Distinção e suavidade

Em todas as coisas que passavam pelos seus sentidos, Dr. Plinio sempre procurava arquetipizá-las, ou seja, imaginá-las no seu máximo grau de perfeição. Comentando o minueto de Boccherini, afirma que o concebe não tanto como uma dança, mas como ondas vaporosas e perfumadas de pessoas, que avançam numa bela galeria. E chega até a supor como seria um arqui minueto medieval.

 

O minueto de Boccherini(1) — que para mim é o minueto por excelência — tem qualquer coisa no sentido de uma revista à tropa, sem o ser propriamente.

Charme, esplendor, graça e beleza

Devemos imaginar uma sala de corte, o rei e a rainha nos seus tronos, os príncipes e as princesas da Casa Real em poltronas, os duques em “tabourets”; ou, como se fazia em Versailles, de um lado e de outro da Galeria dos Espelhos, arquibancadas onde pessoas da nobreza ou da alta burguesia de Paris se postavam para verem dançar o minueto.

Vindos do fundo da sala ou de um compartimento ao lado, entram os pares dançando o minueto, reverenciando-se mutuamente, fazendo a reverência ao rei, quando passavam diante dele, e circulando de novo. Era a corte celebrando um ato lúdico, no qual as pessoas eram passadas em revista no seu charme, no seu esplendor, na sua maior graça, na sua maior beleza, para a corte ter a fisionomia de si mesma, e deleitar-se em ser aquilo. Isso era propriamente o minueto.

É preciso notar que esses minuetos, muitas vezes, eram altamente hierarquizados, e a reciprocidade dos cumprimentos se multiplicava pela sala indicando uma harmonia hierárquica de relações sociais, juntamente com a harmonia dos gestos, das atitudes, a beleza dos trajes, o esplendor das joias, a nobreza das expressões fisionômicas, dos sorrisos, etc.

Seria um pouco como um exército que precisa organizar uma grande revista, para ver-se a si próprio. E o “ver-se a si próprio”, nesse sentido, não é como o de uma pessoa faceira que se olha no espelho para ficar vaidosa, mas é o conhecer a sua própria face para ver que perfeição o Criador pôs nela, e amar a Deus em si mesma. Isso constitui um alto grau de tomar consciência de si e tem, no fundo, um sentido religioso.

Seriedade e sorriso profundamente sério

Na situação cultural do tempo do minueto havia uma necessidade de fazer as coisas com muita solenidade, mas compensar essa solenidade com muita graça, com muito charme. E o minueto perfeito seria o que reunisse o esplendor de uma verdadeira cerimônia de corte com a graça de uma afabilidade, de um sorriso, de uma concepção amena da vida que fosse o contrapeso do grande esplendor, porque a vida tinha chegado a um tal brilho que massacrava o homem se ele não tivesse esse complemento.

Vê-se, então, a coexistência de uma grande seriedade com um sorriso profundamente sério de quem sabe quem é, e que do alto daquilo que é, por gentileza e bondade, sorri como quem diz: “Eu sou tudo isso, e é tudo isso que sorri para você.” Não é, portanto, o sorriso do peralvilho que anda pela rua e, de repente, vê um cachorrinho engraçadinho, mas é o sorriso de quem possui grandeza e oscula aquilo para o que sorri, como uma espécie de comunicação de todos os esplendores que tem dentro de si.

Saint-Simon”(2) quando queria elogiar alguém dotado de muito senso de sua própria dignidade, dizia: “Ele se sentia muito”, quer dizer, sentia muito em si o que ele era, e a sua respeitabilidade. De onde o minueto, assim entendido, ser a música do respeito.

O respeito acompanha a grandeza, o afeto, o carinho, o sorriso. Percorre de ponta a ponta a gama dos possíveis sentimentos humanos. E isto faz do minueto uma obra-prima.

O minueto não é tanto uma dança quanto falanges ou ondas vaporosas e perfumadas de gente que vai avançando ao longo de uma galeria vazia.

Para ouvir bem o minueto de Boccherini, devemos imaginar a Galeria dos Espelhos vazia, e no fundo os primeiros grupos se formando e avançando, eu quase diria em “cordão” de oito, dez ou quinze pessoas, fazendo piruetas umas para as outras e caminhando até o rei. Chegando diante do monarca, fazem uma profunda reverência e depois viram, deixando lugar para outros. Quer dizer, a marcha progressiva está presente no minueto, e um pouco da atitude do respeito feudal diante do rei, de quem diz “senhor, vede quem eu sou, sinto-me e sou uma alta emanação de vós mesmo”, bem como algo de súdito que faz diante do rei uma profunda reverência. As duas coisas existem juntas e são um outro traço da graça do minueto, mais visível em Boccherini do que em todos os outros minuetos que conheço.

Imaginando um super minueto medieval

Eu não chegaria a dizer que esta teoria é válida para qualquer minueto. Talvez seja, mas não ouvi com este senso crítico um número suficiente de minuetos, e nem tive tempo para pensar bastante sobre a questão, a fim de fazer uma afirmação genérica quanto aos minuetos.

A meu ver, para interpretar perfeitamente o espírito do minueto de Boccherini seria preciso sempre conferir à música uma nota grave e altiva que se desfaz no sorriso, e não tanto a continuidade realmente muito harmoniosa e bonita posta em muitas interpretações que, para quem quer fazer música, representam, no gênero, uma obra-prima, mas para quem deseja fazer sociologia a coisa é diferente.

Um minueto precisaria ser tocado num ritmo não tão corrido, e com um intervalozinho entre cada trecho. E, ao chegar ao último do harmonioso, retomar o tema inicial. Tal minueto daria uma interpretação da harmonia, da cultura daquele tempo, feita exatamente de alta distinção e grande suavidade. Considero que um minueto tocado assim interpretaria o tempo e o lugar para os quais Boccherini o compôs.

Para compreendermos ainda melhor quais são as raízes psicológicas, morais e culturais de um minueto, deveríamos imaginar um super minueto medieval.

O rei católico, no seu trono, olhando firme, e sorrindo enquanto a coisa se desfaz numa gentileza. Que tanta gentileza contenha tanta majestade, e tanta majestade contenha tanta gentileza, aqui está o equilíbrio.

Imaginar, portanto, na Idade Média, uma dança desse tipo bailada por senhoras que usavam aqueles chapéus cônicos, altivos, dos quais pendiam véus trazidos do Oriente, levíssimos, que qualquer brisa punha em movimento; chapéus que eram mais ou menos como um reflexo, um símbolo da sabedoria.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 1974)

 

1) Luigi Boccherini (* 1743 – † 1805): compositor clássico italiano, famoso por seus minuetos.

2) Duque de Saint-Simon (* 1675 – † 1755), escritor francês que, em  suas “Memórias”, descreveu com penetração, finura e charme a vida de corte em Versailles, na época de Luís XIV.

A beleza da hierarquia angélica

Dr. Plinio tinha um apreço especial pelo estudo sobre os Anjos e grande devoção a eles. Comentando alguns trechos de um livro de Dionísio Areopagita, analisa a ordem, a atividade dos espíritos angélicos e faz aplicações desse tema aos indivíduos, à sociedade, a áreas de civilização e até mesmo a épocas históricas.

 

Dionísio Areopagita, em seu “Tratado da hierarquia celeste”, descreve uma concatenação dos Anjos, apresentada por ele como a ordenação perfeita do ser criado. O puro espírito criado não teria necessariamente aquela ordenação, mas ele não está longe de dizer — ou até mesmo afirma — que os traços essenciais da ordenação são aqueles.

A multiplicidade das criaturas

O cabide que carrega todo o tema tratado por Dionísio é: uma vez que Deus criou, não poderia deixar de criar vários seres.

São Tomás defende essa tese: O Altíssimo não poderia criar um só ser, porque nenhum ser único tem suficientes qualidades para refletir adequadamente as perfeições do Criador. Ora, a ordem do criado precisa refletir a Deus globalmente e não apenas em um de seus traços.

Então, esquematizando, seria o seguinte:

  1. A ordem do criado tem que refletir a Deus globalmente, e não apenas em uma de suas perfeições.
  2. Refletir a Deus globalmente é algo de tão grande, que não pode ser feito por uma criatura, mas por várias, portanto por um universo, quer dizer, por um conjunto de criaturas que esteja em condições de dar esse reflexo global do Criador.
  3. Deus dispôs que essas criaturas fossem muitíssimas e dotadas de propriedades cujo conjunto, de fato, refletisse a Ele.

Não me parece necessário que o número de seres fosse esse, nem que as criaturas fossem exatamente como são. Podiam ser criaturas numa quantidade diferente, cuja disposição e o inter-relacionamento entre elas adequadamente refletissem a Deus, num modo pelo qual os Anjos não refletem. Mas o Criador dispôs que fossem assim. Isso equivale a julgar que haveria outros universos possíveis. Isso é uma coisa que me parece absolutamente certa.

A ordem na sociedade humana deve ser análoga à existente entre os Anjos

Contudo, uma vez que Deus criou esse número de Anjos com essa natureza, não podia deixar de ser que eles estivessem ordenados como estão. Quer dizer, eles já foram criados assim em vista a refletir o Criador. E a ordenação, o inter-relacionamento entre eles, uma vez que são assim, seria necessariamente esse.

E como a tarefa das criaturas consiste em refletir a Deus não só sendo, mas agindo sobre outros, essas criaturas não podiam existir enclausuradas sem terem contato umas com as outras. Tinham que se relacionar para que essas qualidades, esses predicados divinos se articulassem e representassem um só todo.

Essas criaturas, assim articuladas, teriam que desempenhar um papel que, esquematicamente, é o papel que Dionísio atribui aos Anjos porque, na ordem absoluta do ser, um é aquele conhecimento amoroso dos Serafins, outro é aquela inteligência dos Querubins, outro é aquele poder dos Tronos, e assim por diante.

Como nós, homens, estamos no mesmo universo que os Anjos, fazemos parte da mesma Criação, eles devem nos governar. Em consequência, nossa ordem deve ser análoga e consonante com a deles. E, como tal, o modo de nos relacionarmos e os traços fundamentais de governo da sociedade humana, feitos os descontos da diferença de naturezas, têm que ser análogos aos do mundo angélico.

A força motora do governo legítimo

Entretanto, não pode ser que alguns de nós sejamos apenas cognoscitivos e volitivos, como os Anjos. Vê-se que nossa natureza não comporta isso, mas está menos longe de nossa natureza do que se pode imaginar à primeira vista.

Em muitos trechos dos seus discursos à nobreza romana, Pio XII encaixava o regime democrático, afirmando que as mais autênticas democracias devem ter instituições aristocráticas. Nesta perspectiva e tomando, portanto, a ideia de aristocracia no seu sentido mais amplo, quer dizer, as elites, é mais ou menos certo, a meu ver, que em face da missão de uma sociedade, do que ela é, do que deve fazer, há um maior descortino das classes mais altas do que das mais baixas. E esse descortino deve fazer com que as classes mais altas conheçam melhor o espírito do país, o que este é como um todo, amem-no com mais finura, de maneira tal que elas filtrem isso para as classes mais baixas. E que essa filtração produza, por sua vez, um impulso diretivo do poder sobre as classes mais baixas que é verdadeiramente a força motora do autêntico governo legítimo.

As classes mais baixas, assim iluminadas e impulsionadas, têm uma capacidade de execução muito maior do que numa sociedade onde não haja isso. E disto decorre, propriamente, o vigor e a coesão de um corpo social.

Alguém que inventasse copiar a ordem angélica para a ordem humana — não se inspirar, mas copiar —, faria as coisas mais pesadas, mais tontas que se possam imaginar.

Por exemplo, é de experiência comum que, de vez em quando, saem da classe mais baixa elementos extraordinariamente dotados; mas não correspondem à figura clássica do homem muito inteligente, que vai ficar um “ploc-ploc”(1). São pessoas muito dotadas de dons naturais vivos, capazes de vencer as batalhas da vida e aproximarem-se da aristocracia merecidamente, afinarem-se.

As raízes de uma árvore e a nobreza

As raízes de uma árvore pegam matéria inerte nas capilaridades, assimilam-na e a transpõem para o estado de matéria viva, passando a circular dentro do fluxo vital da árvore. A matéria morta que passa a ter vida lembra um pouco uma ressurreição. Isto é uma maravilha que ocorre nas raízes de todas as plantas a todo momento.

Há um fenômeno parecido com esse pelo qual a nobreza suga continuamente da plebe — uma sucção generosa, bondosa, honorífica para a plebe — os elementos aproveitáveis e os eleva, ejetando de si outros que, muitas vezes, se jogam eles mesmos para baixo.

Nesse sentido, tenho certa reserva contra algumas instituições que, sob o pretexto de manter longevas as famílias, amarram-nas nos seus próprios tronos, de tal maneira que quando elas estão apodrecendo, ainda se mantêm sentadas ali.

A inalienabilidade de certo bem em determinada família, enquanto o mundo durar, revela o propósito de evitar que ela seja despojada imerecidamente de alguma coisa. Mas denota também a intenção de assegurar aquilo para a família, mesmo quando as mãos débeis dela não forem mais capazes de agarrar e sustentar.

O Anjo não pode ser promovido para uma categoria superior, nem rebaixado a uma inferior. O homem pode. Se o anjo for um Querubim, sê-lo-á até no Inferno.

Portanto, é preciso saber entender como se inspirar nisso.

A esse respeito, poder-se-ia dar a seguinte regra:

Para nos inspirarmos no mundo angélico, seria preciso ver como isso foi modelado pelo surto de vida natural e sobrenatural do começo da Idade Média até a Revolução Francesa, feitos os descontos da decadência que houve naquele período. Depois procurar ver no que aquilo, sem a intenção de imitar os Anjos, de fato imitava, para assim compreender como esta semelhança pode jogar, e como devemos fazer no Reino de Maria.

A coisa errada, “ploc-ploc”, seria: vem o Reino de Maria, consultamos nossos especialistas em matéria de Anjos, eles nos dão os esquemas e organizamos uma sociedade. Não é isso! Precisamos ver como o bom impulso natural e sobrenatural vai movendo as coisas. E procurar interpretar esse impulso à luz do exemplo angélico, para em algum ponto retificar, apoiar, fazer o que executa o jardineiro com a planta.

Ele não faz o plano da planta e puxa o vegetal para ser daquele jeito, mas toma as possibilidades de progresso da planta e a orienta, poda de cá, de lá, leva-a para o lugar onde incide mais sol, enfim, manobra, segundo uma ideia que ele tem da planta, o que há de autêntico e orgânico dentro dela.

A pulcritude da abstração

Para isso serve enormemente o estudo dos Anjos, porque, desde que se compreenda em que sentido aquele surto está imitando-os — e que as pessoas tenham consciência de que, deixando-se tocar por esse impulso, elas estão fazendo uma coisa angélica —, o surto fica ainda mais forte e toma mais autenticidade.

Se, por exemplo, sou professor e percebo que é em virtude de um tal influxo angélico que estou agindo de determinado modo, compreendo como aquilo que surge em mim, como de minhas raízes, é “angeliforme”. Então, sou capaz de dar instintivamente àquilo uma espécie de perfeição que, se eu não soubesse isso, não daria.

O exemplo dos Anjos faz sobre nós o papel do exemplo do Sol sobre a planta. Não se trata tanto de raciocínio, mas é um “heliotropismo” rumo aos Anjos, estando Deus acima. O Anjo aqui é um hífen para Deus.

Seria preciso termos teólogos e artistas da sociedade que vai nascendo, capazes, antes de tudo, de senti-la no seu fluxo providencial, natural e sobrenatural. E saber apenas iluminar esse fluxo com o exemplo dos Anjos, e outras coisas tiradas da Teologia.

Imaginemos uma sociedade que tivesse toda a atenção posta sobre aqueles que são de algum modo os maiorais dela, os Anjos, e sobre o fato de que tudo o que existe na Terra, provavelmente, é reflexo de algo de angélico para depois tocar algo em Deus e ser reflexo d’Ele. Por exemplo, o modo de o homem ver as coisas abstratas, que é o píncaro do pensamento humano por vários lados — e depois contemplar as coisas simbólicas que é também esse píncaro sob diversos aspectos —, levaria o homem a ser capaz de perceber na abstração um “pulchrum”, que é parecido com o “pulchrum” das abstrações do Dionísio.

Quando ele fala de criaturas espirituais, que nem sequer podemos conceber, e desenvolve toda esta “ordenação com beleza” das coisas espirituais que acabamos de ver, dá-me a impressão de que em muitos dos trechos dele a abstração toca violino.

O que há de encantador em muitos trechos do Dionísio?

Ouvindo a leitura deles, várias vezes eu procurava ver se, além de acompanhar o pensamento, poderia apanhar no que estava essa beleza.

Na pura abstração há certo modo de concatenar as ideias e de ver o “pulchrum” delas, bem como um certo senso do “pulchrum” que se desperta de vez em quando; isso é, penso eu, algo de parecido com o que o homem sentiria se visse um puro espírito. Mas infinitamente ainda mais se visse Deus, porque Deus é absoluto e o absoluto é a personificação de muita coisa que conhecemos como abstrato, visto por certo lado.

Sentindo o belo da vida interna de Deus

Outro dia, estávamos numa das nossas sedes em que se entoou o Credo. Em determinado momento cantou-se “Deum de Deo, lumen de lumine, Deum verum de Deo vero, genitum non factum, consubstantiálem Patri”(2). Nós todos já ouvimos isso mil vezes, mas no momento em que foi cantado me pareceu sentir o belo desta vida interna de Deus, por onde Ele toca e não é tocado, e tudo se passa sem que Ele decaia ao tocar nas coisas.

Não podemos dizer que Deus seja uma abstração, mas nossa noção sobre Deus tem algo do abstrato, porque não corresponde a nenhuma imagem do sensível. Mas foi um momento em que de repente apareceu a beleza disso.

Se tivéssemos o espírito inteiramente adestrado, seríamos capazes de ver nas abstrações todo o belo musical delas, que daria ao homem uma fome e uma sede de abstração, que tenho a impressão de que os povos do Oriente possuíam.

De onde vinha exatamente o fato de eles se interessarem tanto pela manutenção da ortodoxia contra essa ou aquela heresia; e depois torcerem pela propagação dessa ou daquela heresia contra a ortodoxia, como alguém hoje poderia torcer por uma partida de futebol. A meu ver, porque eles pegavam isso e a mudança de qualquer matiz os tocava a fundo. Eram povos que estavam numa clave muito superior à nossa.

E acrescento: só as almas capazes de verem isto assim compreendem o píncaro de uma cultura, de uma nação. Não digo que um aristocrata precisa ter necessariamente esta visão de espírito, mas afirmo que se não houver gente como estou dizendo para tocar esse fogo sagrado na mente do aristocrata, não teremos aristocracia.

Se tivéssemos isso bem organizado e posto no espírito, compreenderíamos muito melhor algo da luz primordial(3) e até do senso do ser de cada um de nós, que fica preso no porão de nossa própria personalidade, como uma mercadoria no porão do navio, e que levamos do berço até a sepultura sem nunca desembalar esse tesouro, para fazê-lo tomar ar e procurar, enfim, adornar-se com ele.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/4/1984)

 

1) Expressão onomatopeica criada por Dr. Plinio para designar o defeito de certas pessoas que, desprovidas de intuição e bom senso, querem explicar tudo por meio de raciocínios desenvolvidos de modo lento e pesado, à maneira de um paralelepípedo que, ao ser girado sobre o solo, emite o ruído “ploc-ploc”.

2) Trecho, em latim, do Credo Niceno-Constantinopolitano: “Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai”.

3) Termo cunhado por Dr. Plinio para significar a aspiração existente na alma de cada pessoa, ou num povo, para contemplar a Deus de um modo peculiar, refletindo d’Ele determinada perfeição. Ver Dr. Plinio, n. 54, p. 4.

Uma joia dotada de asas

Quem não se encanta ao contemplar o voo de um beija-flor?  Tão pequenino e tão belo, ele nos dá a ideia de uma pedraria voando, uma joia dotada de asas.

 

Há animais que podem ser muito frágeis, mas na sua fragilidade são também muito ágeis. E a agilidade lhes dá uma capacidade de avançar, de fugir e de voltar, que constitui a sua força. Uma ave que me dá muito essa impressão é o beija-flor.

Analisando um beija-flor

Lembro-me de uma vez em que eu estava trabalhando num terraço e, de repente, um beija-flor parou e começou a sugar o néctar que ele encontrava nas flores de uma trepadeira. Era um beija-flor de muito bom gênio e que se contentava com pouco, porque não parecia haver muito néctar naquelas esquálidas flores. Mas, enfim, o beija-flor sugou flor por flor. Interrompi o que eu estava fazendo e fiquei, em silêncio, olhando o beija-flor, com o cuidado de não o atrapalhar.

Ele, tão inflexível em voar, na hora de sugar tremia e avançava, com mil movimentos, em torno da flor, tirando todo o néctar que podia e batendo com as asas de tal maneira que nenhum dos movimentos imitava exatamente o outro, e nenhuma das vibrações repetia a outra; parecia um instrumento tocando uma música sempre nova.

Eu pensava: “Ele tem lá suas regras, que não conheço, mas afinal quando ele vai acabar?” Então sugava, sugava, e, de repente, da maneira mais inopinada, tomando conhecimento de que não havia nada, ou quase nada, a aproveitar da flor, deixava-a de um modo tão completo que era como se nunca aquela flor tivesse existido para ele; e, sem vacilação, ia direto para outra flor.

Então eu refletia: “É a própria imagem da decisão. Quando é hora de sugar, faz força e suga; quando é hora de partir, abandona, rejeita e deixa a coisa reduzida a bagaço”.

Aquele beija-flor não conhecia o sentimento brasileiro de saudade: ele abandonava cada flor sem rancor, mas também sem saudade. Eu tinha a impressão de que depois de tirar o último néctar ele ficava meio liberado, e então voava e recomeçava em outro lugar.

Uma joia preciosa criada por Deus

O voo do beija-flor tem certa beleza, mas é tão rápido que não dá tempo de se contemplar. Porém, quando ele para junto a uma flor, movimenta as asas e começa a sugar o néctar, a beleza de suas penugens, a riqueza das penas furta-cor são ainda mais ressaltadas.

Ele fica parecido a uma joia preciosa que Deus criou para o homem poder olhar e nunca segurar, e ter o encanto da coisa fugidia que passa, a qual, neste vale de lágrimas, é para nós uma esperança do Céu.

Uma outra característica do beija-flor é que ele foi feito para ser fugaz. A Providência criou nesta Terra de exílio uma porção de coisas fugazes ótimas — que deixariam de ser ótimas se não fossem fugazes —, para nos dar uma tinta do Céu. Sendo aqui Terra de exílio, elas não podem dar essa impressão estavelmente. Mas Deus teve pena de nós e mandou um vaga-lume do Céu para a Terra, para acender e apagar, fazendo-nos entender algo do Céu.

O momento auge da vida do beija-flor

Quando o beija-flor começa a sugar o néctar de uma flor, em primeiro lugar se percebe o tamanho do bico, o qual é propriamente bonito quando imerso na flor. O ponto máximo, o auge da vida do beija-flor é o momento em que ele suga o néctar de dentro da flor.

De maneira que aquela agilidade de estar o tempo todo voando e absorvendo o néctar, aquele poder de conquista com que ele mete o bico na flor, e, de outro lado, a beleza do movimento de suas asas, fazem dele uma espécie de joia volátil.

É o relacionamento dele com a flor que o põe nessa postura. Quer dizer, no momento em que ele faz aquilo para o que foi criado, todo o seu esforço faz ver o que há de excelente dentro dele e o apresenta no seu melhor aspecto; o mais louvável que há no plano de Deus a respeito do beija-flor se vê ali.

Voo radical

Seu voo é parecido com uma seta: depressa e reto. Dir-se-ia que o bico dele fende os ares, as distâncias, e chega direto ao ponto onde, de longe, o beija-flor já viu o que deve atingir.

Ele se aproxima da flor, enfia o bico na corola e dali tira o que quer. Sai cheio de coisas doces que estão na natureza da flor; e sai vitorioso porque foi radical. Ele voa leve, rápido, forte e depressa: é um voo radical.

Mais ainda: ele escolhe o que deve querer e acerta o material necessário para fazer aquilo que está na sua natureza fazer. Uma vez que se lança sobre uma flor, tira de dentro dela todo o seu suco delicioso, fica com um aroma de flor e uma beleza de pedra preciosa. Uma verdadeira maravilha!

Mais do que tudo, o beija-flor é radical no seguinte: ele dá vários voos a diversas plantas da mesma natureza, em todas elas mete o bico e sai levando as mesmas doçuras para se alimentar, ficar com um colorido mais bonito, um movimento mais ágil. Ele ganha em todos os sentidos da palavra; e ganha à força de radicalidade.

Todo o trabalho do beija-flor — quer o voo, quer a sucção — é feito com tanta leveza, delicadeza e distinção que até parece uma dança. Entretanto, é muito mais do que dança: é um voo. Porque o homem, quando dança, mostra seu encanto com o voo. Mas quem dança mesmo são os pássaros no céu.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 31/1/1980, 20/1/1990, 5/4/1990 e 28/1/1994 )

 

A oração tudo vence

Se alguém entre vós está triste, reze!”, dizia o Apóstolo São Tiago em sua epístola (Tg 5, 13). Tudo podemos obter através da oração. Dr. Plinio, acerca de um belo fato descrito por Louis Veuillot, nos mostrará quão importante é termos uma vida cheia de piedade e de confiança na bondade de Nossa Senhora e de seu Divino Filho.

 

Com seu atraente e luminoso estilo, Louis Veuillot(1) escreveu o livro “Parfum de Rome”, onde reúne notas sobre uma de suas viagens à Cidade Eterna,  que até 1870 esteve sob o poder temporal do Papado.

Diário de uma alma em busca da virtude

Nessa obra lemos este trecho, muito bonito, por diversas vezes objeto de meus comentários:

“Num quarteirão deserto, nos muros de uma igreja, Enrico (é o próprio Veuillot), copiou e traduziu para mim as inscrições seguintes, traçadas a lápis por uma mão firme e exercitada [portanto, é um anônimo que escrevia isto]: ‘No dia 14 de setembro eu me encontro com má saúde por minha culpa, pela inquietação e pela desobediência. A partir deste momento, onze horas da manhã, decidi, com a ajuda de Deus e de Maria Santíssima, não mais me atormentar, e recuperar a verdadeira paz. São José, rogai por nós. Um mês depois: 14 de outubro. Até este momento ainda não consegui, ou melhor, não obtive o que escrevi no dia 14 de setembro, mas agora decidi fazer tudo.”

Sabemos que, nos primórdios de nossa vida espiritual, geralmente sucede isto: tomamos uma decisão e nos convertemos. Após um mês, fazemos exame de consciência e verificamos que quase nada progredimos. Então resolvemos cumprir todos os propósitos estabelecidos anteriormente, como manifestou a pessoa à qual o texto se refere.

“Dia 15 de novembro: renovo tudo aquilo que prometi, a fim de chegar a executá-lo. Dia 23 de novembro: falhei, mas prometi a mim mesmo, com toda a alma, de executar. Dia 28 de novembro: decidi ser bom. Dia 31 de dezembro: quero obedecer sempre, para agradar Maria Santíssima até a morte. 28 de janeiro: não há mais inquietação, por amor a Maria Santíssima, e renovo hoje aquilo que tinha deliberado no dia 1º de janeiro. Dia 1º de março: Não. As inquietações cessaram. Dia 29 de março: Não mais me atormentar, não mais pecar.

Nas duas últimas datas, a inscrição está rodeada de um desenho que representa duas palmas formando uma cruz. Devo confessar que estas declarações, feitas ingenuamente por uma alma provada e enfim vitoriosa, não me tocaram menos do que se eu as tivesse lido nas catacumbas, das quais elas parecem ter o perfume…”

O mesmo admirável aroma dos primeiros martírios

É deveras bonito o comentário de Veuillot, cujo trecho nos leva a admirar o triunfo da graça. Pois trata-se de uma alma que em diversas oportunidades firmou boas resoluções, sem lograr mantê-las. Em seguida, renovava os bons propósitos e tinha novas quedas. Afinal, à força de rezar — era uma pessoa piedosa, ciente de que sem o auxílio divino, implorado com perseverança,  nada alcançaria — obtém o que tanto almejava. Depois de muito tempo e de vários insucessos, conquistou a vitória na sua vida espiritual.

Era uma alma perseguida por inquietações (talvez escrúpulos, ou alguma má inclinação à qual ela dava consentimento) e até revoltada, porque não obedecia a uma certa autoridade cujas determinações deveria acatar. Após as recaídas, e à custa de orações, acabou chegando um determinado momento em que ela pôde dizer-se obediente, pacífica e tranquila. Então, com o senso artístico peculiar ao italiano, adornou com duas palmas as datas que representavam a sua vitória.

Considerando que essas notas traduzem uma situação comum em qualquer trajetória espiritual, somos levados a perguntar porque a pessoa em questão resolveu gravá-las nos muros de uma igreja. Certamente porque foi o lugar onde recebeu uma graça particular, e onde, a horas furtivas, vinha inscrever na pedra do templo a sua confissão a Deus. Essa alma traçou ali seu diário, por desígnios da Providência, a fim de que fosse copiado e analisado por Louis Veuillot. E é este comentário do grande literato que nos interessa.

Diz ele que o fato era digno de estar escrito na parede de uma catacumba romana, pois tem o perfume dela. Ora, isso nos mostra o caráter perene da Igreja; revela-nos como, nas condições da vida hodierna, é possível repetir toda a glória do seu remoto passado. Com efeito, uma alma fiel que luta contra suas próprias misérias e que, apesar das infidelidades, roga constantemente o socorro de Nossa Senhora, para se ver resgatada de suas faltas e livre do império delas — essa alma realiza algo tão belo quanto o cristão que enfrentava no Coliseu, ou em outra arena, os leões e os tormentos do martírio.

Realmente, para quem conhece o valor das coisas espirituais, a seriedade e o desejo de cumprir o dever, o saber se humilhar quando se cai, decidir levantar-se de novo e confiar na misericórdia de Maria, possui um perfume admirável.  É o bom odor do sofrimento humano suportado com fé. No episódio descrito por Veuillot se percebe a alma sofredora que se dilacerou para conseguir a fidelidade aos seus propósitos. Ela teve uma fé que move as montanhas, e finalmente alcançou seu objetivo.

Ora, esse torcer e sangrar da alma para cumprir seu dever é uma forma de imolação que tem o aroma de todos os martírios. Quiçá não ateste o heroísmo num grau análogo ao daqueles cristãos sacrificados nos circos romanos. Porém, basta manifestar um certo sentido de heroísmo para exalar algo do perfume das catacumbas, todo feito do espírito de epopeia dos primitivos católicos que as frequentavam.

Orar sempre, orar muito, sem desânimo

Cumpre colhermos dessas considerações uma aplicação para a nossa vida espiritual. E será compreendermos que jamais devemos desanimar quando não conseguimos observar os bons propósitos que fazemos. Ainda que tenhamos insucessos, é necessário rezar, confiar e orar mais, porque à força de pedir, o Céu se abrirá para nós. Os que imploram com insistência a graça de praticar a virtude, por débeis que sejam, pertencem por excelência à categoria daqueles aos quais Nosso Senhor recomendou: “Batei e abrir-se-vos-á; pedi e dar-se-vos-á”.  Quer dizer, é uma glorificação da prece como meio eficaz para o homem obter aquilo que, pelo seu próprio recurso, não alcançaria.

Alguém poderá dizer: “As minhas orações valem pouco”.

Eu respondo: então reze muito. Pois se possuo apenas algumas moedas para adquirir uma joia bastante valiosa, é-me necessário reunir uma grande quantia para comprá-la. Assim também, se julgo que minhas orações valem pouco, à força de acumulá-las, seu peso há de crescer. Se considero meu Rosário insuficiente, recitarei dois. E se não tenho tempo para os dois, direi um Rosário e uma Ave-maria. Como quer que seja, rezarei o mais possível, e essa persistência acabará por me alcançar do Céu a graça desejada.

A esse respeito, não posso deixar de mencionar, uma vez mais, a célebre parábola de Nosso Senhor no Evangelho. É noite, e um homem já se encontra deitado com seus filhos, para dormir. Em certo momento, o vizinho lhe bate à porta, rogando-lhe um pedaço de pão.

— Chegaram hóspedes inesperados, e não tenho o que lhes servir — disse-lhe.

E o primeiro respondeu:

— Não posso atendê-lo, pois estou deitado com todos os meus filhos.

O vizinho continuou a bater e a insistir, até que o dono da casa lhe gritou:

— Não é por amizade, mas para me ver livre da sua amolação é que vou me levantar e lhe dar o pão.

Com essa parábola Nosso Senhor nos oferece o seguinte ensinamento: “Sede assim em vossas orações”. É como se Deus acabasse dizendo a cada um de nós: “Este é muito cacete. Vou atendê-lo”.

Tenhamos, pois, a excelsa virtude da caceteação. Saibamos ser importunos e pedir, pedir e pedir outra vez. No pedido mil e um obteremos mais do que suplicamos. Ganharemos uma paga imensamente grande.

Essa circunstância se dá de um modo ou de outro na vida de todos os homens, mesmo na daqueles que se acham adiantados na prática da virtude. Para galgarem um patamar ainda mais elevado nas vias do bem, é necessário rogar muito. Então peçamos, lembrando-nos desse diário visto por Louis Veuillot em Roma. A oração acaba vencendo tudo.

Uma palavra final. Se alguém estiver desanimado, desacoroçoado, julgando infrutíferas suas preces porque nada conseguem, dou-lhe este conselho: tome o Rosário, reze-o e nunca o abandone. Quando não puder recitá-lo, segure-o na mão e este gesto valerá por uma prece. Se possível, tenha em casa uma lamparina acesa constantemente junto a uma imagem de Nossa Senhora, e diga à Santíssima Virgem:

“Minha mãe, sou tão dissipado que não consigo rezar. Mas, quando olhardes para esta lamparina, lembrai-Vos de que eu quereria estar rezando. Ao menos este desejo subconsciente me acompanha a vida inteira”.

Portanto, dirijamo-nos a Maria Santíssima em todas as ocasiões. Certo estou de que, se Ela demorar em nos atender, é porque nos reserva um dom imensamente valioso, muito maior do que podemos imaginar.

Plinio Corrêa de Oliveira

1 ) Louis Veuillot (1813-1883), jornalista católico francês, que defendeu com brilho a infalibilidade do Papa.

 

Sacrifício e Heroísmo: frutos da Civilização Cristã

Na província de Albacete (Espanha) está situada a fortaleza de Almanza, uma das mais características dessa terra de castelos. Ao comentar fotografias de tal baluarte, Dr. Plinio correlaciona o espírito dos homens que o construíram com as mentalidades contemporâneas.

 

Vou descrever como imagino a grandeza contida nesta fotografia. Em primeiro lugar é necessário fazer uma distinção entre dois campos visuais, admiravelmente harmônicos, entretanto perfeitamente distintos: o castelo propriamente dito, com a montanha que lhe serve de fundamento, e o conjunto de nuvens que emolduram extraordinariamente o castelo e completam sua beleza.

O castelo, conjugado às nuvens, faz centrar toda a atenção de quem o observa em sua torre. A torre, por sua vez, causa uma impressão de altaneria, dignidade e majestade extraordinária. Tem-se a impressão de que ela enfrenta, do alto do monte, o inimigo que vem ao longe. Enfrenta com galhardia, olhando como quem ameaça e diz: “Chega que eu te abato! Não te temo!”

Não é jactância da torre, pois a fotografia é tirada com tanta arte que se percebe atrás outras muralhas do castelo, que mostram como ele é profundo e quanta fortificação contém, quanta tropa possui e quantos outros elementos a torre apresenta para vencer. O atrevimento da torre, fidalgo atrevimento, tem a sua razão de ser: o castelo é poderoso e a torre nada teme!

Colocando-se na posição de um comandante do castelo, postado no alto da torre, vendo de longe o inimigo que avança, tem-se a impressão de que a torre personifica tudo quanto há de heroico na defesa da fortificação. Entretanto, esse comandante desafia dois adversários: um que vem de longe, caminhando na terra, em tropel de cavalaria —cavaleiros armados, espadas, lanças, olifantes —, ameaçando chegar, escalar a muralha que muito se assemelha com a torre. Mas há também outro adversário: são as nuvens do céu.

Estas nuvens se acumulam densas, majestosas, grossas, um tanto luminosas, de um lado e de outro, escuras, carregadas, expressando possibilidades de glória na parte luminosa, mas de certo ar de ameaça e de luta, expressa na parte sombria. Poder-se-ia dizer que essas nuvens simbolizam a tremenda batalha que deve dar-se.

Seria como que a voz da História dizendo ao comandante do castelo: “As ameaças da vida pairam sobre ti; chegou a tua hora de lutar! Sê herói ou serás esmagado!”

Voltando os olhos novamente para o castelo, é possível notar algo curioso: a impressão de o castelo estar dominando a rocha que está debaixo dele. É uma “garra” que domina a rocha. Tal domínio dá-se de tal forma que é possível notar, na muralha frontal, a rocha que “escalou” a muralha e subiu quase até em cima. O castelo está em luta com a rocha e diz com desdém: “Tu não me alcançaste.”

No tempo das guerras de arma branca, tempo este em que tais construções tiveram seu significado, havia um inconveniente em que essas rochas estivessem tão próximas da fortaleza, porque davam ao adversário a esperança de escalá-las e saltar a muralha. Entretanto, era tão trabalhoso e difícil que certamente os inimigos preferiam contemporizar por sentirem a impossibilidade de abater tão imponentes muralhas. Certamente, por detrás das pulcras e nobres ameias, havia um elemento de defesa com o qual o adversário deveria tomar consideração, dando-lhe muito receio de subir. É o fato de que provavelmente na parte alta do muro houvesse instalações para fazer fogo e com ele ferver água e derreter chumbo. De maneira que bastava o adversário iniciar a escalada das rochas, para sobre ele virem torrentes de água fervente que lhe entravam armadura adentro queimando todo o corpo.

Pior do que a água fervente era o chumbo derretido, pois produziam espantosas queimaduras. Secavam na armadura e nas junções desta, imobilizando o combatente, deixando-o com os braços e as pernas hirtos. Sem armadura, o guerreiro era um boneco à mercê de qualquer espada. Desta maneira, a pedra era até certo ponto uma cilada para o adversário. Se fosse ignorada a existência de recursos como este, estava liquidado. Era ao mesmo tempo a rocha da cilada e a rocha da vitória.

Nota-se uma luminosa abertura, que certamente foi feita quando cessaram as guerras contra os mouros, em Espanha, e os castelos perderam sua significação militar. Os castelos deixaram de ser fortalezas, passando a residências de senhores feudais, proprietários de extensos territórios, que lá levavam uma cômoda e despreocupada vida no interior de suas muralhas.

Iniciou-se então o período em que os castelos tornaram-se ornamentados de móveis preciosos, tecidos importados, quadros valiosos. O castelo destinava-se ao esplendor da vida, após ter sido dedicado ao heroísmo.

Algo que provavelmente não existia no tempo em que os castelos tinham o seu significado militar, é a vegetação que o circunda. Certamente, no tempo das batalhas, estes prados estavam arrasados. Eles não permitiam que crescesse vegetação, por ser um lugar onde o inimigo poderia se dissimular, nas cercanias do castelo. Era necessário haver uma planície para o inimigo não se ocultar das flechas que, do alto do castelo, lançassem contra ele.

Seus muros e suas paredes receberam os raios calcinantes do sol de Espanha, como também as gélidas chuvas dessa terra. Quando maltratada pelo tempo, a pedra adquire uma beleza fora do comum. Considerando a cor dessa pedra, dir-se-ia que é de âmbar ou de porcelana, e não pedra corrente.

Qual seria a adequada missão de um castelo desses?

Recordar à alma egoísta do homem contemporâneo algo que deve envergonhá-lo: a perda do senso de sacrifício. O homem hodierno perdeu o anseio da luta, não sabendo mais o que é ser herói. Para as civilizações acorcovadas dos dias atuais, o castelo é uma lição de moral proclamando a grandeza de alma dos espanhóis da Reconquista, que por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo, a Nossa Senhora e à Santa Igreja Católica foram “povoando” a península ibérica de fortalezas, à medida que iam reconquistando a Espanha, a fim de que os mouros não pensassem em voltar jamais. Caso quisessem retornar, encontrariam essa rede de castelos opondo-se a eles. A realidade é que uma vez expulsos, nunca mais voltaram!

Heroísmo cristão! Heroísmo nascido no momento em que Nosso Senhor Jesus Cristo expirou na Cruz e redimiu o gênero humano. De seu costado transpassado por uma lança nasceu a Santa Igreja Católica que produziria depois frutos como este.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/51984)
Revista Dr Plinio 138 (Setembro de 2009)

 

O Juízo Final e a trama da História – II

Ao tecer comentários sobre o Juízo Final, Dr. Plinio põe diante de nossos olhos o momento grandioso no qual Jesus Cristo, Pontífice, Profeta e Rei, receberá das criaturas toda a glória que Lhe é devida.

 

Ao longo de todo o Juízo Final, Nosso Senhor Jesus Cristo estará oferecendo e recebendo glória enquanto Pontífice, cujo sacrifício foi aceito; como Rei, cujo governo foi bem sucedido, cuja guerra foi levada ao fim; enquanto Profeta, que previu tudo quanto foi realizado. De maneira que tudo quanto for narrado no Juízo será a glorificação do Pontífice, do Rei e do Profeta. A obra da Criação estará concluída e começará o grande domingo da História.

Pontífice da Humanidade

É Nosso Senhor, enquanto Pontífice, que no Juízo Final oferecerá ao Padre Eterno tudo quanto aconteceu na História; pois, no fundo, é o seu plano que foi executado. Ele tem o direito de oferecer os sofrimentos de toda a humanidade, porque nos tornamos capazes de sofrer por causa d’Ele. O padecimento de Nosso Senhor, de Nossa Senhora, a Corredentora, comprou-nos a capacidade de padecer.

Ofereço, então, meu sofrimento por meio d’Ele, porque é o Pontífice que oferece todas as coisas ao Pai Eterno. Se eu oferecer sem ser por meio d’Ele, minha oferta não será aceita.

Então há um contínuo evolar de tormento, de dor, de infelicidade da Terra, um contínuo gemido que caminha para o Céu e vai se transformando num brado de vitória e de glória. Mais ou menos como soldados que estão lutando numa trincheira, isolados, abandonados; é um sofrimento medonho! Mas tudo isso se torna glorioso quando se dá a vitória.

Assim, as provações tremendas, as incompreensões, tudo deve ser oferecido nessa perspectiva.

E vai se fazendo a trama da História.

Rei da História

A realeza de Nosso Senhor mostra-se já na distribuição dos méritos, os quais são o fluxo vital da História. Ele, como Pontífice, conquista e, ao distribuir, reina.

Analisando uma fotografia da Sagrada Face, no Santo Sudário, nota-se que há algo de extraordinariamente luminoso no alto da fronte, como se fosse um brilhante; algo que de fato Lhe dá majestade e poder de decisão.

Pois bem, é o diadema de Nosso Senhor, o único rei que reinou com a cabeça coroada de sangue, após serem tirados os espinhos. Esse sangue tornou-se o brilhante, o divino Koh-I-Noor(1) d’Ele.

Na consideração dessa luminosidade, percebe-se como do pontificado se passa para a realeza. Quer dizer, Ele tem a realeza “par droit de naissance”(2) e por direito de conquista. Nosso Senhor sofreu tudo que era preciso para resgatar o gênero humano, e tornou-Se dono daquilo que Ele resgatou. A humanidade era de Satanás e Ele a comprou por esse preço; portanto, Jesus possui também a realeza por direito de conquista.

Como Homem-Deus, Nosso Senhor é Rei de todas as coisas. Rei por ser da descendência de Davi, não só sobre o povo eleito, pois Salomão era chamado a uma realeza de hegemonia moral sobre toda a Terra, a mais gloriosa das realezas. E essa realeza Jesus Cristo deveria ter sobre o mundo inteiro, se não fossem os pecados dos homens. Se Nosso Senhor se encarnasse no Paraíso terrestre, Ele a teria.

Na Sagrada Face há uma decisão de Quem, na sua inteligência, vontade, sensibilidade, é o Rei de tudo e dirige a História. Aquela é Fisionomia de Rei. Nada se compara a Ele; o próprio Carlos Magno torna-se uma figura fátua. Nosso Senhor manda e os outros têm que obedecer, custe o que custar. No meu modo de interpretar, nota-se que Ele está morto, mas com tanta vida nessa morte!

Profetismo e História

Percebe-se que há n’Ele algo de profundamente pensativo, quer dizer, uma sapiencialidade, um desígnio que está feito “in radice” e vai se realizar nos seus pormenores, de acordo com um alto plano. E nisso Ele se afirma Profeta.

É o plano que, na sua sabedoria, Ele concebeu enquanto Redentor. Como Rei, Nosso Senhor manda aos anjos que intervenham, movimenta toda a Igreja. E executa aquilo que seu profetismo previu.

E todos os homens serão julgados, premiados ou castigados, em função da afirmação, da proclamação da glória de Nosso Senhor, como Pontífice, Rei e Profeta. A nossa glória consistirá em ter participado da glória d’Ele.

Colocados esses elementos na cena, o Juízo chega a ser uma espécie de imenso ofertório, caminhando para a Consagração. Tudo isso pode ser comparado com uma imensa Missa.

No momento em que termina o julgamento, há a glorificação suma de Cristo, porque cada coisa que Jesus fez é boa e o conjunto ainda é melhor.

Não se pode imaginar — seria de certo modo uma apresentação pictórica — o julgamento dos homens numa espécie de “monoclave”, do início ao fim. Não. Trata-se de um drama que vai crescendo e termina num auge.

Várias nações poderiam ser salvas, se sempre considerassem esse fundo de quadro.

Mensagem de Fátima e “Grand Retour”

À vista desse panorama, compreendem-se melhor os castigos previstos por Nossa Senhora em Fátima, porque eles são prefigura do fim do mundo. Não devemos imaginá-los sem o significado que continuamente apresentarão, ou seja, de Nosso Senhor que resgatou, governa e é Profeta; e que vai sendo desagravado no curso dos acontecimentos pelo castigo dos maus, pela virtude de que dão prova os bons, e depois pela glorificação de Jesus Cristo e dos bons, na entrada do Reino de Maria.

Assim é que se compreende o “Grand Retour”(3). Creio que sem a aptidão de considerar as coisas dessa maneira, não temos propriamente formação para o “Grand Retour”.

Isso suprime visualizações insuportavelmente mesquinhas a este respeito, como considerações puramente individuais.

Compreendemos, assim, o papel de nossa vida nesse conjunto de fatos. Cada um de nós não é o mero indivíduo, apto a realizar um destino apenas individual. Mas tem um papel a representar nesta outra dimensão da História; esse papel está à nossa espera e devemos crescer até ele.

Nossa vida individual pode ter aspecto bonito, mas que se conecta com o outro; do contrário ela não tem sentido.

Cada um de nós, na medida em que se eleva, entra nesse papel histórico, e os outros de algum modo percebem quando nos identificamos com nosso próprio papel.

O homem que, a meu ver, mais facilmente se percebe ter se identificado com seu próprio papel foi Carlos Magno. Não digo que ele foi quem melhor se identificou, mas quem mais facilmente se percebe.

Vislumbramos aqui o assunto arquetipização. Cada homem é único e, nesta ordem superior de coisas, pode vir a ser arquétipo de possíveis.

Exceção que confirma a regra

Tratarei agora a respeito de Nossa Senhora. Deus confirmou n’Ela todas as regras da ordem, bem como as exceções que confirmam as regras.

Deus constituiu propriamente a seguinte exceção: criou todo o universo, e o homem à sua imagem e semelhança, mas deixou sempre muito claro quanto Ele o transcendia. Entretanto, para mostrar até que ponto Ele é análogo, criou Nossa Senhora, ornou-A de tal maneira e tornou-A tão excelente, que, para O entendermos bem, de preferência devemos olhar para Ela.

Alguns, inclusive, afirmam que é “Cristocêntrico” voltar-se para Nossa Senhora, de tal maneira Jesus está mais presente n’Ela do que em todas as outras criaturas.

Pode‑se dizer que Nossa Senhora é, de certo modo, uma concentração de tudo quanto expusemos? Parece-me que sim, no seguinte sentido:

A glória de Nosso Senhor, como Pontífice, Rei e Profeta, é tão grande, que no Juízo Final Ele coroa sua Mãe — com esplendores que não se poderiam imaginar ser possíveis a uma mera criatura — como Corredentora, Co-reinante e de algum modo Co-profetiza.

Seria preciso depois aprofundar, à luz da Mariologia, essas três funções d’Ela em tudo que acabo de descrever. Pois tudo seria menos belo, menos esplêndido, menos glorioso, menos magnífico, se a como que imaginação de Deus não estivesse presente.

Imaginemos um general que vence uma guerra, e um rei não sabe como glorificá‑lo. O general diz então ao monarca:

“Se vós quiserdes me glorificar de fato, nomeai Condestável do exército a minha própria mãe, e dai‑me o bastão para eu pôr nas mãos dela. Nesta hora eu estarei glorificado, porque ela lutou comigo, fez isso e aquilo com toda a perfeição.”

No momento em que o general entregasse o bastão para sua mãe, haveria a máxima glorificação dele.

Assim também, o epílogo é a grande glorificação de Nossa Senhora, no dia do Juízo. Com isto de especial: até Nosso Senhor cantaria a glória d’Ela. Poderíamos imaginá-Lo — se se pode falar em cronologia —, ao encerrar-se tudo isso, cantando o Magnificat, sozinho, e depois acompanhado pela Criação inteira.

Como seria sua voz e resplendores, cantando o Magnificat, olhando para Ela? Não sei se haverá Eucaristia então, mas, se houver, Ele estará presente n’Ela. E outros mistérios a respeito de relações de Nosso Senhor Jesus Cristo — em sua divindade e humanidade — com Ela serão revelados. E constituirão gáudios maiores do que todos os outros, os quais ficarão, digamos, em nexo íntimo com a visão beatífica.

Tudo quanto eu disse a respeito de Nossa Senhora é uma insignificância.

Considerem o Sacro Volto [a Sagrada Face]. Cada dor que Nosso Senhor sofria repercutia n’Ela. E quando o Redentor levou em sua cabeça sagrada a pancada, que está expressa por aquela efusão de sangue no alto da fronte, Nossa Senhora sentiu-a na alma, com toda a intensidade do amor de Deus a Ela e do amor d’Ela ao seu Filho. E assim a fronte d’Ela cobriu-se de uma glória parecida com a de Nosso Senhor.

Por mistérios de Deus, de algum modo os homens veem melhor essa glória na fronte d’Ela do que na de Jesus, de tal maneira Ele quer glorificá-La. E para sabermos como n’Ele a glória é maior, devemos olhar para Nossa Senhora. Ela só pode ser bem vista n’Ele, e Ele, n’Ela.

Há aqui coisas inefáveis, porque a dupla relação da divindade com a humanidade em Jesus e, depois, d’Ele com Maria Santíssima, contém todo o “pulchrum, o verum, o bonum” do universo, a grandeza etc. É uma coisa tão extraordinária e maravilhosa, que é muito difícil termos ideia disso.

Toda essa História é de ouro, e o ponto final tem que ser preto, mas é um brilhante negro.

Porque amou a vulgaridade, Satanás não queria que nada disso fosse assim e, ao mesmo tempo, conhecendo de algum modo a grandeza de tudo isso, percebe o achatamento dele e de todos os que o seguiram. E um achatamento que é eterno, definitivo, e o castiga para todo o sempre. Mas o que mais o tortura é que essa grandeza venceu sua vulgaridade, e ele geme inteiro.

Ele está ligado à vulgaridade de maneira infame, torpe, enquanto nós devemos estar unidos à grandeza.

Há pessoas que têm inveja de nós, em razão de nossas qualidades. Se viesse agora o Reino de Maria e fôssemos postos no pináculo, esses que nos invejam por causa do que temos de terreno, mais sofreriam vendo o bem glorificado em nós.

Por exemplo, duas irmãs: uma ficou virgem e é glorificada; a outra se perdeu e foi lançada no inferno. Esta última sofre mais pela glorificação da virgindade, do que vendo a irmã que ela odiava, da qual tinha inveja.

Mais especialmente o inferno rangerá quando Nossa Senhora for coroada, porque ficará mais visível a vitória de Deus. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/12/1982)
Revista Dr Plinio 150 (Setembro de 2010)

 

1) Célebre diamante que pertenceu a soberanos indianos, oferecido à Rainha Vitória

2) Por direito de nascimento.

3) Grand Retour (Grande Retorno): palavras usadas por Dr. Plinio para designar o surto de graças que prepararão as almas para o Reino de Maria.

A honra!

Dirigindo-se a um auditório composto por jovens, em sua maioria, Dr. Plinio, de forma lógica e atraente, explica a diferença entre os conceitos de honra e glória. Busca ele apresentar, a par dos princípios, exemplos concretos para, desta forma, além de iluminar a inteligência, mover também a vontade.

 

Há um pequeno episódio, célebre na História francesa — eu diria até, na História do mundo.

Napoleão estava derrotado, pois, em Waterloo(1), Wellington destroçara seus últimos exércitos. A França estava desgovernada, e perto da fronteira francesa se encontrava um irmão de Luís XVI, o Conde d’Artois.

Luiz XVI, o rei que fora decapitado pela Revolução Francesa, não deixara herdeiro direto(2). Tinha ele dois irmãos: o Conde de Provence e, outro mais moço, o Conde d’Artois. Se o Conde de Provence morresse sem filhos, o Conde d’Artois herdaria o trono(3).

O Conde d’Artois estava aguardando o momento de entrar em seu país. Mas, dado que a França acabava de sofrer uma derrota espetacular, e as forças nacionais tinham sido drenadas por Napoleão nesta última resistência contra o adversário, o Conde d’Artois não queria tomar o trono às custas de uma convulsão social e política que pudesse exaurir ainda mais seu país. Ele preferia usar um meio jeitoso, político, para que, sem derramamento de sangue, fosse atendido seu ancestral direito ao trono.

Havia na França uma “velha raposa”, um homem que foi o mais hábil de seu século em matéria de diplomacia: Talleyrand, bispo apóstata de Autun, pertencente a uma família quase principesca.

Entre as suas inúmeras habilidades, estava a de manusear incomparavelmente bem as mil finuras da língua francesa. Possuía também muito prestígio político.

Certo dia, alguém veio à sua presença e lhe disse: “O Conde d’Artois está na fronteira, mas declarou que não entrará no país sem um chamado de alguém com influência na França. Estou aqui para saber se o senhor mandaria um cartão, convidando-o a entrar na França.”

Talleyrand — muito indolente na hora do descanso, mas uma águia no momento da ação — tomou um papel e escreveu com uma letra negligente o seguinte bilhete, que ficou célebre: “Monseigneur, nós estamos fartos de glória; traga-nos de volta a honra.”

O homem levou o bilhete para o Conde d’Artois, o qual afirmou: “Isto é um apelo.” E entrou na França.

Honra e glória

Qual a diferença entre honra e glória?

Houve tempo em que o homem prezava acima de tudo o fato de ser honrado. A honra valia mais do que a fortuna, a inteligência, ou qualquer qualidade natural.

Mas, além da honra, existe a glória. Por que a França estava farta de glória e não tinha honra? O que vale a glória sem honra? E a honra sem a glória? Uma pessoa possuidora de ambas, o que mais deve prezar: sua honra ou sua glória? O que vêm a ser esses dois valores?

A análise disto nos remonta a uma cogitação mais profunda. A mente humana é formada de um modo singular. Não há quem não tenha ouvido falar de honra e de glória. Porém, creio que a imensa maioria das pessoas não sabe qual a diferença existente entre honra e glória. E não tenho vexame de dizer que eu, às vezes, tinha curiosidade de conhecer no que os dois conceitos se diferenciavam…

Com a minha perpétua falta de tempo, embora tivesse certa curiosidade de saber, nunca consultei isto num dicionário. Hoje, sabendo que deveria tratar da honra e da glória, procurei os dois conceitos. Mas são eles apresentados de tal modo, que apenas consegue verdadeiramente entender os significados de cada um desses conceitos quem já tenha pensado sobre o assunto. Quando não se refletiu anteriormente sobre algo, muitas vezes não se entende a explicação do dicionário.

Menção honrosa

Dizia o dicionário: “Honra é a consideração e homenagem à virtude, ao talento, à coragem, às boas ações ou qualidades morais de alguém”.

Façamos algumas aplicações para bem compreender o sentido da palavra “honra”. Por exemplo, no meu remoto tempo de aluno do Colégio São Luiz, a cada seis meses davam-se prêmios para os melhores alunos. Havia uma conferição de medalhas: a de ouro para o aluno que tivera um desempenho excelente; a de prata para quem conseguira nota muito boa.

Àquele que estava acima do comum, dava-se “menção honrosa”, quer dizer, seu nome era mencionado com honra, mas não recebia medalha. Tratava-se de um diploma escrito: “Menção honrosa em tal matéria.”

A honra, no caso concreto, era a avaliação de um talento ou de um esforço que o aluno fez para estudar.

Casamento honrado

Outro exemplo. Hoje estive na Igreja do Coração de Jesus(4), a qual estava toda enfeitada para um casamento. Imaginemos a cerimônia: entra o pai da noiva, levando-a pelo braço. Ele se sente honrado em levar a sua filha ao altar. E a noiva se sente honrada em ser conduzida pelo braço do pai. Qual a razão?

Quando a filha tem uma virtude real e seu pai é um homem que se mostrou respeitável, por uma capacidade ou uma qualidade especial, ela lhe dá o braço contente: “Aqui está meu pai.” E o pai também fica satisfeito: “Esta é minha filha, que vai virgem às núpcias”, e a entrega ao noivo no altar, com cabeça alta: “Íntegra ela sai das minhas mãos para as suas”.

Nisso há honra porque está presente um talento ou uma qualidade moral especial. O ideal é estarem juntas ambas as coisas. É muito apreciável que um homem ou uma senhora tenha um talento marcante e, ao mesmo tempo, uma capacidade, uma virtude especial.

Família honrada

Suponhamos que, no entardecer da vida dos progenitores, uma família está reunida. Casa confortável, filhos numerosos em torno de uma mesa, alegres. É um jantar opulento, comemorativo das bodas de prata ou de ouro, quer dizer, os pais casaram-se há 25 ou 50 anos; felicidade de todos.

Estão honrando os pais. Por quê?

O pai, digamos, era um homem pobre e que fez alguma fortuna à força de negócios honestos, tendo revelado capacidade e, ao mesmo tempo, caráter, e todo o mundo na cidade diz dele: “Homem honesto é o Sr. fulano de tal”.

A mãe, muito dedicada — qualidade moral —, hábil dona de casa, conseguiu arranjar a casa de modo primoroso, sendo o jantar muito bem servido.

Têm honra por ambas as razões juntas: qualidade moral e talento, cada um a seu modo. O homem como chefe de família, ela como esposa fiel, cada um tem seus talentos e qualidades. Isto dá realce à festa das bodas, e torna saborosos os alimentos distribuídos que, sem isto, não teriam graça.

O prêmio Nobel

Alfred Nobel, inventor da dinamite, deixou uma fortuna enorme para premiar todos os anos quem se assinalasse por seu talento, ou por sua virtude, em alguma coisa especial.

Uma comissão internacional indica os nomes daqueles que devem receber o prêmio — uma boa fortuna em dinheiro —, o qual é conferido na Suécia pelo rei, havendo depois um banquete com homenagens, no palácio real.

Vemos aqui aparecer uma noção que vai para além da honra: é o conceito de glória. No que a glória difere da honra?

Glória

É fácil compreender o que é glória quando se apanham os conceitos essenciais. Diz o dicionário: “Glória é a fama adquirida por ações extraordinárias, feitos heroicos, grandes serviços prestados à humanidade, às letras, às ciências, etc.”

Não se refere, portanto, apenas ao bom chefe de família ou à boa senhora que se distingue.

Um homem erudito merece honra, mas não glória, porque não empreendeu uma ação extraordinária. Ele demonstra uma capacidade distinta; porém, distinção não é celebridade. Célebre é o distinto visto através de uma forte lente de aumento. E o Prêmio Nobel existe para premiar apenas as celebridades.

Imaginemos um homem inteligentíssimo, mas que nunca produziu nada, porque, por exemplo, tem muito má saúde. Ou então porque precisa trabalhar para manter a família, o que lhe impede de fazer uma grande produção intelectual da qual seria capaz. Eu poderia perceber que é um gênio. Para mim ele mereceria glória e eu o trataria com muita distinção. Mas é desconhecido pelo público. Para ter glória é preciso ser conhecido. Para ser conhecido é necessário fazer alguma coisa.

A glorificação de um santo

Então, além de possuir qualidades eminentes, ele precisa ser conhecido. Dou um exemplo característico: São José, o qual teve uma existência inteiramente apagada, porque foi desígnio de Deus que vivesse na humildade.

Ele merecia todas as glorificações possíveis: fez ações extraordinárias, foi verdadeiramente o pai legal do Menino Jesus porque, embora Nossa Senhora fosse virgem antes, durante e depois do parto, São José tinha um direito, como esposo de Maria Santíssima, ao fruto das entranhas d’Ela. Porém, poucas pessoas souberam disso, enquanto ele estava vivo. Resultado: glória São José não teve.

Mas quando a Igreja começou a se expandir, e a reflexão sobre o Evangelho passou a ganhar corpo, os católicos se deram conta de quem foi ele. São José já possuía tudo para ser célebre, porém suas grandes ações não eram conhecidas. Quando o foram, ele se tornou célebre.

O que distingue a honra da glória?

A honra é o brilho distinto, digno de nota, da virtude ou do talento. A glória é o fulgor de um talento extraordinário ou de uma grande virtude.

Voltemos ao texto escrito por Talleyrand. Napoleão possuiu glória, pois revelou um talento militar extraordinário e alcançou vitórias de que todo o mundo fala até hoje.

Mas não teve honra, porque foi desprovido de virtude. Se houvesse feito em favor de um poder legítimo aquilo que realizou em favor de si mesmo, ele teria tido honra. Mas ele não exercia um poder legítimo, era um usurpador, e isso não traz honra.

Graus de honra

Se o respeito, o apreço que se deve à virtude, merece ser chamado honra, todo homem que pratica a virtude de modo suficiente, e vive habitualmente na graça de Deus, é honrado. E “homem honrado” está muito bem qualificado, porque ele merece essa honra de quem cumpriu a Lei de Deus, e uma coroa o espera no Céu.

Porém, há dois graus de honra: uma é esta honra comum que todo homem deve ter, porque cada um precisa viver conforme a Lei de Deus.

Existe, entretanto, uma honra mais distinta, maior, que faz com que o homem seja admirado pelos que estão na graça de Deus. Estes dizem: “Ele realiza o que nós fazemos, mas vai mais longe. Não chega a praticar ações célebres, mas é bem mais virtuoso do que a média”. Então, entre os honrados, esse é um homem que tem uma honorificência especial. Isso supõe um esforço especial, porque toda virtude é difícil. Não há virtude fácil. Nas nossas condições, ela não teria beleza se não fosse difícil.

Mas não é só isto. Há também qualidades naturais, as quais Deus concede para quem quer, e que podem merecer honra. Por exemplo, o talento musical.

Alguns músicos nasceram com tal dom que, desde pequenos, fizeram obras-primas. O exemplo mais célebre foi Mozart, o famoso músico do século XVIII que, aos sete anos de idade, realizava concertos em público! Era um gênio! Essa qualidade musical decorreu de um conjunto de circunstâncias naturais, atavismos etc., bem como, provavelmente, de algum desígnio da Providência.

Ainda que Mozart fosse um homem de uma virtude comum, ele mereceria honra pelo fato de ter talento. E recebeu glória porque levou, pelo esforço, esse talento a um grau eminente.

Se ele tivesse sido um inconsequente e, por isso, não se dedicasse ao estudo da música, poderia, na idade madura, se apresentar num teatro, ocasião em que se diria: “Aqui está Mozart, um homem que aos 10 anos de idade compunha música. Ele agora tem 30 anos e vai tocar para nós.” Ele, então, dedilharia no piano uma música sem graça… O fato de se saber que ele nasceu com talento, mas não fez nenhum esforço, foi um “bicho preguiça”, provocaria desprezo.

Glória sem honra

Pode acontecer que uma pessoa seja de tal maneira dotada, do ponto de vista natural, que, sem esforço, brilhe de modo insigne. Pergunta-se: ela merece glória?

Merece. E se ela for preguiçosa? Terá uma glória sem honra.

Poder-se-ia perguntar o que é bom para um país: ter grandes gênios com glória, mas sem honra, ou possuir muitas pessoas com talento mediano com honra, embora sem glória.

Respondo: o homem com grandes qualidades e sem virtude, na maior parte dos casos, é um malfeitor. Exemplo, Talleyrand, que era dotado de qualidades políticas únicas. Ele praticou algum bem, mas, de fato, a soma de males que fez na vida foi enorme, porque usou mal seu talento, conforme convinha a seus interesses.

Um homem que tenha um talento oratório ou jornalístico muito grande será um benefício para seu país se ele usar bem o dom que recebeu para servir a Causa de Deus, de Nossa Senhora, da Igreja. Se não fizer isso, escreverá artigos de jornal, livros, fará conferências, orientando as pessoas para o mal. Nessas condições, será um malfeitor. É melhor para um país ter muita gente honrada, embora não gloriosa, do que muitas pessoas gloriosas, mas sem honra.

Peçamos a Nossa Senhora a graça de nunca buscarmos a glória, pois, na maior parte dos casos, compromete-se a glória quando a pessoa a procura para si. É preciso procurar a honra, a qual muitas vezes custa o sacrifício de qualquer possibilidade de glória. O caminho da honra nos espera. Se Ela quiser, será também a via da glória.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/3/1986)
Revista Dr Plinio 150 (Setembro de 2010)

 

1) Localidade da Bélgica onde, em 1815, ocorreu a batalha na qual Wellington derrotou as tropas de Napoleão.

2) Deixou o Delfim, que seria Luís XVII, que em sua infância, em consequência da Revolução Francesa, teve destino até hoje ignorado. Talvez tenha sido assassinado, após a execução de seus pais.

3) Ambos se tornaram reis da França: o Conde de Provence, com o título de Luís XVIII, e o Conde d’Artois, de Carlos X.

4) Situada em São Paulo, no bairro dos Campos Elíseos.

Obediência e Contra-Revolução

A propósito de alguns pensamentos de Santo Inácio de Loyola relacionados com a obediência, Dr. Plinio tece substanciosos comentários a este tema que marca profundamente a diferença entre o revolucionário e o contrarrevolucionário.

 

Como todos sabem, Santo Inácio de Loyola concebeu a Ordem Religiosa que ele fundou, à maneira de um exército; por isso, deu-lhe o nome de Companhia de Jesus. Companhia naquele tempo queria dizer batalhão, regimento ou exército. Era, portanto, Exército de Jesus. E para que os sacerdotes da Companhia de Jesus tivessem toda a eficácia na sua luta contra os restos do Renascimento e a explosão protestante, ele quis que fossem marcados com todas as notas do espírito militar, entre as quais um eminente espírito de obediência.

A condição militar supõe a obediência, e um exército sem obediência é um exército aniquilado. De maneira que faz parte da honra militar a disciplina. Portanto, uma das notas de esplendor da condição militar, aos olhos de todo mundo, é a compenetração e a varonilidade com que o militar obedece.

Para o revolucionário a obediência é uma vergonha

Falo de compenetração e varonilidade e já temos aqui um dos pontos de atrito entre o espírito da Revolução e o da Contra-Revolução. De acordo com o espírito revolucionário, obedecer é uma vergonha, mandar também não é uma beleza. O bonito é não obedecer nem mandar, mas ser igual a todo mundo. Isto porque o revolucionário procede da ideia de que todo homem é inteiramente capaz de conhecer todas as verdades de que seu espírito precisa para se orientar; e de governar as suas paixões desordenadas, de maneira a praticar o bem e evitar o mal. Em consequência, todos os homens são perfeitamente iguais. Não há nenhuma razão para um homem dar conselho ou uma ordem a outro, nem sofrer a vigilância, a fiscalização de outro. Portanto, não há motivo para haver disciplina.

Então, o revolucionário interpreta a obediência como uma atitude de alma vergonhosa do indivíduo indolente e mole, que tem preguiça de escolher o seu próprio caminho, de encontrar as verdades necessárias para se orientar na vida. É, então, por moleza que um homem defere essa atribuição a outros e se deixa guiar.

Seria mais ou menos como um indivíduo que, por preguiça de abrir os olhos e olhar em torno de si, os fecha, dá a mão para um outro e diz: “Guie-me, porque ao menos assim eu vou babando pelo caminho.” Se um homem tem olhos e meios de caminhar, ele vai se conduzir por si.

Então, para o espírito revolucionário a obediência é uma vergonha.

Para o contrarrevolucionário é um ato de bom senso, de fidelidade e de força

O militar considera o contrário. Ele sabe que a unidade de ação só pode resultar de uma unidade de mando; e para que uma grande ação de conjunto se desenvolva é preciso uma grande capacidade. Ora, os homens não têm a mesma capacidade, e um exército bem constituído deve destilar os seus valores. De maneira que os de mais altas qualidades cheguem à cúpula e sejam capazes de encontrar e de indicar o caminho para aqueles que estão numa categoria intermediária; e estes por sua vez orientem os menos graduados. Dessa forma, no topo da hierarquia militar há aqueles que são mais competentes, ou se presume que o sejam, pelos estudos que fizeram. Nos países que realizam operações militares, existe uma hierarquia de competências, de idades, de experiência, que vai distribuindo os conhecimentos e a capacidade de impulso da cúpula, sucessivamente, aos vários graus da escala militar até a base. E com isso se forma a ordenação de um exército.

Conforme essa interpretação, a obediência é uma virtude. Ela é antes de tudo um grande ato de lucidez pelo qual uma pessoa reconhece que pode não ter tanta capacidade quanto uma outra; e algo que mais comprova ser cretino um indivíduo, se este imagina que ninguém possa ser mais capaz do que ele. Porque isto indica que ele não vê dois dedos diante do nariz; é incapaz de olhar para cima. Ora, a mais nobre das posições da cabeça do homem é olhar para cima.

É um ato de bom senso, de lucidez, reconhecer que outros, por serem mais inteligentes, terem mais competência ou mais experiência, são mais capazes do que nós para encontrar o caminho.

Fazer o que o outro quer é um ato de ascese. Porque somos sempre tendentes a conceder demais para nós mesmos, a arranjarmos pequenos confortos, pequenas regalias, pequenas exceções, pequenos prazos, pequenas traições por onde não cumprimos o nosso dever. E cumprir a vontade de um outro é muitas vezes dolorido, porque temos a impressão de que uma coisa é de um jeito, e o outro nos diz que é de um jeito diferente. Dolorido porque renunciamos a uma porção de vantagens pessoais para fazer o que o outro está mandando. Então, é preciso ter varonilidade, decisão, capacidade de enfrentar o sofrimento, a dor, de fazer o que deve ser feito; isto caracteriza o verdadeiro espírito militar.

Exatamente ao contrário do que pensa a Revolução, para a Contra-Revolução a obediência é um ato de bom senso, de fidelidade e de força. Portanto é uma honra.

Nosso Senhor Jesus Cristo, paradigma da virtude da obediência

Entre as Ordens Religiosas, aquela que, por sua analogia com o espírito militar, mais ensina a grande virtude da obediência é a Companhia de Jesus. Virtude essa cujo paradigma foi Nosso Senhor Jesus Cristo, a respeito do Qual diz a Escritura: “Ele se fez obediente até a morte, e morte de cruz”(1). É belo vermos como Ele não se deixou vergar por nenhum poder da Terra, falou com a cabeça erguida e com divina e vigorosa altaneria contra todos os grandes da sinagoga e os grandes que representavam o Império Romano em Israel. É pulcro contemplar Jesus falando Àquele que era verdadeiramente superior a Ele, o Padre Eterno, nas orações que fazia.

A meu ver — naturalmente é uma impressão pessoal —, os mais belos trechos do Evangelho são as orações de Nosso Senhor Jesus Cristo, quando Ele se dirige ao Padre Eterno. Sendo a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, perfeitissimamente igual ao Padre Eterno — inferior, é verdade, na sua natureza humana —, Ele se dirige a Deus Pai com um respeito, um afeto, uma submissão, uma naturalidade, uma união, que, segundo me parece, constituem as páginas mais sublimes do Evangelho. O que não é dizer pouco, porque no Evangelho tudo é sublimíssimo; o Evangelho é uma concatenação de sublimidades, umas depois das outras. Tais orações mostram Nosso Senhor Jesus Cristo obedecendo, no ato de prestar a reverência à autoridade devida.

Ninguém poderá jamais exprimir o que foi o modo pelo qual Nosso Senhor obedeceu a Nossa Senhora e a São José. Não se tem ideia do respeito, da exatidão, da prontidão com que Ele fazia esses atos de obediência. Tocamos aqui em mistérios divinos da Alma de Nosso Senhor Jesus Cristo, e percebemos a fímbria de uma obediência transcendente, glorificando e santificando todas as obediências que depois d’Ele se prestariam, ao longo dos séculos, a todas as autoridades legítimas das quais o Redentor era a mais alta expressão e ao mesmo tempo o fundamento.

Obedecer sempre, exceto se a ordem colidir com a Doutrina Católica

Na obediência há uma coisa particularmente dura. Em princípio, aquele que obedece pratica o ato de obediência porque reconhece em quem manda maior inteligência e capacidade; paradoxalmente, o resultado desse princípio é obedecer a quem tem menos inteligência e menos capacidade. Porque nesta Terra nem sempre a relação se faz de maneira que os mais inteligentes, os mais capazes, nem mesmo os melhores subam mais. Embora seja o normal, nem sempre isso ocorre.

Mas, em atenção ao princípio de que o homem não deve discutir os seus superiores, a não ser quando se trata de uma colisão contra a Doutrina Católica e a Lei de Deus — neste caso é preciso não obedecer, porque a Doutrina Católica e a Lei de Deus estão acima de tudo —, ele precisa submeter-se e obedecer, mesmo vendo que aquele que manda é menos, sabe menos. Porque se cada um começar a discutir o superior, tudo se desagrega. Ao menos atendendo ao superior, ainda que menos capaz, uma obra comum se realiza.

É uma espécie de requinte, uma sublimidade da obediência. E até lá, em inúmeros episódios, os jesuítas da época áurea manifestaram o seu espírito de obediência.

Maravilhoso fato ocorrido com Santa Teresa de Ávila

Compreende-se assim que membros de nosso Movimento, especialmente filhos da obediência — a expressão é de Santa Teresa de Jesus, que era filha da obediência —, gostem de um trecho de Santo Inácio de Loyola que passarei a comentar. São as normas que ele deixou para um jesuíta e que estão no testamento do Santo.

Desde que um jesuíta entra na Ordem, seu primeiro cuidado será abandonar-se plenamente ao governo de seu superior.

Quer dizer, não discutir, não analisar, seguir inteiramente o que o superior mandar. O superior é uma necessidade; pela ordem natural das coisas ele ali está representando Deus. A única coisa aonde a obediência não chega é aceitar a heterodoxia ou o mal.

Segundo: se um jesuíta caísse nas mãos de um superior que dominasse seu juízo, seria desejável que ele estivesse inteiramente disposto a isso.

Quer dizer, se um jesuíta estiver nas mãos de um superior menos competente, o qual lhe fizesse pensar uma determinada coisa, ele deve obedecer.

Conhecemos esse fato maravilhoso, na vida de Santa Teresa de Jesus: inverno rigoroso, nada se planta; sua superiora lhe diz: “Irmã Teresa, vá ao jardim e plante esses aspargos de cabeça para baixo.”

Era uma asnice, mas não um pecado. Tratava-se de uma ação de si indiferente. Ela vai ao jardim e planta os aspargos de modo errado, e no prazo adequado, apesar do inverno, os aspargos vicejam maravilhosamente. A bênção de Deus tinha caído sobre a obediência. E houve um milagre para provar quanto Deus gosta daqueles que sacrificam sua opinião ao modo de pensar dos superiores.

É o oposto do durão que tem quinze objeções e, depois de vencidas essas objeções, vem com mais três ou quatro ininteligíveis, as quais são o último recurso que ele emprega para recalcitrar de todo jeito. E quando obedece resmunga, e executa o serviço ordenado de modo malfeito.

Aqui é o contrário. Deve haver inteira placidez nas mãos do superior, que manda aquilo que o jesuíta deve fazer.

Terceiro ponto: em todas as coisas onde não há pecado, é preciso que eu siga o juízo do superior e não o meu.

É o mesmo princípio.

Três modos de obedecer

Quarto ponto: há três maneiras de obedecer. A primeira quando fazemos o que nos é mandado em virtude da obediência. E essa maneira é boa. A segunda, que é melhor, quando obedecemos a simples ordens. A terceira e a mais perfeita de todas, quando não esperamos a ordem do superior, mas a prevemos e adivinhamos a sua vontade.

Numa Ordem Religiosa, na era clássica, quando um superior, em nome da santa obediência, mandava um religioso fazer alguma coisa dizia-lhe: “Ajoelhe-se porque o senhor vai receber uma ordem em nome da santa obediência.” Parece que na Companhia de Jesus a fórmula, lindíssima, era esta: “Pela graça e pelo amor de Nosso Senhor Jesus Cristo.” Isso significava que o inferior ia receber uma ordem em nome da santa obediência. Ajoelhava-se e o superior dava uma ordem. Se esta fosse negligenciada, cometia um pecado mortal. Portanto tinha que ser cumprida, custasse o que custasse. Esse tipo de ordem se fazia de modo relativamente raro, somente quando o inferior se encontrava em estado de revolta.

Mas há um outro modo mais corrente, conforme o qual o superior simplesmente afirma: “Padre Fulano, o senhor agora vai fazer tal coisa.” A violação de uma ordem assim não implica em pecado mortal, mas em pecado venial, às vezes em simples falta, mas era uma atitude contra a obediência.

Existe um terceiro modo de obediência, pelo qual o súdito adivinha o que o superior quer e vai fazer antes de ser mandado. Então, conforme Santo Inácio de Loyola, é bom obedecer acuado entre a espada e a parede; melhor é obedecer apenas com uma ordem que não é tão imperativa; mas o ideal é ter o espírito feito de tal maneira que, antes mesmo de o superior dizer o que quer, o religioso obedece.

Santa Teresinha obedecia a uma superiora cheia de caprichos

Para entendermos o pleno sentido de tudo isso, devemos imaginar a época de Santo Inácio, São Francisco Xavier, São Francisco de Borja, o qual foi Geral da Companhia de Jesus.

Suponhamos Santo Inácio, em seu convento, rezando, pensando, dando ordens, tudo em virtude de uma doutrina altíssima, sublimíssima, bem como de visões e revelações que ele recebia de Deus Nosso Senhor. É sabido que os “Exercícios Espirituais” lhe foram ditados por Nossa Senhora, na gruta de Manresa. Ele era um homem que difundia em torno de si o sobrenatural. O que devia fazer o bom súdito? Compreender o espírito, a mentalidade, a doutrina de Santo Inácio, de maneira que antes mesmo de este falar já entendia o que ele queria, e executava a vontade do Santo. O súdito se tornava, assim, um outro Santo Inácio. E o espírito de Santo Inácio se transmitia para ele, mais ou menos como o espírito de Elias passou para Eliseu.

Consideremos, por exemplo, Santa Teresinha tendo que prestar obediência a uma superiora que deixava muito a desejar, como era a sua.

São duas situações em que se obedece em condições completamente diferentes. Qual é a obediência mais bonita? A de um súdito de Santo Inácio que, olhando enlevado para o Santo e procurando haurir seu espírito, ser outro ele mesmo, procura adivinhar o que Santo Inácio quer? Ou a de uma Santa Teresinha do Menino Jesus diante da superiora, como Nosso Senhor Jesus Cristo no Pretório de Pilatos, e carregando de forma invisível, por cima do véu de religiosa, uma verdadeira coroa de espinhos?

Realmente não sabemos, mas vemos a beleza dos dois estilos, dos dois modos de obediência, e como em todas as circunstâncias a obediência é uma verdadeira maravilha.

Obedecer não apenas ao superior, mas aos que ocupam escalões intermediários

São maravilhas da obediência que o mundo revolucionário não conhece, e sobre as quais é construído o mundo contrarrevolucionário. Isto arrepia um revolucionário e ao mesmo tempo o acachapa, porque com sua independenciazinha, sua liberdadezinha, ele fica tão pequeno como uma pulga insignificante e suja. E nós, diante da grandeza dessas duas situações extremas, compreendemos bem o esplendor da Contra-Revolução.

Quinto ponto: deve obedecer indiferentemente a toda espécie de superiores, sem distinguir o primeiro do segundo, nem do último, mas considerar em todos igualmente a Nosso Senhor, de que eles ocupam o lugar, e lembrar-se de que a autoridade se comunica ao último por aqueles que estão acima dele.

O pensamento contido nesse princípio é o seguinte: no alto da pirâmide está Santo Inácio de Loyola; numa porção de escalões inferiores há menos santos e menos Inácios. É fatal. E no nível mais baixo estaria aquele que corresponderia ao sargento dentro de uma instituição militar. Mas é preciso obedecer, porque, diz ele, a autoridade que está acima se comunica pelos inferiores. Nada de querer obedecer somente àquele que está no mais alto, mas, pelo contrário, sempre fazer tudo de acordo com as demais autoridades que estão abaixo. O único modo de fazer a vontade dos superiores é obedecer aos que estão em baixo.

São Charbel Mackhluf e o caso da lamparina

Lembro-me de um fato que faz parte da obediência, no sentido de que o súdito não somente deve cumprir o que manda o superior, mas também receber sem protesto as punições por ele impostas, mesmo quando essas punições são injustas ou pitos insultantes que, em tese, o inferior não tem a obrigação de aceitar. É uma das formas de obediência: a paz e a serenidade diante da repreensão injusta.

Li a biografia, que é uma verdadeira maravilha, de São Charbel Mackhluf, monge oriental do rito maronita. Ele vivia em um convento situado num dos montes do Líbano, cujos religiosos se dedicavam à oração e a algum trabalho manual, como fazer cestinhas e objetos análogos, no silêncio mais completo.

Ele era um homem tão obediente que pedia licença para tudo. E nessa tebaida santíssima seu superior tinha raiva de São Charbel. Às vezes, este ia pedir uma ordem para o superior, que lhe dizia o seguinte: “Será possível que o senhor seja tão imbecil que não saiba resolver isso por si? E precisa vir me pedir uma ordem?”

Imaginemos São Charbel de capuz, alto, de barba grande, fisionomia tranquila e recolhida, e com a cabeça baixa. Depois de receber uma descompostura, ele olhava para o superior, à espera da ordem, porque o regulamento assim o exigia. O superior afinal dava uma ordem, e São Charbel saía para cumpri-la.

Era um homem indomável. Pois homens que sabem obedecer são indomáveis. No primeiro convento onde ele havia ingressado, nunca era permitido a entrada de mulher. Certo dia, por uma razão qualquer, entraram algumas mulheres lá. O fato se repetiu duas ou três vezes. Sem dar satisfação a ninguém, São Charbel mudou-se para outro convento. Era um direito natural que ele exercia: “Eu vim aqui para me santificar; a regra foi infringida e minha salvação eterna está comprometida com esse fato. Aqui está meu direito: saio deste convento e vou para outro.”

Indomável! Mas de outro lado, era o mais domável dos homens. Depois de passar anos debaixo das descomposturas desse superior, uma noite ele se lembrou de que lhe faltava uma parte do Breviário para rezar. Evidentemente não era meia-noite ainda.

Ele se dirigiu à capela para rezar e depois foi à sua cela para terminar as orações, levando um pouco de fogo. Chegando lá, viu que não tinha azeite na lamparina, mas apesar disso acendeu-a e continuou a rezar.

Era tarde da noite, todos já recolhidos, e o superior, vendo a luz acesa na cela de São Charbel, foi para lá rugindo de raiva. Porque pessoas assim são a favor de todas as liberdades, exceto da liberdade de alguém rezar mais ou fazer mais penitência. Bateu na porta e entrou.

— Que é isto? Luz acesa a esta hora, onde é que se viu?

O Santo quieto.

— Explique-me qual a razão, porque nesta hora todos já devem estar recolhidos.

— Padre, eu vos peço desculpas, mas o dia inteiro, pela ordem de Vossa Paternidade, eu estive trabalhando e só agora encontrei tempo para rezar o Breviário.

— Rezar o Breviário?! E como conseguiu azeite para a sua lamparina? De onde o retirou?

Respondeu São Charbel:

— Padre, a lamparina não tem azeite, está cheia de água.

O superior viu a mecha da lamparina ardendo na água e apenas disse o seguinte: “Reze por mim.” Saiu e fechou a porta.

Aquela era a chama da obediência, ardendo até na água. São os milagres da obediência.

Temos assim a explicação profunda a respeito desta obediência que nós, como contrarrevolucionários, devemos amar tanto.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/11/1971)
Revista Dr Plinio 162 (Setembro de 2012)

 

1) Fl 2,8.

 

Consagração a Nossa Senhora e a graça divina – II

Dirigindo-se a um grupo de jovens discípulos que se consagraram a Nossa Senhora segundo o método de São Luís Grignion de Montfort, Dr. Plinio os alenta no caminho da vocação empreendida, incentiva-os na prática da virtude, e lhes aponta a Mãe Imaculada como advogada e infalível auxílio nos perigos, à qual devem recorrer como filhos, plenos de confiança.

 

Como é belo, meus caros, olhar para cada um de vós que vos consagrastes a Nossa Senhora, e considerar quanta dificuldade enfrentastes para chegar até este ponto! Como, afinal, o atingistes?

Através da graça, o convite divino para a vocação

A graça vos fez conhecer outros membros do nosso movimento que vos convidaram a fazer parte dele. Cada um procure lembrar-se como foi o primeiro contato, a primeira conversa. Quando isso ocorreu, vós víeis apenas um jovem a vos dirigir a palavra. Mas, de fato, o respectivo anjo da guarda pairava e ajudava no íntimo de vossa alma, a fim de que atendessem o convite. Visitastes a sede, apreciastes as apresentações, as aulas, os jogos, o ambiente. Voltastes para casa entusiasmados, com saudades, desejando logo regressar.

Pensáveis que eram saudades dos amigos, de tal ou tal coisa. Na realidade, era Deus, pela sua graça, a rogos de Maria, que atuava em vossa alma. Como vós, muitos outros vieram. E dentre eles, vários também receberam graças para se fixarem em nossas fileiras e continuar a caminhada nas vias da vocação.

A cada passo, a graça vos acompanhou. Ela é obtida por Aquela a quem o anjo disse ser cheia de graça. Tudo o que pedimos — para o bem de nossa alma ou para as nossas legítimas necessidades temporais — por meio de Maria Santíssima, obtemos, e sem a intercessão d’Ela torna-se mais difícil para nós alcançarmos os dons celestiais. Estamos aqui porque Nossa Senhora rogou por nós. Ela é a Rainha dos anjos e ordenou que esses espíritos puríssimos os orientassem para o caminho que tomaram.

Cada um de nós tem um anjo da guarda. Portanto, pairam sobre o meu querido auditório, digamos cerca de 400 anjos… Não os vemos, mas a Igreja ensina que eles estão presentes. E basta a doutrina católica dizer para eu crer mais do que se os visse.

Um espetáculo assistido pelos Céus

Imaginemos o júbilo havido no Céu, enquanto se realizava esta cerimônia que, devido à alegria de todos os participantes, poder-se-ia chamar uma festa! As três Pessoas da Santíssima Trindade, Maria, todos os anjos e santos do Paraíso tinham como que sua atenção voltada para cá. E quando, por exemplo, recebíeis de lembrança a pequena imagem de Nossa Senhora das Graças, os anjos rezavam à Mãe de Deus pelos senhores; no momento em que a osculavam, os anjos depositavam — em espírito — um respeitoso beijo nos pés da Santíssima Virgem, no Céu.

Portanto, um magnífico ato acaba de se passar aqui, e coloca um primeiro termo às batalhas que travastes.

Alguém dirá: “Dr. Plinio, são pequenas lutas de menino, de adolescente…”

Respondo: “Vai a alma inteira nisso. Passei por essas fases da vida, e sei o que custou.”

As batalhas se tornarão maiores

Meus caros, eu vos felicito! Mas, essas contendas se referem ao passado e ao presente. Quanto ao futuro, não vos iludais; ao invés de diminuírem, elas aumentarão. E é próprio ao homem, à medida que cresça, desejar lutas cada vez maiores. Devemos procurar subir aos píncaros da seriedade, galgar as culminâncias do esforço, fiéis à Lei de Deus e, mesmo quando tivermos a impressão de que tudo nos convida para o mal, dizer: “Salve Rainha, Mãe de misericórdia…”

Sejamos realistas: cada um possui todos os meios para não pecar, mas ninguém pode garantir que não cairá. Precisamos nos preparar. Se acontecer a desgraça, a catástrofe de cometermos um pecado mortal, devemos confiar, não desesperar, mas imediatamente nos dirigir até os pés de uma imagem de Nossa Senhora ou segurar o Rosário e dizer: “Salve Rainha, Mãe de misericórdia”, “lembrai-vos, ó piíssima Virgem Maria, que nunca se ouviu dizer — nunca se ouviu dizer! — que alguém tivesse recorrido à vossa proteção e fosse por Vós desamparado… Gemendo sob o peso dos meus pecados, me prostro a vossos pés…”

É a prece não apenas do homem inocente, mas também do que cometeu pecados e se lamenta sob o peso deles, podendo mesmo acrescentar: “Se nunca se ouviu dizer, não seja eu o único infeliz em que se desminta vossa clemência. Mil vezes não! Ó minha Mãe, reerguei-me, dai-me ânimo para ir me confessar e continuar sempre e sempre essa luta que me levará ao Céu!”

Confiança e determinação contra o pecado

Peçamos aos anjos, aos santos, aos nossos padroeiros, que nos obtenham uma pureza, a qual nunca conheça manchas, bem como a confiança por onde, se por desgraça uma nódoa tisnar nossa alma, nos voltemos mais uma vez a Nossa Senhora, dizendo: “Minha Mãe, vossa misericórdia é maior do que minha miséria, tende pena de mim”, e retomemos a carga contra o pecado. É o que vos desejo de modo muito especial.

Importa nos lembrarmos de que os demônios no inferno provavelmente se enchem de ódio ao considerar esse ato, essas palavras e a recepção calorosa com a qual são acolhidas de vossa parte. Vós sois presas que os anjos arrancaram das garras satânicas, e os adversários de vossa alma não deixarão de arquitetar planos para vos perder.

Porém, a Virgem Maria, sob a invocação de Nossa Senhora das Graças, calca aos pés a cabeça da serpente, esmaga e sempre esmagará o demônio. Assim, sob a proteção d’Ela, imitando-A, deveis levar vossa vida subjugando o mal dentro de vós, rejeitando as tentações, e também fora de vós, combatendo a Revolução, empenhando-se na vitória da Contra-Revolução e trabalhando pelo advento do Reino de Maria.

Convocados para uma grande batalha

Somente conseguiremos isso se formos autênticos devotos de Nossa Senhora. Conforme explica São Luís Grignion, precisamos fazer todas as vontades d’Ela, as quais conheceremos cumprindo antes de tudo os Mandamentos da Lei de Deus e da Igreja, observando-os durante a vida inteira por amor a Nossa Senhora, a quem nos consagramos, e porque Ela assim o deseja.

A Virgem Santíssima nos alcançou o dom da vocação, chamou-nos para sermos escravos d’Ela, e nos concederá graças especiais para perseverarmos. Assim, obteremos forças para vencer grandes batalhas.

Na vida de um homem há situações em que ele tem a impressão de ser um navio abandonado no meio da tempestade, jogado de um lado para outro pelos ventos das tentações, dos problemas, e parece que o navio afundará.

Mas, a nau tem um capitão: o próprio homem. Se ele rezar, tomar todas as precauções, não desistir mesmo quando julgar que o mar inteiro está entrando na embarcação, aos poucos a tormenta vai amainando.

Quando a Providência Divina permite que passemos por tais provações, Ela está nos concedendo uma honra. Assim, cada um de vós, nas ocasiões difíceis, não se ache abandonado. Pense o contrário: “Estou convocado para uma grande batalha! É uma honra! Minha Mãe e de Jesus Cristo meu Senhor, tende misericórdia de mim e ajudai-me! Vou pôr mãos à obra, e ensinar a esta tempestade como são as coisas!”

Como escravos da Virgem, estais começando hoje nova fase de vossa grande batalha. Pedi a Nossa Senhora, antes de tudo, uma intensa Fé Católica Apostólica Romana; que Ela vos dê a convicção e a rejeição do mal que há no pecado, bem como a admiração pelo bem existente na virtude, sobretudo na mais árdua de se manter quando jovem, a virtude da pureza. Implorai-Lhe firmeza na prática da castidade, e coragem para enfrentar o paganismo do mundo moderno.

Dessa forma, tereis a glória de participar do desfile dos vencedores, quando for implantado o Reino de Maria, prometido pela Virgem Santíssima em Fátima, ao anunciar o triunfo final do seu Imaculado Coração sobre a face da Terra.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Gemendo e chorando neste vale de lágrimas…

A propósito de episódios ocorridos em sua infância, Dr. Plinio pondera como esta vida é um vale de lágrimas, onde os sofrimentos, dramas e problemas são inúmeros e muitas vezes procuram nos abater.

 

Na Salve Rainha, esta vida recebe o título de “vale de lágrimas”. Quando eu era jovem, ouvia na recitação da “Salve Regina” as palavras “in hac lacrimarum valle — neste vale de lágrimas”, e imaginava os vales que eu via frequentemente na serra existente no caminho de São Paulo a Santos, que naquele tempo se percorria de trem e não de automóvel.

São serranias altíssimas e, às vezes, se via no cimo de um morro brotar uma mina de água de dentro de uma pedra, a qual percorria a superfície da pedra vagarosamente, sem pressa, formando pela espuma como que uns babados de cortina. Tinha-se a impressão de uma cortina de prata com uns bordados de renda, que descia do alto do morro até embaixo.

Eu me lembrava do vale de lágrimas, e pensava: “Então essa vida é como a considera o autor da Salve Rainha(1)? Mas afinal de contas, se eu conseguir coisas desejáveis desta vida: ficar rico, ir à Europa para ver os monumentos do passado da Cristandade, a nobreza do presente, tomar contato com pessoas inteligentes e interessantes, que levam um tipo de existência toda especial, contemplar e oscular o caixão onde está sepultado Carlos Magno, ir à Place de la Concorde, em Paris, onde um amigo me mostrará qual o lugar exato onde estava a guilhotina em que Luís XVI e Maria Antonieta foram decapitados, rezar por eles, fazer um ato de execração contra o crime que então se cometeu, e de desagravo a Deus pelo horror desse crime, e depois continuar o passeio, isso não proporciona felicidade? É um vale de lágrimas ir a Paris, a Roma ou a Madri? Ou, pelo contrário, a afirmação que se faz na Salve Rainha, é equivocada?”

Quando fiquei um pouco mais velho, compreendi.

Tudo na Terra é efêmero e passageiro

Não é que a todo o momento esteja acontecendo uma coisa que nos arranque lágrimas; isso evidentemente não é verdade, graças a Deus. Mas quando ficamos um pouco mais velhos, começamos a pensar no passado e percebemos as ciladas pelas quais passamos já quando éramos meninos. Quantas ilusões, quantas desilusões, quantos “bluffs”, quantas esperanças rachadas!

Mais tarde conhecemos pessoas — será um colega, um parente, um vizinho — que nos parecem pessoas perfeitas, e pensamos: “Se ficar amigo deste, eu terei a minha alma completamente satisfeita.” Aproximamo-nos dele e começamos uma amizade. De repente vemos que tudo é ilusão.

Por quê? Como? Ele, de quem sou tão amigo, é de fato meu amigo? Ou, pelo contrário, quando vê qualquer coisa em mim um pouquinho superior a ele, fica ácido comigo? Se fosse meu amigo, se contentaria, se alegraria em ver-me superior a ele em algum ponto. Mas não: ele começa a querer mesquinhar o que estou fazendo ou dizendo, a caçoar, debicar e, sob pretexto de brincadeira, saem coisas amargas. Esse não é meu amigo, vou procurar outro; e constatamos que tudo é ilusão.

O tempo passa e nos lembramos da expressão francesa: “Tout passe, tout casse, tout lasse… et tout se remplace — Tudo passa, tudo se quebra, tudo enfastia… e tudo se substitui”. Quer dizer, tudo é efêmero. A previsão do futuro aliada à lembrança das desilusões do passado constitui um vale de lágrimas.

Uma desilusão nos tempos de infância

Lembro-me de um episódio de meu tempo de menino de colégio, e que me marcou profundamente. Eu vinha do Colégio São Luís, situado na Avenida Paulista, descendo a pé pela Avenida Angélica até minha casa nos Campos Elíseos, conversando com um colega de minha idade que me parecia um bom rapaz.

Por uma razão da qual não me recordo, nós tínhamos sido os primeiros a sair do colégio, de maneira que íamos na frente; depois outros grupos de alunos vinham descendo por aquela avenida. De repente ouço, bem atrás de nós, um menino que chamava por aquele que estava ao meu lado:

— Fulano! Fulano!

Olhei com o canto dos olhos para o que vinha ao meu lado, para ver o que ele fazia. Ele não respondia e fingia que não estava ouvindo. Mas o outro corria, enquanto nós dois não estávamos correndo, porque nunca gostei de andar muito depressa; eu caminhava devagar, e ele acertava o passo pelo meu.

Resultado: a voz do menino chamando pelo meu companheiro era cada vez mais insistente. Percebia-se que se tratava de um amigo que gostava muito dele e queria estar com ele para conversar. Poderíamos perfeitamente descer conversando os três, é uma coisa banal. Eu nem tinha notado aquele menino no Colégio São Luís, no meio daquela multidão de alunos, mas pouco me incomodava; e pensava: “Deixa entrar um outro na conversa, não tem importância nenhuma”.

O meu amigo, afinal, quando notou que a voz estava se tornando mais próxima, parou, voltou-se de costas e disse num tom amargurado:

— Hum! Mas que pressa e que mania de falar comigo, que coisa cacete! O que quer comigo esse tipo?

Pensei: “Mas ele retribui uma simpatia desta maneira? Amanhã vai chegar minha vez. Ele de repente fica saturado da minha companhia como se saturou daquele menino. Isso é um amigo?”

E o que se deu foi o contrário: antes dele se saturar da minha companhia, eu me saturei da dele e rompi as relações com ele como se arranca uma folha morta de uma árvore.

Quando se vai ficando moço compreende-se como as dificuldades, as incompreensões e as incompatibilidades pelas quais passam os adultos são ainda mais difíceis. Mesmo no seio de uma família feliz aparecem problemas que preocupam o esposo ou a esposa.

Tudo isso se dá porque a vida é um vale de lágrimas. Lágrimas ora pelo que está acontecendo, ora na previsão do que pode vir a suceder.

O tormento trazido por uma doença

Por exemplo, as doenças. Às vezes ouvimos falar de alguém que contraiu um horrível mal, que o faz sofrer muito. São verdadeiros fantasmas. Precisamos entender que de um momento para outro uma doença dessas nos agride.

Algo assim se passou comigo quando eu era pequeno. Acordei fraquíssimo pela manhã. Isso não acontecia comigo; como todo menino, eu acordava alegre, me levantava, ia dizer bom-dia a papai, mamãe, aprontava-me e começava a vida. Nesse dia eu não conseguia nem sentar-me na cama.

Sendo meu quarto contíguo ao dos meus pais, pus-me a chamar:

— Mamãe, mamãe — e ela veio.

Eu disse a ela:

— Estou me sentindo muito mal. Não sei o que eu tenho.

— O que você sente?

— Uma dor de garganta horrorosa.

Ela mandou-me abrir a boca, viu que eu estava com uma inflamação medonha na garganta e chamou o médico. Este era homeopata. Tratava-se de um homem alto, teso, saudável, rubicundo, vermelho, tendo num dos dedos um anel com uma esmeralda linda. A esmeralda era o distintivo dos médicos. Eu, que gosto muito de pedras, quando estava com ele nunca perdia oportunidade de olhar para a esmeralda.

Ele entrou no meu quarto, examinou-me e saiu com mamãe.

Eu não fiquei sabendo o que eu tinha, e estava piorando cada vez mais.

Logo depois, ela veio e me contou que o médico disse a ela o seguinte: “A senhora dê para o Plinio tais remédios de hora em hora. Pouco antes das três da tarde, esteja próxima a ele com uma toalha no colo, pois nesta hora ele deve expelir da garganta uma membrana infeccionada. Ele está com uma doença chamada crupe ou angina diftérica. Se ele expelir a membrana, está curado. Quando ele a expelir, feche a toalha porque a membrana está infeccionada; e mande queimar a toalha com a membrana e tudo o mais. Aí o Plinio está salvo. Se não for assim, terá que se fazer uma operação muito dolorida e perigosa”.

Quando chegou mais ou menos três horas, comecei a dar sinais de mal-estar, inquietação. Ela, que era muito previdente, tinha mandado abrir no quintal da casa uma espécie de tumulozinho para essa membrana. Os micróbios ficariam sepultados ali debaixo da terra.

Quando afinal de contas expeli a membrana, ela mandou uma criada ir correndo jogar nesse lugar a toalha com a membrana e pôr terra em cima, o que foi feito rapidamente. Depois ela foi falar pelo telefone com o médico, para contar que estava tudo em ordem.

Quando o médico atendeu desde o seu consultório, mamãe disse a ele:

— Dr. Murtinho…

— Não precisa me dizer o resto porque pela sua voz eu já vejo. A senhora está contente porque a membrana foi expelida.

— Muito obrigada, foi um alívio.

Pode-se imaginar o que ela sofreu durante essas horas. Sofreu muito mais do que eu —não tem comparação! —, na previsão do que podia acontecer. Essa previsão é um tormento, a vida é mesmo um vale de lágrimas.

Por isso, a única esperança verdadeira que o homem tem nesta vida é a de, no momento em que fechar os olhos com a consciência em paz, alcançar a felicidade eterna. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 24/9/1994)
Revista Dr Plinio 174 (Setembro de 2012)

 

1) A autoria da Salve Rainha é atribuída ao monge Germano Contracto que a teria escrito por volta de 1050, no mosteiro de Reichenan, na Alemanha.