramente, afirma-se que a pessoa aprofundou-se naquele ponto. Ora, a expressão é verdadeira, porque em algum sentido se aprofunda; mas em outro sentido deve-se chegar até o píncaro. E a cognição inteira de algo vem da junção do mais profundo com o mais elevado, o mais admirável daquilo.

Portanto, nós entendemos algo não apenas quando percebemos suas qualidades e defeitos, mas quando temos também um padrão mais ou menos instintivo do maravilhoso correspondente àquilo.

Para que as almas almejem grandes ideais, grandes realizações, elas precisam habituar-se a terem uma plataforma em função da qual calculem as maravilhas das coisas. E saibam, portanto, aquilatar, avaliá-las pelos seus mais altos aspectos.

Quando li os comentários de Cornélio a Lápide(3) sobre o Céu empíreo, tive uma explosão de entusiasmo: “Chegará uma ocasião em que conhecerei esse maravilhoso e me deleitarei com ele. E enquanto minha alma estiver vendo Deus face a face, que é a maravilha das maravilhas, meu corpo estará ao mesmo tempo — porque, com minha alma, forma uma só pessoa — em contato com maravilhas físicas, que facilitarão o meu corpo a acompanhar o “élan” de minha alma rumo a Deus!”  v

 

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/8/1988)
Revista Dr Plinio 185 (Agosto de 2013)

 

 

1) Imperador da Áustria-Hungria, falecido em 1916.

2) Do alemão: senhorita. Aqui Dr. Plinio refere-se à sua preceptora alemã, Srta. Mathilde Heldmann.

3) Jesuíta e exegeta flamengo (* 1567 – † 1637).

Honra, louvor e glória – II

Após considerar o fundamento da honra, Dr. Plinio a relaciona com a glória: tanto uma quanto a outra são merecidas por quem é autenticamente herói.

Para compreendermos os dois modos de considerar a honra, imaginemos um menino cujo pai é couraceiro.

Duas atitudes de um menino diante do pai couraceiro

Nos dias de parada, um cavalo bem ajaezado, com bela aparência, aguarda o oficial couraceiro diante de sua casa. Um ordenança está perto do cavalo, para evitar que alguém mexa com o animal. O menino vê o pai sair com couraça, elmo, crina, espada; o ordenança bate a continência, e o oficial mete o pé no estribo, pula para a sela e cavalga.

O menino acha aquilo excelente e exclama: “Eu também serei couraceiro!”

Essa exclamação comum pode ser provocada no menino por duas atitudes interiores diferentes.

A primeira é: “Como é bonito em si mesmo ser couraceiro! Como o homem, revestido de couraça, encontra ali a plena expressão do vigor de alma e de corpo, que é a excelência do homem! Meu pai fica combativo como um leão. Se encontrar o inimigo, ele combate como um herói; e se morrer, ele morre de um modo insigne, excelente. Como é belo ser assim! Eu também quero me tornar couraceiro, para ser tão excelentemente homem quanto é meu pai.”

Outra atitude: “Que bonito! Papai agora vai a cavalo para o quartel e todo mundo olhará para ele; tal pessoa, que está lá em frente, vai saudá-lo, frenético, porque quer ser cumprimentado pelo couraceiro a cavalo, a fim de que os outros vejam. Eu também quero ter a importância de papai, ser saudado pelas pessoas dessa maneira e poder olhar os outros de cima”.

Esse último é um modo errado de considerar a excelência. Não é querer uma perfeição para si mesmo, ser um homem excelente, mas desejar impor-se aos outros com a aparência da excelência, sem ter a preocupação de o ser. É querer ser palhaço, não couraceiro. São duas coisas completamente diferentes.

A segunda atitude é mera vaidade; a primeira é honra.

Querer tornar-se excelente é, no fundo, procurar ser um reflexo de Deus

Nesse caso, o que é a honra? É o desejo eficaz — o que é o primeiro passo de uma realização — da criança querer ter para si uma excelência. Assim como o lenço branquíssimo, ligeiramente azulado e engomado, tem uma limpeza excelente, o couraceiro tem uma varonilidade excelente, e o menino aspira à varonilidade excelente, de alma e de corpo. Ele quer uma forma de excelência, e vai atrás dela.

Portanto, aspirar a ter honra é, no fundo, o desejo de possuir uma virtude, praticá-la e de algum modo aproximar-se de um ideal.

Se examinarmos até o fundo essa noção de ideal, perceberemos que ela nos dá um certo frêmito. Alguém tem o ideal de ser um guerreiro, e vê por detrás desse ideal algo que é maior do que o homem, e tem uma dimensão tão grande que a isto ele gosta de dar a sua vida.

Porque na realidade esse frêmito que o homem tem quando percebe a grandeza do heroísmo, é uma atitude de alma por onde, subconscientemente, ele reconhece a existência de um Ser supremo, no Qual tocam todas as grandezas, que possui todas as perfeições e com o Qual o homem fica mais semelhante.

Deus é onipotente, onisciente e capaz de todas as coisas, com grandeza. O homem, ficando herói, sente-se mais próximo, mais semelhante a Deus, como um espelho que recebe em si a imagem do Sol; ele não é Sol, mas brilha.

Querer tornar-se excelente é, no fundo, procurar ser um reflexo de Deus. Há, portanto, nesse desejo da honra, para o homem que tem Fé, um anseio de ter uma virtude própria a Deus, um desejo de semelhança com Deus. E o desejo da semelhança com Deus é a definição da santidade. Santo é aquele que se tornou semelhante a Deus.

E isto torna patente qual é o mais íntimo do conceito de honra: confunde-se com o conceito amplo e verdadeiro de santidade. A honra é o estado do homem quando ele pratica de modo excelente a virtude. E nisto tem uma particular semelhança e união com os anjos e com Deus. Porque o homem que tem de um modo excelente certas virtudes se parece com os anjos, e dessa forma se assemelha a Deus. É por mediação que isso se faz.

Honra, louvor e glória de Nosso Senhor Jesus Cristo

Agora, poder-se-ia perguntar qual é a diferença entre honra, louvor e glória.

São Tomás de Aquino exprime isso magnificamente. Louvor é o reconhecimento público da honra. Eu presto honra a alguém quando louvo a qualidade que esse alguém realmente tem.

É possível haver honra sem louvor? Sim. Nosso Senhor Jesus Cristo é a Honra. A palavra “honra”, sendo um termo humano, diante d’Ele estala, porque Ele é Deus. Mas, enfim, pode-se dizer que Ele é a Honra. Entretanto, Nosso Senhor, em muitas ocasiões, não recebeu louvor, mas vitupério; por exemplo, quando o povo preferiu Barrabás. A falta de louvor não tira a alguém a honra, porque esta consiste no se parecer com Deus. E o fato de os outros não reconhecerem a semelhança que nós temos com Ele, não nos tira essa semelhança.

A natureza humana santíssima de Jesus tinha a máxima semelhança possível com Deus. E na sua natureza divina Ele era o próprio Deus. E os insultos do povo, que preferiu Barrabás a Nosso Senhor, não Lhe tiraram a honra. Ele foi louvado quando o povo O recebeu em Jerusalém, cantando “Hosana ao Filho de Davi.”

Um louvor não Lhe faltou ininterruptamente nesta Terra: o de Nossa Senhora, o qual vale mais do que todos os louvores de todos os homens ao longo da História, no mundo inteiro. E até o último momento, quando Jesus disse “Consummatum est”, Ela O louvou. Nosso Senhor conhecia esse louvor e o último olhar que Eles trocaram, eu estou certo de que, entre outras disposições de alma, esse olhar traduziu louvor. Louvor d’Ela a Ele: “Meu Filho!” E d’Ele a Ela: “Minha Mãe!” Quer dizer, são louvores inefáveis que os lábios humanos não sabem exprimir.

Um homem deve impor o louvor que lhe é devido pelo cargo que ocupa

Então, pergunta-se: O homem que tem honra deve procurar o louvor? A resposta é: Deve procurar e até impor o louvor! Com um cuidado: o louvor, pelas suas qualidades pessoais, ele pode lamentar que os outros não lhe deem, mas não deve reclamar nem queixar-se, porque pode entrar apego; afinal, somos concebidos no pecado original.

Ele precisa querer e impor o louvor merecido ao cargo. E um homem não tem o direito de desmerecer o cargo, fazendo ações que não estão de acordo com o louvor que o cargo merece.

A glória de um Bem-aventurado

E o que é glória?

A glória é um louvor insigne. Glorioso é aquele que foi louvado, de um modo insigne, por todos os seus contemporâneos, de modo a seu nome perdurar por toda a posteridade.

Esse louvor da multidão corresponde a uma virtude, que já não é excelente, mas excepcional; dir-se-ia, por analogia, principesca ou régia, tem um grau que está para os outros graus de virtude, como um príncipe ou um rei está para os súditos de hierarquias inferiores. Tal glória tem o santo.

Quando a Igreja canoniza alguém e afirma que merece a honra dos altares, Ela declara que ele está no Céu e ali ocupa um lugar insigne; ele tem grande intimidade com Deus, extraordinária proximidade com Nossa Senhora. A Igreja, então, proclama que, por causa disto, na Terra ele merece essa glória. Então, o nome dele é lembrado pelos séculos dos séculos.

Recordo-me de um fato da vida de Victor Hugo, literato francês do século XIX. Ele foi admitido na Academia Francesa e, segundo uma convenção, quem pertence a tal Academia é considerado imortal.

Quando lhe disseram isso, Victor Hugo afirmou:

— Imortal, eu? Não pense que eu me iludo a esse respeito. Quem é imortal é Dom Bosco, lá em Turim.

— Mas, como assim?

— Eu vejo que a Igreja vai canonizar Dom Bosco, e quando isso ocorrer, até o fim do mundo, em todos os lugares da Terra, onde houver um padre católico, num certo dia do ano vai ser lembrado o nome de Dom Bosco. Isso só deixará de ser feito quando não houver mais padre para celebrar a Missa, e o mundo, portanto, tiver acabado. Este é um imortal.

É a pura verdade. Aliás, São João Bosco disse isso de si. Ele teve uma doença muito grave e longa; e, com o telégrafo que já havia, na Europa inteira se soube disso. Era ainda a Europa aristocrática e monárquica do século XIX, e São João Bosco recebeu cartas de incontáveis lugares: príncipes, soberanos, castelães etc., oferecendo-lhe seus castelos, suas propriedades, para ele descansar. Diante do maço de cartas, disse sorrindo aos sacerdotes: “Vejam, eu renunciei a tudo e me meti no meio dos pobres. E não há um homem na Europa que disponha de tal número de castelos para fazer a sua convalescença”.

A diferença entre a glória de ser herói e a glória de ser santo

Alguém dirá: “Mas Dr. Plinio, o Marechal Foch, por exemplo, que venceu a Primeira Guerra Mundial, foi um herói, mas não um santo”.

É preciso explicar que relação há entre santo e herói. O herói é aquele capaz de expor a sua vida ou de praticar ações tão árduas que cheguem ao limite extremo do sacrifico que o homem pode suportar, em favor de uma causa elevada e nobre.

Segundo esse critério, o Marechal Foch foi um herói porque, expondo sua vida, realizou uma ação extremamente árdua. Ele recebeu uma causa muito comprometida, devido ao avanço alemão; concebeu o sistema de resistência e conduziu aquela guerra dentro das dificuldades que lhe eram inerentes, de maneira a alcançar a vitória. Foch foi herói num ponto da vida dele, durante alguns anos de guerra. É por isso que o mundo o aclama.

Ora, quanto ao santo, quando o Papa o canoniza, ele decreta que aquele indivíduo praticou as virtudes em grau heroico, e por isso foi santo. Ou seja, foi um herói capaz de qualquer heroísmo por amor de Deus.

Então, honra e glória merece quem é autêntico herói. E tudo se funde num conceito amplo de santidade, que não é o conceito corriqueiro, comum, mas é esse conceito total que a Igreja declara, quando Ela define alguém como santo.

Quando o Papa, sentado no seu trono, canoniza um santo, ouvem-se as trombetas de Michelangelo soarem num terraço pouco visível do interior da Basílica de São Pedro, no ponto onde a cúpula se assenta sobre a parede. Então, o som sobe pela cúpula e desce para a Basílica! E os sinos do Vaticano começam a tocar; e, em seguida os sinos das igrejas de Roma põem-se também a soar e anunciam a glória desse verdadeiro herói. Esse tem verdadeiramente honra, louvor e glória.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 15/2/1980)