Grandeza incomparável do sacrifício

Devido ao pecado original, o homem, mesmo inocente, tem necessidade de fazer sacrifício. E no Paraíso terrestre, caso não tivesse havido o pecado, era preciso a ascese? Dr. Plinio julga que sim, pois seria um ato ordenativo do homem, em estado de prova.

 

Considerando o sacrifício na perspectiva da Doutrina Católica, parece-me que ele não tem o caráter de mera expiação, mas de um reconhecimento da supremacia de Deus, pelo fato de serem consumidas em honra d’Ele coisas que Ele mesmo deu ao homem, por onde este reconhece implicitamente que privar-se daquilo e dar ao Criador afirma a superioridade d’Ele em relação a todas as coisas.

Sacrifício de dedicação

Cornélio a Lápide(1) distingue o sacrifício de dedicação e de expiação, no Antigo Testamento.

Analisemos o que significa essa dedicação.

Uma criança pode ver, pendente numa árvore, uma fruta muito bonita; corre, apanha-a e a oferece ao pai ou à mãe. É propriamente um sacrifício de dedicação que a criança faz. Isso que parece muito razoável pode ser desdobrado em aspectos.

Um aspecto é: a criança renuncia à fruta para dar aos pais. O que significa essa renúncia? Há nisso um ato de ascese, mas não é a principal nota do ponto de vista da dedicação que se deve considerar. No homem nascido sem pecado original, essa ascese não pareceria necessária, porque o homem tinha um inteiro domínio de si mesmo. Portanto, vigorava a ideia de que aquela fruta tão excelente, melhor conviria a uma pessoa mais excelente. Representaria uma forma de justiça colher aquela fruta tão linda e dá-la a uma pessoa tão bela. Esta seria uma dedicação.

Creio que é esse o espírito com que muitas pessoas colhem flores para oferecer nos altares de Nossa Senhora. Por exemplo, ornar um altar para o “mês de Maria”: uma pessoa pode colocar nisso uma intenção de reparação, mas não é o intuito comum, e que esteja próxima e imediatamente na natureza do ato. O que está nisso é a noção de que à Santíssima Virgem, sendo a Flor da Criação, fica bem que as flores muito bonitas estejam postas junto a Ela, por assim dizer porque “similis simili gaudet”(2). Então, junto Àquela que poderia ser chamada, por algum lado, “Flor das flores” convém colocar flores.

Sacrifício de louvor

Entra também outro aspecto metafísico, que me parece mais bonito e mais importante, por onde há uma afirmação do Absoluto. Aquelas coisas são lindas, mas passageiras; e convém que elas, no que têm de passageiro e contingente, sejam oferecidas a Deus, que é eterno e Absoluto.

Essa destruição do transitório e do contingente em honra do eterno e do Absoluto fica meio implícita na natureza. E é uma grande verdade que o homem tem vontade de explicitar, e Deus deixa a cargo do homem fazer a explicitação. O desejo de explicitar o que Deus pôs implícito leva o homem a dizer: “Vós que sois Absoluto, eu a Vós entrego tal coisa, porque me destes o domínio sobre ela. E a destruo em vossa honra, porque a Vós, que sois o Criador de tudo, compete que se Vos honre, destruindo algo do que criastes”. É uma espécie de homenagem ao próprio Criador, a Quem se homenageia, em parte, em alguns aspectos, destruindo, mostrando que Ele merece aquela destruição.

Da parte psicológica do homem, entra nessa destruição um reconhecimento efetivo do Absoluto.

Contudo, para o homem concebido no pecado original, entra um reconhecimento de caráter necessariamente ascético, pois o ser humano tem tal tendência a se apegar e a dar àquilo que é contingente o valor que ele daria ao Absoluto que, para corrigir este defeito e desagravar a Deus dessa tendência a que tantos homens cedem, é preciso sacrificar alguma coisa para dizer: “Eu cheguei ao ato concreto e, assim, esmaguei internamente a minha tendência a ver isso como uma coisa absoluta.”

É preciso notar que isto é um aspecto muito importante, mas que não está na essência do ato praticado. Há o sacrifício, portanto, de louvor, que é o sacrifício do amor. O louvor é a voz do amor. A adoração, o louvor, o sacrifício de louvor se exprimem assim.

Deus, como Causa exemplar

Aliás, o Ofício Divino — recitado, por exemplo, segundo o estilo beneditino — tem o sentido do louvor a Deus, que o religioso faz cantando de um modo belo um texto adequado que O louva com suas próprias palavras, porque quase tudo é tirado da Escritura; e, quando não é da Bíblia, é da Igreja. Ademais, louva-O também com um cerimonial bonito, objetos e órgãos bonitos, numa igreja bonita, etc. A organização do belo para louvar é um predicado eminentemente beneditino e, de fato, seria necessário que, no seu conjunto, a Igreja Católica tivesse algo especialmente voltado para isso.

Tal modo de proceder é perfeito e condiz com outro aspecto da questão, formando uma espécie de geminação onde se tem o equilíbrio perfeito. Esse sacrifício de louvor pode dirigir-se a Deus como Causa eficiente, final, e também como Causa exemplar. E, enquanto Causa exemplar, nós podemos oferecer ao Criador coisas criadas por Ele, e semelhantes a Ele pela conexão com Ele. E, neste sentido, por exemplo, um grande abade beneditino pode constituir uma abadia magnífica, sem ceder nada a um luxo emoliente, mas para louvor a Deus como Causa exemplar de todo o belo na Criação.

O luxo pode ter uma nota de sacrifício

Até uma pessoa como Salomão, antes do pecado, que lembrava muito a Deus como Causa exemplar, poderia cercar-se de todo aquele luxo virtuosamente, louvando o Criador como Causa exemplar e dizendo: “Vede em mim como Deus é grande!”

Este constitui o elogio certo, mas arriscado, de muita forma de grandeza e de beleza, indispensável para uma civilização considerada no seu total. Então, por exemplo, eu creio bem que o Louvre de São Luís deveria ter, por vários aspectos, muito luxo. Este luxo deve ser visto assim.

Isso tem a nota do sacrifício no seguinte sentido: são riquezas que foram desviadas do uso do rei para simbolizar, perante Deus, uma determinada perfeição que lembra a Ele. Seria, por exemplo, o luxo da Sainte-Chapelle, mas poderia ser o luxo da pompa real, enquanto mostrando o rei como representante de Deus, ou da pompa papal, enquanto manifestando no Papa o Vigário de Nosso Senhor.

A meu ver, esta é a melhor resposta à crítica protestante ao luxo eclesiástico. O protestante diz: “É para o gáudio do padre que se usa isso.” A resposta é: “O padre de fato goza muito pouco disso, mas se gozasse era um aspecto secundário. O importante é que Deus seja glorificado também nisso”.

Entretanto suporia, para manutenção do equilíbrio nesse próprio louvor, que o homem fizesse rebaixamentos, atos de humildade e de ascese que compensassem isso, para que o equilíbrio se apresentasse perfeito.

Então, se eu imaginasse, por exemplo, um rei que fosse um Salomão da Cristandade, resplandecente com todo o brilho da realeza, mas que na Sexta-Feira Santa, na hora de adorar a Cruz, fosse a pé e descalço, em trajes de penitente, flagelando-se, de maneira que todo o povo visse que de fato sua intenção sincera era de se humilhar diante de Deus. Esse homem realizaria um equilíbrio admirável das duas coisas, e que seriam duas formas de sacrifício que se completam, formam um carrilhão. E nesse carrilhão há a harmonia perfeita.

Quando numa civilização falta ou míngua uma dessas formas de sacrifício, ela não é completa.

Necessidade da ascese até no Paraíso terrestre

Restaria saber como seria no Paraíso terrestre, caso não tivesse havido o pecado original e a consequente expulsão do homem.

Parece-me que não haveria a penitência, porque os homens não tinham pecado, mas existiria o que dizíamos há pouco do sacrifício de louvor, da doação, da entrega, pelo reconhecimento de que Deus é Absoluto e perfeito.

No que diz respeito à presença da ascese no Paraíso terrestre, uma vez que o homem se encontraria ali em estado de prova, é patente que ele seria tentável. Isso me inclina a pensar que, para prevenir essa tentação e oferecer um corretivo para algo que não era o pecado original, mas uma possibilidade de pecar, uma determinada ascese pareceria ser necessária. Não se trataria, portanto, de uma expiação, mas de um ato ordenativo do homem, porque naquilo em que ele era tentável havia a raiz de algo que poderia propender para a desordem.

Estamos, pois, em presença de uma hipótese que poderia dar ao sacrifício de louvor certo caráter preventivo da tentação.

Propriamente no sacrifício de louvor de que eu estava falando, o gáudio supremo que tem aquele que oferece o sacrifício é uma espécie de estremecimento de alma diante do fato de que, oferecendo alguma coisa que se destrói, ele pratica um ato que, aparentemente, na ordem natural não é razoável, e encontra sua razão de ser apenas no caráter de dádiva “inútil”, “desarrazoada” Àquele que é Absoluto. E desta maneira se afirma com louvor — e com o único louvor adequado — o caráter absoluto d’Ele, e o nosso reconhecimento deste caráter absoluto. Nisto entra exatamente uma espécie de ósculo do contingente no Absoluto, que é uma atitude totalmente desinteressada, realizada por ser Ele Quem é.

A doação supõe o sacrifício feito como que gratuitamente, diante do mero fato de que Deus é Deus, mais nada.

Sacrifício desinteressado

Este é o estado de espírito com que se deve morrer. Na hora da morte, a pessoa deve aceitá-la como sacrifício merecido pelo pecado original e pelos seus pecados atuais. Pode até oferecer pela Cristandade, por outros interesses, o que Nossa Senhora quiser, mas acrescentaria um elemento altíssimo se dissesse só isto: “Por serdes Vós Quem sois, eu me ofereço!”

Então, o fazer-se pequeno é o único modo, a garantia única que o homem tem de que todas as grandezas construídas por ele não deem em vanglória. Por quê? Porque terá atendido à exigência dessa ordem metafísica mais profunda, que é o sacrifício desinteressado.

Aliás, tenho a impressão de que no sacrifício de Isaac entrava isso: era um sacrifício tributado a Deus porque Ele quis o filho único de Abraão, que disse: “Bem, Vós quereis esta hóstia de louvor, que é meu filho inocente. Vós o tendes!”

Algo disso parece-me estar presente também na resposta de Nosso Senhor à objeção de Judas contra Santa Maria Madalena, quando esta lavava os pés do Divino Mestre com um perfume muito valioso: “Por que não se vendeu este perfume por 300 denários para dá-los aos pobres?” (Jo 12, 5) — reclamava Judas. Ao responder: “Deixai-a; ela conservou esse perfume para o dia da minha sepultura! Pois sempre tereis pobres convosco, mas a Mim nem sempre tereis.” (Jo 12, 7), Jesus dava a entender que não se deve deixar de prestar a Deus o sacrifício desinteressado, de puro louvor, sob o pretexto de acabar com a pobreza.

Essa atitude de abnegação tem seu reflexo nas relações humanas. Também a perfeição da amizade vem do fato de alguém ser capaz de fazer uma coisa dessas por outrem que mereça. Por exemplo, estou com uma pessoa que é santa e vejo que vão matá-la. Posso substituir-me ao santo, para ser morto eu e não ele, pela seguinte razão: “Não toque naquele que é uma obra-prima de Deus!” A primeira ideia é a incolumidade daquele que é obra-prima de Deus, para continuar a dar glória a Ele. Eu, pecador, desapareço dentre os viventes, mas consegui que o santo continuasse a existir. É uma coisa muito bonita!

A autêntica imolação deve ser total

Também me parece que na humilhação bem aceita está o sacrifício voluntariamente realizado. Esta necessária humilhação diante de Deus absoluto traz consigo uma passageira, transitória, mas efetiva como que destruição de si próprio, por onde, além do lado expiatório, o indivíduo faz por amor o que ele faria da flor que ele ofereceria a Nossa Senhora. Ele como que se destrói, pondo-se até abaixo do que é, para fazer consigo o que realizaria com a flor.

Este ato, por ser como que uma destruição, produz sofrimento nesta Terra, dado o pecado original. De algum modo, o mais humilde dos homens realiza isso num espírito de sofrimento. Porque, por mais santo que ele seja, tem uma parte ruim, não consentida, que sofre com a humilhação.

Como seria no Paraíso terrestre, para o homem concebido sem pecado? Ele se apequenar ao ponto de ser um nada diante de Deus, não traria revolta? Isso é muito misterioso.

Vê-se que com satanás, em determinado momento, o fato de sentir-se não pequeno, mas “apenas” o primeiro dos grandes da corte de Deus e não o próprio Deus, trouxe uma inconformidade, e esta participa da dor. Portanto, vejo de um modo um tanto nebuloso como seria este fenômeno na natureza angélica.

Entretanto, mesmo para o homem concebido sem pecado original, se esse aniquilamento não chegasse efetivamente ao último limite de si mesmo e reservasse qualquer coisinha, ele não seria autêntico.

Há atitudes em que a imolação só é autêntica quando é total. Foi o que, em última análise, Deus quis de Jó, quando permitiu que o demônio o tentasse.

É nessa perspectiva que tomam toda a beleza coisas que a “heresia branca”(3) admira sem considerá-las debaixo deste ponto de vista. Então, por exemplo, um de nós tem um inimigo leproso e faz por ele um determinado benefício, humilhando-se inenarravelmente diante do opositor, que ainda responde com um desaforo. Tal ato, visto somente como o considera a “heresia branca” — ou seja, a pena do leproso e o leproso que não tem compaixão de mim — não manifesta toda a sua profundidade. O fundo está na pessoa ter-se apequenado de tal maneira que chegou a sofrer isto. Aí, nesse sentido do apequenamento que viemos expondo, o sacrifício tem uma grandeza incomparável. Mas isso a “heresia branca” não considera, porque tem horror à perspectiva de grandeza e de seriedade.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/9/1984)
Revista Dr Plinio 211 (Outubro de 2015)

 

1) Jesuíta e exegeta flamengo (* 1567 – † 1637).

2) Do latim: o semelhante alegra-se com o semelhante.

3) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.–––

Coragem e elegância

Embora seja uma nação de língua e herança alemãs, a Áustria tem características próprias, valores e tradições que muito a diferenciam de sua vizinha germânica. Enquanto esta é mais guerreira e afeita à expansão de suas fronteiras por meios nem sempre pacíficos, aquela é mais diplomática. Não que o povo austríaco careça de grandes combatentes e heróis na sua história, mas o traço  propriamente distintivo de sua personalidade é, sem dúvida, a diplomacia.

A tal ponto que o lema da expansão da dinastia austríaca — a célebre Casa dos Habsburgs — escrito em latim, reduzia-se a estas vogais: “A, E, I, O, U: Austriæ est imperare orbe universo” (cabe à Áustria imperar no mundo inteiro). O modo de alcançar tal objetivo era também expresso em latim: “Gerant alia bella, tu, felix Austria, nube”; o que em português significa: “Os outros que façam guerras; tu, Áustria feliz, casa-te”.

Essa requintada diplomacia que lhe granjeava importantes conquistas no cenário político, era completada por um grande senso de sacrifício, uma superior disciplina sobre si mesma, uma  extraordinária seriedade no conduzir seus interesses nacionais e internacionais. No meio de toda essa habilidade política, nunca deixou de haver muita  delicadeza, gentileza, elegância e  perfeito senhorio da situação. E não só no campo diplomático brilharam as qualidades austríacas. Outra magnífica expressão delas, vamos encontrar, por exemplo, na Escola de Equitação de Viena, cujas exibições, admiradas em toda a terra, perpetuam as tradições desse glorioso passado.

Fundada no século XVI, essa escola nasceu no tempo em que a cavalaria era determinante nos combates bélicos. Ora, para que o homem fosse de fato eficaz na guerra, como cavaleiro, devia ter um completo domínio do cavalo, conjugado ao total governo de si mesmo. Dessa maestria na guerra derivaram as competições equestres, e quando estas já se haviam tornado banais, surgiu a ideia de ensinar o cavalo a fazer movimentos elegantes como passos de dança. Era, por assim dizer, o creme dos cremes da arte de combater, à qual o austríaco soube comunicar sua distinção, sua categoria e amabilidade.

Os cavaleiros se apresentam numa atitude irrepreensível, nobre, distinta e elegante. Mas, de homens bastante sérios para enfrentarem uma guerra e nela sobressaírem por sua coragem, se a isso  os conclamar o dever patriótico. Homens que poderiam ser guerreiros, vestidos com todo o refinamento, sem qualquer espécie de arma, ali estão apenas para fazer com que seus cavalos executem graciosos passos de dança.

Entram solenemente numa arena que mais parece uma sala de palácio preparada para espetáculos, com arquibancadas e camarotes adornados de veludos e pingentes, lindos lustres de cristal  deitando reflexos prestigiosos em todo o ambiente. Flores variegadas perfumam as galerias, e aqui e ali, faixas brancas e vermelhas lembram as cores da Áustria.

Uma vez na arena, a primeira preocupação dos cavaleiros é de saudar o povo que, encantado e lisonjeado, aplaude calorosamente. Em seguida têm início os exercícios sucessivos de disciplina:  cavalos se adiantam, recuam, se reúnem para depois se separarem, andam, trotam, saltam, dançam…

Durante todo o espetáculo, as atitudes dos animais são próprias a agradar o espectador, como se estivessem num salão. O cavalo tem todas as cortesias, gentilezas e atenções de um fidalgo:  levanta-se, trota com leveza, inclina-se, enfim, demonstra no âmbito da sua espécie todas as maneiras de uma pessoa bem educada. “Os animais são uns colossos”, dir-se-á. E o são. Porém, incomparavelmente mais dignos de elogio são os cavaleiros, pois reduzir a brutalidade do cavalo ao mimo do salão é uma obra-prima semelhante à de educar um homem para se sobressair na   sociedade. E essa proeza os cavaleiros realizam, sob a admiração e o entusiasmo da platéia.

Termina a exibição, o povo está de pé, aplaudindo os cavaleiros que recebem a ovação impassíveis, porque é da maior categoria não fazer gestos de agradecimentos. Dali a pouco eles se retiram e  desaparecem, deixando o sorriso de satisfação e enlevo impresso nas faces dos espectadores. O que se viu neles? Aquele mesmo senso de direção, de sacrifício, a calma para poder ser amável,  agradável e gentil, característicos do bom diplomata, do político fino e do homem educado, como são os expoentes da nobreza e do povo austríacos.

É a maneira de ser deles, que completa e se harmoniza com as peculiaridades e atributos de outros povos europeus, como o espanhol, por exemplo, do qual nasceram a ousadia e a coragem dos  toureiros. Se deixasse de haver Espanha ou Áustria, seria uma perda irremediável para a Europa e o mundo. As duas personalidades se compensam, e a composição de ambos os aspectos resulta  numa espécie de pleno da alma humana, que verdadeiramente alegra. É o garbo, a galhardia, o desassombro, o esplendor da serenidade e da varonilidade que enfrenta o perigo; e, ao mesmo  tempo, a disciplina e a gentileza… Predicados que se completam, frutos da civilização cristã.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

A liberdade e a virtude

Membros de uma civilização diametralmente oposta ao conceito medieval de liberdade, os homens hodiernos são levados a considerar a escravidão de amor a Nossa Senhora, proposta por São Luís Grignion de Montfort, como algo vergonhoso. Servindo-se dos ensinamentos de Leão XIII na encíclica “Libertas praestantissimum”, Dr. Plinio mostra como a verdadeira liberdade consiste em cumprir seriamente o próprio dever.

 

Quando estudamos a Idade Média, encontramos uma observação que os historiadores fazem cada vez com mais frequência: a comparação entre o direito medieval e o direito moderno. Conforme as leis modernas, o direito fundamental é de um homem sobre coisas, e coisas que valem dinheiro. Então, posso dizer: “Eu sou dono desta mesa; a família é proprietária deste prédio”. O ponto sobre o qual recai o direito é o objeto.

A única relação que não visa diretamente coisas, mas envolve o poder de pessoa sobre pessoa, é o direito de família. A relação entre esposo e esposa, pais e filhos, pode ter repercussões patrimoniais, mas de si não é uma relação patrimonial. O esposo tem o direito ao afeto, à fidelidade da esposa. O mesmo tem a esposa em relação ao esposo; são direitos pessoais, assim como o pai tem um direito sobre o filho, e este possui um direito em relação ao pai. São direitos que têm aspectos econômicos, mas não se cifram nisto. Trata-se de bens que não se aquilatam em dinheiro; são bens de alma.

Alguém perguntará: “E a relação patrão-empregado?” O patrão tem o direito não sobre o empregado, mas ao trabalho do empregado. O empregado vende o trabalho, o patrão compra o trabalho, a tal ponto que se fala em mercado de trabalho. Quer dizer, o trabalho é tratado — aliás, é uma coisa errada — como uma mercadoria. Este é o sentido do direito moderno.

Como os medievais concebiam o direito

Na Idade Média, o direito, de alto a baixo da sociedade, era concebido noutro plano. O principal liame jurídico era de uma pessoa sobre a outra, e não de uma pessoa sobre as coisas. Havia também o direito de uma pessoa sobre uma coisa, mas era num plano secundário. A principal questão do direito era de uma pessoa sobre outra.

Como isto se realizava? Havia três classes sociais: o clero, a nobreza e o povo.

O clero tem um direito sobre o povo, quer dizer, um direito de ser ouvido, ser seguido, ser venerado pelo povo; e também o direito de ser mantido pelo povo. Uma vez que um homem seja padre para o bem do povo, é natural que o povo lhe sustente, mas esses são aspectos secundários. O principal direito do clero é sobre as almas; o direito da Igreja se exerce sobre as almas, o que não se avalia em dinheiro; não é uma mercadoria, mas um vínculo de ordem religiosa.

Os nobres têm um direito sobre os plebeus. Não é principalmente o direito de fazer o plebeu trabalhar, mas o direito ao afeto e à fidelidade do plebeu. Este deve amar o nobre como o filho ama seu pai. Mas o plebeu tem o direito à proteção e ao afeto do nobre. De maneira que ele deve ser amado pelo nobre como o filho é amado pelo seu pai. Quer dizer, há um vínculo que os medievais chamavam de fidelidade, pelo qual um acreditava no outro, cumpriam as obrigações de parte a parte e assim estruturavam a vida.

Outrora os empregados quase pertenciam às famílias para as quais trabalhavam

Temos muito vagas reminiscências disto nos dias de hoje; restam coisas e situações de outrora. Creio que quase todos terão ouvido falar de empregados tão fiéis que ficavam trabalhando na família durante vinte, trinta anos; depois, o empregado tornando-se velho, a família o mantinha até morrer, obtinha colocação para seus filhos e netos, resolvia toda a situação da família dele. Quer dizer, o empregado ficava meio pertencente à família. Era uma espécie de adoção.

Eu mesmo vi ainda minha avó, que era do tempo da escravatura, conversando com uma antiga escrava negra. Minha avó era uma senhora muito imponente, bonita; apesar da distância muito grande entre ambas, havia familiaridade, bondade. Essa negra já estava velha e incapaz de fazer qualquer coisa; ela entrava em nossa casa, sentava-se perto de minha avó, e uma contava para a outra casos de antigamente; tinham fatos para contar a perder de vista, de gente que elas haviam conhecido; e repetiam os casos. Enquanto viveu, ela possuía a bolsa da minha avó à vontade.

De fato, tinha sido ali criado um embricamento de alma por onde a minha avó não tinha o direito de chegar para aquela mulher e dizer: “Quer saber de uma coisa? Pela legislação trabalhista eu sou desobrigada de você!” Existia entre elas uma relação viva e recíproca.

Essa negra tinha os seus pecúlios, ela não dependia propriamente de minha avó. Esta lhe dava dinheiro como presente e para apuros, ajuda etc. Mas quando não havia criados, ou alguém estava doente em casa, bastava mandar um recado: “Diga à fulana que venha aqui, pois eu estou precisando”. Não passava pela cabeça da antiga escrava de não vir. E ela não tinha o direito de não ir. Havia um direito de minha avó à fidelidade dela e um direito dela a esse carinho materno de minha avó, que valia muito mais do que a legislação do trabalho, do que dinheiro ou qualquer coisa.

Atmosfera de afeto risonho e distendido

É um vínculo à maneira de um vínculo de família, que se estabelecia entre essas pessoas e criava uma relação, a qual não era imposta pelas leis revolucionárias, liberais, mas valia muito mais do que as leis. Possuía outra solidez, porque quando uma relação chega a este ponto, podia-se modificar a lei que a relação permanecia. Tenho certeza que as duas nunca pensaram em lei trabalhista; se falássemos para elas a respeito de leis, nem entenderiam bem; era a antiga escrava e a antiga dona, amigas, está acabado, o negócio está feito.

Naturalmente, a família dos patrões tem sempre as características que não são as da família dos empregados, mas nisto existia uma atmosfera de afeto risonho, distendido, de que hoje em dia quase não se tem mais noção.

Era um direito de uma pessoa sobre a outra. Sobre o que da outra pessoa? O afeto, a dedicação, o carinho.

Sistema patriarcal vigente na época dos antigos coronéis do interior

Houve outro exemplo de relação desse tipo. Todos devem ter ouvido falar dos antigos coronéis do interior. Eram, em geral, fazendeiros com propriedades grandes e que protegiam uma série de pequenas cidades próximas ou dentro da fazenda.

Então, era o coronel que resolvia os problemas. Se alguém estava muito doente, o coronel sabia qual era o médico a ser procurado. Se um queria saber onde mandar o filho estudar, o coronel é que escolhia a escola. Se dois brigavam porque queriam casar com uma terceira, o coronel é quem resolvia o problema. Era o sistema patriarcal.

Todo mundo ia atrás do coronel, e na hora das eleições votavam em quem o coronel mandava. Quer dizer, era uma espécie de sindicato, mas sem o aspecto odioso de certo sindicalismo; era um sindicato afetivo.

E o coronel tinha escuderia. Quantos casos eu conheço de coronéis que, na hora do perigo, chamavam três, quatro capangas, e lhes dizia: “Vamos para o perigo!” Os capangas iam e expunham a vida pelo coronel.

Mas se o capanga precisasse de qualquer coisa, o coronel lhe dava. Ele garantia a região, por mais difícil que fosse. Era um pacto para a vida e para a morte, com um reflexo financeiro, é verdade; entretanto, o principal era o afeto que estabelecia um laço de obediência, de dependência, de proteção e de dedicação.

O binômio obediência-proteção caracterizava as relações na sociedade medieval

Em todas essas relações encontramos este binômio: de um lado, o direito de mandar e a obrigação de proteger; de outro lado, o direito de ser protegido e a obrigação de obedecer. É a relação pai e filho.

Essa relação existia entre os nobres e os plebeus. E também entre os nobres: a do nobre de grau menor em relação ao de maior grau. E também entre os plebeus. Nas corporações de artesãos havia três graus: o companheiro, o aprendiz e o mestre. Eles se protegiam uns aos outros. Mantinham uma fidelidade que era meio patriarcal e durava a vida inteira.

Podemos dizer, então, que à civilização da Idade Média caberia o título de “civilização da obediência”. Quer dizer, toda a hierarquia, todas as relações sociais eram estabelecidas na base de obediência, proteção e até dedicação. Obediência-proteção era o grande binômio que caracterizava as relações na sociedade medieval.

Civilização da igualdade e da autossuficiência

As relações da sociedade de hoje, igualitária, são completamente baseadas num outro princípio, o da igualdade completa de todos os homens, que tem uma consequência, na qual as pessoas não prestam atenção: se todos os homens são iguais, todos são autossuficientes. Resultado: nenhum tem razão para proteger o outro. É evidente.

Se dois indivíduos têm, por exemplo, os ouvidos igualmente bons, e um diz para o outro:

— Você quer prestar bem atenção para ouvir o que está dizendo o rádio do vizinho?

— Não. Para que existe orelha? Ouça você!

Quer dizer, não há razão para este pedido, uma vez que os ouvidos são igualmente bons.

Se todos os homens são iguais, todas as inteligências são iguais — porque é isto que a igualdade supõe —; portanto, os vínculos de auxílio, de proteção, de dependência, não têm razão de ser.

Então, como consequência, toda obediência, toda dependência é um sinal de insuficiência e, portanto, uma coisa da qual a pessoa deve envergonhar-se. E o ideal é o homem inteiramente livre, bastando-se completamente a si próprio para fazer tudo quanto ele quer. Este é o padrão do homem. Dessa forma nós estamos na civilização da igualdade, na civilização do “cada um carrega o peso do próprio corpo”. Quer dizer, não há vínculos entre as pessoas.

Atualmente a relação de patrão e empregado é uma relação trabalhista. Diz o patrão ao empregado: “Eu tenho capital e você tem trabalho. Eu lhe dou capital, aqui está tanto; você me dá trabalho, que vale tanto. O mais arranje com o Instituto de Aposentadoria e Pensões”. Ou seja, não converso com você, nem me interesso por sua pessoa, eu compro o seu trabalho.

A mesma coisa se passa no relacionamento do empregado com o patrão: “Eu do senhor quero o ordenado; saber como o senhor se chama, que problema tem em casa, se está aborrecido, precisando de alguma coisa, não me interessa, vá às favas! Eu quero o meu dinheiro no fim do mês. Dado o dinheiro, o senhor tome o seu caminho e eu tomo o meu”.

Quer dizer, é a civilização da autossuficiência e da independência completa.

Entre esses dois critérios passou a Revolução Francesa, que fez esta afirmação: “Toda dependência é uma vergonha, pois diminui o homem na sua dignidade. O homem não deve ser alienado, ou seja, não deve estar dependendo de um alheio”.

Reflexos causados pela civilização da liberdade

Daí encontrarmos grande estranheza quando se fala da escravidão de amor a Nossa Senhora. Porque a ideia da escravidão parece a própria ideia da vergonha. Em última análise, o que quer dizer “escravidão de amor a Nossa Senhora”?

A primeira vez que li esta expressão “escravidão de amor” — todos veem que eu não era nada revolucionário —, confesso que tive um calafrio: “Ficar escravo de Nossa Senhora? Bem, é Nossa Senhora, mas… escravo? Que futuro singular se delineia diante de mim!”

Depois de ler o “Tratado”(1), eu achei a escravidão à Santíssima Virgem uma coisa simplesmente fenomenal. Mas de início tive um arrepio.

A civilização da liberdade cria em nós reflexos que nos tornam um tanto surpreendente esta escravidão de amor a Nossa Senhora. Então, devemos considerar o fundo do problema. Ou seja, no que consiste a escravidão de amor à Virgem Maria; depois, se uma escravidão, ainda que a Nossa Senhora, é uma vergonha para um homem; se a obediência, a dependência é uma vergonha para um homem; o que devemos entender por obediência e dependência.

A escravidão na Antiguidade

Então, primeiro ponto: o que é a escravidão de amor? São Luís Grignion de Montfort explica isto muito bem. A escravidão entre os antigos era imposta. O pai tinha o direito de vender o seu filho como escravo. Era imposta, portanto, pelo pátrio poder; imposta pelos reis que podiam vender seus súditos; mas, sobretudo, imposta pela guerra. Quando um país ganhava a guerra contra outro, todos os súditos do país vencido passavam a ser escravos do vencedor. Por exemplo, se Roma ganhasse uma batalha numa guerra contra Atenas, todos os atenienses ficavam escravos de Roma. Esta mandava vir para Roma os que ela quisesse, e ordenava que os restantes fossem trabalhar em outros lugares. O vencido de guerra era um escravo.

São Luís Grignion explica bem que não é esta a escravidão de amor. A escravidão de amor é um vínculo de dependência que aceitamos em relação a Nossa Senhora porque A amamos. Quer dizer, nós A queremos tanto, temos n’Ela tal confiança que desejamos fazer tudo quanto Ela quer, como um escravo quer fazer tudo quanto o seu senhor deseja. Mas é uma dependência de amor, não é imposta pelo despotismo, pela força; é imposta pelo amor.

União nas cogitações e nas vias de Nossa Senhora

Nossa Senhora é a Rainha do Céu e da Terra. Se eu tiver todas as cogitações de Maria Santíssima, fizer tudo quanto Ela quer que eu faça, estou unido à Virgem Maria. E se a minha vida for continuamente assim, eu sou um escravo de Nossa Senhora. Mas sou escravo de amor porque, pelo amor que tenho à Santíssima Virgem, eu resolvi fazer isto. Nossa Senhora tem este direito e eu resolvi atender ao direito d’Ela.

Quer dizer, é uma alta, uma transcendental união de almas que por esta forma se exprime, mas que desabrocha de fato numa obediência: porque Ela pensa, eu penso; Ela quer, eu quero; Ela deseja que eu faça, eu faço. Eu dependo d’Ela em tudo.

Como isto se dá em concreto? Se eu quero pensar como Nossa Senhora, devo pensar como a Igreja. Se eu quero querer o que Maria Santíssima quer, eu devo querer o que a doutrina da Igreja me ensina que devo querer. Se eu quero fazer o que Nossa Senhora quer que eu faça, devo fazer aquilo que o meu espírito católico me indica que eu faça. Por esta maneira eu serei escravo de amor de Nossa Senhora.

Ensinamento de Leão XIII sobre a liberdade

Agora, trata-se de perguntar se é uma vergonha uma pessoa depender de tal maneira de Nossa Senhora; e, mais profundamente, se a obediência, a dependência, é uma vergonha; se a doutrina liberal a respeito disto, segundo a qual toda dependência é uma vergonha, é uma doutrina verdadeira ou falsa. Vejamos o que nos diz a Doutrina Católica sobre isto.

Leão XIII expõe este assunto numa encíclica muito bonita: “Libertas praestantissimum”. É uma encíclica muito técnica, doutrinária. Vou tentar pô-la ao alcance dos presentes neste auditório, o menos tecnicamente possível.

Consideremos um exemplo. Eu tenho a possibilidade de viajar de automóvel: inutilmente, só para me distrair, ou de ir para a minha casa a fim de, cumprindo o meu dever, descansar.

Segundo o mundo liberal de hoje, eu exerço a minha liberdade fazendo o que é agradável, indo passear. O dever me obriga a fazer o que eu não gosto; é uma limitação de minha liberdade. E a minha liberdade consiste, portanto, em fazer o maior número de atos que eu ache agradáveis, que me atraiam.

Em sentido contrário, se eu cumprir o dever em tudo, não sou livre; a canga do dever limita a minha liberdade.

Leão XIII nos ensina exatamente o contrário, expondo uma doutrina muitíssimo bonita, que para a compreendermos, tomemos fatos que até se passam fora da ordem humana.

O voo da gaivota e a trajetória do cometa

Uma das coisas de que eu gosto mais de ver, na beira-mar, é gaivota voar. É uma beleza: ela levanta voo, quando a gente pensa que a gaivota “esqueceu” o mar, ela mergulha! Pega um peixe e sai com ele no bico; fica feliz durante algum tempo pairando, se deixando levar pelo vento, descansando e comendo. Quando acabou de comer, ela está rapinando outro peixe no fundo do mar; efetua voos bonitos, com elegância.

Imaginemos que uma criança, por exemplo, conseguisse apanhar com as mãos uma gaivota e a segurasse na hora de levantar voo. Dir-se-ia que a criança de algum modo tolheu a liberdade da gaivota. Por quê? Porque está no primeiro impulso natural, ordenado, da gaivota, alimentar-se com os peixes que Deus fez para serem alimentos dela. Deus criou os animais de tal maneira que uns são feitos para serem alimentos de outros; portanto, a gaivota cumpre a ordem universal levantando voo, espairecendo e gozando aquele ar de um modo magnífico, e depois comendo peixes.

Um bicho não tem direito, e a liberdade é um direito. Mas dir-se-ia que a como que liberdade da gaivota foi cerceada.

Suponhamos que uma pessoa pudesse, por exemplo, com essas bombas supermodernas, interceptar o caminho de um cometa, e fizesse com que ele, sem se desintegrar, caísse na Terra. Teríamos a impressão de que a “liberdade” do cometa foi restringida, porque ele estava em sua trajetória bonita, natural, elegante, querida por Deus. O caminho natural, o caminho próprio — notem bem a expressão — o caminho da ordem, próprio ao cometa, foi interrompido por alguém. Um cometa não tem direitos, mas dir-se-ia que foi cerceada a como que liberdade do cometa.

A virtude é a liberdade, e o pecado, a escravidão

Então, diz Leão XIII, assim é também a criatura humana. Há uma porção de verdades que o homem vê. Por exemplo, é evidente que ele deve obediência aos seus pais e às autoridades constituídas; que ele não pode matar o próximo, nem ferir ou espancá-lo; que não pode caluniar o próximo, não pode mentir; que não pode se apropriar da mulher do próximo.

O homem pela sua natureza quer fazer essas coisas, porque o primeiro movimento da alma humana, o mais imediato, é de seguir o bem. De maneira que o homem quer praticar o bem, como a gaivota quer dar seu voo. E a liberdade do homem consiste em seguir este movimento, como a liberdade da gaivota consiste em dar o seu voo inteiro.

Entretanto, surge algo que diminui no homem a possibilidade de praticar o bem. É a tentação. Ele sente um peso que o leva para o outro lado. Esclarece Leão XIII: Qual é o efeito próprio da tentação? É diminuir a liberdade do homem.

Os homens seriam muito mais livres se não fossem tentados. A virtude é a liberdade. A tentação, o pecado, são o contrário da liberdade. Nós seríamos muito mais livres, como a gaivota no ar, se não fôssemos tentados.

A verdadeira liberdade consiste em cumprir o dever

Portanto, afirma Leão XIII, o homem verdadeiramente livre não é aquele que faz tudo quanto lhe passa pela cabeça, inclusive o mal, mas é o homem que aceita o seu primeiro impulso bom, o segue sempre e não admite embaraços que venham tolher este impulso. A verdadeira liberdade está no dever.

Volto, então, ao exemplo que eu citava há pouco.

Ao sair daqui eu poderia ter — não estou mais na idade de fazer isto — uma vontade desordenada de ficar andando de automóvel, sem rumo definido, pela cidade. Quantos rapazes fazem isto! Mas a minha consciência me mostra que devo descansar. Serei verdadeiramente livre se seguir o movimento natural de minha alma para o repouso. E escravo se me deixar arrastar pelo vício. De maneira que eu não serei livre se for passear; serei livre se eu cumprir meu dever. Esta é a verdadeira noção de liberdade.

Vemos que isto é muito verdadeiro, mas “bolostroca” a noção liberal completamente. Porque o conceito liberal cai por terra. O liberalismo fica reduzido a frangalhos diante deste conceito que entretanto é evidente.

Eu insisto com mais um exemplo. Um homem vê que ele se encoleriza com um outro, e que não lhe deveria dizer uma palavra ríspida; seria contra os interesses dele porque, inclusive, digamos, iria perder um bom negócio. Mas ele não se contém e diz a palavra ríspida.

Qual é o homem verdadeiramente livre? É o que, para fazer o bom negócio, se domina e não desagrada o outro, ou aquele que é ríspido, ainda que não queira, e perde o bom negócio? O primeiro é o livre, o segundo, o escravo.

Daí existir esta expressão corrente, de que todos já devem ter ouvido falar: “escravo do vício”. Por exemplo, escravo de jogo. Um de nós, pelo favor de Nossa Senhora, pode não pôr o seu patrimônio no jogo. Mas um jogador, que gasta seu patrimônio no jogo, não é o senhor, mas o escravo do jogo.

Então, a verdadeira liberdade consiste em praticar o dever. Não há um homem mais livre do que aquele que obedece às leis e às autoridades justas. Esta é a primeira noção que devemos fixar.

Saber consultar…

Há uma segunda noção, desenvolvida por Leão XIII, que é a seguinte.

Se eu me analiso a mim mesmo, constato que posso encontrar muitas verdades, fazendo uso de minha inteligência. Mas percebo também que há muitas verdades as quais outros notam melhor do que eu; e, às vezes, pessoas menos inteligentes do que eu percebem melhor certas coisas.

Daí o fato de que, às vezes, numa conversa, um indivíduo muito inteligente diz uma coisa, e um outro bem menos inteligente afirma: “Fulano, você notou tal coisa?” Espanto, ele não tinha notado. Por quê? Porque Deus nos fez de tal maneira que cada pessoa vê umas tantas coisas que nenhuma outra vê.

Então, chego à seguinte conclusão: se eu noto que outros veem coisas que eu não sou capaz de ver; se a minha liberdade consiste em ver a verdade inteira, em atender ao meu apetite de verdade, eu deveria saber consultar aqueles que são mais capazes do que eu para ver certas coisas, e seguir a opinião deles de preferência à minha. É evidente. Porque assim eu realizo o meu apetite de conhecer a verdade inteira.

Por essa razão se recorre a técnicos, a especialistas, a pessoas que têm muita experiência da vida, muita elevação de pensamento, que são capazes de, em certas emergências, dar um caminho para a vida que, por nós mesmos, não encontraríamos.

É a coisa mais natural do mundo. O homem verdadeiramente livre pede conselho, aceita ser influenciado para tornar-se mais livre, a fim de poder realizar aquilo que ele quer, no fundo: conhecer a verdade inteira.

…e ser dirigido pelos mais capazes

Há mais. Todo homem que não seja um “mega” debandado, compreende que quando se trata de se julgar a si próprio, ele muitas vezes é parcial; julga-se benevolamente. Quantas vezes um outro diz uma coisa a meu respeito, que me incita a prestar atenção e pensar: “Noto que ele me disse uma coisa que eu não tinha querido ver em mim!”

Em muitas ocasiões isto se deu, por exemplo, de minha mãe para comigo. Ela me dizia: “Meu filho, preste atenção em tal coisa!” E isto ocorreu até o fim de sua vida. Quando não tinha o que dizer, ela reclamava que eu tomava água em goles excessivos, e me dizia que fazia mal para a saúde, o que, aliás, parece ser verdade.

Às vezes, saindo de meu apartamento, eu descia correndo a escada; ela olhava e advertia: “Não desça depressa demais, meu filho; não convém”. E tinha razão, pois de repente poderia haver um acidente. Eu já era um homem formado, mas ela poderia dizer coisas que eu não atinaria por mim.

De maneira que um homem que queira ser inteiramente livre, quer dizer, atender ao seu impulso completo para a verdade e para o bem, aceita ser dirigido, ser controlado por outro mais capaz. Dessa forma, ele dá uma prova magnífica de sua liberdade.

Alguém indagará: “Mas não é uma carência da parte dele?” É. Imaginemos um homem que tem uma perna desconsertada, e quer subir uma ladeira; e, servindo-se de um apoio, com enorme esforço sobe a ladeira. Ele não dá mais prova de força de vontade do que outro que sobe a ladeira naturalmente? Dá.

Assim também temos que subir a ladeira da virtude. Muitas vezes precisamos de nos apoiar na bengala ou na muleta do conselho ou da autoridade de um outro. Aceitando esse auxílio, damos prova de força de vontade maior do que de um outro que julga não precisar de ajuda. É uma carência que dá ocasião à manifestação de uma força de vontade ainda maior.

Compreendemos assim que o próprio fato de ser mandado é a mais alta forma de liberdade.

A mais cristalina e mais sublime forma de liberdade

Temos, então, a consequência: na civilização da obediência ou da virtude, os homens sabiam o que podiam, mas também conheciam o que não podiam. Portanto, viviam de um misto de dependência e independência.

A civilização da pseudo liberdade é a civilização do vício. Cada um faz aquilo que acha agradável, mas o resultado é que fica escravo de todos os vícios. E a nossa pseudo liberdade de hoje resultou numa verdadeira escravidão. Assim se pode chegar aos maiores crimes e às maiores abjeções. Quis, é livre, fez. Disso decorre que a forma suprema de liberdade é aceitar a autoridade daqueles que nos ajudam a fazer aquilo que nós queremos, ou seja, a verdade e o bem.

Portanto, não há forma mais cristalina e mais sublime de liberdade do que sermos escravos de Nossa Senhora. O auge da dignidade humana é ser escravo de Maria Santíssima, porque significa fazer em tudo aquilo para onde as nossas melhores apetências nos encaminham.

Assim, quando formos nos consagrar a Nossa Senhora, devemos ter um espírito amoroso de autoridade. Quer dizer, compreendendo a função da autoridade, da obediência; e compreendendo que, fazendo-nos tão pequenos diante d’Ela, realizamos uma coisa sublime, altamente dignificante. Assim, devemos nunca nos envergonhar de obedecer, de seguir um outro, porque exatamente aí está a mais alta dignidade do homem.

O cruzado e o hippie

Alguém perguntará: “Mas Dr. Plinio, e aqueles guerreiros medievais tão ardorosos, tão combativos, os pares de Carlos Magno, aqueles homens tremendamente varonis, eles eram assim?”

Precisamente isto forma o homem capaz de uma epopeia, ou seja, que tem uma vontade tão firme que ele diz: “A verdade eu a quero até o fim e de qualquer jeito; o bem eu o quero até o fim e de qualquer jeito. Então vou me esforçar de todos os modos para conhecer a verdade e o bem. Mas, conhecendo minha falibilidade, vou fazer este ato de epopeia de não resolver tudo pela minha cabeça, mas de consultar o ensinamento da Igreja Católica, que vale mais do que está em minha cabeça. E, portanto, ter certeza daquilo que penso porque a Igreja assim ensina; esta certeza é muito maior do que a certeza que eu tenho pelo fato de pensar por mim mesmo, porque é uma Igreja divina, infalível, que me ensinou”.

E continua: “Eu quero fazer o que devo, mas a minha vontade é fraca, ela erra; então vou seguir aqueles que têm a missão dada por Deus de me mandar fazer aquilo que eu devo. E ainda que possa parecer um disparate, um absurdo, desde que não seja pecado, eu estarei mais certo de fazer o que desejo, que é o bem, fazendo a vontade daqueles que mandam em mim, do que agindo de acordo com a minha cabeça”.

Isto é uma forma de força de vontade que fazia com que aqueles cruzados — todos eles vassalos uns dos outros e, em última análise, vassalos do rei, obedientes como nenhum homem moderno é — tivessem dez quintilhões de vezes mais liberdade do que esses hippies que vemos perambular pelas ruas.

A nossa ufania é de sabermos obedecer. E obedecer por um ato de suprema força de vontade, não por moleza, como quem diz: “Ah!… ele pode zangar-se comigo; por isso vou fazer o que ele quer”. Não é por moleza, mas por essa suprema energia que devemos obedecer.

Como homens tão humildes construíram monumentos tão altivos?

Termino com um fato narrado por Montalembert(2), na introdução da vida de Santa Isabel da Hungria.

Ele conta que um xeque árabe tinha sido aprisionado pelos cruzados e passeava pela França; estava preso sob palavra. Naquele tempo havia uma coisa chamada honra; daí palavra de honra. E o indivíduo preso sob palavra de honra não fugia mesmo.

Então o xeque olhava as catedrais etc.; chegando provavelmente a uma abadia, onde estavam alguns irmãos leigos, perguntou: “Quem a construiu?” Apontando os irmãos leigos, foi-lhe respondido: “Foram eles”. Ele olhou-os e disse: “Mas como homens tão humildes podem construir monumentos tão altivos?”

Acho isso uma verdadeira beleza. As grandes almas altivas são aquelas que conhecem a glória de obedecer.

Aí estão alguns pensamentos que devemos ter quando nos consagrarmos como escravos de Nossa Senhora.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/4/1973)

 

1) Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, da autoria de São Luís Grignion de Montfort.

2) Charles de Montalembert, 1810­-1870.

O Maravilhoso Medieval e o milagre de Avignon

O homem medieval era ansioso, sôfrego de maravilhoso; seu espírito voltava-se continuamente para o maravilhoso, como toda pessoa que crê em Deus.

Aquele que acredita em Deus e tende para Ele, que é o Maravilhoso, o Perfeito, ama as coisas na medida em que elas exprimem o Criador. E quanto mais elas são excelentes e admiráveis, tanto mais espelham a Deus.

É concebível que nestas condições o espírito medieval tenha sido ansioso para representar o maravilhoso em tudo. Um exemplo foi o que ocorreu no século XV, na cidade de Avignon.

Todos sabem que a Santa Sé tinha o poder temporal sobre um enclave no território francês, que era o condado de Avignon, onde moraram vários Papas franceses, que não deixaram na História uma memória particularmente esplêndida, a não ser um deles que, se não me engano, morreu bem-aventurado1.

Nesse enclave produziu-se, no século XV, um milagre. Em si o milagre é uma coisa maravilhosa.

Recentemente li o caso admirável de uma pessoa que viveu durante quinze anos engessada; parece-me que todo o seu corpo estava metido dentro do gesso. Esteve duas vezes em Lourdes para pedir a cura, mas não a conseguiu. Foi uma terceira vez; entretanto ela estava tão coberta de gesso que não podiam mais colocar água sobre seu corpo. Então, para que se beneficiasse de algum modo dos efeitos milagrosos da água, foi injetada em suas veias água de Lourdes.

Pois ela curou-se instantaneamente. E o mais extraordinário é que, tendo sido retirado o gesso, dentro do qual passara quinze anos, essa senhora começou a andar. O que de si é uma coisa absolutamente inconcebível.

O milagre foi atestado, provado, porque ela se submetera a operações. De si, o fato é maravilhoso, no sentido de que ele representa uma manifestação da onipotência de Deus e que causa maravilha. Não é um fato artisticamente maravilhoso; ele não tem um pulchrum debaixo deste ponto de vista.

Recordaremos agora um milagre que tem um grande pulchrum artístico e veremos como Deus Nosso Senhor, na sua condescendência, satisfazia os anseios de alma do homem medieval. Quer dizer, Ele manifestava sua onipotência — como no milagre de Lourdes —, mas de um modo muito bonito, artístico.

Ao atender também ao aspecto artístico, Deus satisfazia a sede de maravilhoso, da qual Ele mesmo era o Autor no espírito do homem medieval.

Passo a ler a narração, extraída da “Vida dos Santos”, Bonne Presse, Paris:

A Confraria dos Penitentes Cinzas de Avignon, que teve por fundador Luís VIII, pai de São Luís, possui sua sede na capela da Santa Cruz, chamada de Pénitents Gris. O Santíssimo Sacramento está aí exposto – com certeza já não é mais assim; até há pouco tempo era – noite e dia, desde 14 de setembro de 1226.

Isto já é uma verdadeira maravilha. Há quase 750 anos que o Santíssimo Sacramento não saiu da capela desse lugar2. Sendo que naquele tempo a exposição permanente do Santíssimo Sacramento não era hábito na Igreja.

A cidade de Avignon está situada a algumas centenas de metros da confluência dos rios Ródano e Durence, e atravessada por um de seus confluentes, o Sorgue. Em 1433, as chuvas torrenciais fizeram transbordar os três rios que inundaram as partes baixas à margem do Sorgue. A inundação tomou tais proporções durante a noite que, na manhã seguinte, os superiores da Ordem, temendo que a água atingisse o trono onde estava exposto o Santíssimo Sacramento, tomaram uma canoa e foram até a capela. Qual não foi a sua surpresa quando, depois de aberta a porta, constataram que as águas, à semelhança das do Mar Vermelho e do Jordão, se mantinham à direita e à esquerda, elevadas como grandes paredes, deixando absolutamente livre e seca a passagem que conduzia ao altar.

Podemos imaginar que aspecto lindo o de uma capela cujas paredes eram feitas de água, mas nenhuma gota caía. O sulco por onde os religiosos deveriam passar estava completamente seco. E no fundo aquela majestade misteriosa, adorável, mas quão real, do Santíssimo Sacramento exposto.

Gostamos de supor — e tudo leva a crer que assim o foi — que esses bons religiosos, depois do espanto, fizeram profunda genuflexão e adoraram o Sacramento Santíssimo, em homenagem a Quem o milagre estupendo se realizava.

O prodígio lhes pareceu ainda maior quando, chegados ao altar que fica ao nível da capela sem degraus, viram em volta tudo igualmente seco. As águas se levantavam ao longo das paredes como verdadeiras tapeçarias, formando arcobotantes ao alto, como uma espécie de teto.

Que maravilha! Como Deus quis glorificar o Santíssimo Sacramento, mas atendendo ao movimento de alma do homem que vê no belo um reflexo do Altíssimo. Deus presente, mas inteiramente oculto, no Santíssimo Sacramento, e agindo de um modo sensível, manifestando-Se por semelhança, precisamente nas águas que subiam e davam certo vestígio do esplêndido e da beleza d’Ele.

Assim diz o antigo relato conservado nos arquivos da confraria.

Não é, portanto, uma lenda que se transmitiu de séculos em séculos, mas é um relato conservado nos arquivos da própria confraria.

Os dois frades, depois de terem adorado o Autor desse prodígio, se apressaram a comunicá-lo aos outros confrades. Vieram doze. E todos juntos foram chamar quatro frades menores da Ordem de São Francisco, dos quais três eram doutores em Teologia. A água se mantinha no meio do banco que fica ao longo do átrio da capela, de maneira a deixar uma parte inteiramente seca.

Para comemorar o milagre, celebra-se com solenidade, todos os anos, a festa em 30 de novembro, dia de Santo André. Pela manhã, todos os membros da confraria comungam, percorrendo de joelhos, até a mesa da comunhão, o caminho sagrado, conservado milagrosamente pelas águas. Às vésperas, o pregador relembra o milagre, e o cântico “Cantemus Dominum”, que foi entoado por Moisés depois da passagem do Mar Vermelho, precede a adoração e a bênção do Santíssimo.

Durante mais de quinhentos anos se conservou férvida e ardorosa a lembrança desse milagre. Quanta beleza existe no fato de que, em todo dia 30 de novembro, uma confraria — cujos membros, pelo menos em parte, presumivelmente descendem daqueles que viram o milagre —, formando uma longa procissão acompanhada pelo povo, entram naquela igreja para celebrar essa maravilha!

Podemos imaginar com que devoção eles adentram na capela, adoram o Santíssimo Sacramento e entoam o cântico de Moisés, lembrando que Deus fez em Avignon aquilo que realizou no Rio Jordão e no Mar Vermelho. São verdadeiras maravilhas de Deus.

Qual é a beleza especial que apresenta a continuidade dessa tradição? É a pulcritude da lição que nos dá, pois os benefícios de Deus devem ser lembrados. Nós não podemos deixar de agradecê-los sempre. Como através das gerações, durante cinco séculos, eles se lembraram disso, com a Fé e a gratidão que se transmitiram. E o que dá muito mais calor à comemoração é a tradição.

Imaginemos que fôssemos fazer agora uma procissão numa igreja para adorar o Santíssimo Sacramento, a fim de comemorar e ilustrar o que se passou em Avignon. Seria com muito menos vida do que o que fazem em Avignon, porque aquele é o lugar onde o milagre ocorreu, e onde durante quinhentos anos, ininterruptamente, o milagre vem sendo glorificado.

A tradição confere um sabor, um calor, uma vida especial a uma ação de graças certamente muito bonita, muito justa, mas que perderia alguma coisa se não fosse tão tradicional. Aprendamos dessa maneira a amar a tradição, e compreender como ela adorna as coisas de Deus e de Nossa Senhora.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/7/1975)

 

1) Santo Urbano V.

2) Lamentavelmente, em 1793, a Revolução Francesa causou a completa destruição da Capela da Santa Cruz. Mais tarde, uma nobre família promoveu a construção de uma nova capela. Concluída a construção, o Arcebispo de Avignon restaurou ali a Adoração Perpétua do Santíssimo Sacramento (Cf. Eucharistic Miracles and Eucharistic Phenomena in the Lives of Saints, Joan Carroll Cruz, Tan Books and Publishers, Rockford, Illinois, 1987, p. 144).

Balduíno IV, o protótipo do católico – III

Ficamos maravilhados com as vitórias alcançadas pelo Rei leproso contra os inimigos da Igreja. Entretanto, ele travou dois combates simultâneos: um contra os maometanos e outro contra o lado  ruim que todo homem leva em si. A verdadeira e mais dura batalha do homem é a enfrentada dentro de si.

 

Pudemos realçar vários ensinamentos que se desprendem da vida heroica, santa e magnífica de Balduíno IV, o Rei leproso de Jerusalém(1). Eu gostaria, entretanto, de fazer um pequeno  complemento. É preciso dar com prontidão e alegria Tenho ouvido, às vezes, a frase: “Dar muito não basta, é preciso dar tudo e para sempre.” É bem verdade, mas faltam ainda dois elementos para que ela fique completa.

Quando se põe clara aos nossos olhos a necessidade de dar, deve-se fazê-lo imediatamente. A cada minuto que deixamos passar sem ter dado, a doação se torna mais difícil, e vamos nos  descolando mais penosamente do objeto de nosso apreço. No fim, acabamos não dando. Se alguém, ouvindo a narração da vida de Balduíno, o Rei leproso, forma o propósito de, por exemplo, pedir o espírito de sacrifício, o amor à cruz, não deve dizer o seguinte: “Mais tarde vou pensar um pouco nisso e depois, um belo dia, começarei a rezar nessa intenção…”

Se um impulso interior da graça me leva a rezar a ele, vou começar hoje e com uma jaculatória agora: “Balduíno, glorioso Rei leproso, dai-me o vosso espírito de sacrifício!” E para não fazer torcidas e retorcidas, dando algo e depois voltando atrás, define-se bem o que se dá.

Mas isso mesmo não basta. É preciso dar com alegria. Quem dá com tristeza, tendo pena de si mesmo, não deu nada.

Por exemplo, alguém toma a resolução de fazer a Deus um pequeno sacrifício: abster-se de seu melhor travesseiro, uma vez na semana. Digamos todas as sextas-feiras, tomando em consideração que Nosso Senhor morreu numa sexta-feira por nós, na Cruz. A pessoa deve privar-se disso com alegria, porque encontrou o modo de tirar melhor proveito do seu travesseiro, que não é dormir usando-o, mas dá-lo a Deus, a Maria Santíssima.

Então a pessoa reza: “Meu Senhor, dou-Vos graças por terdes morrido por mim na Cruz, e me concedido um travesseiro que sacrifico hoje por Vós.” E afirma isto com o coração alegre por ter  encontrado com que retribuir a Deus e a Nossa Senhora a imensidade do que fizeram por ela. Há uma frase da Escritura que diz: “Deus ama quem dá com alegria” (2Cor 9, 7).

Quem dá com pena de si não pertence à estirpe dos heróis

A lepra é uma doença terrível, que cobre o homem de feridas, úlceras, pústulas; depois vão caindo pedaços dos dedos, do nariz, das orelhas, o homem vai apodrecendo inteiro. No fim da doença,  ele é uma podridão ambulante. Pensem em Balduíno IV andando no meio dos outros homens e notando que ele é objeto do nojo e do horror geral. Percebe que os outros olham para ele  procurando disfarçar, mas tendo asco. Na véspera daquele dia ele ainda tinha nariz, naquela noite o nariz caiu, ou uma orelha, ou um dedo, e assim ele vai apodrecendo.

Ponha-se cada um neste papel: apresento-me para os outros, tendo perdido o nariz na noite anterior… As pessoas, por amabilidade, fingem não perceber e perguntam como passei a noite, mas interiormente pensam, rachados de dor: “O que aconteceu nesta noite com ele?”

Entretanto, diante de Balduíno IV, que na véspera de uma batalha perde o nariz, está o corcel. O Rei leproso monta a cavalo, ele todo é uma chaga e cada vez que o cavalo salta seu corpo inteiro dói. A dor aumenta e se renova à medida que o corcel apressa a velocidade, e a cada vez em que Balduíno ergue o braço para desferir um golpe com a espada.

Haveria dois modos de Balduíno partir para a batalha. Um seria: “Ai, meu Deus, então Vós quereis deste vosso pobre filho Balduíno mais este horror?” E na hora do combate: “Vós desferis contra ele um golpe que se os maometanos desfechassem seria cruel! Durante esta noite, Senhor, pelas mãos da lepra, Vós me arrancastes o nariz e desfigurastes a minha face, abrindo mais uma fonte de  dor em meu rosto. E Vós ainda quereis que eu combata! Ai que dor, que sofrimento! Senhor, eu me resigno vagarosamente, para que tudo doa o menos possível: ponho um pé no estribo, vou dar o salto para cima do cavalo e tenho medo da dor que vou sentir. Mas pulo, estou sobre o cavalo… Ai, que lancetada!”

Que horror! Ponho o pé no outro estribo…

“Agora, cavalo, martirizador meu, põe-te a caminho”. Ele teria vencido as batalhas que venceu se tivesse procedido assim? Não, porque não teria pertencido à estirpe espiritual dos heróis.

O verdadeiro seria dizer o seguinte:  “Senhor, eu vou para a batalha, entrego-me a todas as dores, e sei que daqui por diante, até a hora da vitória, não deixarei de sofrer dores cada vez maiores. Dores, vinde a mim!” Pula sobre o corcel e sai depressa. A dor deve ser aceita e sorvida com coragem Assim devemos fazer com sofrimentos tão menores que a Providência põe em nosso caminho.

É uma hora de estudo ou de oração; um companheiro que nos trata como não gostaríamos de ser tratados; um superior que não nos compreende bem. Seja o que for, devemos dizer: “Dor, venha sobre mim!” A dor deve ser aceita e sorvida como um homem tomaria a taça de um vinho perfeito. Alguns goles, e a dor está sofrida. É assim que o homem se torna corajoso. Ele luta contra os maometanos, é bem verdade, mas tem dentro de si um adversário pior do que os mouros: é o medo que ele tem da própria dor. Mas ele enfrenta!

Eu bem sei, por dura e amarga experiência própria, que é a alegria de minha existência, quanto o homem sofre na vida. Se ele entra nela com medo de sofrer, está mal engajado e não dá em nada que acerte. Ele deve entrar na vida à Balduíno, o Leproso.

Vimos o episódio da Batalha de Montgisard(2). Balduíno IV, com apenas trezentos guerreiros, tem diante  de si um exército de milhares de mouros. Um Balduíno chorão diria: “Meu Deus, mais essa ainda? Por cima da dor, da queda do nariz, de uma orelha que começou a apodrecer, tenho ainda que ver esses trezentos homens serem esmagados pelo adversário?!”

Esmagado nunca! Um filho de Nossa Senhora não pensa nisso. Ele pensa com ânimo, com alegria no esmagamento estupendo que vai infligir no adversário. Entretanto, sabe que isso não se obtém naturalmente, porque não é possível, e ele está encurralado contra o paredão da impossibilidade. Ele levanta os olhos ao céu e clama: “Salve Rainha, Mãe de misericórdia…” De um jeito ou doutro Ela tem pena dele, a batalha começa, e ele entra na luta com todo o corpo, mais do que isso, com toda a alma. Algum Anjo misterioso esvoaça no céu sobre os maometanos, espalhando o terror entre eles, e os católicos avançam. Pouco depois eles são uma cunha no meio dos mouros, que se tomam de medo e fogem correndo.

Meditações no Santo Sepulcro

Podemos imaginar Balduíno voltando a Jerusalém com seus guerreiros, depois da vitória e de terem recolhido as armas deixadas pelo adversário na fuga, preparando-se, assim, para outras batalhas. Entram na Cidade Santa e se dirigem ao Santo Sepulcro, junto ao qual meditam no que ali se passou.

Lembram-se de que nesse lugar esteve o Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo, pensam naquela sepultura fechada, na qual não penetrava mais nem o ar nem a luz, onde o Corpo do Salvador, transformado como se fosse o de um leproso, tantas eram suas feridas e chagas, jazia envolto no sudário com o qual os orientais envolviam os cadáveres, na escuridão completa, esmagado,   reduzido à inércia e ao isolamento da morte, enquanto a sinagoga maldita triunfava sobre Ele.

Ao cabo de três dias, àquela sepultura, sobre a qual dir-se-ia que nenhuma esperança mais pairava, os coros angélicos começam a afluir cantando, enchendo de luzes e de perfumes aquele local onde até há pouco só houvera tristeza. De repente, por um movimento vindo de  Si mesmo, Nosso Senhor ressuscita.

Sua Alma que estivera no Limbo consolando os justos do Antigo Testamento, anunciando-lhes que estavam redimidos, afinal, cumprida a sua missão, penetra no seu Corpo e O faz reviver. Todas aquelas feridas não apenas saram, mas se transformam em fonte de luz. De maneira que sua fronte sagrada, até há pouco coroada de espinhos, refulgia coroada de sóis que espargiam de cada furo produzido pela coroa de espinhos. 

Certamente, antes de aparecer a qualquer outra pessoa, Ele esteve num lugar quase tão triste quanto uma sepultura: o Cenáculo, onde Maria Santíssima, na penumbra, chorava a morte de seu  Filho, à espera do momento da Ressurreição. Quando de repente Ele entra radioso.

Sem dúvida, apraz-nos imaginar o último olhar de Jesus para Nossa Senhora, do alto da Cruz, quando Se olharam e, logo em seguida, Ele fechou os olhos e morreu. Uma coisa extraordinária!

Como terá sido, então, o primeiro olhar depois da Ressurreição? Como Ele A inundou de gáudio, de felicidade, e qual terá sido o diálogo dos dois naquele momento?

A maior batalha do homem é a  que ele trava dentro de si

Quiçá Balduíno IV teve em vista tudo isso no momento sagrado em que penetrou no Santo Sepulcro, passo ante passo, carregando todas as suas dores, todas as suas  glórias, talvez cingindo a coroa real em cima daquele monte de chagas que era ele, e osculando com indizível veneração e ternura aquela sepultura.

Não consta que tenha pedido a cura. Se ele a pedisse, provavelmente teria saído curado. Mas o Rei leproso travava duas batalhas simultâneas: uma era contra os maometanos; outra contra o lado ruim que todo homem leva em si. Ele não era concebido sem pecado original e, portanto, tinha lados ruins, como todos nós; mas ele os combatia. É muito mais duro combater o próprio lado ruim do que um mouro que se tem na frente.

A verdadeira batalha do homem não é a que ele trava fora de si, mas a enfrentada dentro de si. Balduíno rezou a Nosso Senhor e, a não ser no dia do Juízo, não poderemos saber o que o Divino Redentor respondeu a ele. O fato é que o “rei das dores” saiu de lá provavelmente mais chagado, mais dolorido, mais alegre e mais grandioso.

Por certo, ao lado da admiração que a figura excelsa desse rei leproso produz, nasce uma perplexidade: “Mas se Dr. Plinio pensa que eu devo encontrar coisas dessas no meu caminho, não tenho coragem nem meios de fazer isso! Ele levanta diante de mim uma montanha alta como o Himalaia, e depois me diz: ‘Suba!’ Mas ele não percebe que não tenho vontade de subir o Himalaia, nem quero sofrer tanto assim? Como é que Dr. Plinio me incita a uma coisa para a qual, em última análise, a qualquer homem se pode perguntar: ele terá coragem?” Respondo o seguinte: É bem  verdade, e se eu – que não tenho o direito de me comparar a Balduíno IV – tivesse sabido, quando jovem, tudo quanto iria sofrer, talvez não tivesse tido coragem.

Já em menino tive batalhas muito duras para enfrentar, e não senti coragem. Mas fiz uma coisa: ajoelhei-me diante de uma imagem alva, na Igreja do Coração de Jesus, e sem coragem de avançar,  as não querendo de nenhum modo recuar, disse: “Salve Rainha, Mãe de misericórdia, vida, doçura e esperança nossa, salve!”

Uma música que poderia ser o cântico de guerra de Balduíno

A palavra “salve”, em latim, é uma saudação, como quem diz “bom-dia”. Mas eu era menino e sabia uns arranhões de latim que se aprendia no ginásio. Eu pensava que “salve” queria dizer “salvai-me”, e então dizia neste sentido: “Salvai-me, Rainha! Dai-me forças, dai- me coragem, Vós que sois Mãe de misericórdia!” Nunca tinha prestado tanta atenção naquela oração como naquele momento em que eu estava aflito, e pensava: “Ela é mãe como mamãe… Como mamãe é boa, como ela tem pena de mim, como eu confio nela, e como a quero bem. Mas Nossa Senhora me quer mais bem do que mamãe me quer. Estou aqui como um trapo sujo aos pés d’Ela, não sinto força para ser bom, mas tenho certeza de que, pedindo à Mãe de misericórdia, Ela me dará esta força e acabarei, com o auxílio d’Ela, vencendo a batalha de minha vida, que consiste em ser verdadeiro católico apostólico romano.”

A partir desse momento, a Salve Regina foi a respiração de minha alma. Em todas as aflições de minha vida – quantas e quantas foram! – a coragem nunca me faltou, porque Ela dava. E isso porque a Santíssima Virgem resolveu ouvir a oração para lá de aflita de um menino aflito, e tenho certeza de que Ela mesma, naquele momento de aflição, movendo as coisas, fez com que eu fosse parar lá, diante do altar d’Ela. Posso afirmar que, em todos os transes de minha vida, nunca deixei de pedir forças a Nossa Senhora, e Ela nunca deixou de me dar as forças de que eu precisava.

Sei que pareço um homem muito decidido, muito forte; graças a Deus eu o sou porque Ela dá a força. Se Ela me abandonasse, eu cairia como uma pétala de uma flor no chão; vem a vassoura e a joga no lixo, está acabado! Eu tenho essa força porque Ela é a minha força.

Há uma canção lindíssima, que me enche o coração e a alma, cuja letra é a oração do paraquedista francês: “Mon Dieu, donne-moi la souffrance…”(3) Esse poderia ser o cântico de guerra de  Balduíno, o Leproso, na hora de montar no cavalo e avançar, em meio a cem dores e aflições, no auge do sofrimento, mas também entre mil atos de amor a Deus e de alegria por estar sofrendo por  Ele. E com sua alma limpíssima da lepra do pecado, derrubando a cabeça de quantos malfeitores empedernidos! Balduíno IV não está canonizado, mas nós podemos supor com que amor a alma dele foi acolhida por Deus, e com que glória nos aparecerá no dia do Juízo. Por certo ele está no Céu ouvindo este comentário, feito neste Brasil longínquo do qual não tinha ideia que pudesse existir naquele tempo; este Brasil no qual, no século XIII, habitavam apenas tribos de índios, em meio ao obscuro matagal das florestas brasileiras, mas onde hoje se elevam exclamações de entusiasmo pelo exemplo que ele deu. Exclamações de pessoas esperançosas de seguirem esse exemplo e serem verdadeiros batalhadores, dentro e fora de si mesmos. É o que eu lhes desejo de toda a alma.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/5/1991)

A Santa Igreja, nosso maior tesouro

Outubro de 1943. Os conflitos da Segunda Guerra Mundial devastavam as nações, produzindo um morticínio nunca antes visto e expondo vários povos ao perigo de caírem sob a tirania de um dos totalitarismos em voga.

Naquela grave conjuntura em meio à qual se jogavam os destinos da humanidade, Dr. Plinio, pelas páginas do Legionário, procura orientar as almas para algo de valor supremo e imprescindível, capaz de abrir ao mundo os caminhos da salvação: a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Ao comentar a célebre encíclica do Papa Pio XII sobre o Corpo Místico de Cristo, afirmava:
“Quem ler com atenção o texto pontifício perceberá facilmente a extrema complexidade da matéria de que ela trata, e a série quase interminável de confusões, de erros serpejantes — a expressão é do Papa —, de ambiguidade de toda ordem que se têm procurado apoderar do assunto. (…)

“O ambiente contemporâneo é cheio de contradições e entrechoques doutrinários violentos, [conforme aponta Pio XII]: enquanto por um lado perdura o falso racionalismo, que tem por absurdo tudo o que transcende e supera a capacidade da razão humana, e com ele outro erro parecido, o naturalismo vulgar, que não vê nem quer reconhecer na Igreja de Cristo senão uma sociedade puramente jurídica; por outro lado grassa por aí um falso misticismo que perverte as Sagradas Escrituras, pretendendo remover os limites intangíveis entre as criaturas e o Criador. (…)

“Na esfera política, o resultado foi claro. Poucos foram, infelizmente, os católicos que souberam ver na disciplina ardente e incondicional à infalível autoridade da Igreja, a verdadeira tábua de salvação. Uns procuraram a fórmula salvadora no nazismo. Outros, no comunismo. Outros, na forma nazificante ou nas bolchevizantes. Poucos foram os que se lembraram de que “bonum ex integra causa; malum ex quocumque defectu”. Se havia mal nos dois lados, ficássemos só com a Igreja, integra causa por excelência.

“E daí uma tremenda confusão. Uns, por amor à autoridade, chegaram ao totalitarismo. Outros, por amor à liberdade, chegaram até a demagogia. A grande tragédia da luta entre nazismo e comunismo, entre fascismo e democracia, não foi tanto o extravio completo dos que já eram maus, mas a ruína, a confusão, a dilaceração interna entre os que eram bons “Sejamos prosélitos ardentes da doutrina do Corpo Místico de Cristo. E, sobretudo, insistamos por que todos os estudos feitos nesta matéria tenham por base e constante ponto de referência a admirável Encíclica Mystici Corporis Christi. Com isto, cessará qualquer dificuldade e brilhará serena, para a edificação geral, a genuína doutrina da Igreja.

“Da Igreja! Como não compreender, admirar e amar ainda mais a Santa Igreja Católica, depois da luminosa e claríssima doutrina ensinada pelo Santo Padre Pio XII sobre o Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo, que é a própria Igreja Católica!

“A Igreja Católica é o maior tesouro que Nosso Senhor deu aos homens. É ela o escrínio em que se encerram todos os outros tesouros que Cristo nos deu. Não sei de coisa mais urgente, mais atual, mais premente, do que inculcar nos fiéis uma ardente devoção à Santa Igreja.”

(Extraído do “Legionário” de 24/10/1943)

Supremacia, nobreza e serenidade

A arte medieval me levou à conversão, pois aprendi as verdades da Igreja Católica nas criptas das velhas igrejas e catedrais europeias.

Assim se exprimiu Pugin, um dos mais ilustres arquitetos ingleses do século XIX, que havia sido educado num rígido calvinismo. Tendo se tornado católico, dedicou-se de corpo e alma ao renascimento do gótico na Inglaterra, posto ser a única arte que ele considerava realmente cristã. E teve sucesso, embora, após a sua morte, vários dos edifícios que construiu tenham sofrido  reformas, mudando-se-lhes propositadamente o estilo original. Outras de suas notáveis obras tiveram seu nome apagado e substituído pelos de arquitetos anglicanos.

Um exemplo é o Parlamento de Westminster, do qual, durante muito tempo, julgou- se que somente alguns detalhes triviais eram de Pugin. Hoje se sabe com certeza que são dele toda a fachada que dá para o rio Tâmisa e a famosa torre do relógio.

Grato me é constatar a comprovação histórica dessa autoria, pois vem corroborar a impressão que tive quando pude contemplar de perto o Parlamento inglês e a torre do Big Ben. Aquele conjunto arquitetônico pareceu-me tão medieval, tão acertada e retamente católico, que pensei: “Pode ser que, aqui, a Igreja Católica tenha deixado algumas das melhores marcas de seu próprio pensamento e de sua própria alma”.

O que existe ali de especial?

Não é, por exemplo, o que há de peculiar na Catedral de Colônia ou na de Notre-Dame de Paris. A primeira  possui algo de feérico, uma espécie de explosão de pedra, de uma imponência extraordinária, na qual, mais do que a razão, está presente a imaginação germânica no que ela tem de categórico. Ou seja, não se trata de uma concepção suave nem poética (no sentido doce da palavra), mas é a ideia de quem desejou construir uma epopeia grandiosa e, desse modo, marcar todos os séculos com uma nota de magnitude mais celeste do que terrena.

Assim, a característica saliente da Catedral de Colônia é algo de fantasioso e imaginativo, que o espírito possante conseguiu realizar.

Na catedral de Notre-Dame encontramos a conjugação da fantasia com a razão. Dir- se-ia que a fantasia concebeu uma construção magnífica e que, depois, a razão colocou os planos em ordem,  introduziu simetrias, bons sensos e harmonias quase clássicas, sem subtrair nada do sublime e do extraordinário próprios ao medieval.

Já a fachada do Parlamento de Westminster e a torre do relógio representam, dentro desse conjunto, algo de diferente. Não é a afirmação predominante da fantasia, nem a admiração predominante da razão, mas é uma reunião de dois valores diversos que se situam numa outra ordem de idéias: a força e a delicadeza.

Sua fachada é toda feita de linhas longas que se repetem, e de um grande desdobramento estendido numa amplitude de horizonte que, sem ter o “élan” de Colônia nem a espécie de harmonia  superlativa de Paris, possui entretanto uma categoria que lhe é peculiar. Ela se reveste de imensa dignidade, de superior  elevação e de alta nobreza, com algo de sereno, de senhor de si, de afável e, ao mesmo tempo, de sacral e de sério, reunindo assim extremos opostos. E toda obra de arte que, numa fusão, alia extremos opostos — que um espírito comum poderia julgar contraditórios —,  realiza algo de supremo no seu próprio gênero. Supremacia esta que, a meu ver, a fachada do Parlamento inglês logrou alcançar.

Nela, o aspecto força se faz notar também na forma de uma grandeza estável, que não se entregará a novos empreendimentos, sem todavia começar a decair. Ela se senta sobre seu próprio poder e se põe a meditar em suas glórias imorredouras… O mesmo se pode dizer da torre do relógio, uma verdadeira maravilha digna de ser justaposta ao edifício do Parlamento. Este, ao ter de ostentar uma torre, só pode ser uma como aquela: tão coerente, tão lógica, tão bela, porém com essa doçura, essa suavidade dos ingleses que o gênio católico depositou ali pelas mãos de Pugin, que soube interpretar os edifícios nos seus planos originais e comunicar um sopro de catolicidade a tudo aquilo.

Ele soube compreender, de modo ímpar, a nostalgia que a Inglaterra, anglicana e industrial, sentia — e ainda sente — daquela primeira Inglaterra, católica, feita mais para conquistas de ordem cultural do que para triunfos de ordem material. Ele, o arquiteto católico (como era chamado), soube, por meio de símbolos, tocar a fundo a alma de seu país, e realizar monumentos que  incontáveis protestantes não têm cessado de admirar até os presentes dias.

Muitos dos monumentos e edifícios projetados por Pugin não saíram do papel. Se porventura, no mundo de hoje, fosse dado a alguém construir uma obra que ele planejou, mas não pôde levar a cabo, prestaria a mais alta homenagem que se pode tributar a esse varão, verdadeiro artista católico. Seria a realização póstuma de mais um de seus grandes sonhos inspirados pela Fé.

Plinio Corrêa de Oliveira

O Versailles da Idade Média

Em viagem pela Europa no ano de 1978, um dileto discípulo de Dr. Plinio visitou o famoso “Château de Vincennes”, nos arredores de Paris. De volta ao Brasil, resolveu ele presentear seu mestre com um belo álbum de fotografias tiradas nessa ocasião. Dr. Plinio as comentou em uma de suas conferências.

 

Antes de iniciarmos a projeção das fotografias do “Château de Vincennes”, seria interessante apresentar alguns dados históricos a respeito do castelo.

O espírito francês possui obras-primas de toda ordem. Uma delas é o modesto “Guide Vert”(1) [Guia Verde], o qual contém interessantes referências sobre o castelo.

Veremos como as sacolejadas do passado deixaram suas cicatrizes no castelo.

Narra-nos o livro:

O Versailles da Idade Média apresenta dois aspectos distintos: um altaneiro e severo “donjon” e um majestoso conjunto do século XVII.

Esta descrição é um primor de resumo e talento.

Continua o Guia:

No século XI, a Coroa adquiriu, da Abadia de Saint Maur, a Floresta de Vincennes. Filipe Augusto lá construiu um castelo. São Luís o enriqueceu com a construção de uma capela. O bom rei proibiu que nessa floresta se caçassem animais, pois ele gostava de encontrá-los durante seus passeios.

Simbolizando a mansidão de um rei cruzado

Apesar de exímio caçador, São Luís IX fez ali o que talvez tenha sido o primeiro parque florestal da Europa: uma larga extensão cercada, onde era proibido caçar. Ele queria ter a alegria de passear pelas belezas do bosque e encontrar os animais, a fim de se entreter e brincar com eles.

Aos pés de um carvalho, o rei recebia, sem o impedimento de qualquer oficial, todos quantos viessem suplicar-lhe justiça.

Este episódio ficou famoso na História: nas estações mais belas do ano, São Luís sentava-se sob um carvalho particularmente frondoso e de seu agrado, para tomar contato com qualquer francês que quisesse vê-lo.

Esta era uma manifestação da benignidade do rei para com todos, especialmente em relação àqueles que tinham mais difícil acesso à sua pessoa. Este carvalho tornou-se símbolo da mansidão deste rei tão majestoso e cheio de glória.

Maison du Roi Soleil…

Mazarino, tornando-se Governador de Vincennes em 1652, fez construir simetricamente dois pavilhões: o do Rei, e o da Rainha. Um ano após o fim dos trabalhos, em 1660, Luís XIV lá passou sua lua de mel.

Entre os mil cargos que Ana d’Áustria, Regente da França, deu ao cúpido Primeiro Ministro Mazarino — homem extraordinariamente capaz, que desenvolveu o absolutismo real em detrimento do feudalismo — está o de Governador do Castelo de Vincennes.

Ele, por sua vez, teve o mau gosto de alterar o estilo do castelo, mas, é preciso dizer, o fez com bom gosto! Quer dizer, introduziu no famoso conjunto arquitetônico medieval duas construções ao estilo de seu tempo: o Pavilhão do Rei e o da Rainha.

Luís XIV, então moço recém-casado, passou seus primeiros tempos de matrimônio com Maria Teresa D’Áustria no Pavilhão do Rei, em Vincennes.

Percebe-se, ao longo dos séculos, uma espécie de chuva de ouro de recordações extraordinárias, que vai se acumulando em Vincennes. Primeiramente, São Luís ali acolhe os humildes e acaricia os animais.

Bem depois, Luís XIV, precedido e seguido por mosqueteiros, chega ao castelo numa carruagem magnífica, trazendo consigo a jovem rainha; ele sai da carruagem, estende a mão à rainha que nela se apóia levemente para descer, os cortesões ali estão para recebê-los, as tropas prestam armas, algum sino toca. O jovem monarca começa a sua vida de casado em Vincennes. Luís XIV estava na sua ascensão e, nesse tempo, era um monarca de vida muito pura — mais tarde, ele se desencaminhou.

Prisão dos ilustres

Desde o início do século XVI até 1784, o “donjon”, onde não moram mais os soberanos, torna-se prisão de Estado.

Tendo os reis deixado de residir no “donjon de Vincennes” — cuja estatura impressionante veremos pelas fotografias que serão projetadas —, este se transforma em prisão do Estado. Entre outros, um prisioneiro muito conhecido foi o Príncipe de Condé,  que na batalha de Rocroi jogou seu bastão de marechal no meio das tropas espanholas e disse: “Agora vamos buscá-lo”;  com esse artifício, Condé  determinou o curso, para ele vitorioso, da batalha que estava indecisa.

Mais uma vez vemos aqui a História se acumular. Isso nos mostra como foi a vida na Europa. Quantas coisas se somaram nas paredes veneráveis dos prédios que duraram séculos!

Belas porcelanas…

Outro fato digno de nota na história do Château de Vincennes é o seguinte:

Em 1738, o castelo transforma-se fortuitamente num atelier industrial. Dois operários, desertores da fábrica de porcelana em Chantilly, lá receberam asilo. Executando os segredos trazidos, eles fabricaram verdadeiros jardins de porcelana.

Naquele tempo, a fabricação de porcelana era um segredo de altíssimo valor, que os missionários jesuítas haviam trazido para a Europa. Quando os ocidentais chegaram à China, naturalmente se encantaram com a porcelana lá existente — a qual é mundialmente famosa — e começaram a comprar peças da mesma e enviá-las por navio aos amigos da Companhia de Jesus, a fim de serem vendidas na Europa para, com o dinheiro, manter as missões etc. E a porcelana chinesa interessou enormemente aos europeus.

Mas não se sabia fabricá-la. Até que um jesuíta, particularmente dotado do dom da sagacidade, de que Santo Inácio foi o padrão e modelo perfeito, conseguiu saber de um chinês o segredo para confeccionar a porcelana. Então, o religioso escreveu a fórmula e a mandou para a Europa, com todas as indicações de qual era o tipo de terra, como esta deveria ser preparada etc.

E em Chantilly, na França, começaram a fabricar a porcelana, porém mantendo o segredo. Certo dia, dois operários propuseram à Corte: “Se quiserem entrar numa combinação conosco, mandem vir tal terra que nós fabricaremos porcelana e ensinaremos o segredo para o rei”.

O monarca foi consultado e concordou. Os operários passaram então a fazer, nos imensos salões de Vincennes, lindas porcelanas que começaram a se escoar.

Como a narração do Guia é muito resumida, não conta como eles saíram de Vincennes. O certo é que fundaram uma das duas fábricas de porcelanas mais famosas da França: a de Sèvres(2) .

Cenário de um crime famoso

Num outro trecho o Guia narra:

Ao lado do fosso percebe-se, à direita, aos pés da Torre da Rainha, uma coluna que lembra o lugar onde foi executado o Duque d’Enghien, Príncipe de Condé(3).

Creio que todos já ouviram falar da execução do Duque de Enghien por Napoleão. Limito-me simplesmente a fazer um resumo.

Ele foi um dos cavaleiros mais brilhantes de seu tempo e o último da estirpe de Condé. Esse príncipe era um obstáculo para a realização dos planos de Bonaparte, pelo seguinte:

Todo o mundo, e talvez o próprio Napoleão, percebia que seu império e sua dinastia não podiam durar muito. E que mais cedo ou mais tarde, pela lei pendular da História, após a França ter chegado até a república, o pêndulo deveria oscilar e voltar, embora não inteiramente, ao ponto de partida que fora a monarquia absoluta e de direito divino do “Ancien Régime”, ou ao menos a uma monarquia temperada, com a mesma dinastia.

Entretanto, quanto aos Bourbons, as possibilidades de se perpetuar a estirpe não eram muito grandes, porque Luís XVIII, o eventual sucessor de Napoleão, era viúvo, não tinha filhos e já estava velho.

E o irmão dele, que lhe sucedeu, Carlos X, tivera um filho, do qual poderia provir uma descendência; mas, sendo viúvo e sexagenário, não era provável que ele tivesse outro filho. Se eventualmente o filho de Carlos X fosse assassinado, o trono passaria ao Duque de Orléans, filho do regicida, Felipe “Egalité”, que era ele mesmo um liberal de quatro costados.

Evidentemente, a transferência do trono para o Duque de Orléans indignaria os monarquistas franceses, que tinham a pior recordação de seu pai. Assim, provavelmente ele não subiria ao trono, mas sim o Duque de Enghien, que era o último príncipe do ramo da família Condé.

Esse homem brilhante, que lutara contra a Revolução na chamada Rue du Prince, foi capturado durante a noite pelas tropas de Napoleão, levado para o Castelo de Vincennes e, depois de um simulacro de julgamento, executado barbaramente à noite, num fosso aberto junto à muralha. Esse crime impressionou enormemente todos os europeus daquele tempo.

Então, há uma coluna indicando o lugar preciso onde esse crime se deu.

Já o século XIX deixou ali mais uma recordação famosa e impregnada de traços de romantismo, porque o Duque de Enghien era secretamente casado com uma princesa da Casa de Rohan. Não sei por que razões seus pais se opunham a esse casamento; por isso as bodas foram celebradas às ocultas.

Quando ele morreu, revelaram-se os documentos e a princesa, Duquesa de Enghien, ficou inconsolável, chorando. Uma viúva jovem, vertendo lágrimas por um príncipe de conto de fadas, executado por um tirano, numa noite de tragédia, dentro de um fosso, foi material para o século XIX, romântico, fazer toda espécie de choradeiras. E, na história do pranto romântico universal, esse local ficou marcado de um modo especial.

Com isso se fecha o ciclo da história do Castelo de Vincennes, assim descrita em linhas muito gerais no “Guide Vert”. Passemos agora a analisar as fotografias.

 

Continua no próximo número…

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/2/1979)

 

 

1) Guide Vert Paris. Michelin e Cia. França. 1978.

2) Sèvres, cidade situada às margens do Sena, no subúrbio sudoeste de Paris.

3) Louis Antoine Henri de Bourbon-Condé.

Silêncios e implicitudes

Em minhas mãos, emprestado por um amigo, tive um disco cuja ilustração da capa me pareceu extremamente sugestiva: era um clássico jardim francês, provavelmente de Versailles, iluminado por um brilho de luar mirífico, um luar não apenas prateado, mas lilás, como os mais entusiastas das refulgências da lua não saberiam pintar.

O dono do disco levou-o consigo. Na minha má memória procurei conservar particularidades daquela gravura que tanto me impressionara, pois sentia em mim que, na recordação daqueles detalhes, qualquer coisa se moveria e cresceria no meu espírito. Era a implicitude de algo que estava em silêncio há muito tempo em minha alma e que em certo momento eu conseguiria explicitar, talvez de modo ainda incompleto.

O que seria? O que me dizia aquele jardim, agora melancólico, e entretanto mais belo do que belo fora na época áurea de Versailles? Dir-se-ia que o Rei Luís XVI há pouco o deixou para nunca mais retornar, sendo levado preso a Paris. Como estaria o palácio no seu interior, quando seus jardins se achavam naquele estado?

De cogitações dessas, que não são diretamente lógicas, nasceu em meu espírito uma espécie de parábola, que não pretendo de nenhum modo ter qualquer valor literário. Mas, seria algo assim…

Imaginemos a primeira noite de Versailles após a saída de Luís XVI, da Rainha Maria Antonieta e do resto da corte. O palácio está fechado, alguns de seus salões ainda em ordem, outros desarrumados, revelando as marcas de uma depredação levada a cabo pelos agitadores da Revolução Francesa. A desolação reina ali dentro, enquanto lá fora os raios de um lindo luar deitam suas cintilações sobre os arvoredos e flores de um parque extraordinário, ainda intacto.

De vez em quando, num ponto qualquer do castelo se ouve o bater de portas e janelas tocadas pelo vento, para em seguida tudo imergir num silêncio como nunca houvera em Versailles, desde a sua construção até aquele momento.

Imaginemos que, nesse cenário de melancolia e abandono, ainda transitava um casal de pequenos nobres que prestavam serviços ao rei. Por razões de ofício, ali permaneceram, recompondo o que fosse possível naquela grande desordem. Terminado o que podiam fazer, eles se retiram e atravessam a célebre “Galerie des Glaces” — a Galeria dos Espelhos —  de Versailles onde, para a surpresa deles, encontram outra pessoa. É um dos músicos do palácio que, já nostálgico, antes de se retirar para sempre dali, toca num cravo uma última melodia, digamos um último minueto.

O casal se detém diante daquela cena, na galeria iluminada apenas pelo luar que atravessa as amplas janelas. Emocionados, esposo e esposa começam a dançar aos acentos da música. Eles dançam o último minueto, o músico fecha o cravo e os últimos sons de Versailles, nos seus dias de glória, se extinguem.

Na consideração desse último minueto dançado em Versailles, disto que não é senão uma parábola — pois não há notícia de que esse fato tenha jamais acontecido —, pergunto eu: é verdade ou não que se pode sentir mais diretamente o que desapareceu com o fim do “Ancien Régime”, do que no-lo diz uma narração histórica inventariando e descrevendo todos os fatos como na realidade se passaram?

Ao contrário do que talvez pensassem certos espíritos muito doutos, cuido eu que o homem capaz de imaginar uma parábola como essa não é um fantasioso. Antes, compreendeu ele um aspecto da realidade muito difícil de explicitar, de exprimir e de avaliar razoável e retamente, mas que tem seu papel na descrição, no estudo e na ponderação da realidade total.

Essa parábola nasceu depois de longos silêncios e de implicitudes fecundas as quais, tomadas de dentro de minha alma como o mel de dentro do favo, veio à luz do dia e se tornou descrição: o último minueto em Versailles. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 23/12/1990)
Revista Dr Plinio 127 (Outubro de 2008)

Idealismo ou fruição da vida?

“Se alguém quer vir após Mim, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar sua vida, a perderá; e quem perder sua vida por causa de Mim, a encontrará” (Mt 16,24-25).
Dr. Plinio sempre teve vincado em sua alma este ensinamento do Divino Mestre, e continuamente admoestava seus discípulos a serem fiéis no cumprimento deste sublime conselho evangélico.

 

Muitas pessoas têm a ideia de que suas vidas lhes foram dadas para elas mesmas, a fim de viverem confinadas dentro de seus próprios interesses e sem noção alguma do que seja viver em função de uma causa.

O fato de a pessoa se contentar inteiramente em viver sem dedicar-se a uma causa, e nem mesmo ter ideia do que seja uma causa, cria a impossibilidade de ela possuir uma alta ideia de causa. Porque não tem ideia de algo quem não compreende nem sequer o que esse algo possa ser. Por exemplo, um cego de nascença não pode ter ideia do valor de uma cor.

Choque contra o primeiro Mandamento

O indivíduo faz este raciocínio: “Eu existo. Deus de um modo ou de outro me criou, estou aqui. Para a vida ter razão de ser, é preciso que ela me proporcione as fruições que são próprias a uma vida. Se essas fruições não me forem concedidas, eu não vivi”.

A razão da vida dele é fruir. Essa ideia se choca evidentemente com o primeiro Mandamento da Lei de Deus, que é amá-Lo sobre todas as coisas.

Mas há um equívoco, um erro, dentro disso, que funciona da seguinte maneira: “Eu sirvo a Deus não fazendo o que Ele proibiu. Dos Mandamentos, três são referentes a Deus, um manda honrar pai e mãe e os outros são negativos: não pode isso, não pode aquilo… uma obrigação e seis recusas. Se eu me abstiver desses seis atos, implicitamente terei praticado os três primeiros. Portanto, o campo de batalha é esse. Posso praticar todos os Mandamentos sem pensar nos três que se referem a Deus. Então posso reduzir ao seguinte: se eu for bom para os outros, não cometer pecado contra eles, terei dado a Deus aquilo que Ele mandou. Fora disso, o próprio Deus já dispôs as coisas para que houvesse a fruição. De maneira que eu fruo, porque tudo que não seja fruição não faz parte da finalidade da vida”.

E aqui está o erro e a falta de noção do que é “causa”.

Tese, ideal e causa

Vejamos o que significa causa. Causa não é apenas um ideal, mas um ideal posto em luta, em choque, a favor do qual trata-se de dedicar e que pode trazer consequências gravíssimas, dependendo das atitudes tomadas. Há diferenças entre tese, ideal e causa.

Tese é uma certeza que se tem e se demonstra, mas, tomada em abstrato, não traz nenhum engajamento de dever. Por exemplo, alguém sustenta que se deve dormir cedo, pois isso faz muito bem à saúde, e alega diversas razões benéficas, com base na Medicina, para provar sua tese. Enfim, cientificamente compreendo que isso possa ser assim, mas isso é uma tese.

Ideal já é uma tese que desperta na pessoa uma série de atitudes, de entusiasmos, de enlevos etc., e convida para uma dedicação.

Causa é o ideal que convida não só para a dedicação, mas para o sacrifício, para o esforço.

Por exemplo, a Doutrina Católica tem veracidade; é uma tese, ou seja, isso pode ser demonstrado. Ela não é apenas um ideal, mas o ideal. Mas ela é uma causa. Quer dizer, nós devemos vê-la como sendo hoje continuamente negada, contestada, conspurcada etc., ou em perigo de o ser. Por causa disso, nossa posição deve ser de defendê-la, dedicarmo-nos a ela. E isso é um dos aspectos distintivos da Igreja: ser militante.

Portanto, isso supõe as seguintes conclusões: a pessoa nasceu não para fruir, exceto no conhecimento dessa causa. Porque o resto é um fruir completamente secundário, não vale nada.

E nenhum ideal é digno desse nome enquanto não tenha uma relação, não encontre seu mais alto significado no ideal católico.

Colocar o centro de gravidade na causa

Explico melhor o que estava dizendo anteriormente.

A atitude privatista: “Tal coisa não é pecado, é um direito meu que posso eventualmente arguir até contra Deus — porque, no fundo, chega até lá! —, ou, pelo menos, Ele pode desejar muito que eu renuncie a tal coisa, mas não deu ordem. Logo, eu me salvo não dando essa coisa para Ele”. Essa posição torna impossível compreender inteiramente o significado do ideal católico.

Poder-se-ia perguntar se o homem que cuida demais de seu interesse privado não acaba arruinado. E a resposta é: Se está entregue às coisas do mundo, não; se ele se dedica a Deus, sim! Para um homem mundano, que cuida de seu próprio interesse de modo frenético, a vida pode lhe trazer desastres, por disposições da Providência. Mas alguém que serve a Deus e se põe muito a cuidar de seu interesse particular, está selado de antemão para a ruína.

Toda a questão é de “centro de gravidade”. A pessoa deve ter a coragem de colocar o seu “centro de gravidade” na causa. Esse é o problema. Enquanto não fizer isso, à medida que o indivíduo vai fazendo renúncias, ele vai se agarrando a fórmulas cada vez mais tênues e veladas de coisas em que ele possa continuar a ser o “centro de gravidade” do que ele executa. E o grande problema é deslocar de dentro de si o seu “centro de gravidade”. No fundo, é o gosto de sentir-se a si próprio. Por causa disso, acabam surgindo nos religiosos e em outras pessoas que se dedicam a Deus, manifestações as mais desconcertantes.

Portanto, trata-se de pedir a Nossa Senhora que  o nosso “centro de gravidade” seja posto em Deus e que o apego a si próprio deixe de ser o centro da vida.

Um religioso é uma pessoa que se deu a Deus nesse “centro de gravidade”, e ficou religioso para conseguir, a rogos de Maria, que o torne completamente d’Ele. Então todo o resto — consagrar‑se só às coisas divinas, obedecer ao superior etc. — são circunstâncias favoráveis para isso, mas não são o “clou”(1) da questão.

O verdadeiro ideal é como a luz que ilumina as trevas da vida

E quando a pessoa é chamada a dedicar-se a um ideal, ela foi destacada por Deus da condição de uma pessoa privada, destacada do “privatum” para o “publicum”. Ela se deu à causa, passa a ser uma pessoa pública, a ter estatuto público nesta ordem de coisas.

Deus faz a essa pessoa uma promessa implícita na vocação: “Se tu aceitares isso, eu falarei contigo como falava com Adão no Paraíso”. É uma analogia desse gênero. Deus se comunica com a alma, dando-lhe paz, alegria etc. Entretanto, fazemos isso não meramente para conseguir a paz, a alegria, mas para estar unidos a Nossa Senhora, e por meio d’Ela unirmo-nos a Ele.

Mas pode acontecer que o indivíduo restrinja o domínio do “privatum” a uma minúscula “ilha”. Isso tem seu mérito, é verdade. Mas naquela “ilha” ele é um Robinson Crusoé sem Sexta‑Feira, e acaba tendo um apego enorme. E há mais distância entre o homem que renuncia à “ilha do apego” e o que mora na “ilha” apegado, do que entre o homem que renuncia ao mundo para ir à “ilha”.

Vamos imaginar o seguinte processo: Um homem tem o mundo inteiro, renuncia a ele e vai para a “ilha” de uma vida religiosa. Depois, renuncia à sua própria “ilha” e se dá inteiramente a Deus. O segundo lance é maior do que o primeiro!

Não pode haver situação mais cheia de ânimo, de maior “lumen”, do que a de uma pessoa que resolve levar seu ideal até às últimas consequências, ainda que tenha de sofrer muito sacrifício para a realização do seu ideal. Porque o ideal em si, a presença dele, torna tudo leve, é a luz que ilumina todas as coisas do mundo.

Pode-se tomar o início do Evangelho de São João(2) e aplicá-lo ao ideal. Ele se aplica ao pé da letra, de tal maneira que Nosso Senhor Jesus Cristo é a personificação de todos os ideais santos, e todo ideal santo é um reflexo do Divino Salvador. Pode-se dizer que o ideal verdadeiro é a luz que brilha nas trevas da vida humana, e as trevas não conseguem abarcar esse ideal enquanto a pessoa o tem, enquanto está unido a ele.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências  de 29/3/1974 e 22/3/1980)

 

1) Do francês: prego; o ponto alto. Neste segundo sentido, indica o ponto central, o aspecto mais importante de algo.

2) “A luz brilha nas trevas, e as trevas não conseguiram dominá-la.” (Jo 1,5)