Regalos da vida burguesa

Creio que em poucos países do mundo a vida burguesa, no que esta possui de legítimo e digno, atingiu graus de desenvolvimento tão expressivos como sucedeu na Alemanha, com o igual florescimento de valores próprios a ela: bom senso, pudor, recato, estabilidade, continuidade, o equilíbrio das coisas bem ordenadas desta Terra.

Tomemos, por exemplo, as construções nas pequenas cidades burguesas esparsas pela Alemanha, datadas da Idade Média, muitas conservando ainda hoje seus pitorescos aspectos de outrora.

Em geral, o andar térreo formava uma espécie de hall aberto, solidamente sustentado por um madeirame trabalhado de modo discreto, porém com uma certa distinção de linha. O corpo do edifício se erguia em duas saliências que se projetavam sobre a rua. No último andar se guardavam as relíquias da família, as velhas cadeiras de balanço da bisavó, arcas e baús de diferentes tamanhos contendo antigos enxovais, objetos deste ou daquele parente, etc.

Se procurássemos penetrar naquele interior, digamos estendendo nossa vista pelas janelas adentro, teríamos uma sensação que condiz à vida burguesa, isto é, a de intimidade. Encontraríamos a mãe, robusta e saudável como boa alemã, vestida de seu avental colorido, com seu chapéu ingênuo e a travessa de salsichas na mão; os filhos também corados e alegres, à espera do almoço nutrido, enquanto o pai prolonga o cochilo na sua poltrona confortável.

É o prazer da intimidade, do móvel cômodo, do ar tépido, da luz tamisada que deixa entrar a realidade externa, do “cortinadozinho”, dos objetos próximos uns dos outros, todo um ambiente que favorece ao homem seu descanso do trabalho manual. Quando chega o verão, abrem-se todas as janelas, depositam migalhas nos parapeitos para atrair os passarinhos: estes vêm, comem, e o alemão se encanta e se alegra com a fartura das aves. Preparam-se vasos de gerânios — os célebres gerânios da Alemanha! — e é todo um colorido que passa a enfeitar as fachadas das casas, as extensões das ruas.

Tudo isso é uma construção do mundo burguês germânico, que me apraz comentar, pois se reveste de qualidades e belezas intensas. Sem dúvida, devemos censurar o abuso do que o francês pitorescamente chama de “chacunnière”: o “lugarzinho” de cada um explorado ao extremo do apego. Porém, que se tenha um recanto preferido, arranjado de acordo com nosso gosto peculiar, para o qual sempre nos voltamos quando é questão de um verdadeiro repouso, quem o pode condenar? Quem nunca ansiou por um “recantozinho” desses? E quem, habitando numa daquelas casas da Alemanha medieval, não gostaria de ter uma boa poltrona para descansar?

Afinal, é a existência lícita, honesta, sem pretensões, da família legítima, constituída segundo o sacramento. É a casa onde o esplendor da vida familiar se manifesta na sua trivialidade. É a dignidade do comum, onde a pessoa pode recolher-se, isolar-se e, proporcionando silêncio ao corpo, permitir ao espírito começar a meditar. Não é o conforto do preguiçoso, afundando-se na almofada e ele todo se amolecendo. Pelo contrário, todo esse ambiente burguês alemão recende algo de varonil, e por isso mesmo, dessas casas, em épocas de guerra, saíram os melhores combatentes do mundo. Em tempo de paz, comedores de pão, tocadores de flauta e violino…

Eis a maravilhosa harmonia dessa situação. Eis os regalos da intimidade da vida burguesa, autenticamente vivida. Ela atrai ao recolhimento, ao repouso, mas prepara o homem para o trabalho e para a luta. Ele pode estar comodamente sentado em sua poltrona ou ajoelhado num oratório ao lado dela. O interior da casa, sem conduzir diretamente à oração, cria agradáveis condições para que o espírito se sinta convidado à reflexão e à prece. E ele se alegra.

Plinio Corrêa de Oliveira

Sombras que falam…

Ela se assemelha a uma esquadra maravilhosa, fixa no fundo da laguna, e da qual cada ilha, cada bloco de casas é admirável. A pulcritude ali chegou e ali se deteve. É algo de acabado, feito, definitivo. Ela transporta minha imaginação para outras épocas e outros tempos.

Navegando por entre seus palácios nas penumbras e sombras do anoitecer, tem-se a impressão de estar participando da vida psicológica, temperamental e social daqueles personagens de trajes medievais nos grandes dias da Cristandade, ou de tricórnio na era das monarquias absolutas. Semblantes ocultados por máscaras de seda cravejadas de brilhantes, olhares atentos e impenetráveis. Delicadezas, reverências, elegâncias. Aqui, lá e acolá se distinguem suaves e douradas cintilações. Murmúrio de águas, remexidas pelos remos que bailam destramente nas mãos dos condutores das embarcações.

Beleza do silêncio noturno, do mistério, do lento deslizar da gôndola naqueles espelhos líquidos, levando seus passageiros imersos nas cogitações do que fizeram ou ainda farão. Segredos perenes, sobrevivendo ao volver dos séculos nessa cidade à beira-mar.

Sob o influxo da graça, toca-nos a percepção do espírito de Fé que ergueu essas belezas, assim como nos vem a ideia dos mil fatos e cenas históricas aqui sucedidos, os quais conservam um nexo, ele também misterioso, com esses monumentos. Presença histórica e presença sobrenatural, de uma densidade incomparável.

Como eixo em torno do qual gravitam seus inúmeros aspectos, a portentosa Catedral, ápice de suas realizações. Mais do que isso, ela não será capaz de conceber. Ali está, na sua majestosa solidão, com suas sombras enigmáticas, recônditas, a passearem na esplêndida galeria de arcos do andar térreo. Envolta e confundida na neblina que a tudo agasalha, e sob cujo manto adormecem habitantes, casas, palácios e canais…

As luzes se apagam, as praças se enchem de penumbra. É a milésima noite da cidade na sua velhice, pulcra e sonolenta. Difícil não perceber a pátina do tempo que vai lhe acrescentando outros encantos e conferindo uma espécie de nota de eternidade às suas riquezas. Ela se ausenta dos acontecimentos humanos para permanecer – já fora da História e fixada na glória – como objeto da imorredoura admiração dos povos.

Criada segundo regras universais estabelecidas por Deus, mas aplicadas segundo a genialidade do homem.

É Veneza, a original; Veneza, a prodigiosa; Veneza, a feérica.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

 

A incomparável e maravilhosa Sainte-Chapelle

Os vitrais da Sainte-Chapelle são lindos e famosíssimos pelo seu colorido delicado. Impressiona a suavidade das nervuras e das colunas que, embora pequenas, sustentam abóbadas enormes.  Nota-se uma suprema distinção, bom gosto, harmonia, nobreza e uma certa bondade que pairam sobre tudo isso.

Esta é a incomparável e maravilhosa Sainte-Chapelle. A forma peculiar da construção vem do fato de haver pouco espaço para se expandir. Ela foi construída para ser a capela do Palácio Real cujos antigos edifícios, que a comprimiam bem de perto, foram substituídos pelo atual Palácio de Justiça da França.

A capela dos pobres

São Luís IX a construiu para abrigar espinhos da coroa de Nosso Senhor Jesus Cristo.

A elevação dela é realçada por este pináculo que sobe à maneira de flecha que, tendo sido destruído na época da Revolução Francesa, foi reconstruído no século XIX. É uma imitação da flecha autêntica, verdadeira.

Essa parte interior é deslumbrante! É de pedra policromada, e o teto dá a impressão de um céu estrelado. As ogivas e as colunas todas são pintadas também.

Impressiona a delicadeza das nervuras e das colunas que, embora pequenas, sustentam abóbadas enormes. Dessas colunas partem longas hastes, lembrando a elegância dos ramos de uma palmeira. Recebem, por isso, o nome de colunas em forma de palmeira. Nos pontos onde essas hastes se encontram constituem-se pingentes belamente trabalhados. Esta parte corresponde, naturalmente, ao lugar destinado ao altar e forma uma espécie de capela-mor que se separa do resto.

A capela compõe-se de três naves, segundo um plano típico de igrejas medievais.

A parte baixa da Sainte-Chapelle é uma maravilha, e estava destinada para os empregados do Palácio assistirem à Missa. Esse dado contraria a famosa versão de que na Idade Média não se cogitava nos pobres. Ora, essa era a capela dos pobres! Oxalá os ricos tivessem, hoje em dia, capelas assim…

Os medievais gostavam muito da policromia

A policromia é muito bonita; vemos belos mosaicos e, nas colunas, sobre fundo azul- escuro, a flor de lis de ouro. Em certos pontos encontramos aplicados alternativamente, sobre um fundo vermelho, um castelo e um leão.

Nota-se o gosto do homem medieval pela policromia: colunas vermelhas, azuis, das quais partem os “ramos de palmeira” rumo ao ponto de encontro belamente ornado. É uma verdadeira harmonia!

O azul desse “céu” é profundíssimo, como o céu atmosférico não costuma apresentar. Mas parece indicar mais o Paraíso eterno do que o céu visível da Terra. Em determinado ponto da capela, esse azul profundo e nobre contrasta com o que há de alvo, de cândido nas cenas representadas nas pinturas ou nos mosaicos.

Os vitrais da Sainte-Chapelle são lindos e famosíssimos pelo seu colorido delicado. Entre eles, vê-se um representando Nossa Senhora com o Menino Jesus e, ao lado, outro com um rei vestido à oriental, como aliás, a Santíssima Virgem também.

Chama a atenção a beleza das cores com seus variados tons, todos muito bonitos e harmônicos. Na figura do rei, por exemplo, impressiona a beleza da cor da capa, do verde em certas partes do vitral e do escrínio que ele leva. A expressão de sua fisionomia é também muito bonita.

Em outro lugar, numa rosácea, vê-se um personagem tocando alaúde. Tudo de uma suprema distinção, bom gosto, harmonia, nobreza e um certo afeto, uma certa bondade que pairam sobre tudo isso.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 1/7/1972)