A “Carta circular aos Amigos da Cruz” – V Nossas obrigações para com a Cruz

Na seqüência de seus comentários ao opúsculo escrito por São Luís Maria Grignion de Montfort, Dr. Plinio ressalta esta grave advertência do santo: quem quiser ser um autêntico Amigo da Cruz, deve fugir do mundanismo que o conduzirá por um caminho de perdição, oposto ao da perfeição e santidade para o qual foi chamado.

 

São Luís Grignion de Montfort assim continua a sua Carta:

Sois por vossas ações, meus queridos Amigos da Cruz, aquilo que o vosso grande nome significa? Ou pelo menos tendes vontade e desejo autênticos de assim vos tornardes com a graça de Deus, à sombra da Cruz do calvário e de Nossa Senhora da Piedade? Entrastes no verdadeiro caminho da vida (Pr 6, 23; 10, 17; Jr 21, 8) , que é o caminho estreito e espinhoso do Calvário? Não estareis, sem pensar nisso, no caminho largo do mundo, que é a via da perdição? Sabeis que existe um caminho que parece ao homem reto e seguro, e que conduz à morte (Pr 14, 12)?

Justificadas apreensões de um Santo

Nestas perguntas transparece intensamente o espírito de São Luís Grignion. Quer dizer, de um lado ele toma em consideração os Amigos da Cruz como pessoas eleitas por Deus para um alto chamado. De outro lado, porém, ergue-se diante delas a malícia do século, e à vista das condições em que estas pessoas vivem, São Luís manifesta suas  apreensões. Donde formular questões como esta: “sois verdadeiros Amigos da Cruz?”

Ou seja, fácil é alguém tomar o nome de Amigo da Cruz, mas igual facilidade há para deixar de sê-lo. Portanto, trata-se de uma preocupação cujo fundamento é evidente. Então, insiste: “Pelo menos tendes verdadeiro desejo e vontade de assim vos tornardes com a graça de Deus”, etc.?

A formulação empregada por ele é muito apropriada e fina, porque um verdadeiro Amigo da Cruz é alguém que, em primeiro lugar, está em ordem com seus deveres para com a Santa Cruz. Mas também é aquele que possui ao menos um desejo autêntico de estar em ordem a esses deveres. Poderá ter suas faltas, suas fraquezas, mas almeja atingir a plenitude de entrega própria ao seu chamado. Este será considerado igualmente um verdadeiro Amigo da Cruz.

Dois graus de amor à Cruz

Percebe-se aqui dois graus de amor à Cruz, assim como pode haver dois graus de perfeição religiosa no cumprimento de uma vocação.

Antes de tudo, tal perfeição é a inteira conformidade do membro de uma ordem com sua respectiva regra. Contudo, pode dar-se o caso de que algum religioso, ainda neófito, não tenha alcançado essa conformidade; ou, por desventura, terá retrocedido na sua trajetória rumo àquela perfeição. Mas, se ele demonstrar o desejo de se tornar um verdadeiro religioso e de adquirir um elevado grau de observância, ele ainda se achará no seu lugar próprio dentro da ordem. Quer dizer, há para com ele, da parte de Deus e dos seus superiores, uma atitude de misericórdia, de compaixão, e até de compreensão, a par das graves exigências que a regra lhe impõe.

O mesmo se aplica ao Amigo da Cruz. Há aquele que se entregou por completo ao amor e ao serviço da Cruz para com ela se identificar; e há aquele que, por lacunas espirituais, ainda não alcançou essa plenitude de devoção, mas a deseja atingir. Então, olhando para estes últimos, São Luís Grignion escreve: “Não estareis, sem pensar, no caminho largo do mundo, o caminho da perdição? Sabeis bem que existe uma via que parece reta e segura, e na realidade conduz à morte?”

A expressão “sem pensar”  é curiosa,  e insinua bem o que poderia ser uma culpa inconsciente do Amigo da Cruz. Ora, o caminho do mundo é tão agradável, e o homem de tal maneira se habitua ao que lhe compraz, que ele por irreflexão acaba cometendo uma falta. Esta, embora não seja inteiramente consciente — e, portanto, não reúna as condições próprias ao pecado mortal — é um passo em falso. E a sucessão de faltas e concessões inconscientes, acabam desviando a pessoa para longe do caminho verdadeiro. Daí a nota da prudência pastoral, da vigilância de São Luís de Montfort em relação a esses Amigos da Cruz.

Censura aos que cedem à concupiscência do mundo

Continua ele:

Distinguis bem a voz de Deus e de sua graça, da voz do mundo e da natureza? Escutais a voz de Deus, nosso Pai, que depois de ter dado a sua tríplice maldição a todos que seguem as concupiscências do mundo: Ai, ai, ai dos habitantes da Terra (Ap 8, 13), grita‑vos amorosamente, estendendo‑vos os braços: separai‑vos, meu povo (Nb 16, 21). Separai‑vos, meu povo escolhido, queridos Amigos da Cruz de meu Filho, separai‑vos dos mundanos, malditos por minha majestade, excomungados por meu Filho (Jo 17, 9), e condenados por meu Espírito Santo (Jo 16, 8-11).

Importa compreender bem a razão dessas fortes censuras, dessa maldição tão pesada sobre o mundanismo.

Lembremo-nos de que, na linguagem da vida espiritual, o apego e o amor desregrado às coisas do mundo é, ao lado do demônio e da carne, uma das concupiscências que inclinam o homem para o pecado e o afastam de Deus. Portanto, o mundanismo assim entendido sempre foi algo ruim, ao qual o católico desejoso de alcançar a santidade deve combater.

No tempo de São Luís Grignion, o mundanismo ainda se revestia de uma aparência elevada e nobre, característica do “Ancien Régime” prévio à Revolução Francesa, mas que preparou largamente a irrupção desta no cenário europeu. Se tomarmos gravuras que representam burgueses dos séculos XVI e XVII, veremos que são ainda pessoas sérias, compassadas, dignas. Não era uma burguesia mundana, e tinha conservado toda aquela circunspeção dos antigos tempos. Pelo contrário, considere-se um burguês das vésperas da Revolução Francesa, e já não se o distingue mais do nobre, não só porque os trajes se igualaram, mas também por causa da atitude. Nivelaram-se. E o mundanismo revolucionário que impregnava as cortes, irradiou-se para as outras camadas da sociedade, putrefazendo-a por completo.

Em nossos dias, podemos dizer que o mundanismo se multiplicou pelo mundanismo, e as suas seduções, atiçadas por obra do demônio, são ainda mais perniciosas. Donde as censuras de São Luís Grignion conservarem toda a sua atualidade, e são perfeitamente aplicáveis aos que se entregam ao mundo, pois estes romperam com as amarras que os uniam a Deus Nosso Senhor.

Se desejamos ser autênticos Amigos da Cruz, devemos limpar nossas almas de qualquer laivo de mundanismo, de qualquer apego ao que há de frívolo, de laicista e de fundamentalmente contrário à sabedoria, nos costumes do mundo.

Contagiabilidade da virtude contra o vício

Continua São Luís Grignion:

Tomai cuidado para não vos sentardes em sua cadeira toda empestada, não sigais os seus conselhos, nem mesmo pareis em seu caminho (Sl 1, 1).

Essa cadeira toda empestada de que fala São Luís é uma referência ao Salmo 1, onde o salmista exclama: “Feliz o homem que (…) não se assenta entre os escarnecedores”, ou, segundo outras traduções, “que não toma assento na cátedra de corrupção dos pecadores”. Esta última expressão me parece ainda mais vigorosa. Quer dizer, trata-se da cadeira de onde o pecador ensina o pecado e, de certa forma, é a própria sede do pecado, na qual este se instala e aí faz luzir sua “glória”.

Fugi da grande e infame Babilônia (Is 48, 20; Jr 50, 8), não escuteis outra voz e não sigais outras pegadas senão as de meu Filho bem-amado, que vos dei por vosso caminho, vossa verdade, vossa vida (Jo 14, 6), e vosso modelo (Mt 17, 5).

Vemos aqui uma espécie de demolição ardente, levada a cabo por São Luís Grignion, contra toda a sedução exercida pela sociedade frívola do seu tempo. Ele queria os Amigos da Cruz afastados desse mundanismo.

Por outro lado, é também interessante notar que no meio dessa sociedade frívola surgiram outros movimentos de autêntica piedade católica, que reagiram a seu modo contra a decadência generalizada do ambiente em que viviam. Creio que tal reação se deve ao princípio da contagiabilidade da virtude, considerado por nós em exposição anterior. Ou seja, na ordem sobrenatural há reversibilidades, reciprocidades, interações pelas quais uma virtude séria e profunda praticada de um lado repercute no outro. Assim, havendo na Vandeia ou na Bretanha daquela época, muitos genuínos Amigos da Cruz, efetivamente separados do mundo, ainda que não conhecessem os Amigos da Cruz de Versailles, aqueles reforçavam a possibilidade de perseverança, de santificação e de vitória destes últimos no meio dos deleites e das delícias da corte mundana.

O exemplo de Maria Teresa d’Áustria

Recordo-me, a esse propósito, da figura da grande imperatriz Maria Teresa d’Áustria. Não se tratava de uma santa, mas era uma boa senhora católica, com o padrão mínimo de algo do qual a santidade é a expressão mais elevada. E ao considerar muitos aspectos de sua rica personalidade, poderemos ver quanta retidão, compostura, destreza, e quanta dignidade assentada sobre o trono, em meio a uma corte que, se não era a primeira, era das mais importantes do mundo, a do Sacro Império Romano Alemão.

Creio que essa situação só se tornava possível por esse trabalho de subestrutura da virtude que se contagiava entre os bons de lugares diferentes. E em seguida notava-se a recíproca: a Cruz levantada no mais alto degrau da corte, repercutia sobre todo o país e nas camadas profundas da população, gerando novos Amigos da Cruz. Esses são os grandes mecanismos por onde o amor de Deus se afirma, se multiplica e conquista as almas.

Abraçar a Cruz em união com o Divino Redentor

Prossegue São Luís Grignion:

Não escutais esse amável Jesus que, carregando sua cruz, vos conclama: vinde após Mim (Mt 4, 19), o que me segue não anda nas trevas (Jo 8, 12); tende confiança, Eu venci o mundo (Jo, 16, 33)?

Conforme o ensinamento de todos os grandes autores, São Luís Grignion acrescenta que a Cruz só é suportável quando carregada em união com Nosso Senhor. A Cruz concebida esquematicamente, apenas de modo teórico, aterroriza o homem e este foge dela. O único modo de a Cruz ser atraente, é considerar Aquele que nela se acha pregado e d’Ele receber as forças necessárias para aceitá‑la.

É palavra do próprio Jesus: “Quando Eu for elevado, atrairei a mim todas as criaturas”. Ou seja, o Divino Crucificado é o verdadeiro encanto da Cruz, o que realmente atrai as almas para ela. E não apenas atrai, como lhes concede as graças e o vigor indispensáveis para carregá-la. Com os olhos fitos n’Ele, pensando no seu Sagrado Coração e no precioso Sangue que por nós derramou, na sua agonia e morte, é que adquirimos forças para segui-Lo.

E não nos esqueçamos de que essas graças e essas forças nos são concedidas por intermédio de Maria Santíssima, a Medianeira Universal, que se encontrava aos pés da Cruz, com seu Coração Imaculado transpassado e coroado de espinhos.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 17/6/1967)
Revista Dr Plinio 116 (Novembro de 2007)

 

O ideal de Cavalaria, plenitude do espírito católico – II

O que diferencia o cavaleiro das outras vocações existentes na Igreja? Missionários dos bons tempos se expunham à morte pelo contágio de doenças ou se arriscavam a serem comidos pelos selvagens. São pessoas admiráveis, dentre as quais muitas morreram mártires e foram canonizadas. Entretanto, o cavaleiro representa a Deus a um título especial ao lutar por Ele e pela Santa Igreja, caminhando com entusiasmo de encontro à morte.

 

Há também outra beleza que devemos considerar: a da luta. Morrer é belo. Os mártires, as vítimas da Revolução Francesa morreram. Oferecer-se, portanto, como vítima é lindo! Um doente na cama pode oferecer-se; Santa Teresinha do Menino Jesus ofereceu-se como vítima expiatória. Contudo, lutar tem uma beleza especial.

Dois modos pelos quais Deus associa o homem à sua obra criadora

Deus associa o homem à sua obra criadora de dois modos: um é pela paternidade espiritual ou física. O que é paternidade física todos sabem, não é necessário explicar. A paternidade espiritual se dá quando se gera alguém para a vida eterna; uma pessoa traz outra pelo apostolado para ela pertencer a Nossa Senhora e assim preparar-se para o Céu.

Há, entretanto, outro modo pelo qual Deus nos associa à sua obra criadora. Cabe a Deus tirar a vida de alguém. Porém, quem legitimamente mata outrem que, segundo o plano de Deus, deve ser morto, exerce uma prerrogativa divina.

Por exemplo, um homem é um assassino e deve ser morto num ato de legítima defesa ou porque a lei mandou que fosse executado. O Estado tem o direito de mandar matar, nas ocasiões em que é justo, bem como qualquer pessoa possui o direito de matar na sua própria defesa ou de terceiros. Assim, tem-se o direito de matar na defesa da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, nos casos em que a Moral católica permite(1). Portanto, quando se combate em nome da ira de Deus e movido por uma cólera inspirada pela graça, há uma beleza especial no exercício dessa justiça. Então, o cavaleiro que vai à guerra não só disposto a morrer, mas a matar para que a vida espiritual, sobrenatural se espalhe sobre a Terra, também representa a Deus a um título especial, e exerce uma missão divina.

Compreende-se por que os nossos antepassados julgavam uma tal maravilha um cavaleiro entrar, por exemplo, num lugar onde havia cinquenta maometanos e, com várias espadagadas, decapitar a todos. Por que era uma beleza? Porque os maometanos estavam atacando terras católicas ou impedindo a pregação do Evangelho.

Há certos trovões que se propagam por várias séries de explosões até uma plenitude final. O trovão é lindo porque dá a impressão de uma divina vontade de arrasar o que não deve existir, e que vai derrubando obstáculo por obstáculo até destruir tudo. É uma sinfonia! Para mim, mais bonito do que o trovão, só o órgão. São as duas supremas belezas em matéria de sons. Sou um entusiasta da trovoada. Qualquer trovãozinho que eu ouça, acompanho com gosto sua harmonia cheia de estampidos.

Esta é a alma do guerreiro quando ele, movido por uma cólera santa, mata um, outro e, ao fim do dia, matou muitos. Ele está como uma trovoada que descarregou toda a sua eletricidade, e repousa plácido depois porque a sua ira santa foi preenchida. É o repouso de um guerreiro depois de ter combatido, ter raspado pela morte, na véspera de outra batalha onde ele poderá morrer. Ele está continuamente com esta familiaridade com a morte que faz a beleza da vida do guerreiro, porque é a familiaridade com Deus.

Então, o que diferencia o cavaleiro das outras vocações que há na Igreja? Tomem, por exemplo, padres, freiras dos bons tempos que se expunham à morte com contágio de doenças; outros que, fazendo as missões, se arriscavam a serem comidos pelos selvagens. Todas essas pessoas são admiráveis, dentre as quais muitas morrem mártires e são canonizadas. Que o sangue delas se levante e peça ao Céu perdão e graças para nós.

Desponsório com o risco, o esforço e a morte

Entretanto, o cavaleiro não é o que se resigna à morte, mas aquele que caminha de encontro a ela com entusiasmo; não se resigna com o perigo, mas tem fome dele; não se resigna à luta, anseia por ela. Esse é o cavaleiro, aquele que, na hora do risco e da batalha, como que sente a ebriedade santa do contato com Deus e se lança.

Em certo sentido, o cavaleiro pode ser considerado o artista da luta, pois gosta da pugna bela, nobre, elevada. Por isso ele se orna para o combate, segue belas regras para lutar e morre sentindo ter feito uma obra de arte. Na canção de gesta, Roland, morrendo, sabe que no horror de sua morte está realizando algo que despertará uma página de literatura para todos os tempos. E, antes de ele morrer, aparece São Miguel Arcanjo a quem o cavaleiro moribundo estende a sua luva em sinal de vassalagem, porque São Miguel é o chefe do que eles chamavam a Cavalaria Celeste, composta pelos Anjos que expulsaram os demônios, lançando-os no Inferno. Roland se sente um com os espíritos celestes, seus irmãos. Ele é, na Terra, o grande exterminador e ordenador, como foi São Miguel Arcanjo no Céu. Esta alegria, este entusiasmo, esta espécie de senso artístico da luta, do risco e da morte caracteriza o verdadeiro cavaleiro.

Compreende-se, então, porque o cavaleiro era alçado, habitualmente, à condição de nobre, pois é incomparavelmente mais elevado e digno quem possui esse espírito do que quem se entrega a outras atividades lícitas, necessárias, mas que não têm esse contato com o Divino, como, por exemplo, o comércio. Vender cebolas ou tamancos é uma coisa indispensável para a boa ordenação do mundo; fabricar vassouras ou esparadrapos é muito bom, sobretudo, pode ser muito lucrativo, não contesto. Mas contabilizar grandes lucros, embora seja bom e honesto, não é o mais alto modo de se unir a Deus. Essa espécie de desponsório com o risco, com o esforço extremo e com a morte é o que mais une a Deus. Isto é a Cavalaria.

Se ultrajado pelo inimigo, o cavaleiro mantém a cabeça alta, revida e continua a luta

Em nossa época, a luta não se dá só nem principalmente no campo físico. O principal da guerra não é o esforço material, mas o intelectual. Atualmente se conquistam mais povos pela guerra psicológica do que pela guerra militar. As maiores conquistas que o comunismo fez não foram pelas armas, mas pela velhacaria. Por exemplo, como o comunismo se introduziu em toda a Europa Oriental? Foi mediante concessões vergonhosas de Roosevelt, no Tratado de Yalta. Como o comunismo conseguiu conquistar a China e depois o Vietnã? Foram concessões que Marshall fez aos comunistas chineses, entregando a China numa bandeja. Como o comunismo vai se difundindo pelo mundo? Através da conquista das almas por meio do processo revolucionário descrito em meu livro Revolução e Contra-Revolução.

Contra essas formas de conquistas psicológicas, ou há uma conquista também psicológica ou não adianta nada. Então, nós somos contra o comunismo que brande ideias, como eram os cruzados contra os maometanos que brandiam sabres. Os maometanos não usavam sabres e lanças? Nossos antepassados também. O comunismo usa ideias, nós usamos ideias. Ele faz a Revolução, nós fazemos a Contra-Revolução.

Digo agora uma palavra sobre o risco. Há uma coisa que é para o homem como a morte, e às vezes ele enfrenta a morte para evitar isso: é o descrédito no meio dos seus. Deixar de ser considerado, benquisto, admirado, ser odiado, perseguido, desprezado exige muitas vezes mais coragem do que a luta armada. Quando há uma guerra, muitos vão para frente combater de medo que, se recuarem, na retaguarda riam deles e digam que são covardes. Isso quer dizer que o sujeito enfrenta a bomba por medo do riso. Portanto, em última análise, a risada dá mais medo ao homem do que a bomba.

De nós é exigida esta coragem, bela como a de quem enfrenta a morte. Se o homem tem mais medo do ridículo do que da morte, enfrentando o ridículo ele faz uma imolação a Deus mais preciosa do que entregando a vida. Estar, portanto, continuamente raspando-se no ridículo, não se incomodando com a opinião dos outros, isto é ser cavaleiro. Quando o homem faz isto e compreende que se une a Deus extraordinariamente por esta forma, e tem o gosto de ser vilipendiado, ultrajado, de manter a cabeça alta, de revidar e de lutar, ele é um perfeito cavaleiro.

Nosso Senhor não recuou um instante, mas caminhou para a frente continuamente

Comecei esta luta em condições muito desfavoráveis, porque só vim a compreender que ela era bela mais tarde. Era menino e percebi que, nos ambientes dos outros meninos, o que eu tinha de qualidade era objeto de sarcasmos, e que bastava assumir certos defeitos que seria causa de admiração. Mas resolvi seguir a mim mesmo, fiel às qualidades que eu tinha; não compreendia a beleza que havia nisto. Até me lembro de ter pensado o seguinte: “Todo mundo acha isto feio, quem sabe se é mesmo. Nesse caso, faço uma coisa feia, mas enfrento todo mundo e vou para a frente, porque ser de outra maneira eu não quero”.

No praticar uma coisa que talvez fosse feia por amor a um ideal, eu o fazia do modo mais belo possível. Eu me lembro de que pensava com meus botões: “Mas que coisa horrível ser desconsiderado assim! Veja tal menino de boca porca, de maus costumes que empolga a aula dizendo palavrões, e como eu faço um papel apagado, mole, bobo, com a minha perpétua observância da pureza, das boas maneiras, da distinção”. Mas eu refletia: “A pureza, as boas maneiras, a distinção valem isto; assim eu quero ser, ainda que me rachem.” Eu era, assim, uma espécie de bichinho se agarrando à tábua de salvação a todo custo. Ainda não percebia que essa tábua de salvação tinha um nome, era a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Quando mais tarde percebi, fiquei maravilhado, mas o passo estava dado, eu tinha entrado na luta.

Nosso Senhor Jesus Cristo nos é apresentado sempre enquanto padecendo, suando Sangue no Horto das Oliveiras, caminhando para a morte com uma tristeza enorme; e assim deve ser, porque devemos ter consciência, tomar na devida conta os sofrimentos infinitos que Ele padeceu por nós.

Mas, de fato, há outro aspecto da atitude de alma de Nosso Senhor Jesus Cristo durante a Paixão, que é o seguinte: Ele não recuou um momento, caminhou para a frente continuamente. Mesmo quando caiu sob o peso da Cruz, foi para levantar de novo e poder chegar até o alto do Calvário; não teve uma hesitação.

Eu tenho a impressão de que se devêssemos olhar, numa Via Sacra, as pegadas sangrentas de Nosso Senhor no chão, um dos aspectos por onde Ele poderia ser visto era cambaleante, fazendo um zigue-zague, quase caindo ao peso da Cruz, mas não largando. Outro seria, pelo contrário, em linha reta: “Eu vou para a frente porque quero!” Uma vontade serena, majestosa, mas inteiramente inquebrantável, até quando encontrou Nossa Senhora e viu tudo quanto Ela estava sofrendo pela resolução d’Ele de morrer. Por fim, no alto da Cruz, aquela palavra de energia suprema: “Consummatum est”: foi feito tudo o que era preciso fazer.

Quando foram prendê-Lo, no Horto das Oliveiras, Ele perguntou:

— A quem buscais?

— A Jesus Nazareno – responderam os algozes.

— Sou Eu – afirmou Jesus. E todos caíram no chão.

Seu poder e sua majestade eram tais que Nosso Senhor dissera pouco antes a São Pedro que, se quisesse, mandava vir legiões de Anjos para libertá-Lo (cf. Mt 26, 53), mas Ele não queria. Portanto, tudo aquilo o Divino Redentor estava sofrendo porque Ele queria. Eis o Cavaleiro!

O mais belo de todos os martírios

Terminada esta exposição, poderia surgir a pergunta: “Tudo isso é bonito, mas como me portar quando chegarem para mim o risco e a morte? Não posso fazer uma espécie de injeção de tudo quanto ouvi e meter dentro de mim para sair um herói. O que vou fazer para ser fiel a essas ideias?”

Aqui vem a doutrina da verdadeira vida espiritual. Se eu, no meu ideal, sinto-me chamado para isso, mas na realidade não tenho forças, devo pedi-las para estar à altura do meu ideal. Para isto temos a oração, os Sacramentos, a meditação que nos elevam até esse ponto. Pode ser que alguns cheguem entusiasmados à hora do sacrifício, outros com medo, mas vencendo o próprio medo e compreendendo a beleza de vencê-lo para lutar.

Cito um personagem que foi, sem dúvida, muito corajoso, mas não era nem de longe um cavaleiro. Basta dizer que era um protestante. Protestantismo e Cavalaria são coisas que se excluem, pois esta é um predicado exclusivo da Religião Católica. Do nosso lado há Cavalaria, do lado deles há assassinatos. Todas essas luzes são da Igreja Católica e de mais nada no mundo. Mas, enfim, o Rei da França, Henrique IV, entrou numa batalha com muito medo e sentia até seu esqueleto tremer. Então de espada na mão ele gritou: “Treme velha carcaça…”, mas ele não queria ceder e lutou durante a batalha inteira. Quiçá na hora do medo tenhamos que dizer “treme velha carcaça”, mas nós vamos para a frente. É preciso confiar em que a graça nos ajude nesse momento.

O martírio mais belo que conheço – depois de Nosso Senhor Jesus Cristo, que é super-excelso e não comparável com nada – foi o de Santo Inácio de Antioquia. Ancião, carregado de ferros, entrou na arena e, diante dos leões que rugiam, ele disse: “Leões, vinde a mim! Triturai-me como se tritura o trigo para ser como a Hóstia de Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu serei triturado e serei um com Ele”. Os leões vieram e ele foi estraçalhado e morreu. Isto, para mim, é a última palavra, o auge da beleza!

Cavaleiros conscientes de todo o esplendor que o martírio trazia consigo

Entretanto, havia duas espécies de mártires. Estive no Coliseu, em Roma, onde me mostraram o lugar do cárcere no qual ficavam os católicos a noite inteira, perto de outro compartimento onde estavam as feras rugindo. Os cristãos sabiam que, quando amanhecesse, tinham raiado para eles as últimas horas, e seriam levados para a arena onde aquelas feras iam devorá-los.

Imaginem, às três horas da manhã, solidão no Coliseu, aquele mármore muito branco, resplandecente, de uma alvura que para quem vai morrer tem quase o aspecto de um esqueleto ressequido, sobre o qual o trágico luar derramava uma tênue luminosidade; a sós, numa gaiola, os futuros mártires se preparam para morrer e têm pânico de apostatar na hora, porque era só fazer um sinal nesse sentido para serem salvos.

De repente, uma hiena uiva e a pessoa pensa: ela está com fome de mim, esse bicho amanhã vai devorar as minhas entranhas. Quando chega a manhãzinha, as feras vão acordando e uivando mais. O circo vai se enchendo de gente, muitos passam perto dos católicos, cospem neles, atiram pedras, dão risadas dizendo: “Vocês vão morrer mesmo…”

A certa hora, o Sol já está todo levantado e entram os barulhos familiares da cidade de Roma: os vendedores que oferecem suas mercadorias, carros que passam, é a vidinha de todos os dias que está ao alcance deles. É só dizer “eu quero apostatar” para terem tudo aquilo que eles estão prestes a deixar para entrar na arena e morrer.

Alguns soluçavam de medo, iam para a arena tremendo. Jogavam-se e as feras caíam em cima deles. Eram heróis tanto quanto Santo Inácio de Antioquia, talvez merecendo menos admiração.

Eram cavaleiros verdadeiramente, porque sentiam a beleza do seu ato e queriam consumá-lo, conscientes de todo o esplendor que o martírio trazia consigo. Evidentemente, para isto é preciso receber uma graça especial. Sem essa graça a pessoa não enfrenta. Mas é preciso pedi-la desde já. Por isso, em todas as Ave-Marias há esse pedido final: “Rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte. Amém”. Quem vai ter coragem nessa hora? Sem uma graça especial não se tem.

Papel extraordinário da virtude da confiança

Há graças especiais de luta e de morte também, mas peçamos essa graça, tenhamos a intenção de dar à nossa vida e à nossa morte esse sentido de beleza, e nós obteremos. Porque quem pede alcança.

Conto-lhes um fato extremamente gracioso. Havia uma jovem romana que foi condenada à morte por ser cristã. Mas ela tinha especial pavor de não sei de que bicho – digamos que fosse hiena –, tinha pânico. Então, ela disse a Deus o seguinte: “Eu consinto em ser morta, mas fazei com que não seja por uma hiena”. Os outros cristãos, católicos, que estavam assistindo ao martírio nos bancos do Coliseu, viram entrarem também hienas no circo, mas nenhuma delas atacou a jovem, que foi morta por um tigre ou um leão. Quer dizer, foi uma condescendência da Providência.

Termino com um caso para verem como esse conceito de luta e de martírio é complexo. São João Evangelista não foi mártir. Levado para ser morto num caldeirão de azeite em ebulição – uma morte tremenda! –, entrou no caldeirão e saiu do outro lado ileso, e por vontade de Deus o deixaram ir para casa.

Imaginemos que São João tenha ido para o caldeirão com algo da graça que dizia dentro dele: “Tu não vais morrer”. E ele pensasse: “Mas não tenho coragem de morrer agora”. E a graça responderia dentro da alma dele: “Tu não tens coragem porque não chegou a hora de morrer. Tu deves ter confiança de que não morrerás”. Então, ele mete o pé dentro do caldeirão, depois o corpo inteiro, certo de que não será queimado. Contra o paradoxo, atravessa o caldeirão, apoia-se do outro lado e sai.

Manter esta confiança dentro do caldeirão não é uma força de alma talvez maior do que a do martírio? Em nossa vida a virtude da confiança tem um papel extraordinário. Muitas vezes nós estamos como que derrotados e liquidados e temos que fazer como São João: confiar que sairemos do outro lado do caldeirão sem nos acontecer nada. Este é um outro lado do heroísmo e de coragem terrível. Às vezes, confiar é mais duro do que se entregar. Mas não temos o direito de ceder, e é preciso confiar.             v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/8/1974)
Revista Dr Plinio 260 (Novembro de 2019)

 

1) Cf. Suma Teológica, II-II q. 40, a. 1; q. 64 a. 2-3. Catecismo da Igreja Católica, n. 2264-2265.

 

Ornato, elemento fundamental da vida

Cultivar e promover o ornato como sendo uma expressão da infinita beleza do Criador é, segundo Dr. Plinio, valioso serviço que se presta ao próprio Deus. Em suas várias formas, o adorno torna a vida terrena mais suportável; é o verniz que “enfeita as condições por vezes árduas da existência humana exilada do paraíso”.

 

Não será exagero afirmar que, em diversos aspectos do mundo contemporâneo, a beleza do ornato cedeu lugar à insipidez do prático.

Elementos da “doçura de viver”

Nesse sentido, surpreendeu-me a objeção que ouvi, certa vez, contra os sabores dos cremes dentais. Por trivial que seja o exemplo, vem a propósito para ilustrar nosso assunto. Com efeito, censurava o objetante o fato de os produtores de dentifrícios introduzirem elementos variados para torná-los mais agradáveis. “Pura demagogia”, dizia ele, “pois bastaria que o creme tivesse as propriedades indispensáveis para limpar os dentes e precavê-los contra as cáries. A mistura de sabores visa unicamente explorar a sensibilidade degustativa das pessoas, levando-as a usar mais do que o necessário e, em conseqüência, aumentar a venda de seus produtos. Isso é uma fraude.”

Objeção, como disse, surpreendente, pois a maioria das pessoas, ao escovar seus dentes, não se pergunta porque a pasta é agradável e lhe deixa o hálito saudável. Se fosse o contrário, sim, estranhariam.

Penso eu que, no fundo, essa questão e outras semelhantes se relacionam com o que se chama em francês “la douceur de vivre” — a doçura de viver.

Apóstolos do ornato, apóstolos de Deus

Em última análise, se um fabricante de pasta de dente encontrasse um meio de torná-la mais saborosa, agiria bem, independente do lucro comercial, aliás legítimo, que o produto lhe granjeasse. Porque há um feitio de almas chamadas pela Providência a fazer parte dos servidores do ornato. Elas se comprazem em ornar a existência humana e até são capazes de fazer sacrifícios pessoais para ver a vida adornada enquanto adornada.

Essa atitude tem sua mais alta razão de ser, se entendemos o ornato como uma expressão de algo que reflete a Deus. Duas quantidades que refletem uma terceira, refletem-se entre si. Ora, o ornato reflete uma coisa; esta reflete a Deus; logo, o ornato reflete a Deus. Portanto, ser um apóstolo do ornato é ser um apóstolo de Deus. Uma ilação, a meu ver, irretorquível.

Polidez no trato social, antegozo do convívio no Céu

Isso que se diz de uma simples pasta de dente aplica-se a outros e superiores aspectos da vida humana. Por exemplo, à polidez nas conversas e no trato social. Sem dúvida alguma, estes se tornam mais agradáveis e belos com a polidez.

Quem ama a Deus, ama as manifestações do ornato no convívio dos homens, considerando-o inserido na ordem desejada pelo Criador. Assim, uma pessoa de influência que introduza nos costumes sociais de seu ambiente mais uma forma de ser amável, de fato está servindo a Deus.

Alguém poderia, com acerto, observar que a gentileza no trato entre os homens é uma decorrência da virtude da caridade que devemos praticar uns em relação aos outros. Não há dúvida. Porém, não se pode omitir que é também ornato, que deve ser amado enquanto tal. Mais ainda. A polidez é ornato da caridade, e torna a vida social agradavelmente suportável, embeleza-a e a faz se assemelhar ao relacionamento dos bem-aventurados entre si e com Deus, no Céu. É, portanto, nesta Terra, um antegozo do convívio no Paraíso.

Importância capital do ornato na vida

Vemos, por esses breves conceitos, como o ornato é de imensa importância para o homem enriquecer seu espírito e crescer no seu amor a Deus.

O ornato realça a beleza das coisas, assim como o verniz salienta a nobreza e a qualidade de uma madeira. Tomemos um móvel de mogno, por exemplo. Na sua aparência rústica, ele terá uma riqueza pouco ou indefinidamente notada. Recebe uma demão de verniz, e sua prestigiosa feição confere categoria ao ambiente.

Assim é o ornato, verniz do “pulchrum”, do belo, que enfeita as condições por vezes árduas da existência humana exilada do Éden. O enfeite ornamental, a arte decorativa, são, nesse sentido, elementos fundamentais da vida neste mundo.

Nosso Senhor Jesus Cristo, o ornato da criação

Para concluirmos essas considerações, poderíamos nos voltar para a divina figura de Nosso Senhor Jesus Cristo, ornamental por excelência, o ornato da criação.

Quem lograsse fazer uma análise psicológica d’Ele, deduziria uma série de princípios de estética e de ornamento que abrangeriam toda a ordem do universo. Por exemplo, a Sagrada Face: é um compêndio da insondável beleza de Nosso Senhor e, portanto, do “pulchrum” de tudo quanto foi criado.

E para atingirmos um píncaro de reflexões no qual seria difícil de se manter, pensemos na Transfiguração do Divino Mestre no alto do Tabor, a sua “esplendorização”, a manifestação do que havia n’Ele de belo, de bom e de verdadeiro, o apogeu da expressão do ornato revelado aos homens. É dizer tudo. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 17/2/1989)
Revista Dr Plinio 128 (Novembro de 2008)

Harmonioso cântico de matizes

A Sainte Chapelle (Santa Capela), mandada construir pelo rei São Luís de França, é um desses tesouros da arte católica, inspirado por uma Fé tão rica e tão florescente, que sempre encontramos  algo de novo a se dizer e se comentar a respeito dela.

Por exemplo, acerca de seus magníficos vitrais.  Quando os conheci, tive a impressão de estar ouvindo um fabuloso coro cantando, no qual cada vitral era uma voz, e que entoava uma melodia  entendida de maneira peculiar por mim, assim como era compreendido de modo diverso pelas diferentes almas que o “escutavam”. E como é o próprio da interlocução, deram-me oportunidade de  discernir, no meu interior, mil virtualidades, anseios, sedes que eu tinha e que só percebi no momento de “beber a água”, ou seja, “ao ouvir” aquele cântico feérico dos vitrais da Sainte Chapelle.

Supérfluo dizer que me encantaram ao ponto do indizível. A partir desse momento, ao pé da letra, vários espaços de minha alma começaram a viver. Que lembranças guardo do que eles me diziam  com suas “vozes” que não emitiam sons, mas fabulosos coloridos? Eu não imaginava que daquelas cores — digamos, de um azul, de um vermelho, de um verde, etc. — fosse possível obter tantos matizes, finos, suaves, fazendo aparecer o que essas cores têm de mais delicado, sem se transformarem em cor-de-rosa, azul claro ou verde-água triviais que por aí existem.

Por outro lado, desmentiam para mim uma ideia primitiva, segundo a qual essas cores muito delicadas só eram obteníveis com matérias-primas raras e com elas apenas se podiam pintar  superfícies pequenas, deteriorando-se logo. E que, portanto, havia um irremediável divórcio entre a grandeza e aquela forma de delicadeza matizada que estava lá.

Ora, diante de mim reluziam vitrais enormes, apresentando matizes de extrema suavidade, sem serem homogêneos, com uma agradável variedade de tons dentro de cada painel. E então este  instantâneo da delicadeza fixada, tornada grandeza, e o débil que se apresenta rei, deu-me a impressão de uma vitória da alma justa, de uma vitória de tudo quanto é frágil, reto, inocente, sobre o  que é ruim, uma impressão de fato extraordinária, que produziu no meu espírito um “tressaillement” de contentamento.

Agora, num misto de análise artística e psicológica, notei também que esses matizes que assim se ostentavam não venciam com a arrogância de um “boxeur” que derruba o adversário, põe o pé em cima dele e depois acena para a platéia.

Nada disso. Essa delicadeza de matizes vencia com uma espécie de dignidade, com folga tal que ela não sentia sequer a necessidade de esmagar o adversário. Este não se encontrava estirado ao  solo: estava eliminado do panorama. Assim, criava-se a ideia de um mundo onde, desde o começo, só ele, vitral, existira. Algo parecido com aquela Sabedoria que, no princípio dos séculos,  brincava com todas as coisas…

Percebi que na delicadeza de cores daqueles vitrais havia a candura e a como que inexperiência do virginal, aliada à estabilidade e à dignidade da experiência de uma matriarca no auge mais dourado de sua vida, na plena lucidez e no pleno conhecimento das realidades da nossa existência terrena.

Ainda nessa linha de impressões, imaginando que cada vitral era como que alguém que tivesse a alma construída daquele jeito, imaginando que esses “alguéns” do mundo dos possíveis foram  sonhados pela Idade Média e tiveram começos de realização em milhares de almas, então eu pensava em São Luís, nos artistas dele que edificaram essa maravilha da arte católica, na multidão de súditos que amavam seu monarca santo e admiravam nele as suas semelhanças com o Rei dos Reis, Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu pensava nisso e entendia ainda melhor o que foi a época áurea da Cristandade.

Essa é a análise dos matizes. Agora, a impressão que tive do conjunto de todos os vitrais foi a de uma harmonia constituindo uma espécie de figura não-expressa, ideal, de um vitral arqui-delicado,  de um vitral perfeito contendo em si todas as cores arqui-suaves naquele estado que acabei de descrever. Trazendo consigo a noção de que essa delicadeza assim apresentada — longe de ser inimiga dos tons mais fortes, na linha dos estados de alma como na linha das cores e na dos sons — fazia pensar no desfile sem fim de todos os coloridos possíveis, mesmo os mais antitéticos, em todos os estados de espírito possíveis, mesmo os mais diversos, dentro daquela harmonia. E dessas impressões se desprende, afinal, uma ideia de perfeição enquanto perfeição, de harmonia enquanto  harmonia, de santidade enquanto santidade — portanto, de verdade enquanto verdade, e de beleza enquanto beleza — reluzindo neste píncaro da montanha da delicadeza, a partir do qual se percebe  toda a cordilheira dos sentimentos opostos e afins que constituem o espírito indizivelmente rico da Igreja Católica.

Plinio Corrêa de Oliveira – Revista Dr Plinio 44 (Novembro de 2001)

O inimaginável e o sonhado se encontram

A prática da Religião assídua, séria, reta, durante séculos, levou as almas a desejarem o estilo gótico. Em certo momento, quando surgiram seus primeiros esboços, todos disseram: “É isso mesmo que almejamos!” E o gótico se espalhou pelo mundo inteiro.

 

Quando há uma sociedade — ou seja, o corpo social inteiro — que vive em uníssono, deseja muito uma mesma coisa, aparecem os artistas que, imbuídos do mesmo desejo, fazem o que a sociedade quer. E a obra de arte é uma consonância de um ou de alguns homens, dotados de talentos especiais para isso, com o que a sociedade deseja.

O encontro entre o inimaginável e o sonhado

Sempre que vejo esses monumentos góticos, e Colônia de um modo especial, fico tomado pelo encontro, no mais fundo de minha alma, de duas impressões contraditórias.

De um lado, trata-se de uma coisa tão bela que, se eu não conhecesse, não seria capaz de sonhá-la. Ela, portanto, supera qualquer sonho que eu pudesse ter. Mas de outro lado, olhando para aquilo, algo diz no fundo de mim: “Isso deveria existir! E essa fachada inimaginável me é, ao mesmo tempo e paradoxalmente, uma velha conhecida, como se eu toda a vida tivesse sonhado com ela!”

O inimaginável e o sonhado se encontram numa aparente contradição, e há qualquer coisa nesse encontro que satisfaz a minha alma profundamente. Tenho uma impressão interna de ordenação, elevação, apaziguamento e força, um convite — acabo de falar em apaziguamento — à combatividade, que me faz bem, até mesmo na idade em que estou(1).

Quer dizer, em última análise, há qualquer coisa em nós que deseja algo, que não somos capazes de imaginar. Mas, este fundo, que é feito para certas coisas, deseja-as e conhece-as tão bem que, quando as vê, tem a impressão de encontrar um velho conhecido. E, de outro lado, tem uma surpresa porque encontra o inimaginável. Então, há no mais profundo de nós mesmos algo que, sem percebermos, delineia uma figura de maravilhas, a qual eu não diria sonhada, mas é anelada, esboçada, que nasce das necessidades da nossa alma.

Quando encontramos essa maravilha, dizemos para nós mesmos:

“Ah! Aqui está a fachada esperada! Eu não podia morrer sem tê-la visto. A minha vida não seria completa; não seria inteiramente eu mesmo se não a tivesse contemplado. Ó fachada bendita, ó estilo bendito, que faz vir à tona algo de profundo de minha alma e, de certo modo, faz com que me conheça a mim mesmo, compreendendo aquilo para o qual fui criado.

“É algo de misterioso que pede toda a minha dedicação, todo o meu entusiasmo, e que minha alma seja inteiramente assim. Uma escola de pensamento, de sensibilidade, um estilo de vontade, um modo de ser dali se eleva e para o qual sinto que nasci. Algo muito maior do que eu. Esses homens que me antecederam tinham também no fundo de suas almas este desejo. E até conceberam o que não concebi e fizeram o que não fiz. Tinham eles um desejo tão alto, tão universal, correspondendo aos anelos profundos de tantos homens, que o monumento ficou para todo o sempre: a Catedral de Colônia!”

 O “lumen” de nossas almas: mais belo que os vitrais

Há um conceito de luz que nasce em meu espírito, a qual não é, bem entendido, a luz elétrica, nem sequer uma linda luz passando pelos vitrais. Mas é muito mais do que isso: uma luz que está dentro da alma humana, à procura do que é luminoso fora, para a festa do encontro e da participação. A luz de dentro encontra a luz de fora. Mais belo do que todos os vitrais da Catedral de Colônia é o “lumen” que há no fundo de nossas almas, por onde nos extasiamos quando vemos essa Catedral. É uma claridade existente em nós, um movimento de alma, um desejo, o qual é mais pulcro do que aquilo que desejamos.

Imaginemos que alguém fosse oferecer a Nossa Senhora uma flor. Ela olharia a rosa e daria um sorriso encantador. O que havia no fundo d’Ela, encontrando a rosa, brilhou. Mas… quanto o sorriso de Nossa Senhora é mais belo do que a rosa! Portanto, aquilo que há no fundo da alma d’Ela vale mais do que algo que A fez sorrir!

Podemos dizer algo semelhante das almas que amam a Catedral de Colônia. Cada vez que uma pessoa passa por lá, e em espírito de Fé olha aquilo e se entusiasma — admira um vitral, uma ogiva, uma escultura, as torres, aquela pequena agulha existente entre as duas torres —, a catedral que ela tem no fundo da alma, as maravilhas que possui em germe sorriem. E isto agrada mais a Nosso Senhor no sacrário e a Nossa Senhora no Céu do que a própria Catedral.

E quando vemos os esplendores da Catedral de pedra, o povo que entra e sai, dizemos: “Como os homens gostam disso!” Podemos afirmar também: “Deus, no mais alto do Céu, como gosta disso!”

Mais do que isso, Deus no mais alto do Céu e Nossa Senhora gostaram do nosso encanto por aquela Catedral. Mais belo do que a Catedral é o amor que o homem tem por ela. Porque o homem é a obra-prima de Deus nesse universo visível. E todos os movimentos de alma existentes em nós, que nos levam a amar aquilo que Deus fez, ou que o Espírito Santo sugeriu para a glória de Deus, são mais belos do que as coisas materiais realizadas pelo homem.

Nós sorrimos para a Catedral; o Criador e Maria Santíssima sorriem para nós. Exatamente como no caso da rosa. O ofertante dessa flor sorriria, vendo Nossa Senhora sorrir para a rosa. E diria: “Esse sorriso é mais belo do que a rosa. A alma que viu a rosa é mais pulcra do que a rosa vista por ela.”

Assim é o “pulchrum” que há no fundo da alma do inocente. Trata-se de uma forma de luz, que consiste no anseio, no desejo, na vontade de encontrarmos uma coisa que não sabemos o que é, mas quando a encontramos percebemos que a procurávamos. E isso é o enigmático.

Às vezes encontramos coisas inesperadas

Há um dito francês muito verdadeiro, que vez por outra repito nestas exposições: “Quem não sabe o que procura, não sabe o que encontra”. Porém, tem ele a sua limitação. Às vezes os grandes encontros de nossa vida são das coisas que procurávamos sem saber, porque são inefáveis. Quer dizer, não há palavras capazes de exprimi-las adequadamente. O melhor de nossa alma está no que procuramos, mas não temos palavras para exprimir. E quando encontramos, não temos palavras para suficientemente louvar.

E nesse encontro do inexprimível com o que está acima de qualquer louvor se forma um arco, que dá alegria para nossa alma. Aí está o sentido de nossa vida. Um homem que ao longo de sua vida encontrou o que deveria procurar pode dizer: “Eu vivi!” Se não encontrou, na hora de sua morte ele pode afirmar: “Eu andei pela vida como um cão sem dono. Comi nas latas de lixo, bebi nas sarjetas, descansei na garoa, na lama, na chuva ou no sol, mas não vivi. Porque não encontrei a mão amiga que me agradasse, o dono bom que me afagasse. Fui feito para a fidelidade, para servir, mas não encontrei a quem servir. Passei uma vida vazia e morro de qualquer jeito”.

Assim poderia dizer um de nós que não encontrasse aquilo que deveria procurar.

Quando o menino vai se fazendo moço, depois varão, e daí para a frente, essa procura vai sendo satisfeita pelas circunstâncias da vida, porque ele encontra, logo nos primeiros vislumbres — se de fato procura —, a sabedoria.

Diz a Escritura que a sabedoria é como uma mendiga, à porta de nossas almas desde a madrugada, à espera que abramos para a recebermos. Na realidade, ela tem o esplendor de rainha, que com as suas carícias de mãe, suas iluminações incomparáveis, vai convidando a inocência para segui-la. E a inocência que trilha o caminho da sabedoria é o pedúnculo, a raiz da santidade.

Então, esta inocência, que se deixa guiar pela sabedoria, faz com que o homem encontre bem cedo a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana e diga: “Aqui há mistério. Esta é a maravilha das maravilhas! A ela eu me dou e já de uma vez! E, através da Igreja, quantas outras maravilhas para ver! Na Civilização Cristã, quanta coisa no passado, isto, aquilo, aquilo outro!”

De todo verdadeiro contrarrevolucionário católico se pode dizer: ele é luz

E cada um de nós vai fazendo uma espécie de museu interior mais belo do que qualquer sala adornada, onde tenhamos recolhido os objetos que possuímos. São as lembranças das coisas que nos tocaram a alma, desses momentos nos quais tivemos tal entusiasmo, satisfação e equilíbrio, que ficamos de certo modo sem respiração e sem saber o que dizer.

Ao longo dos tempos colecionamos coisas que vimos, impressões que tivemos, raciocínios que fizemos, deliberações que tomamos, gestos que presenciamos, em relação ao verdadeiro, ao bom e ao belo; mas também ao mentiroso, ao ruim e ao feio, que constitui o horror simétrico com o belo e o realça.

E vamos ordenando tudo isso, explicitando nossa própria alma com essas coisas que selecionamos; ao explicitar, progredimos no conhecimento de nós mesmos. E a bem dizer, esta luz existente em nosso interior vai se definindo. Vamos nos tornando ela, e ela vai se tornando nós. Olhando-a, ficamos cada vez mais ela. Por outro lado, olhando-nos, ela fica cada vez mais nós.

Há uma reversibilidade. A luz entra em nós, e parece ser criada só para ser nós. Exatamente como num belo vitral onde incide um raio de sol: atravessa-o tão bem e transmite uma luz tão bonita, que se diria que o Sol existe para incidir aquele raio naquele vitral. Durante todo o dia, ele torrou o vitral, espelhando-se e colocando no chão rubis, esmeraldas, safiras ou topázios, e depois vai se deitar porque cumpriu sua tarefa. Começa a anoitecer.

Tem-se a impressão de que o Sol vive para aquela joia projetada no chão, a qual anda enquanto ele se move; o astro rei vai transformando cada centímetro do granito, sucessivamente, em joia. Até que, cumprida a tarefa, a joia vai desbotando e o Sol se escondendo. Já não se vê seu reflexo no chão, mas apenas no vitral. E até os últimos lampejos do dia, olha-se aquele pedaço de vitral que nos encantou: verde, vermelho, azul, amarelo. Quando o Sol se põe completamente, tem-se vontade de dizer: “Eu também vou dormir, porque tive o meu dia cheio. Vi a joia passar pelo granito da Catedral!”

Esses encontros de alma, que definem a vida do inocente, exprimem algo que nos diria mais ou menos o seguinte: “Você foi feito para aquilo; aquilo foi feito para você. E de tal maneira você o ama, que se diria que aquilo existe para você, que isto é você, ou você é aquilo. E quando você fala daquilo, mesmo que aquilo não esteja presente, tem-se a impressão de vê-lo, pois está na sua alma. E, presente na sua alma, talvez seja visto de modo mais belo do que em sua realidade policromada e material”.

Admirando as maravilhas da Criação, pratica-se o amor a Deus

Todos percebem que tudo isto é um modo de afirmar: “Credo in unum Deum, Patrem omnipotentem, Creatorem caeli et terrae, visibilium omnium et invisibilium” — Eu creio em um só Deus, Pai onipotente, Criador do céu e da terra, e de todas as coisas visíveis e invisíveis.

Por que Deus?

Porque o homem sabe, perfeitamente, que um caco de vidro é um caco de vidro, e o Sol não é senão o Sol. E que tudo aquilo seria uma ilusão se não fosse a expressão de um Ser infinitamente maior, que se oculta aos nossos sentidos, mas se mostra através desses símbolos. Que toda essa feeria seria absurda se esse Ser não existisse.

Ora, como não é possível que tanta ordem e tanta beleza sejam absurdas, a conclusão é que aquilo é! E no fundo, sem percebermos, amando aquele rubi, aquele jogo de luz, aquele vitral, amando a alma que ama aquele vitral, nós amamos ainda mais o puríssimo Espírito, eterno e invisível, que criou tudo aquilo, para nos dizer:

“Meu filho, Eu existo. Ama-Me e compreende: isto é semelhante a Mim. Mas, sobretudo, por mais belo que isto seja, Eu sou infinitamente dessemelhante disto, por uma forma de beleza tão quintessenciada e superior, que só quando Me vires verdadeiramente te darás conta do que Eu sou. Vem, meu filho, que Eu te espero! Luta por mais algum tempo, que Eu te mostrarei no Céu belezas ainda maiores, na proporção em que for grande e dura a tua luta. Quando estiveres pronto para veres aquilo que Eu tinha intenção de que visses quando te criei, Eu te chamarei.

“Meu filho, sou Eu a tua Catedral! A Catedral demasiadamente grande! A Catedral demasiadamente bela! A Catedral que fez florescer nos lábios da Virgem um sorriso como nenhuma joia, nenhuma rosa, nenhuma das meras criaturas que Ela conheceu, fez florescer.”

Esta Catedral é Nosso Senhor Jesus Cristo. É o Coração de Jesus, que colocou no Coração de Maria harmonias inefáveis. Ali nós O conheceremos.

Quando vemos monumentos como esse, temos certa sensação do demasiadamente grande, de um demasiado delicioso, que não tem proporção conosco, mas para o qual voamos; é a esperança do Céu.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/10/1979)

 

1) Quando proferiu esta conferência, Dr. Plinio tinha 70 anos de idade.

 

Elevação e coerência

No espírito de quem a analisa, a “Escadaria Dourada da Catedral de Burgos” produz uma primeira impressão tão intensa, e apresenta uma ideia tão diversa de como se poderia imaginá-la, que o  observador sente a necessidade de pôr um pouco em ordem as considerações que ela lhe sugere.

Uma das belas gravuras que a retratam (p. 35) me faz pensar que ela é, em seu gênero, a escada. Ao construir esses sucessivos lances de degraus, o artista empreendeu uma verdadeira epopeia,  compondo uma maravilha de ordenação arquitetônica. Essa gravura poderia ter como título: “Elevação e coerência”, pois tais são os valores que a Escadaria Dourada exprime de modo extraordinário.

A elevação se manifesta, por exemplo, na disposição das janelas cegas e das portas ao longo de um muro muito alto, formando uma linha perpendicular tão ascendente que, para a limitação do  campo visual de quem a observa, ela como que se perde numa região superior, digamos o “céu” da atenção humana.

Essa linha vertical fica assegurada por uma obra-prima de equilíbrio, composta de dois elementos. Em primeiro lugar, as janelas cegas atenuam o que a parede talvez tivesse de muito pesado, ou  de muito liso e enfadonho. E depois, a força e o vigor da porta, que parece sustentar o bem-proporcionado de todo o conjunto. A nota de coerência, por sua vez, surge no “moucharabié”, todo ele feito de harmonias correlatas, que dão ideia de lógica, estabilidade e coesão. O teto, o corpo e a base, amparados por uma maravilhosa peanha — verdadeira obra de arte, com seus lavores que  parecem rendas de pedra — formam uma linda e suave harmonia.

Como harmônicas são também as duas extremidades simétricas, confinando ambas com as rampas laterais. Esse “moucharabié” assim concebido é rico em sugestões que se desdobram, como se  fossem grandes leques de conseqüências, que acabam se fechando no mesmo ponto de onde partiram. Quer dizer, as harmonias brotam dele e para ele voltam, como de um rio sairiam dois afluentes os quais, chegados a um extremo, começam a retornar para a via essencial. E nisso temos então realçada a nota de coerência.

Depois, como ponto terminal da escada, uma magnífica manifestação de certeza. Quando se esperaria que fosse morrer de modo comum e trivial, ela como que ressurge e se estende em  movimentos diversos. O seu fecho, com os dois braços ou corrimões, é uma espécie de afirmação fundamental, é a última conseqüência, segura e proclamativa. É o ápice da harmonia: a leveza e a força, o compacto e o filigranesco extraordinários! E o hierático. As figuras dos dragões parecem pensar e dizer: “Isto é assim mesmo, e nós atacamos quem o negar!” Dir-se-ia a robustez e a  vigilância a serviço da elevação e da coerência…

Por outro lado, o mesmo “moucharabié” dá a ideia de enquadrar algo mais delicado e mais interno. Ele tem seu segredo. É como que um sacrário. Sua porta, esguia e linda como peça arquitetônica, ladeada por figuras esculpidas que lhe constituem magnífica moldura, parece abrir para um corredor profundo, que se perde além. É o senso do mistério, presente em tantas e tão esplendorosas obras de arte.

Alguém poderia me dizer: “Mas, Dr. Plinio, essa é a porta da rua!”

Pouco importa. Para o olho humano, a arquitetura comporta também essas simbologias. E, a meu ver, mais uma vez temos aqui um superior exemplo de coerência e elevação, magnificamente  expressas no conjunto desse “moucharabié”.

A gravura retrata um aspecto muito bonito, que é a pequena vida de todos os dias ao pé do monumento. Então são duas mulheres, meio latinas, meio mouras, que se dirigem para os degraus; é um homem cheio de vitalidade e decisão, subindo a escada, ou um casal que por ali passeia e conversa calmamente. São dois fidalgos, compondo a cena com a riqueza de seus trajes e o luzir de suas espadas; é um fiel que se aproxima da pia de água benta, enquanto uma mulher ao mesmo tempo reza e descansa, observando outro grupo de pessoas que trocam idéias junto à imponente  escadaria.

Esta visão nos conduz aos adornos do monumento, igualmente belos. Vale notar que toda a ornamentação visa ao gracioso, e compensa o que o grandioso teria por demais de severo. Não se vê aí  um enfeite o qual, exceção feita dos dragões, não seja tão ameno que quase convide ao sorriso. Há, por exemplo, uma espécie de concha, soberba, cuja singeleza de linhas compensa o que ela tem   de extremamente trabalhado. É a graça suavizando a severidade da grandeza…

Uma última consideração. Dir-se-ia que essa construção, na qual se misturam estilos da Renascença e aspectos mouriscos, é o contrário do gótico. Entretanto, as ogivas da parede lateral se  harmonizam de tal maneira com o conjunto da escada que são indispensáveis para compor o quadro.

De fato, embora as decorações e os desenhos sofram influências renascentistas e árabes, o espírito inspirador dessa obra de arte ainda é o gótico. A nota ogival é a que nela predomina. O “moucharabié”, por exemplo, poder-se-ia chamar “variações dentro de uma ogiva”. Além do mais, o fator coerência de que acima falávamos,  presente em todo o conjunto, é também muito próprio  da arte ogival e, portanto, gótica. Como lhe é igualmente própria, na decoração, uma certa leveza, a mesma que se acha difusa nesse monumento. Assim, encontramos o casamento do gótico com a  Escadaria Dourada. Obra que reputo uma verdadeira magnificência!

Régia amenidade

À primeira vista, no esplendor da Idade Média não havia lugar para a candura e a intimidade. Entretanto, como nos mostra Dr. Plinio a seguir, esta foi a época em que os homens mais sentiram sua intimidade com Deus.

 

Há um aspecto da Idade Média continuamente desfigurado pela detração da Revolução: quando vemos altos castelos com torres, ameias, barbacãs, fosso e ponte levadiça, temos, naturalmente, a ideia de um edifício construído para a luta. E, como os castelos são, juntamente com as igrejas, o principal tipo de edifício que restou da Idade Média, elaboramos facilmente a ideia de que essa época foi de uma gravidade extraordinária, uma seriedade admirável, uma compostura perfeita.

Uma era histórica na qual todo mundo, perpetuamente, estava numa atitude recolhida, tendente ao sublime e, por isto mesmo, tendente ao severo. E dessa concepção deduzimos que na Idade Média não cabia um sorriso, uma alegria, uma manifestação de contentamento; que aquela magnífica apresentação hierática, eu diria quase decorativa, dos personagens medievais, excluía certa intimidade, bondade, abertura de alma.

Sorriso da vida de todos os dias

Nada é mais falso do que isso. Quem conhece o bê-á-bá a respeito da Idade Média sabe dos grandes festins que a caracterizaram. Não só os festins aristocráticos nos castelos e nas residências reais, mas também as grandes festas populares, em que, por exemplo, nas praças públicas da cidade, algumas fontes jorravam vinho horas seguidas, por conta do Rei ou do senhor feudal; ou, mais modestamente, jorravam leite; em que se levavam bois inteiros para a praça pública, onde eram organizados churrascos, em torno dos quais a população dançava. E, para terminar a festa, o senhor do lugar jogava peças de ouro a mancheias para o povo, que as apanhava para fazer compras no pequeno comércio dos arredores, sobretudo de comes e bebes.

Entretanto, havia mais do que essa alegria magnífica das festas. Existia um sorriso da vida de todos os dias, uma beleza inocente e cândida do contato das almas nas ocasiões normais da vida, que podemos apreciar bem nas iluminuras medievais.

E, às vezes, também nos vitrais que, com cores estupendas, nos apresentam as cenas mais modestas. Por exemplo, um boi puxando um arado e um camponês que vai jogando as sementes. Mais adiante, um grupo de mulheres que lavam roupa e as batem sobre umas pedras colocadas junto a um rio.

Depois, um copista, homem do povo, sentado junto a uma janela com vitral colorido, e que está copiando um texto qualquer. Junto dele, um vasinho bem medieval, pequenino, do qual sai uma só flor enorme, que não se sabe como fica em pé ali; e na frente um “lirião”, colhido em não sei que jardim maravilhoso. Céus claros, azuis de anil, nos quais voam aves de cores brancas, ou variegadas, em voos também bonitos. Cercas modestas de agricultura, não apenas magníficos jardins, fileiras de legumes e de outras plantações, mas tudo apresentado com um colorido tão bonito e tão real ao mesmo tempo, que se percebe com que cores interiores a alma inocente do homem medieval via as coisas.

Pompa e amenidade

O mesmo se dava com a piedade. Naquele tempo, a Igreja Católica, como sempre fez, realizava cerimônias magníficas e com pompa extraordinária, sobretudo nas grandes catedrais, em cujos vitrais penetrava a luz do Sol enquanto a Missa se desenrolava na capela-mor da igreja, com belos paramentos, o órgão tocando, o povo ajoelhado, o incenso perfumando todo o templo.

Dir-se-ia que nessa pompa não caberia intimidade. Mas é o contrário. Se houve época em que os homens sentiram a sua intimidade com Deus, a misericórdia, a bondade, a afabilidade, essa época foi a Idade Média. E mil contos dessa época histórica, alguns talvez fantasiados, mas muitos deles, no total, verdadeiros, celebram, por essa forma, a extraordinária amenidade de Deus, de seus Anjos e Santos, sobretudo de Nossa Senhora, Rainha de todas as virtudes, e, portanto, Rainha também da materna e régia amenidade para com seus fiéis.  v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/11/1976)
Revista Dr Plinio 164 (Novembro de 2011)

A primeira Comunhão

Na manhã do dia 19 de novembro de 1917, o jovem Plinio recebia por primeira vez a Sagrada Comunhão. Ao longo de sua vida, inúmeras vezes recordaria ele, com profunda devoção eucarística, aquela data que lhe era sobremaneira cara. Evoquemos uma dessas suas reminiscências:

 

A atmosfera que cercava as primeiras Comunhões no meu tempo de menino era muito especial e foi toda ela organizada segundo a doutrina e a mentalidade do grande São Pio X, o Papa das primeiras Comunhões. Antes de São Pio X, a tendência corrente era de que as pessoas só fizessem a primeira Comunhão quando estivessem inteiramente adultas, de maneira tal que era frequente o fato de que comungassem pela primeira vez ao se casar. O noivo e a noiva esperavam essa ocasião para fazer a primeira Comunhão, pela ideia de que esta é uma coisa muito sagrada; e julgava-se que as crianças não deviam se aproximar dela porque não tinham critério para comungar com o respeito e a devoção necessários.

Mais importante é a inocência do que a capacidade de pensar

Foi São Pio X que colocou a questão em termos diferentes. Segundo ele, não se trata de saber o que a criança é capaz de pensar, mas sim que grau de inocência ela tem; porque se fôssemos raciocinar em função de sua capacidade de pensar, não deveríamos batizar a criança nos primeiros dias depois de seu nascimento.

A criança não pensa, mas o Batismo é uma ocasião para a comunicação de graças extraordinárias, que vão ficar vivendo nela para que, logo no limiar de sua vida de pensamento, comece pensando bem; já seus primeiros passos são fortalecidos pela graça do Batismo. Por causa disso a Igreja batiza as crianças logo depois do nascimento.

O mesmo se pode dizer com relação à Sagrada Comunhão. Desde que a criança tenha a ideia, saiba distinguir entre hóstia e pão, compreenda que a hóstia é feita da mesma matéria que o pão; mas que, pronunciadas as palavras da Consagração, há uma transubstanciação, uma mudança de substância do pão e do vinho, e passa a estar ali presente verdadeiramente, em Corpo, Sangue, Alma e Divindade, Nosso Senhor Jesus Cristo. Então, se a criança compreende isso e cumpre as necessárias condições, pode comungar, porque ela está na sua inocência.

Trajes de primeira Comunhão

São Pio X quis, e se executou no tempo dele, que a festa da primeira Comunhão fosse muito solene. Eram ornamentadas as igrejas, os altares, as crianças iam vestidas com trajes especiais de primeira Comunhão.

Lembro-me de que as meninas iam trajadas de noivas: vestido branco até aos pés e véu, grinalda, flores, sapatos, tudo de cor branca, porque eram inteiramente inocentes e virginais e caminhavam de encontro ao seu Salvador.

E os meninos deveriam ir tão bem vestidos quanto as posses de seus pais o permitiam. Por causa disto, os pais — não necessariamente muito ricos, mas que possuíam certa largueza — mandavam fazer roupa especial para os meninos, que, no meu tempo de infância, era a cópia da roupa oficial usada em solenidades por uma das escolas mais famosas do mundo: o Colégio Eton, na Inglaterra.

E no braço esquerdo colocava-se uma fita que formava um laço em cujas pontas havia uns pingentes dourados. O branco da fita simbolizava a castidade, a virgindade daquele menino, e os pingentes dourados possivelmente representassem a Fé.

No próprio dia da primeira Comunhão, recolhimento e não festa

No dia da primeira Comunhão se fazia uma festa em casa. A recepção da Eucaristia era de manhã e a festa à tarde. A família de quem fez a primeira Comunhão convidava os parentes e amigos, mais ou menos da mesma idade. Então compareciam vinte, trinta crianças numa festa enorme onde se servia chocolate — que era tido como uma maravilha; hoje o chocolate se tornou comum — não com creme “chantilly”, mas com clara de ovo. São Paulo ainda era uma cidade tão primitiva que não conhecia creme de “chantilly”. Então vinham aquelas montanhas de clara de ovo batida em cima do chocolate e as crianças devoravam aquilo. Havia também frutas, doces, sanduíches, sorvetes, refrescos.

Terminado isto, se fazia uma correria pelo jardim da casa. À noite, ia-se dormir, depois de ter rezado.

Dona Lucilia, que organizou a primeira Comunhão dos filhos dela e de uma sobrinha que morava conosco em casa, filha de uma irmã dela, entendeu que desse modo a preparação não estaria bem feita. Se a festa fosse realizada no dia da primeira Comunhão, por causa da natureza da imaginação infantil, haveria o risco de a criança amanhecer pensando mais na festa do que no Santíssimo Sacramento.

Nós tivemos um curso de preparação com um padre que dava as aulas só para nós três — os filhos dela e uma sobrinha —, explicando a Doutrina Católica e a História Sagrada.

Depois de examinados e tendo sido verificado que sabíamos o bastante para comungar, fizemos parte de uma primeira Comunhão da Paróquia de Santa Cecília. Havia muitas crianças, vestidas de acordo com os níveis econômicos dos pais, que eram naturalmente os mais variados. Algumas estavam ricamente trajadas, portando, por exemplo, as meninas, livro de oração todo forrado, interna e externamente, com madrepérola ou até com pérolas na bordadura; e os meninos, livro impresso em várias cores e muito bonito; além disso, tinham lindos rosários.

Então, com o afeto e o cuidado que era todo dela, Dona Lucilia nos chamou alguns dias antes da primeira Comunhão e nos avisou como seria o programa. Ela disse o seguinte: “Vocês devem entender que a festa não vai ser no dia da primeira Comunhão. Nesse dia vocês não vão estudar nem trabalhar, será um feriado. Vocês devem ficar o tempo inteiro fazendo coisas tranquilas, pequenos brinquedos calmos, rezando, procurando lembrar-se do que se deu com vocês, andando dentro da casa de um local para outro — a residência era muito grande —, mas não podem ir ao jardim nem ficar olhando pelas janelas. Têm que estar olhando dentro de casa, para concentrar o pensamento no Santíssimo Sacramento”.

Papel com a relação dos pecados

A preparação feita com muito cuidado pelo padre, as explicações de Dona Lucilia que completavam as aulas do sacerdote e, depois, esse aviso nos fizeram ver bem como era sério o passo que íamos dar; e evidentemente próprio a determinar em nós todo o grau de recolhimento que uma criança possa ter.

Eu tinha nove anos de idade, tomei muitíssimo a sério o que ela disse e fiz o propósito de observar esse recolhimento.

Fiz a primeira Confissão tão seriamente que, para não me esquecer de nenhum dos meus pecados, anotei uma lista deles para confessá-los ao padre. Quais seriam os pecados de um menino de nove anos? Podemos imaginar.

Entrei no confessionário e o padre ouviu a minha confissão.

Quando cheguei em casa, pouco tempo depois, mexendo nos bolsos não encontrei o papel contendo a relação de meus pecados.

Então, eu disse a Dona Lucilia:

— Mamãe, preciso ir à igreja para pegar o meu papel, porque se alguém ficar com a lista dos meus pecados, estou perdido.

Ela percebeu logo que era coisa de criança, mas ficou até satisfeita vendo como eu tinha tomado a sério a minha primeira Confissão.

Enquanto ela falava comigo sobre isso, uma lavadeira que trabalhava em casa, pessoa muito boa, muito piedosa, chamada Madalena, estava dobrando umas roupas para colocá-las num armário. Mas naturalmente prestava atenção na conversa de Mamãe comigo e ouviu o que eu falei.

A Madalena disse então o seguinte:

— Ah! eu dava tudo para conhecer os pecados do Plinio. Dona Lucilia, a senhora me dá licença e eu vou depressa à Igreja de Santa Cecília para ver se pego a lista dos pecados do Plinio.

Fiquei ultrajadíssimo, mas notei que Mamãe não tomou isso ao trágico nem ficou com medo de revelações sensacionais. E vendo que ela não deu importância, até me esqueci do fato.

A Madalena foi à igreja e não encontrou a lista. Com certeza um sacristão ou alguém que limpava a igreja jogou fora aquele papel. Não sei que pecados estavam ali anotados; devo ter dito alguma mentirinha, faltado com o respeito a papai e mamãe, mas eram pecados que eu não deveria ter feito e precisava pedir perdão a Deus.

O traje do Colégio Eton

Tive também que experimentar o famoso Eton, para ver se caía bem. Durante toda a vida, tive um desagrado de experimentar roupa: o alfaiate punha uns alfinetes, depois marcava com giz. O homem fez aqueles ajeitamentos e chegou à conclusão que o Eton estava muito bom. Foi também a opinião de Dona Lucilia, que em tudo exigia perfeição e não se contentaria com um Eton mal cortado. O alfaiate seria muito bem tratado, receberia um bom pagamento pelo trabalho sob a condição de estar perfeito. Mamãe achou que estava perfeito.

O vestir o Eton deu-me muita alegria. Não sei se entrava alguma vaidade pelo meio, mas eu me considerava muito importante com aquele traje. Tinha a sensação de que ficara de repente mais velho e, portanto, mais capaz de me impor ao respeito dos outros.

Na noite que precedeu a primeira Comunhão eu tive um sonho. Porém um sonho muito singular, porque eu via Nosso Senhor em pé junto à porta de uma casa bem branca, iluminada por dentro com uma luz muito clara. Ele vestia uma túnica branca e uma capa vermelha, me olhava e abria os braços para mim.

Isso não tinha nada de comum com uma visão porque, no meu sonho, a casa na qual estaria Nosso Senhor era um enorme doce de coco, todo revestido de branco. Sendo preciso notar que jamais gostei de doce de coco; e que se me fizessem um doce de coco branco ou vermelho, ou de qualquer cor, eu não comeria. Portanto, vê-se que não foi uma coisa mandada pela Providência, mas um sonho natural de uma criança que está, isto sim, tomando profundamente a sério a Comunhão que vai receber.

Grande veneração para com a Igreja Católica

No dia seguinte, minha irmã, minha prima e eu fomos cedo à Igreja de Santa Cecília, cada um levando uma vela, pois em determinado momento da Missa eram acesas as velas de todas as crianças. Havia fiscalização, naturalmente, porque de repente pegava fogo no véu de uma menina… Tudo era muito organizado.

Afinal começou a Missa, cantada, um tanto longa, na qual eu me lembro de que prestei muita atenção, sem entender bem o que era a Missa. Eu sabia tratar-se de uma oração da Igreja, mas de que era a renovação incruenta do Santo Sacrifício do Calvário, na qual se dava a transubstanciação, eu tinha certa noção, mas não tão clara quanto seria desejável. Sem embargo disto, vendo que era uma cerimônia da Igreja, e pela enorme veneração que eu tinha para com a Igreja, assisti à Missa muito atento e rezando.

Na hora da Comunhão, eu entrei na fila dos meninos e, graças a Nossa Senhora, comunguei com muito recolhimento e rezei bastante. Depois, naturalmente, terminou a cerimônia e cada criança foi para casa com os seus.

Preparação para resistir à revolução “hollywoodiana”

Alguém dirá: “Mas que primeira Comunhão pobre! Nós esperávamos muito mais graças, algum milagre”.

A minha vida não tem milagres. Ela sempre se fez de piedade, atenção, vontade de cumprir perfeitamente os Mandamentos da Lei de Deus, os Mandamentos da Igreja; fazer vencer a Igreja sobre a Revolução e implantar o reino de Nossa Senhora na Terra.

Então, do que serviu a primeira Comunhão?

Ela foi a primeira de uma série de Comunhões e, sobretudo, preparou a minha alma para algo de especial: quando eu tive o meu primeiro contato com a revolução “hollywoodiana”, imperando no recreio do Colégio São Luís, ofereci resistência. Uma resistência muito dolorida, mas forte e decidida. Eu não me lembro, graças a Deus, de ter tido a menor dúvida: “É preciso ir para a frente até ao fim”. Não cedi em nada e aqui estou.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/11/1994)
Revista Dr Plinio 164 (Novembro de 2011)

 

Nossas obrigações para com a Cruz

Na seqüência de seus comentários ao opúsculo escrito por São Luís Maria Grignion de Montfort, Dr. Plinio ressalta esta grave advertência do santo: quem quiser ser um autêntico Amigo da Cruz, deve fugir do mundanismo que o conduzirá por um caminho de perdição, oposto ao da perfeição e santidade para o qual foi chamado.

 

São Luís Grignion de Montfort assim continua a sua Carta:

Sois por vossas ações, meus queridos Amigos da Cruz, aquilo que o vosso grande nome significa? Ou pelo menos tendes vontade e desejo autênticos de assim vos tornardes com a graça de Deus, à sombra da Cruz do calvário e de Nossa Senhora da Piedade? Entrastes no verdadeiro caminho da vida (Pr 6, 23; 10, 17; Jr 21, 8) , que é o caminho estreito e espinhoso do Calvário? Não estareis, sem pensar nisso, no caminho largo do mundo, que é a via da perdição? Sabeis que existe um caminho que parece ao homem reto e seguro, e que conduz à morte (Pr 14, 12)?

Justificadas apreensões de um Santo

Nestas perguntas transparece intensamente o espírito de São Luís Grignion. Quer dizer, de um lado ele toma em consideração os Amigos da Cruz como pessoas eleitas por Deus para um alto chamado. De outro lado, porém, ergue-se diante delas a malícia do século, e à vista das condições em que estas pessoas vivem, São Luís manifesta suas  apreensões. Donde formular questões como esta: “sois verdadeiros Amigos da Cruz?”

Ou seja, fácil é alguém tomar o nome de Amigo da Cruz, mas igual facilidade há para deixar de sê-lo. Portanto, trata-se de uma preocupação cujo fundamento é evidente. Então, insiste: “Pelo menos tendes verdadeiro desejo e vontade de assim vos tornardes com a graça de Deus”, etc.?

A formulação empregada por ele é muito apropriada e fina, porque um verdadeiro Amigo da Cruz é alguém que, em primeiro lugar, está em ordem com seus deveres para com a Santa Cruz. Mas também é aquele que possui ao menos um desejo autêntico de estar em ordem a esses deveres. Poderá ter suas faltas, suas fraquezas, mas almeja atingir a plenitude de entrega própria ao seu chamado. Este será considerado igualmente um verdadeiro Amigo da Cruz.

Dois graus de amor à Cruz

Percebe-se aqui dois graus de amor à Cruz, assim como pode haver dois graus de perfeição religiosa no cumprimento de uma vocação.

Antes de tudo, tal perfeição é a inteira conformidade do membro de uma ordem com sua respectiva regra. Contudo, pode dar-se o caso de que algum religioso, ainda neófito, não tenha alcançado essa conformidade; ou, por desventura, terá retrocedido na sua trajetória rumo àquela perfeição. Mas, se ele demonstrar o desejo de se tornar um verdadeiro religioso e de adquirir um elevado grau de observância, ele ainda se achará no seu lugar próprio dentro da ordem. Quer dizer, há para com ele, da parte de Deus e dos seus superiores, uma atitude de misericórdia, de compaixão, e até de compreensão, a par das graves exigências que a regra lhe impõe.

O mesmo se aplica ao Amigo da Cruz. Há aquele que se entregou por completo ao amor e ao serviço da Cruz para com ela se identificar; e há aquele que, por lacunas espirituais, ainda não alcançou essa plenitude de devoção, mas a deseja atingir. Então, olhando para estes últimos, São Luís Grignion escreve: “Não estareis, sem pensar, no caminho largo do mundo, o caminho da perdição? Sabeis bem que existe uma via que parece reta e segura, e na realidade conduz à morte?”

A expressão “sem pensar”  é curiosa,  e insinua bem o que poderia ser uma culpa inconsciente do Amigo da Cruz. Ora, o caminho do mundo é tão agradável, e o homem de tal maneira se habitua ao que lhe compraz, que ele por irreflexão acaba cometendo uma falta. Esta, embora não seja inteiramente consciente — e, portanto, não reúna as condições próprias ao pecado mortal — é um passo em falso. E a sucessão de faltas e concessões inconscientes, acabam desviando a pessoa para longe do caminho verdadeiro. Daí a nota da prudência pastoral, da vigilância de São Luís de Montfort em relação a esses Amigos da Cruz.

Censura aos que cedem à concupiscência do mundo

Continua ele:

Distinguis bem a voz de Deus e de sua graça, da voz do mundo e da natureza? Escutais a voz de Deus, nosso Pai, que depois de ter dado a sua tríplice maldição a todos que seguem as concupiscências do mundo: Ai, ai, ai dos habitantes da Terra (Ap 8, 13), grita‑vos amorosamente, estendendo‑vos os braços: separai‑vos, meu povo (Nb 16, 21). Separai‑vos, meu povo escolhido, queridos Amigos da Cruz de meu Filho, separai‑vos dos mundanos, malditos por minha majestade, excomungados por meu Filho (Jo 17, 9), e condenados por meu Espírito Santo (Jo 16, 8-11).

Importa compreender bem a razão dessas fortes censuras, dessa maldição tão pesada sobre o mundanismo.

Lembremo-nos de que, na linguagem da vida espiritual, o apego e o amor desregrado às coisas do mundo é, ao lado do demônio e da carne, uma das concupiscências que inclinam o homem para o pecado e o afastam de Deus. Portanto, o mundanismo assim entendido sempre foi algo ruim, ao qual o católico desejoso de alcançar a santidade deve combater.

No tempo de São Luís Grignion, o mundanismo ainda se revestia de uma aparência elevada e nobre, característica do Ancien Régime prévio à Revolução Francesa, mas que preparou largamente a irrupção desta no cenário europeu. Se tomarmos gravuras que representam burgueses dos séculos XVI e XVII, veremos que são ainda pessoas sérias, compassadas, dignas. Não era uma burguesia mundana, e tinha conservado toda aquela circunspeção dos antigos tempos. Pelo contrário, considere-se um burguês das vésperas da Revolução Francesa, e já não se o distingue mais do nobre, não só porque os trajes se igualaram, mas também por causa da atitude. Nivelaram-se. E o mundanismo revolucionário que impregnava as cortes, irradiou-se para as outras camadas da sociedade, putrefazendo-a por completo.

Em nossos dias, podemos dizer que o mundanismo se multiplicou pelo mundanismo, e as suas seduções, atiçadas por obra do demônio, são ainda mais perniciosas. Donde as censuras de São Luís Grignion conservarem toda a sua atualidade, e são perfeitamente aplicáveis aos que se entregam ao mundo, pois estes romperam com as amarras que os uniam a Deus Nosso Senhor.

Se desejamos ser autênticos Amigos da Cruz, devemos limpar nossas almas de qualquer laivo de mundanismo, de qualquer apego ao que há de frívolo, de laicista e de fundamentalmente contrário à sabedoria, nos costumes do mundo.

Contagiabilidade da virtude contra o vício

Continua São Luís Grignion:

Tomai cuidado para não vos sentardes em sua cadeira toda empestada, não sigais os seus conselhos, nem mesmo pareis em seu caminho (Sl 1, 1).

Essa cadeira toda empestada de que fala São Luís é uma referência ao Salmo 1, onde o salmista exclama: “Feliz o homem que (…) não se assenta entre os escarnecedores”, ou, segundo outras traduções, “que não toma assento na cátedra de corrupção dos pecadores”. Esta última expressão me parece ainda mais vigorosa. Quer dizer, trata-se da cadeira de onde o pecador ensina o pecado e, de certa forma, é a própria sede do pecado, na qual este se instala e aí faz luzir sua “glória”.

Fugi da grande e infame Babilônia (Is 48, 20; Jr 50, 8), não escuteis outra voz e não sigais outras pegadas senão as de meu Filho bem-amado, que vos dei por vosso caminho, vossa verdade, vossa vida (Jo 14, 6), e vosso modelo (Mt 17, 5).

Vemos aqui uma espécie de demolição ardente, levada a cabo por São Luís Grignion, contra toda a sedução exercida pela sociedade frívola do seu tempo. Ele queria os Amigos da Cruz afastados desse mundanismo.

Por outro lado, é também interessante notar que no meio dessa sociedade frívola surgiram outros movimentos de autêntica piedade católica, que reagiram a seu modo contra a decadência generalizada do ambiente em que viviam. Creio que tal reação se deve ao princípio da contagiabilidade da virtude, considerado por nós em exposição anterior. Ou seja, na ordem sobrenatural há reversibilidades, reciprocidades, interações pelas quais uma virtude séria e profunda praticada de um lado repercute no outro. Assim, havendo na Vandeia ou na Bretanha daquela época, muitos genuínos Amigos da Cruz, efetivamente separados do mundo, ainda que não conhecessem os Amigos da Cruz de Versailles, aqueles reforçavam a possibilidade de perseverança, de santificação e de vitória destes últimos no meio dos deleites e das delícias da corte mundana.

O exemplo de Maria Teresa d’Áustria

Recordo-me, a esse propósito, da figura da grande imperatriz Maria Teresa d’Áustria. Não se tratava de uma santa, mas era uma boa senhora católica, com o padrão mínimo de algo do qual a santidade é a expressão mais elevada. E ao considerar muitos aspectos de sua rica personalidade, poderemos ver quanta retidão, compostura, destreza, e quanta dignidade assentada sobre o trono, em meio a uma corte que, se não era a primeira, era das mais importantes do mundo, a do Sacro Império Romano Alemão.

Creio que essa situação só se tornava possível por esse trabalho de subestrutura da virtude que se contagiava entre os bons de lugares diferentes. E em seguida notava-se a recíproca: a Cruz levantada no mais alto degrau da corte, repercutia sobre todo o país e nas camadas profundas da população, gerando novos Amigos da Cruz. Esses são os grandes mecanismos por onde o amor de Deus se afirma, se multiplica e conquista as almas.

Abraçar a Cruz em união com o Divino Redentor

Prossegue São Luís Grignion:

Não escutais esse amável Jesus que, carregando sua cruz, vos conclama: vinde após Mim (Mt 4, 19), o que me segue não anda nas trevas (Jo 8, 12); tende confiança, Eu venci o mundo (Jo, 16, 33)?

Conforme o ensinamento de todos os grandes autores, São Luís Grignion acrescenta que a Cruz só é suportável quando carregada em união com Nosso Senhor. A Cruz concebida esquematicamente, apenas de modo teórico, aterroriza o homem e este foge dela. O único modo de a Cruz ser atraente, é considerar Aquele que nela se acha pregado e d’Ele receber as forças necessárias para aceitá‑la.

É palavra do próprio Jesus: “Quando Eu for elevado, atrairei a mim todas as criaturas”. Ou seja, o Divino Crucificado é o verdadeiro encanto da Cruz, o que realmente atrai as almas para ela. E não apenas atrai, como lhes concede as graças e o vigor indispensáveis para carregá-la. Com os olhos fitos n’Ele, pensando no seu Sagrado Coração e no precioso Sangue que por nós derramou, na sua agonia e morte, é que adquirimos forças para segui-Lo.

E não nos esqueçamos de que essas graças e essas forças nos são concedidas por intermédio de Maria Santíssima, a Medianeira Universal, que se encontrava aos pés da Cruz, com seu Coração Imaculado transpassado e coroado de espinhos.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 17/6/1967)

Revista Dr Plinio 116 (Novembro de 2007)

 

Súplica da despretensão e do enlevo

Ó Maria, Esposa Imaculada do Espírito Santo, dai-me a graça de ver os imponderáveis da Criação, de me enlevar por eles, e de ser impelido por um amor desinteressado à contemplação das perfeições que a alma humana possui pela natureza e pela graça.

Fazei-me subir dessa consideração à da natureza angélica e puramente espiritual, e, por fim, à de vosso Divino Filho que, na sua humanidade santíssima, é o ápice e a síntese de toda a Criação.

Fazei-me, em seguida, por um voo ainda mais possante de despretensão e de enlevo, fixar a minha mente na consideração da própria essência divina, da qual toda a Criação é imagem ou semelhança, de maneira que, analisando depois as criaturas, possa antegozar o Céu, preparando-me desse modo para entrar nele e Vos louvar por toda a eternidade. Amém.