01 de novembro – Justiça e misericórdia

Justiça e misericórdia

A Igreja, tendo comemorado condignamente, no dia 1º de novembro, os seus filhos que exultam no Céu, pretende, sem demora, socorrer com seus piedosos sufrágios os que ainda gemem no purgatório para que possam, o quanto antes, juntar-se aos cidadãos do Céu.

Essas palavras do Martirológio, comentava Dr. Plinio, “explicam o motivo pelo qual a Santa Igreja instituiu uma celebração própria a convidar os fiéis a alcançarem, com suas preces, a libertação das almas do purgatório.

“Neste lugar de purificação devemos ver um aspecto maravilhoso da sabedoria divina, cujo equilíbrio nele reluz de modo especial, isto é, a conjunção da justiça e da misericórdia infinitas de Deus, adornadas pela insondável solicitude materna de Nossa Senhora que desempenha particular papel em relação àquelas almas.

“Com efeito, podemos contemplar como o Criador, de um lado, não poupa a essas almas a expiação que têm de cumprir por conta das faltas cometidas neste mundo; de outro, admiramos como Ele as ama, pois passaram desta vida na graça de Deus e possuem a imensa alegria, a suprema consolação de se saberem merecedoras da eterna bem-aventurança, na qual hão de ingressar após seu período de purificação.

“Ora, para os espíritos que já não se encontram ligados a corpos mortais, que já não consideram as coisas com a fraqueza de um homem unido à carne perecível e, portanto, compreendem melhor o significado de eternidade, essa certeza do Céu representa um regozijo sem fim. Sabem que possuirão a visão beatífica e o amor de Deus para sempre, sabem que tudo quanto sofrerem no purgatório é pouco em comparação com o oceano de deleites, de alegria e felicidades infindos que as aguarda no Paraíso Celeste.

“Essa garantia traz para a alma do fiel defunto um alento indizível, fazendo-a sentir a predileção de Deus para com ela, como se o Senhor lhe dissesse: “Tu és minha filha, e minha filha dileta. Durante toda a eternidade me contemplarás, e Eu terei a alegria — de dentro de minha felicidade substancial e perfeita — de contemplar a ti!”

“Não será difícil perceber como essa promessa divina é de um valor superior a qualquer tesouro que possamos imaginar. Tanto mais se, à misericórdia divina, somarmos o carinho materno e o amparo sem limites de Maria Santíssima para com as almas do purgatório. Não sem razão A cultuamos como a vida, doçura e esperança nossa, e Ela o é, de modo todo particular, para os que purgam suas faltas a um passo do Céu. Segundo certas revelações particulares, a Mãe Deus, durante o ano inteiro (para usarmos a linguagem terrena) obtém a libertação de almas do purgatório, porém o faz de maneira especial no dia em que a Igreja celebra alguma festa mariana. Nossa Senhora desce até lá, e onde Ela entra, envolta como que num orvalho celestial, as chamas fogem, os tormentos se pacificam, as almas se tomam de um maravilhamento indescritível e muitas delas acompanham de volta o Refúgio dos Pecadores até a glória eterna, à qual doravante pertencem.”

Essas consoladoras reflexões a propósito da Festa dos fiéis defuntos, Dr. Plinio as concluía com este judicioso conselho:

“Peçamos à Santíssima Virgem, nossa esperança e doçura nesta vida e na futura, obtenha-nos a graça de nos compenetrarmos de tudo quanto significa o purgatório, como dolorosa expiação, assim como de transição para a eterna bem-aventurança, iluminado pela misericórdia de Deus e de Maria. Queira Ela nos auxiliar a termos almas limpas e íntegras, que procuram evitar não só o pecado mortal, mas também o venial, tão detestado por Deus a ponto de Este o punir com aqueles padecimentos.

Tal seria a súplica adequada a fazermos a Nossa Senhora nessa celebração.”

Plinio Corrêa de Oliveira

01 de novembro – Rainha de todos os Santos

Rainha de todos os Santos

Eleita pela Sabedoria divina como Soberana de todo o universo, Nossa Senhora é, por isso mesmo, Rainha de todas as ordenações dispostas por Deus nos vários âmbitos da Criação, de modo particular no que tange a natureza humana. E nesta, quando fiel à moral, a ordem corresponde à virtude e, portanto, a uma certa forma de santidade.

Pode-se dizer, pois, que a Senhora de todas as ordenações é, em conseqüência, a Rainha de todas as santidades que existiram, existem e ainda existirão, possuindo-as nos seus píncaros respectivos

— Regina Sanctorum Omnium.

01 de novembro – Todos os Santos

Todos os Santos

Os homens de destaque de outrora coincidiam na convicção de que, em substância, o mais alto valor de um homem consiste em ser santo. Um guerreiro, um sábio, um monarca, ou um papa, só fariam toda a sua medida quando sua sabedoria, seu heroísmo, sua capacidade de governar as almas ou as nações,  fossem levadas ao zênite pela inigualável força de propulsão da santidade.

O Carlos Magno no trono, entre o Papa São Leão III, à sua direita, e o Bispo Turpin de Reims (detalhe do sarcófago do Imperador, em Aix-la-Chapelle)

Plinio Corrêa de Oliveira (Revista Dr Plinio 44 (Novembro de 2001)

01 de novembro – Um chamado para todos

Um chamado para todos

No calendário litúrgico o mês de novembro se abre com a Festa de Todos os Santos, estendida à Igreja Universal no século IX, a fim de homenagear a multidão dos justos: aqueles que habitam a Jerusalém Celestial, canonizados ou não, bem como os vivos que se encontram na graça de Deus e conservam a sua amizade.

Nesse sentido, esta efeméride entrelaça a Igreja Triunfante, cujos membros já receberam a palma da glória eterna, e a Militante, vivendo neste mundo na prática da virtude, à espera da felicidade  futura. Consiste tal celebração, portanto, em mais um apelo para a vocação universal à santidade, dirigido por Deus a todo homem. Precioso convite ao nosso alcance e conforme aos melhores anseios de nossos corações, como salienta Dr. Plinio: Por sua natureza, a criatura humana é dotada de possibilidades e valores os quais deve procurar cultivar e aperfeiçoar, caso deseje se realizar  por inteiro. Nessa busca, ela não pode ter ambição mais bela e mais nobre diante de si, do que a de ser santa.

Enganar-se-ia quem pensasse ser o ideal da santidade exclusivo dos expoentes da humanidade que um dia chegam à glória dos altares. Não. Pela ação da graça divina, todos podemos ser cortesões do Rei dos reis no Céu, desfrutando de uma felicidade sem jaça, imorredoura, pelos séculos sem fim. Todos fomos feitos para essa imensa, criteriosa, sábia, mas ousada aventura, na qual ordenamos nossa alma para Deus, a purificamos e embelezamos, dispondo-a à bem aventurança eterna, à corte celestial onde um assento nos está reservado.

É, pois, na esperança de podermos viver, de batalhar pela nossa santificação e de morrer na paz de Deus, confiantes em Nossa Senhora, agradecendo a Ela porque nos obteve graças para nos tornarmos outros heróis da Fé e príncipes do Céu, que devemos atravessar nossos dias neste chão de exílio. Cumpre lembrar que a Festa de Todos os Santos precede a celebração da memória dos  fiéis defuntos, ou seja, da Igreja Padecente no Purgatório, ela também partícipe desse hífen maravilhoso que liga a Terra ao Céu.

Quão sensível era Dr. Plinio a esse universo aberto, no qual a Igreja Triunfante e a Penitente se unem à Militante! Entusiasmava-o sobremodo considerar essa grandiosa epopeia da santidade, a todo momento enriquecida pela ação da graça divina, dispensada a rogos de Maria em favor de todos, e impetrada por nossas orações, pelos méritos infinitos do Santo Sacrifício de Jesus renovado nos altares do mundo inteiro, assim como pela  intercessão de nossos Anjos da Guarda e padroeiros celestes.

É uma situação simplesmente admirável a que somos chamados — exclamava Dr. Plinio —, fazendo- nos santos, postos na visão e na adoração contínuas da Trindade Santíssima! E o homem que santificou sua alma, no instante de transpor os umbrais da eternidade poderá dizer as palavras mais magníficas que imagino postas nos lábios de um moribundo, repetindo São Paulo: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé; resta-me agora receber a coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz, me entregará naquele dia!” (II Tim 4, 7-8).

31 de outubro – Santidade “victa et non picta”

Santidade “victa et non picta”

Santo Afonso Rodrigues conseguiu fazer um bem imenso à Espanha e a todo o mundo, ocupando um posto humílimo. Ele era porteiro de um convento situado numa ilha que naquele tempo tinha comunicação difícil com o continente. Ali ele consumiu quarenta e cinco anos de sua existência.

Apesar de estar nesse recanto, o bom odor de Jesus Cristo que havia nele espalhou-se por toda a ilha de Palma de Mallorca, pela Espanha e depois pelo mundo, com a figura venerável desse porteiro velho, acolhedor, afável, sempre ao alcance de todos na portaria e, portanto, podendo ser consultado por quem quisesse. Isso fez de sua cadeira de porteiro um trono da sabedoria. Todos iam lá para vê-lo e ouvi-lo.

Foi uma vida toda integrada e empregada no serviço de Deus Nosso Senhor e da Santa Igreja Católica, porque a santidade, ou seja, a sabedoria, tem uma irradiação própria que a nada se compara. Não é tão importante que o Santo esteja num lugar onde todos veem, porque onde ele se encontre o afeto e a admiração confluem para lá. Basta que seja um Santo autêntico, com uma santidade – como diziam os antigos – “victa et non picta”, isto é, conquistada e não pintada.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/10/1967)

31 de outubro – Santo Afonso Rodrigues – O carisma da boa conversa

Santo Afonso Rodrigues – O carisma da boa conversa

A boa conversa é uma forma comunicativa do amor a Deus, à Santa Igreja, a Nossa Senhora, que extravasa do coração para a boca de quem fala.

Em 31 de outubro comemora-se a festa de Santo Afonso Rodrigues, confessor. Sobre ele, Schamoni, em seu livro A verdadeira fisionomia dos Santos(1), dá as seguintes notas:

Porteiro de convento durante 45 anos

Santo Afonso Rodrigues nasceu no ano de 1531, em Segóvia. Era filho de um piedoso negociante.

Deve considerar-se como transcendental em sua vida a influência do Bem-aventurado Padre Fábio, que durante algum tempo viveu entre eles, assim como mais tarde o santo religioso Francisco de Vilanova.

Com a morte de seu pai, Santo Afonso passou a cuidar dos negócios familiares, porém a sua pouca habilidade levou os negócios à falência, ao mesmo tempo em que a morte arrebatava a sua esposa, seus filhos e sua mãe.

“Na desgraça — disse o Santo — vi a majestade de Deus e reconheci a maldade de minha vida. Fizera, por causa do mundo, pouco caso de Deus e agora estava na iminência de perder-me eternamente. Ante mim vi a sublime grandeza de Deus, enquanto eu jazia no pó da minha própria miséria. Imaginei ser um segundo Davi, e um comovedor Miserere foi a expressão do meu estado de espírito.”

Dirigiu-se então à Companhia de Jesus e, depois de seis meses de noviciado, mandaram-no para o colégio de Monte Sion, em Palma de Mallorca, de cujo convento foi irmão porteiro durante quarenta e cinco anos.

Doutor de Mallorca

A confiança que sua conduta despertava contribuiu para que muitas pessoas a ele acudissem, pedindo conselhos e ajuda em seus conflitos espirituais. Santo Afonso possuía em especial o dom da conversa espiritual. Seu próprio reitor concordou que nenhum tratado religioso lhe proporcionara tanto bem como o contato com o irmão leigo. Atendia também os pedidos que lhe faziam através de numerosas correspondências. Por isto foi chamado o “Doutor de Mallorca”.

O Santo podia ter dado bons conselhos porque ele mesmo precisou suportar numerosas dificuldades íntimas e materiais e enfrentar duras batalhas.

“Sentia — comentou — cada vez com maior profundidade a grandeza do Senhor, enquanto se aguçava em mim a consciência da debilidade do meu ser. Graças a esta experiência, mergulhava no estado de absoluta inconsciência. Então só sabia amar.”

Três dias antes de sua morte, depois da sua última Comunhão, permaneceu iluminado e em êxtase.

“Que felicidade — escreveu uma testemunha ocular — despertava em nosso espírito ao contemplá-lo! E eram somente algumas migalhas da sua felicidade. Decidimos chamar um pintor para que fizesse um fiel retrato de Afonso.”

O Santo faleceu em 31 de Outubro de 1617.

Sua cadeira de porteiro tornou-se um trono de sabedoria

Esta é uma vida verdadeiramente magnífica porque traz três notas muito importantes.

A primeira delas costuma ser comentada a propósito da vida de Santo Afonso Rodrigues, e é digna de ser recordada: este Santo fez um bem imenso a toda a Espanha, a todo o mundo, e conseguiu realizar este bem num posto humílimo. Ele era porteiro de um convento numa ilha que, naquele tempo, tinha comunicação difícil com o continente, e ficava muito mais isolada do que está hoje. Ali ele consumiu 45 anos de sua existência.

Pois bem, apesar de estar nesse recanto, o bom odor de Jesus Cristo que havia nele espalhou-se por toda a ilha de Palma de Mallorca, depois pela Espanha, e mais tarde pelo mundo, com a figura venerável deste porteiro velho, acolhedor, afável, sempre ao alcance de todo mundo na portaria e, portanto, podendo ser consultado por todos os que quisessem, o que fez de sua cadeira de porteiro um trono da sabedoria. Todos iam lá vê-lo e ouvi-lo.

Vemos o que há de magnífico numa vida mesmo muito humilde como esta, quando é toda integrada e empregada no serviço de Deus Nosso Senhor e da Santa Igreja Católica. Por quê? Porque a santidade, a sabedoria tem uma irradiação própria, que não é comparável a nada. Não é tão importante que o Santo esteja num lugar onde todos veem porque para atrair, quer o afeto, quer a admiração, em qualquer lugar onde ele esteja este afeto e esta admiração confluem. Basta que seja um Santo verdadeiro e autêntico, com uma santidade, como diziam os antigos, victa et non picta, quer dizer, verdadeira e não pintada.

Com essa consideração devemos fazer duas outras, que me parecem bem mais importantes.

Considerar a grandeza divina

O modo pelo qual este Santo foi chamado a contemplar a Deus Nosso Senhor fala muito à minha alma. Considerar a grandeza divina: Deus infinitamente grandioso, majestoso, sábio, transcendente a tudo, excelente, magnífico, sublime, radioso, absoluto em toda a sua essência, misterioso, insondável!

Quando percorremos com o olhar todas as coisas e as analisamos, acabamos descobrindo tal insuficiência, tal debilidade, que chegamos à seguinte conclusão: ou valem porque são um reflexo de Deus, ou não são absolutamente nada.

Chegou a me passar pela mente o que eu faria de minha vida se não cresse em Deus. Sentiria, ao cabo de algum tempo, uma insipidez, uma sensação de vazio… Por exemplo, diante de um belo objeto: Aqui está esta peça de ouro, está bem, mas o que importa? Custa muito? Sim, porém o que me interessa? Satisfaz as minhas necessidades? Suponhamos que sim. E do que me adianta satisfazer minhas necessidades? Prolongar esta vida para quê? Tudo isto não é nada!

Mas se eu tomo em consideração que isso tudo não é senão um véu por detrás do qual está o Ser absoluto, perfeito, eterno, sapientíssimo, sublime, transcendente, então encontro algo que é inteiramente superior a todos os homens, a mim, aos que me rodeiam, e no qual as minhas vistas exaustas e maravilhadas podem repousar. Afinal encontrei algo inteiramente digno de ser visto, amado, e de que a Ele eu me dedique completamente. E isto por causa da grandeza d’Ele. Porque Ele não é uma simples criatura concebida no pecado como eu, mas é o próprio Criador perfeitíssimo!

Agora a vida tomou sentido, a existência é alguma coisa! A grandeza de Deus me ergueu do pó e me deu o desejo das coisas infinitas.

Jesus Cristo concentra todas as formas e matizes de grandeza

Este homem, este Santo, na consideração da grandeza de Deus, subiu alto, e até o fim da vida dele se arrependia dos seus pecados, e desejava ir para o Céu a fim de conhecer essa infinita grandeza.

Confesso, francamente, que me é impossível pensar nisto sem sentir uma grande alegria dentro de minha alma. Muitos morrem com medo de pensar na grandeza de Deus. Eu, pelo contrário, tenho a impressão de que, se Nossa Senhora me ajudar — e não duvido que me ajudará —, na hora da minha morte morrerei radioso, com a ideia de que, afinal de contas, vou encontrar a grandeza de Deus, vou me libertar do cárcere de todas as limitações, de todas as mesquinharias, de todas as pequenezes, de todas as contingências, para encontrar a Deus Nosso Senhor infinitamente grande. Senhor meu, Pai meu, Rei meu, tão grande, que nem sequer, apesar da visão beatífica, poderei dispensar um intermediário junto a Ele.

Então eu terei a Nosso Senhor Jesus Cristo, o Verbo de Deus encarnado.

Uma forma de grandeza… quando se fala as palavras Jesus Cristo, todas as formas, todos os sons, todos os matizes de grandeza se concentram ali de um modo superlativo. E logo junto a Nosso Senhor Jesus Cristo, infinitamente abaixo d’Ele e incomensuravelmente acima de mim, Nossa Senhora, Rainha de uma majestade insondável.

Então, o que sou eu? Uma poeira, um grão de areia perdido no meio disto tudo. Pois bem, me enche a alma a ideia de que não sou senão um grão de areia, uma poeira, mas que existe aquilo, que eu vou para aquilo, que eu me reúno àquilo e aquilo me acolhe, me aceita, me envolve, e eu passo ali a eternidade inteira. Confesso que é nesta consideração que a minha alma se dilata.

Não será talvez assim para outras pessoas. Mas há várias moradas no Céu. Que a misericórdia me receba nessa morada, porque para ela eu sinto uma atração superlativa.

A via do silêncio e a da conversa

Parece-me haver outro aspecto que deve ser muito notado aqui, e é o seguinte:
Muitos autores espirituais falam do perigo das conversas e da vantagem que há em não conversar.

Lembro-me de que, quando o nosso Movimento estava no começo, tínhamos muita dificuldade com certos elementos do clero e do laicato católico que diziam: “Vocês conversam muito. Todas as noites reúnem-se para conversar! Não era muito melhor que vocês tomassem um serviço? Por exemplo, confeccionem envelopes para auxiliar alguma obra de caridade em favor dos mendigos, e que precisa mandar propaganda para milhares de pessoas. Cada um faça, por exemplo, cem envelopes por noite; isso é muito mais abençoado do que essas conversas.”

Eu era moço naquele tempo, não conhecia muitos pontos de doutrina e não sabia defender-me inteiramente; então tentava, laboriosamente, explicar que podia haver maior bem numa conversa do que numa obra de caridade material.

“Cuidado — replicavam eles —, as muitas palavras enredam o homem em vaidades e orgulhos tolos. Mais vale calar do que falar, porque o silêncio é ouro e o falar é prata. Muitos são os homens que nesta hora padecem o Inferno porque não retiveram a sua língua. Quantos estarão no Céu felizes a esta hora porque passaram pela Terra quietos!?”

É uma via para muitos, mas para muitos outros não é. Vemos em Santo Afonso Rodrigues um exemplo desta via de conversas abençoadas.

A conversa pode ser um meio de santificação

Há um eremita que me encanta: o Bem-aventurado Charbel Makhlouf(2). É uma maravilha de silêncio, e aquele silêncio me deslumbra! Mas uns devem falar e outros devem calar. Aparece nesta biografia de Santo Afonso a doutrina de que este homem tinha uma graça especial para conversar.

Portanto, a conversa pode ser uma graça e existe um carisma próprio a ela. E as conversas abençoadas são exatamente aquelas nas quais intervém este fator sobrenatural.

Há, entretanto, um carisma negativo, que não vem do Céu, para a “anticonversa”. Está-se numa roda onde se desenvolve uma conversação muito boa; de repente chega alguém, senta-se e não diz nada… A conversa morre. Creio que vários experimentaram isso, pois é de observação comum.

Qual é a razão deste fenômeno? É a ação de presença de uma pessoa que pensa em si.

Quando o indivíduo entra para uma roda onde a conversa vai alta, mas ele está pensando em si, carregando um ressentimento, uma preocupação, uma ambição, uma preguiça, e procura fazer com que a conversa tome a orientação deste seu pensamento em vez de seguir, ao sopro da graça, o tema dominante — ainda que ele seja tartamudo e diga uma palavra em cada dez minutos —, corta a bênção da conversa.

Qual é o carisma da boa conversa? É uma forma comunicativa do amor a Deus, à Santa Igreja, a Nossa Senhora, que extravasa do coração para a boca de quem fala.

Temos na vida de Santo Afonso, portanto, um ponto de nossa doutrina bem firmado: a conversa pode ser uma graça e, quando assim é, decorre em geral de um carisma que Nossa Senhora dá para fazer do convívio das almas um meio para que elas se santifiquem.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/10/1967)

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da referida obra.
2) Canonizado em 9 de outubro de 1977.

30 de outubro – Proclamando as verdades sem rebuços

Proclamando as verdades sem rebuços

Em suas pregações, o Beato Ângelo de Acri increpava os pecados praticados por muitos de seus ouvintes, e depois os animava para terem muita confiança em Nossa Senhora. Como na Vendée, também na região evangelizada pelo Beato Ângelo surgiu um movimento contrarrevolucionário que lutava a favor da Santa Sé.

 

No dia 30 de outubro, temos a festa do Beato Ângelo de Acri. Os dados biográficos que serão comentados foram tirados da obra Vida dos Santos, do Padre Rohrbacher(1).

Infatigável apóstolo do Sul da Itália

Ângelo, que seria o grande e infatigável apóstolo do Sul da Itália no decorrer do século XVIII, nasceu no dia 19 de outubro de 1669, em Acri, na Calábria. Filho de operário, ingressou na Ordem dos capuchinhos, onde foi missionário por cerca de quarenta anos.

Seus sermões atraíam milhares de ouvintes e o número de conversões era impressionante. Recebeu uma especial graça para conduzir os infiéis à Fé, e previu os males que a Filosofia do seu século faria à Religião.

Contam seus biógrafos que o seu primeiro sermão deveria ser pregado na Quaresma. Ângelo preparou-se longamente, estudando e planejando. Foi um fracasso. Entristecendo-se sobremaneira, implorou a Deus que o socorresse, fazendo-lhe ver o que Ele queria.

Ouviu então uma voz misteriosa que lhe disse: “Eu sou Aquele que é. Nada temas, Eu te concederei o dom da palavra e teus trabalhos jamais serão inúteis. Para o futuro, pregarás somente num estilo simples, a fim de que todos possam compreender bem as tuas palavras”.

O Bem-aventurado compreendeu, então, o que era importante realmente. Queimou os sermões que preparara e desde aquele dia só consultou a Bíblia, não abandonando também o seu Crucifixo.

Guardião do convento de Acri, Ângelo mais tarde foi provincial. Sua vida foi toda de grandes e frutuosos trabalhos apostólicos, e cheia de milagres. Atravessava correntes de água a pé enxuto e, muitas vezes, em tempo incrivelmente curto, venceu longas distâncias para confessar um doente ou pregar em longínquas aldeias. Cego, durante um período de sua vida, recuperou a vista para celebrar a Missa e rezar o Ofício.

Aos 30 de outubro de 1739, com setenta anos, entregou a alma ao Criador, que servira sem descanso. Foi beatificado por Leão XII, em 1825.

O século da elegância, da distinção, do bom gosto…

Vemos resumida aqui a vida de um desses padres famosos que deram o perfil ao missionário da Ordem dos capuchinhos, os quais constituíram um dos exércitos mais adiantados e eficientes da causa contrarrevolucionária da Igreja, no século XVIII.

Para compreendermos bem isto, precisamos ter uma ideia do século XVIII, quais eram seus desmandos, como também suas qualidades, e nos colocarmos um pouco em face do que era a Ordem Capuchinha e sua missão especial naquele tempo.

Aquele foi o século no fim do qual se deu a Revolução Francesa, em 1789, estendendo-se, conforme se queiram contar os prazos, até 1821, com a morte de Napoleão. Foram, portanto, mais ou menos trinta anos de revolução contínua, uma das maiores revoluções da História. Mas esta enorme Revolução, durante todo o século XVIII, não deixou de fermentar continuamente, de maneira que, tendo recebido maus fermentos de protestantismo do século XVI, e no século XVII, no século XVIII, estes fermentos chegaram a uma espécie de intumescimento enorme que se fixava de preferência em determinadas classes sociais e se caracterizava com traços especiais.

O século XVIII foi, de um lado, a época na qual certos predicados de civilização, nascidos da Igreja Católica, chegaram ao seu pleno apogeu. Foi o século da elegância, da distinção, do bom gosto, das belas maneiras, de grandes literatos, de grandes artistas, da vida de corte levada ao seu mais alto grau de florescimento.

Mas como todas as coisas neste mundo, mesmo quando são boas, só conseguem evitar a sua própria deterioração e putrefação quando são profundamente unidas à Igreja, e como, infelizmente, no século XVIII havia um divórcio cada vez maior entre a sociedade e a Igreja, aconteceu que essas qualidades nascidas da Civilização Cristã eram deterioradas pela impiedade do século.

…deteriorou-se pela fragilidade, moleza, sentimentalismo

Temos, então, este paradoxo: foi o século da delicadeza por excelência, mas de uma excelência deteriorada até a fragilidade, a moleza e a uma espécie de exagero de sentimentalismo. Foi o século da distinção, mas também da sensualidade. Nós poderíamos colocar em colunas as várias qualidades e as antíteses destas. Uma espécie de protuberância da luz primordial(2) e, ao mesmo tempo, de explosão do pecado capital da Europa. No final do século XVIII, naturalmente, as qualidades deterioradas estavam sobrepujando de muito as boas. Como resultado, eclodiu a Revolução Francesa.

As classes sociais principalmente afetadas por esta deterioração eram as elites. Há um provérbio antigo o qual diz que o apodrecimento do peixe começa pela cabeça. Assim também a putrefação de qualquer sociedade tem seu início nas classes mais altas.

Naquele tempo, quais eram essas classes? O clero, que era a primeira; a nobreza, segunda classe social; e depois a alta burguesia, muito rica e, por isso, muito chegada à nobreza, tendendo mesmo a se misturar com ela.

Clero, nobreza e burguesia entraram em decadência

É doloroso dizer, mas o clero estava tão trabalhado pelo espírito do tempo, pelo ateísmo, pela libertinagem, pelo gosto dos costumes depravados, que não era raro encontrar padres, bispos e até cardeais declaradamente ateus. Recebiam cargos eclesiásticos que, na sociedade daquele tempo, eram considerados muito rendosos, e levavam depois uma vida absolutamente como qualquer civil.

Os conventos de freiras eram um pouco mais moralizados do que os de frades. Mas mesmo aqueles eram uns depósitos de solteironas. As famílias eram muito numerosas, e as da nobreza muitas vezes não tinham dinheiro para manter no estado nobiliárquico todas as suas filhas. Então, empurravam para as Ordens religiosas as filhas que não tinham condições financeiras para manter. Estas, portanto, ingressavam nas Ordens religiosas sem vocação. Eram conventos ricos que proporcionavam uma vida muito farta e cômoda às freiras que, podendo manter relações sociais, levavam uma vida mundana e tranquila, sem preocupações econômicas.

Os homens da nobreza conservavam a valentia dos antigos tempos, sendo habitualmente muito bons guerreiros. Na sociedade, eram fidalgos brilhantes, mas também profundamente afastados da prática da Religião e entregues aos prazeres da vida.

A alta burguesia procurava macaquear a nobreza como podia, meter-se nela por meio de casamentos com membros da nobreza empobrecida, de maneira a subir. Assim, a burguesia, que fora no século XVII uma classe muito moralizada, estava se contaminando com todos os defeitos da nobreza.

Deus suscita Ordens religiosas para preservar o povo dos erros da Revolução

Contudo, o povo ainda não tinha sido penetrado a fundo por todas essas deformações inerentes à impiedade, ao ateísmo, ao enciclopedismo e aos erros filosóficos e morais do século XVIII. Sobretudo, quando se tratava do povinho que morava nas cidades médias e pequenas ou no campo.

Tratava-se, portanto, de realizar a contraofensiva na Igreja, num sentido contrarrevolucionário, em duas linhas completamente diferentes: na alta sociedade e no povo.

Atuando junto à alta sociedade houvera antigamente a Companhia de Jesus que, de fato, nos tempos heroicos da Contra-Reforma, prestou altos serviços designando seus membros para serem confessores de reis, príncipes, cardeais, papas, grandes senhores feudais, burgueses influentes e, com isto, concorrendo para orientar bem a alta sociedade. Os jesuítas possuíam grandes intelectuais, escritores, oradores e muito bons políticos. Porém, ao longo do século XVII, a Companhia de Jesus entrou em decadência e no século seguinte foi fechada, em parte por suas qualidades, em parte por seus defeitos.

A alta sociedade rolava, assim, para o caminho da apostasia, não sendo suficiente a ação de grandes Santos, como Santo Afonso Maria de Ligório e o Bem-aventurado Inocêncio XI, para conter a avalanche da impiedade.

Fazia-se necessária uma Ordem religiosa que tratasse de segurar pelo menos o povinho dentro da prática da Religião. Para isto, Deus Se utilizou, em boa medida, da Ordem dos capuchinhos, que constituía o ramo mais austero da família franciscana, e cujos pregadores eram missionários voltados principalmente a evangelizar o povo. Para isso, deveriam ser pregadores populares, dizer as verdades claramente e representar, por todo o seu modo de ser e de agir, a Religião Católica nas virtudes que o século negava. De fato, no século XVIII, a Ordem capuchinha brilhou por vários missionários dotados dessas qualidades, os quais concorreram muito para evitar que o povinho se tornasse revolucionário.

Beato Ângelo operou um número enorme de conversões

Vemos, por esta narração da vida do Beato Ângelo de Acri, como ele era um homem extraordinariamente adornado de qualidades para isso. Deus o suscitou para uma parte da Europa até havia pouco tempo era a menos desenvolvida da Itália, ou seja, o Sul do país, a Calábria, a ilha de Sicília. Um território montanhoso, com acessos difíceis, levando-se muito tempo para as locomoções, com muito banditismo que atacava os transeuntes quando se deslocavam de um lugar para outro, dificultando as missões se exercerem corretamente.

Ele, um homem do povo, quis começar como pregador fazendo uma grande homilia, mas a Providência lhe deu uma grande lição. Nada de sermões rebuscados. Estes devem ser simples, dizendo clara e diretamente as verdades. Ele, que preparara um portentoso sermão, foi fazê-lo… grande fracasso. Aí ele tomou a lição, chorou aos pés de Deus e Ele lhe fez conhecer que deveria fazer pregações simples, inspirados na doutrina da Igreja, portanto também na Revelação – da qual a doutrina da Igreja não é senão uma explanação e uma interpretação autêntica –, e que precisaria dirigir-se ao povo com linguagem compreensível por todo mundo, falando mais pela piedade do que pelos grandes argumentos. Porque o pregador popular deve ser assim.

Depois Deus fez com que as suas palavras fossem tocadas pela graça, produzissem um número enorme de conversões. Essas conversões não vinham das sublimidades dos argumentos por ele invocados, mas do contágio da santidade do pregador, da solidez de sua doutrina, da simplicidade de sua linguagem, e do efeito que sua personalidade operava sobre os ouvintes.

De fato, sua santidade era contagiosa; os ouvintes escutavam suas palavras e ficavam entusiasmados, convertendo-se em grande quantidade.

No que consistia essa conversão? Eram pessoas que, por ignorância e falta de bons pastores, tinham abandonado a Religião. E o Beato Ângelo as levava em quantidade de volta à prática da Religião. Tratava-se, portanto, de pessoas católicas, na sua raiz, mas esfriadas. Portanto, eram esses católicos tíbios que ele convertia.

A Providência lhe concedeu o dom dos milagres

Para tornar a sua pregação mais eficiente ainda, Deus lhe concedeu o dom dos milagres. Por exemplo, o mundo convenciona como sendo grande o milagre da travessia do Mar Vermelho, a pé enxuto, pelos judeus. Ora, o Beato Ângelo de Acri, por diversas vezes, aos olhos do povo atônito, atravessava cursos de água, torrentes, rios, e chegava seco do outro lado.

Ou então se dirigia com rapidez a lugares de acessos extremamente complicados. As pessoas viam que o frei tinha percorrido rapidamente uma distância enorme, quando nenhum cavalo podia levar um cavaleiro nessa velocidade. Logo, o milagre estava patente.

Podemos imaginar a impressão disso sobre o povinho, que não entende muito os argumentos apologéticos, mas que, vendo o pregador bom operar esses milagres, ficava entusiasmado e aclamava: “Deus está entre nós!” Aplausos e estava feita a conversão.

Que halo de santidade se constituía em torno desse pregador! Um homem alto ou baixo, magro ou gordo, pouco importa, revestido de simples burel franciscano, próprio a quem abandonou todas as pretensões da Terra, com o Rosário em cujo ponto de junção das três partes encontra-se o crânio de uma caveira, para indicar que o capuchinho deve ter a morte constantemente diante dos olhos. Grandes jejuns, sandálias com os pés aparentes, mortificação, abandono de todas as coisas, grande barba, numa época em que ninguém a usava, ou até mesmo era ridículo e feio deixá-la tão longa. Tonsura, com aqueles dois sulcos próprios dos franciscanos da era constantiniana.

Nos sermões atacava principalmente os erros da época

Imaginem a impressão causada por tudo isso numa igrejinha qualquer encarapitada num monte da Calábria, onde havia uma aldeiazinha com cem, duzentas pessoas, ao ser noticiada a vinda do padre! O sino da aldeia tocava, todos os camponeses dos arredores vinham trazendo suas crianças. Então, faziam uma grande concentração na cidade para ouvirem embevecidos a palavra do frade. Noitinha, mês de Maria, a igreja iluminada com poucas velas, porque eram pobres e não tinham dinheiro suficiente para fazer um culto estupendo. Começavam, presumivelmente, com cânticos, entoados por bonitas vozes afinadas, como as há no Sul da Itália; um cântico esplêndido, por exemplo, uma ladainha em honra de Nossa Senhora.

De repente, cessa tudo e o frei, tido como santo, sai da sacristia e sobe ao púlpito arranjado segundo o clássico sistema capuchinho: o Crucifixo fixado no púlpito, um pouco em diagonal. O pregador se ajoelha, enquanto o coro canta a Ave-Maria. Percebe-se que o Santo reza. O público fica à espera de que, a qualquer momento, ele se levante e realize um milagre. Frei Ângelo se ergue com singeleza e começa a falar, como diz a ficha, atacando principalmente os erros da época e exercendo aquela forma de eloquência popular e máscula, que caracterizou os capuchinhos, a qual consistia em larga medida não apenas em ensinar o bem, mas em vituperar o mal.

Por vezes, segundo a praxe dos capuchinhos do tempo, dirigia-se às pessoas do auditório para censurar algum costume ou vestimenta imoral: “A senhora ali, vestida com tal traje, se dá conta de que esse decote é uma ofensa a Deus? A senhora não tem vontade de se cobrir com o xale de sua amiga que está ao lado? Tenha a bondade de fazê-lo”. Isso, no povo italiano do Sul, muito vivo, produzia comentários: “A Pepa agora ficou com a cara no chão!”

Ou então desvendando o estado de alma de um ou outro ouvinte: “O senhor pensou tal coisa, mas não é verdade”. O indivíduo formula por dentro uma objeção e o pregador diz: “Também isto que o senhor acaba de cogitar é errado, por tal razão”.

Após esbordoar o auditório, falava da confiança em Nossa Senhora

Compreende-se o impacto disso sobre a população. O zelo aumenta, o entusiasmo ferve, acentua-se a sensação de que Deus está presente, enfim mil movimentos interiores da alma se fazem sentir.

Depois de ter esbordoado bem seu auditório, começava então a parte da misericórdia, da bondade: “Não desespereis, confiai em Nossa Senhora, Mãe de toda bondade!” Cita algum episódio bonito do Evangelho, e termina recomendando a oração e a confiança ilimitada em Deus. Choro e contrição. O padre espera acabar a bênção do Santíssimo Sacramento, vai para o confessionário e fica às vezes até de manhãzinha, na hora da Missa, ouvindo os pecados daquela gente e dando a absolvição, recomendando penitência.

Três, quatro dias da estada de um padre assim numa paróquia, e ela estava regenerada. Durante anos citavam-se de memória trechos de seus discursos. Contavam-se casos narrados por ele, apontavam-se milagres… A passagem daquele padre por lá era como uma bênção que deixava um perfume durante anos, às vezes ao longo de uma geração inteira. Assim passava um capuchinho do grande estilo e da grande clave por aquelas populações.

O movimento dos sanfedistas

Os resultados eram apreciáveis. Por exemplo, São Luís Maria Grignion de Montfort, grande missionário, pregou na Vendée, e aquela região da França veio a ser foco da reação contra a Revolução Francesa. Sabe-se menos frequentemente que houve uma espécie de Vendée nessa zona evangelizada pelo Beato Ângelo de Acri, que foi o movimento dos chamados sanfedistas, camponeses que lutavam contra os erros da Revolução e a favor da Santa Sé, tendo à sua frente o Cardeal Fabrizio Ruffo, que armou e manteve uma Cruzada no Sul da Itália, esbordoando violentamente os partidários da Revolução. Eram as pregações de homens como o Beato Ângelo que produziam essas transformações e preparavam esses lindos movimentos de alma.

Compreendemos melhor, através desses exemplos, o disparate dos que apresentam os meios clássicos de evangelização da Igreja como decrépitos, peremptos, e proclamam que se a Igreja não se modernizar completamente e não abandonar os seus velhos métodos, não terá fecundidade alguma. Esses, muitas vezes, apresentam como argumento sua própria experiência, dizendo: “Sermão, hoje em dia, não adianta mais. Olhe o resultado do meu sermão! Confissão, nenhum efeito produz. Veja o que acontece quando eu atendo confissões…”

Tem-se vontade de responder: “Não percebe que o mal está em você? É claro, um sermão pregado sem zelo, sem entusiasmo, sem dedicação, à maneira de um burocrata insípido, evidentemente não vai mover ninguém. Para um sermão mover alguém, precisa ser pregado por quem tem Deus consigo. Ora, se você não está junto de Deus é um mundano pervertido com as máximas do século. A quem espera converter? Um perverso não converte, antes perverte quem o escuta. Fosse você um homem como o Beato Ângelo de Acri, veria como de sua pregação sairiam outros resultados. O mesmo se aplica ao Sacramento da Confissão. Esses meios não envelheceram. O problema é que em você entrou em decrepitude a graça. Se você abusa do seu sacerdócio, pelo menos não blasfeme contra ele cunhando-o de ineficaz; reconheça que você não o usa como seria de desejar”.

O traje do capuchinho simbolizava sua ruptura com o mundo

Tivéssemos mil desses Beatos, o Brasil não seria uma outra nação? Nem precisaríamos de televisão para isto. A televisão supre isto? Será que ver um Santo pela televisão é o mesmo que o contemplar na igrejinha velha, no púlpito cuja escada estala quando ele a sobe, mas num contato pessoal de alma a alma, diretamente? Muito mais eficaz do que gravar discos ou filmes para o cinema é a presença pessoal do homem de Deus, com a ação pessoal que ele desenvolve. É isto que verdadeiramente move os homens.

Não sou contrário à televisão católica. Sobretudo não sou contrário à imprensa católica. Isto fica patente por várias atividades que tenho exercido. Mas a própria imprensa, nem de longe, produz o efeito da ação pessoal. Esta é a primeira e a mais eficaz das ações, e é insubstituível. Quando um clero é incapaz de exercer a ação pessoal, ele não é capaz de absolutamente nada. Porque este é o ponto essencial da atuação do clero.

O capuchinho produzia um efeito próprio porque o seu traje simbolizava sua ruptura com o mundo. Era um traje em que estava anunciado que ele não tinha nada a ver com o século. Podemos imaginar aquela época em que tantas pessoas usavam roupa com seda magnífica, veludos estupendos, bordados a ouro e prata, formas elegantíssimas, chapéus com plumas, joias magníficas, carruagens que pareciam andores, calçando sapatos de verniz e, sendo nobre, com saltos vermelhos. De repente, chega um capuchinho com aquele burel rústico, pés de fora, e dizendo todas as verdades sem rebuços.  Que efeito uma coisa desta produzia!

Devemos abandonar a maldita ideia de que se arrastam os outros, sobretudo, com sorrisinhos e amabilidades de caixeiro-viajante. A habilidade para conquistar uma alma não é a mesma que precisa ter um indivíduo para vender um canivete, uma peteca ou uma laranja. São ações completamente diferentes.

O gemido do mau é uma manifestação de admiração tão segura quanto o aplauso do bom

Precisamos, pois, entrar nos ambientes, como arautos, querendo apenas conquistar as almas para Deus e, portanto, proclamando a verdade à maneira de sinos no alto de um campanário, cujos sons descem e a cidade inteira ouve.

Poder-se-ia objetar que essa atitude não atrai a admiração de ninguém.

Para responder a essa objeção é preciso definir o que é admiração. Habitualmente se tem a respeito da admiração um conceito dos mais primitivos. São objeto de admiração as pessoas que provocam elogios.

Na realidade, o sentimento mais raramente externado pelas pessoas é o da admiração. Pode-se até admirar e ficar quieto, mas a palavra elogiosa não é o sintoma necessário da admiração, porque muitas vezes as pessoas elogiam, mas de fato não admiram. Enaltecem alguém porque é moda, por causa de conveniências de toda ordem.

Qual é o verdadeiro sintoma de admiração? No fundo é admirado aquele que atrai o olhar, em quem se fixam as atenções e provoca a reflexão. Este conseguiu um primeiro grau de admiração. Quando a palavra dita não é aceita, mas se torna algo à maneira de uma batata quente na cabeça do ouvinte, o qual continua durante muito tempo a refutar quem a pronunciou, essa é a prova de que este foi admirado. Ele marcou com o fogo dele aquela alma. Quem disse a verdade pode se tornar objeto de campanha de silêncio, ser criticado, eventualmente expulso. Isso acontecerá precisamente por ele constituir uma dificuldade para a consciência de todo mundo. Este é admirado.

Por certo, a admiração não está, necessariamente, em se fazer expulsar, mas certamente ser expulso, em certas circunstâncias, é uma sólida prova de admiração. Nosso Senhor Jesus Cristo foi admirável em tudo. Ora, o Profeta Simeão disse que Ele tinha sido posto em Israel para que se conhecessem as cogitações de muitos corações. Realmente, assim faz o homem verdadeiramente admirado. Ao bom, ele edifica, deixando na alma a marca da virtude; ao mau, ele abala e incomoda. O gemido do mau é uma manifestação de admiração tão segura quanto o aplauso do bom.

Se tivéssemos tudo isso bem presente no espírito, como seria diferente o nosso apostolado!

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/10/1971)

 

1) Cf. ROHRBACHER, René-François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. v. XIX, p. 85-87.

2) Termo cunhado por Dr. Plinio para designar a aspiração que todo ser humano tem para contemplar as verdades, virtudes e perfeições divinas de um modo próprio e único, pelo qual dará sua glória particular ao Criador. Cf. Revista Dr. Plinio n. 54, p. 4.

29 de outubro – Santo Abraão – Franqueza e métodos diretos

Santo Abraão – Franqueza e métodos diretos

Sabendo sempre jogar a cartada franca na hora certa, apesar de passar por diversos dissabores, Santo Abraão conseguiu converter uma cidade pagã destruindo todos os ídolos ali existentes. Que Maria Santíssima faça chegar logo o dia em que o ídolo da Revolução possa ser derrubado por nós. Mesmo que sejamos lapidados, Nossa Senhora nos restaurará para fazermos as obras que Ela deseja.

Chegaram ao meu conhecimento alguns dados sobre a interessante vida de um Santo do século IV chamado Abraão, que evidentemente não deve ser confundido com Abraão, patriarca do povo de Israel.

Durante a festa de casamento, foge para uma gruta

Ele era da cidade de Edessa, nascido de uma família nobre e rica. Quando os pais, que deitavam muita esperança em seu futuro, viram-no ficar moço, deliberaram casá-lo com uma moça igualmente nobre e rica para o realce da família. Na realidade, ele não tinha vontade de se casar e fez muitas insistências neste sentido, mas a família exerceu tão grande pressão que ele, cedendo, contraiu o casamento.

As bodas se deram em meio a grandes pompas e festividades, as quais, à maneira oriental, duraram uma semana inteira e deveriam culminar com uma grande festa no último dia, depois da qual começava a vida conjugal entre os nubentes.

Eles já estavam casados no religioso, e naquele tempo o casamento religioso produzia os efeitos civis com todos os vínculos estabelecidos.

Após cada dia de festa ele ficava mais contrariado com o rumo que tinha tomado, até que fugiu de casa discretamente, indo localizar-se num lugar completamente ermo, mais ou menos a duas milhas de distância de sua cidade.

Então os pais, a esposa e toda sua família começaram a procurá-lo por todos os lados. Foram primeiro aos lugares de prazer; não o encontrando, procuraram-no nos locais de trabalho, principalmente no Fórum, que naquele tempo não era como hoje, ou seja, um lugar onde se distribui a justiça, mas uma espécie de imensa praça pública na qual se tratavam os negócios, havia mercado, faziam compras e vendas, era o centro da vida da cidade. Entretanto, ali também ele não estava. Então, ordenaram uma busca sistemática nos arredores da cidade e, afinal de contas, encontraram-no numa gruta que ele mesmo tinha murado do lado de dentro, de maneira a deixar apenas um pequeno quadrilátero por onde passar pão e água.

Os parentes o descobriram lá, interpelaram-no e ele explicou ter se casado contra a própria vontade, e que o matrimônio, não tendo sido consumado, fora nulo. Como Abraão insistia que não queria saber do casamento, a moça teve que desistir, e ele ficou na gruta. É um bonito exemplo de homem que se subtrai à ação do contexto.

Ordenado sacerdote

Nessa gruta ele permaneceu durante muitos anos e ali recebeu a notícia de que seus pais tinham morrido deixando-lhe uma imensa fortuna, da qual ele podia dispor. Porém, ele não queria essas riquezas, porque dentro do isolamento em que vivia bastavam-lhe um manto, uma túnica e um recipiente de barro no qual recolhia a água que corria na própria gruta onde morava. Entretanto, sendo precavido, constituiu um parente seu como procurador para administrar a fortuna. Deu ordem para distribuir a metade para os pobres, e não indicou o que devia ser feito com o resto.

Continuou a viver durante muitos anos na gruta e tornou-se um homem muito admirado pelo povo que, de vez em quando, ia lá para visitá-lo.

Certo dia apareceu o bispo diocesano querendo falar com ele. Abraão, muito humilde, declarou ao prelado que não podia compreender como um homem de tal categoria dignava-se ir ter com ele, um simples eremita que vivia na sua gruta, isolado.

O bispo disse ter um assunto muito grave para tratar com ele. Toda aquela zona já estava convertida, com exceção de uma cidade de bom tamanho e importante que havia nas proximidades, a qual ainda era completamente pagã, rejeitava e matava todos os sacerdotes que iam se estabelecer lá. Não sabendo mais o que fazer, pareceu conveniente ao prelado conferir a ordenação sacerdotal ao eremita Abraão, que gozava de tal fama de santidade, e convidá-lo a se transferir para a cidade, onde seria vigário, assumindo a responsabilidade pelo culto.

O eremita, pelas instâncias do bispo, percebeu que era vontade de Deus e concordou em deixar sua ermida para ser ordenado sacerdote, dirigindo-se depois para a cidade, onde assumiu corajosamente a função de vigário.

Os pagãos o lapidaram, deixando-o quase morto

Entrou sozinho e ignorado na cidade hostil. Ali chegando, ajoelhou-se no chão diante do povo, e pediu a Deus que convertesse aquela cidade. As pessoas, andando de um lado para outro, não ligaram para ele.

Santo Abraão estudou uma técnica de apostolado que lhe parecia mais própria a trazer a si os infiéis. Havia na cidade um templo pagão que passava toda a noite aberto. Quando anoiteceu, o santo sacerdote entrou com cuidado numa hora em que não havia ninguém, pegou todos os ídolos, jogou-os no chão reduzindo-os a cacos, varreu e levou tudo embora. No dia seguinte, ao raiar da aurora, ele ficou esperando o resultado.

Logo de manhã, os primeiros que foram adorar os ídolos não os encontraram e notaram, por alguns sinais, que tinham sido quebrados. Percebendo ter sido o padre quem se ocupara disso, foram até ele e o lapidaram, deixando-o quase morto.

Pelo fim do dia, Santo Abraão restabeleceu-se um pouco e, com os restos de voz e de saúde que ainda conservava, começou a increpar o povo contra os ídolos e a exortá-lo à conversão. Contudo, os infiéis não se converteram. Pelo contrário, indignaram-se, deram-lhe uma sova vigorosa, e o maltrataram fortemente.

Santo Abraão, que gostava das táticas diretas, dirigiu-se então a Deus, dizendo: “Meu Deus, Vós me fizestes nomear vigário nesta cidade, e eu apanho todos os dias… Que solução há para este caso?! Dai-me saúde!”

A oração de um Santo move montanhas. Ele rezou por si mesmo, levantou-se em perfeito estado de saúde e começou a pregar. A população da cidade ficou meio impressionada com o milagre, mas não se converteu.

Cumprida a missão, regressa para a gruta

Em certo momento, eles tiveram um caso muito complicado de interesse comum e não havia meio de solucionar. Um deles disse: “Olha, quem deve saber resolver esse assunto é o padre. Ele é inteligente e, ademais, precisamos reconhecer que desde quando está entre nós não tem feito senão dar exemplos muito bons, ajudar todo mundo que ele pode e distribuir esmolas. Os nossos ídolos, afinal de contas, o que eram? Ele os quebrou e não se salvaram a si próprios. O padre, entretanto, curou a si mesmo. Por que havemos de estar ainda acreditando nesses ídolos? Não tem propósito nossa conduta com ele; devemos procurá-lo e começar por pedir-lhe perdão de nosso mau procedimento, e então rogar um conselho para resolver a situação dentro da qual nos encontramos.”

Assim, foram todos a Santo Abraão que os recebeu muito benignamente. Evidentemente, quando resolveram procurá-lo já estavam abalados na sua infidelidade e propensos a uma conversão. Durante a conversa declaram que queriam converter-se. Começou, então, o trabalho enorme da conversão da cidade: batizar, orientar todas as pessoas, até a população inteira mudar. Nessa ocasião, Santo Abraão aproveitou o dinheiro que ele tinha com o primo para mandar construir uma igreja na cidade. Vemos como tudo é feito com método, direito.

Construída a igreja, todos estariam no direito de esperar que as coisas continuassem bem. O vigário orientaria o povo, tudo correria perfeitamente. Entretanto, numa bela manhã vão procurá-lo, mas ele não estava na igreja. Tinha fugido mais uma vez… Assim como fugira da esposa, ele fugiu também da paróquia e voltou para a gruta.

Para lá se dirigiu o bispo, acompanhado de uma grande parte do clero, a fim de pedir ao santo eremita que reassumisse as funções de vigário. Porém, este declarou que a missão que recebera do prelado estava cumprida, pois a cidade se convertera. Agora, ele pedia o consentimento do bispo para permanecer como eremita na gruta; ao que o prelado acedeu.

Educa uma sobrinha, que depois caiu numa vida devassa

Depois de algum tempo, ele recebe um emissário da cidade contando-lhe que seu irmão tinha morrido, deixando uma grande fortuna, cuja herdeira universal era uma menina, a respeito da qual o falecido deixara a recomendação de que fosse educada pelo santo eremita.

Santo Abraão considerou ter responsabilidade para com essa menina e, portanto, era obrigado a fazer alguma coisa por ela. Sendo, até o fim da vida, amigo dos processos diretos, ele disse: “Pois bem, mandem vir a menina que eu a educo.”

Chegada a sobrinha, ele mandou murar outra parte da gruta, mantendo um orifício na parede pelo qual, em certas horas do dia, ele ensinava para ela tudo quanto uma menina daquele tempo precisava saber.

Passaram-se os anos, e a menina correspondia bem à educação recebida. Entretanto, uma circunstância qualquer a levou a decair na vida espiritual e dizer a ele que queria sair. Por fim, ela acabou fugindo para a cidade.

Como a jovem já estivesse em sua maioridade, Santo Abraão considerou que não tinha mais nada a fazer. Porém, começou a receber notícias de que a sobrinha vivia em condições miseráveis, e caíra moralmente tão baixo que estava praticamente perdida.

Então ele considerou que era desígnio da Providência tomar outra atitude enérgica, audaciosa, um tanto surpreendente, dessas atitudes que os santos adotam, e a respeito das quais a Igreja diz que se deve admirar, mas não imitar. Atitudes que, de si, intrinsecamente falando, não são pecados, mas podem constituir ocasião próxima de pecado, à qual ninguém pode se expor, a menos que movido por uma ação da graça. Nesta hipótese, então, com garantias e auxílios sobrenaturais especiais, a pessoa vai enfrentar aquela ocasião. Mas é muito delicado, só mesmo quando ela tem certeza de estar sustentada por uma graça especial pode expor-se a isso.

Santo Abraão mandou vir a indumentária de um soldado e, apesar de estar velho, foi à cidade e entrou no estabelecimento onde a sobrinha levava uma vida devassa. Ela estava oferecendo um banquete, e a certa altura apareceu vestida com um luxo indecente, imoral, e não reconheceu o tio. A conversa seguia o seu curso, mas como ele era um homem muito inteligente e dotado, ela achou graça na prosa dele. As outras pessoas presentes foram, aos poucos, pelo movimento natural das coisas, afastando-se e deixando os dois conversando sozinhos.

Quando os dois estavam a sós, ele tirou o elmo de soldado e disse:

— Minha sobrinha, você me reconhece?

Ela teve um choque, caiu de joelhos, baixou os olhos e disse:

— Eu não ouso olhar-vos.

— Por quê?

— Porque sinto que caí num pecado muito profundo e que não sou digna de vossa presença.

— Largue tudo isso e vamos para a gruta!

Ela se levantou, ficou em pé durante algum tempo hesitando, e ele continuou:

— Deixe todos esses trapos com que você está vestida, tome uma roupa simples e fuja comigo.

Como se vê, ele era especialista em fugas para o Céu!

A sobrinha concordou e disse:

— Mas o que vou fazer desses trajes preciosos?

— Pouco importa, deixe-os abandonados. Salve a sua alma!

Sucesso da ação direta, franca, clara e positiva

Ela voltou para a gruta com ele, fez penitência a vida inteira. Ele ainda ficou até o fim da vida com ela na gruta, e assim terminou a história dos dois. Não sei se ela foi canonizada. Ele é venerado pela Igreja com o nome de Santo Abraão.

É uma linda vida que nos situa num ambiente de franqueza e retidão, onde o povo, por mais degradado que estivesse, suportava as verdades e os métodos diretos.

Esses pagãos indecentes eram assassinos horrorosos, pois só faltou matarem o padre. Se não fosse o milagre que ele fez, restaurando por ação sobrenatural a sua própria saúde, seu apostolado teria cessado. No afã de fazer apostolado, ele quebrou os ídolos, enfrentou aquela gente, mas alcançou o objetivo que tinha em vista. Ele padeceu por amor à verdade, mas foi direto ao ponto. Resultado: converteu as pessoas.

Isso feito, vemos o desapego dele. Tendo convertido aquela gente, Santo Abraão poderia ter levado uma vida tranquila, dormindo sobre os louros conquistados. Porém, estando a obra acabada e consolidada, ele foi embora. De fato, a Fé ficou estabelecida no lugar, foi possível implantar um clero, uma religiosidade normal. Então, ele fugiu porque fizera tudo para a glória de Deus e de Nossa Senhora.

Tendo voltado para sua gruta, de lá saiu novamente para salvar a sobrinha, mas por um método direto também.

Notamos como ele, jogando sempre a cartada franca na hora certa, passou por dissabores que um poltrão qualificaria de insucessos, mas uma pessoa que considera o todo de sua vida não pode deixar de reconhecer como sucessos admiráveis. Santo Abraão morreu admiravelmente bem sucedido. É o sucesso da ação direta, franca, clara e positiva.

Peçamos a Maria Santíssima que faça chegar o dia em que também o ídolo da Revolução possa ser derrubado por nós com igual franqueza. É possível que sejamos lapidados, mas saberemos exercer o direito de legítima defesa. Nossa Senhora nos restaurará para fazermos por Ela as obras que Ela deseja.            

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/12/1974)
Revista Dr Plinio 259 (Outubro de 2019)

28 de outubro – São Simão e São Judas Tadeu

São Simão e São Judas Tadeu

Considerando o respeito com que a Igreja cerca a memória desses Apóstolos, a gratidão com que ela os trata, a afirmação da santidade pessoal que alcançaram, compreendemos terem eles correspondido de modo pleno aos desígnios da Providência Divina. Suas missões se realizaram inteiramente e eles morreram em paz dentro do aparente fracasso de seu apostolado.

No dia 28 de outubro a Igreja comemora a festa de São Simão e São Judas, Apóstolos. A respeito deles, temos os seguintes dados extraídos de uma obra de Dom Guéranger1, entre outros.

 

Na Sagrada Escritura há mil refutações do igualitarismo

 

Uma antiga tradição refere que São Judas Tadeu pregou o Evangelho na Mesopotâmia, e São Simão no Egito. Depois, reuniram-se na Pérsia onde sofreram o martírio no ano de 47.
Simão era designado o Zelota talvez por ter pertencido antigamente ao partido nacionalista dos zelotas, que não queriam admitir o jugo estrangeiro sobre a Palestina.
Judas era sobrinho de São José por Cléofas ou Alfeu, seu pai, portanto legalmente primo do Homem-Deus. Era daqueles que os seus compatriotas chamavam irmãos do Filho do carpinteiro. Ele escreveu uma curta epístola para combater a heresia gnóstica, então nos seus começos.
As relíquias dos dois Apóstolos foram transportadas, em 1605, para a Basílica do Vaticano e colocadas no altar que a tradição diz estar situado mais ou menos no lugar onde teria sido implantada a cruz de São Pedro.

Os zelotas eram aqueles que tinham o zelo pela independência da Palestina para que ela não caísse no jugo gentio. E se entre os zelotas havia elementos maus, existiam também elementos bons porque a causa zelota tinha alguns aspectos simpáticos, dignos de apreço. Compreende-se, portanto, porque nesse meio Nosso Senhor tenha recrutado um de seus Apóstolos, São Simão.
São Judas era primo de Jesus. Aliás, não era o único parente entre os Apóstolos. Isso mostra bem a extraordinária predestinação da Casa de Davi. Seria uma honra para imortalizar uma estirpe o fato de ter entre si um Apóstolo, e a de Davi possuiu mais de um. E não só isso, há um fato que eclipsa este parentesco de todos os modos possíveis: dela nasceu também o Homem-Deus.

Para deixar bem marcado o amor a essa estirpe, o que por sua vez nos indica quanto Deus toma em consideração a hereditariedade, e como andam desvairadamente os igualitários que reputam ser o princípio da hereditariedade de nenhum valor. Isto é uma das coisas do igualitarismo que encontram mil refutações no conteúdo das Escrituras.

A celebridade consiste em ser conhecido pelos ignorantes

Diante da escassez de informações a respeito desses dois Apóstolos, poderíamos nos perguntar se convém comentá-los em nossa reunião. Respondo que sim, porque todos os Apóstolos, pela sua ligação com as origens da Igreja, devem ser objeto de nossa especial devoção. A festa de um Apóstolo não pode ser indiferente ao bom católico.
Mas quando vejo nomes de Apóstolos que deixaram dados bastante pequenos na história escrita, fazendo com que uma pessoa não muito instruída nessa matéria quase nada saiba a respeito deles – porque a celebridade consiste em ser conhecido não pelos cultos, mas pelos ignorantes –, lembro-me muito da disparidade de fecundidade da evangelização dos Apóstolos que agiram na bacia do Mediterrâneo e a dos que atuaram em outros lugares.
E penso a respeito da resignação que estes devem ter tido, muitos deles morrendo em paz, vendo que seu apostolado não havia produzido nenhum fruto, mas sabendo que todas as ações feitas de acordo com a vocação de cada um, realizadas com integridade de espírito e retidão de intenção, obedecendo à moção da Providência, serão premiadas no Céu e concorrem para a glória de Deus, ainda que os homens na Terra tenham dado um aplauso pequeno ou um consentimento insignificante a essas ações.

Ponto de partida para a fecundidade do apostolado

É interessante notar que um bom número de Apóstolos na aparência exerceu um apostolado ineficiente e fracassado. Dir-se-ia hoje que os Apóstolos da bacia do Mediterrâneo se realizaram e os outros morreram irrealizados, conforme essa mania da “realização” e esse horror do fracasso que existe atualmente.
É indispensável compreendermos que isso contém uma lição para nós, considerando o respeito com que a Igreja cerca a memória desses Apóstolos, a gratidão com que ela os trata, a afirmação da santidade pessoal que alcançaram, quer dizer, eles corresponderam inteira e plenamente aos desígnios da Providência Divina. Portanto, Deus estava contente com eles, suas vidas se realizaram na plenitude e morreram em paz, dentro do aparente fracasso de seu apostolado.
Mais ainda, sabendo que outros estavam tendo um apostolado muito frutífero. Os Apóstolos sofreram o martírio, compreendendo que algum dia seu sangue seria de utilidade para aqueles povos.

 

Ainda que não tivesse utilidade para povo nenhum, eles prestaram a Deus o culto de sua adoração e de seu sacrifício desinteressado, até mesmo sem objetivo terreno. Apenas porque eram criaturas de Deus, chamados por Ele para uma certa obra, realizaram-na e nela morreram para a glória do Criador. Quer dizer, fizeram de si como aquela ânfora cheia de perfume que Santa Maria Madalena quebrou diante de Nosso Senhor, e que não teve outra utilidade senão impregnar de aroma os pés do Redentor e a Ele servir.
Há outra lição para nós. Mesmo o apostolado bem sucedido vale, principalmente, por essa espécie de imolação, de holocausto, de adoração sem mais porque Deus é Deus. E digo mais: se é verdade que um apostolado com essas intenções pode não ser bem sucedido, eu não creio que haja apostolado fecundo sem essas intenções. Se uma pessoa soubesse que seu apostolado seria como o de São Simão e São Judas, isto é, sem nenhum fruto humano, e por isso diminuísse sua dedicação, ela não daria ao seu apostolado a fecundidade necessária. Porque é esse estado de espírito que deve ser o ponto de partida para que o apostolado seja fecundo.

(Extraído de conferências de 28/10/1963 e 28/10/1965)

1) Cf. GUÉRANGER, Prosper. L’année liturgique. Vol V. Librairie Religieuse H. Oudin. Paris: 1900. p. 523-525.

26 de outubro – Santa do glorioso castigo

Santa do glorioso castigo

Depois de oferecer a vida por sua superiora, Santa Gibitrudes foi levada ao Juízo, mas Deus mandou-a voltar à Terra devido a faltas veniais que cometera e não expiara. Ele é tão sublimemente intransigente que não quis suportá-la na sua presença enquanto tivesse aqueles defeitos.

A biografia que temos para comentar é de uma Santa da qual nunca ouvira falar. Trata-se de uma monja beneditina do século VII, Santa Gibitrudes. A ficha é tirada do livro Vidas dos Santos, do Padre Rohrbacher(1).

Constância ante os primeiros obstáculos

Sobre Santa Gibitrudes, um monge, chamado Jonas, escreveu:

Uma virgem, chamada Gibitrudes, nobre pelo nascimento e pela Religião, converteu-se e deixou o século para ganhar a comunidade (de Eboriacum), e a mãe do mosteiro, Burgondofara, recebeu-a com alegria, como a um gracioso presente, porque ela era sua parenta. Queimava-a um tal ardor, que sempre a graça do Espírito Santo parecia inflamá-la.

Estava ela ainda na casa paterna quando, a conselho do Espírito Santo, decidiu votar-se ao culto da Religião, e rogou ao pai e à mãe que lhe erigissem um oratório onde pudesse ser a serva de seu Criador.

Os pais julgaram-na erradamente: os dois eram nobres da raça franca e não se importavam ainda com a vida que leva ao Reino dos Céus. Pelo contrário, desejavam fruir das honras do século, e por isso queriam da filha uma posteridade, antes que dar penhor do Céu. Todavia, nada conseguiram fazer para demover a jovem do que trazia no espírito: cederam ao seu desejo e lhe construíram uma pequenina capela.

Como a jovem ali ia dia e noite, a astúcia do hábil inimigo propôs-se tomá-la como alvo. E começou, por meio de sua ama, a causar-lhe obstáculos, a impedir que ela fosse ao oratório. A moça, vendo-se atormentada, principiou a procurar a clemência do Criador, a fim de que aquela que lhe impedia de orar e queria roubar-lhe a luz da alma fosse privada da luz exterior.

A bondade divina não se fez esperar! Bem cedo a mulher, atacada de um mal dos olhos, viu-se despojada da luz necessária e o Árbitro clemente redobrou o temor dos pais castigando o pai com febres. Se bem que inflado pela nobreza, pelo exemplo da filha ele aspirava já ao temor divino; pediu à filha que rogasse ao Senhor por si e, se recuperasse a saúde por sua intercessão, seguir-lhe-ia a vontade.

A este pedido da fé, respondeu a saúde por longo tempo diferida; o fogo da febre deixou-o e o pai recuperou a saúde de outrora. A jovem, então, pediu licença para ir à comunidade de Eboriacum.

Ali levou ela a vida religiosa por muitos anos, quando, um dia, Burgondofara foi tomada de febres, levando a crer que os liames da presente vida dela se desligariam.

“Põe em ordem os teus sentimentos!”

Gibitrudes, vendo a mãe do mosteiro perto da última hora, entrou, angustiada, na basílica e pediu ao Senhor, com lágrimas, que se lembrasse da antiga misericórdia, a fim de que não deixasse morrer a mãe, mas que, a ela mesma, recebesse no Céu com as companheiras, e ali não chamasse a mãe senão para as seguir.

Depois das lágrimas, ouviu uma voz vinda do alto que lhe disse:

– Vai, serva de Cristo, o que pediste obtiveste. Ela, de boa saúde, pode ser unida aos bem-aventurados doutra vez, mas tu serás primeiramente desligada dos entraves da carne.

No mesmo instante, foi tomada pela febre e rendeu a alma pouco depois. Já os Anjos a haviam tomado e levavam além do éter; deposta diante do tribunal do eterno Juiz, via bandos de vestes brancas – foi ela mesma que o referiu depois – toda a milícia do Céu de pé diante da glória do eterno Juiz.

Ouviu uma voz partindo do trono que dizia:

– Volta, porque não estás inteiramente desapegada do século. Está escrito: “Dá e te será dado”, e, ademais, vê-se na oração: “Perdoai as nossas dívidas, assim como nós perdoamos os nossos devedores”. Tu te lembras dos sentimentos de rancor para com três de tuas irmãs? Não curaste a ferida com o remédio da indulgência. Corrige, pois, as tuas fraquezas, põe em ordem os teus sentimentos, que manchaste com o tédio e com a negligência!

Ó maravilha! Voltando e tomando a vida anterior, ela revelou com tristes gemidos a sentença que recebeu, e confessou as faltas. Chamou as companheiras, pelas quais votara sentimentos de cólera, e pediu perdão para que não incorresse na danação eterna por causa de uma dissimulação.

Novamente saudável, viveu mais seis meses no século; depois, presa da febre, predisse o dia da morte e anunciou a hora em que deixaria o mundo.

A morte foi tão feliz que, na cela, onde o corpo jazia inanimado, acreditava-se sentir exalações de bálsamo. Para nós, que lá estávamos no momento, pareceu-nos um grande milagre.

No trigésimo dia, quando lhe celebrávamos uma Missa, segundo o costume da Igreja, um tal perfume encheu a nave que se diria haver ali todos os eflúvios das essências e dos aromas. A justo título, o Criador fazia brilhar, por seus dons, as almas que lhe foram dedicadas aqui, as que, por seu amor, nada do século quiseram amar”.

O milagre é um prêmio da fé…

A ficha pode parecer tão extraordinária, pelos milagres por ela narrados, que talvez desperte em alguém um sentimento de desconfiança. Não se tratará de uma lenda que teria sido incorporada à História? Será que realmente fatos tão extraordinários se passaram? Tanto mais quanto, se nós acompanharmos a vida dos Santos mais recentes, não notamos milagres dessa ordem. E se não os há, por que os haveria naquele tempo? E neste caso, não estaríamos no nosso direito de duvidar de acontecimentos dessa natureza?

A meu ver, essa seria uma dúvida sem propósito, porque dois dados são indiscutíveis e devem chamar nossa atenção.

O primeiro é: nas épocas de muita fé, Deus Nosso Senhor realiza milagres mais estrondosos do que nos tempos de pouca fé. Dir-se-ia que isso é um paradoxo, pois onde há pouca fé Ele deveria fazer milagres portentosos, e onde já existe muita fé, não haveria necessidade de tais milagres.

Mas o contrário é verdade. O milagre é um prêmio da fé. E quem pede com muita fé pode obter favores tão contrários à ordem normal, que constituam milagres. Exatamente por causa disso, nas épocas de muita fé os milagres excepcionais são mais numerosos.

Na época em que o espírito de dúvida penetra nas almas, e elas começam, a priori, a negar a possibilidade do milagre ou exigir provas muito mais amplas e meticulosas do que seria necessário para reconhecer a existência do milagre; quando as almas não têm apetência do extraterreno, do sobrenatural, do divino e, a “fortiori”, do metafísico e do sublime, a graça se retrai e a ação de Deus vai se tornado mais escassa, rara e difícil de obter. É um castigo para aqueles que não quiseram crer.

Ora, no século VII nós estávamos numa época de fé, a Igreja vivia os primeiros séculos de reconstrução da sociedade medieval que daria na Cristandade. Nesse tempo era natural que os milagres fossem estupendos. Aquelas pessoas pediam e obtinham coisas que realmente as maravilhavam, mas nem tanto as robusteciam na fé, pois já possuíam a fé vigorosa que fora a causa daquele pedido.

No Santuário de Aparecida do Norte, há um recinto chamado “sala dos milagres”, onde as pessoas depositam objetos em gratidão ou cumprimento de promessas, por graças recebidas, em muitas das quais, se devidamente estudadas, poder-se-ia reconhecer o caráter de milagre. Vendo a fé com que aquele povo vai rezar lá, compreende-se que suas orações sejam atendidas. Suponhamos que aquela fé decaísse muito. O número de graças de que a sala guarda recordação não diminuiria também? Sem dúvida. Porque a oração feita com pouca fé é pouco atendida.

…fruto da pregação da Santa Igreja Católica

Alguém dirá: “Mas então não há saída para um povo que cai no despenhadeiro da falta de fé. É um círculo vicioso: ele se emendaria se soubesse de milagres; por outro lado, ele não conhece os milagres porque estes não vêm ao povo fraco na fé. Então ele está perdido, amarrado na sua própria incredulidade e condenado”.

Isso não é verdade. A causa ordinária e comum da fé não é o milagre, mas a pregação da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. É a própria existência da Igreja, a apetência que o espírito humano, tocado pela graça, tem de conhecer as verdades que a Esposa de Cristo ensina e de amá-las como elas são. Eis a causa determinante da fé. O milagre é uma causa excepcional da fé. O grande favor de Deus não é de alguém ter crido por causa de um milagre, mas o de acreditar mesmo sem vê-los.

Atesta-o o famoso episódio de São Tomé que, ao lhe ser anunciada a Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, teve dúvida. Quando lhe apareceu o Ressuscitado, ele acreditou. Então, o Divino Mestre exigiu que ele pusesse a mão em seu sagrado flanco para, tocando, constatar ser mesmo Ele. E depois fez este comentário: “Tomé, creste porque Me viste? Bem-aventurados os que não viram e creram” (Jo 20, 29).

Poder-se-ia objetar: “Mas, Dr. Plinio, então o senhor reduz muito o papel do milagre, o qual deixa de ser uma tão grande graça”.

Não. Em relação aos fracos na fé, o milagre é uma graça por onde Deus arromba, por assim dizer, a alma de alguns especialmente favorecidos e que não quiseram crer. Para estes, o milagre é um grande bem, uma extraordinária dádiva, porém mais felizes eles teriam sido se tivessem crido sem o milagre.

Para os que têm fé, o milagre é de muito valor como uma prova do amor de Nosso Senhor, que rompe seu próprio procedimento normal para atender à súplica de alguém consagrado a Ele, como essa freira, e que Lhe pede um favor.

Assim, vemos como Santa Gibitrudes, sendo consagrada a Nosso Senhor, pediu e obteve graças esplêndidas, entre as quais, a de ficar cega aquela mulher que a atrapalhava na sua vocação.

Existem situações em que se pode pedir a desgraça dos outros

Alguns, talvez, poderão ficar surpresos: “Como é possível alguém pedir que outrem fique cego?! Compreende-se que se implore para uma pessoa recuperar a vista; mas que fique cega… ”

Há casos em que tal oração é perfeitamente legítima, justa. A Santa teve, provavelmente por imponderáveis, conhecimento de uma determinada situação moral, ou recebeu uma comunicação interior, por onde ela ficou vendo que aquela mulher seria absolutamente refratária a qualquer graça. Absolutamente falando, Deus poderia lhe dar graças tão grandes que ela se convertesse. Quiçá aquela mulher tivesse uma alma tão endurecida e merecesse tais castigos que Ele não quisesse conceder-lhe tais graças.

Assim, para a moça restava apenas a seguinte alternativa: ficar gravemente ameaçada de perder a sua vocação ou pedir que a outra se tornasse cega. Ademais, para sua perseguidora era muito melhor ficar cega nesta Terra, mas não causar a perdição de uma alma, do que conservar a vista e comprometer uma vocação. Mas, sobretudo, era muito melhor para a glória de Deus que aquela moça se tornasse uma Santa e que a cega aguentasse depois, com virtude, a sua cegueira.

Há situações, portanto, nas quais se pode pedir o mal dos outros, mas não em qualquer conjuntura. Então, basta uma pessoa estar me atrapalhando, me amolando, prejudicando minha salvação, para eu rogar que ela fique cega? Não é assim. Há todo um conjunto de circunstâncias a serem consideradas. Contudo, existem casos em que se pode pedir a morte, a doença, a desgraça dos outros para que eles não prejudiquem a execução de um desígnio da Providência. Se nos secretos desígnios de Deus não houver outro meio para afastar aquele obstáculo senão a punição daquela pessoa, pedir que ela seja castigada é uma coisa que se pode perfeitamente fazer, com critério.

Para que esse pedido seja bem feito são necessárias duas condições: quem peça faça-o sem nenhum apego pessoal. Logo, não é por raiva, birra, agastamento ou comodismo, mas apenas pelo zelo por sua própria santificação. Em segundo lugar, que por via das dúvidas, na hora de pedir, acentue muito: se esta for a vontade de Deus. Se não houver outro meio de remover do caminho este obstáculo à minha santificação, então rogo que isso se realize. Nessas condições é perfeitamente legítimo pedir.

Severidade e misericórdia não se excluem, mas se completam

Vemos a prova disso no lance final da vida de Santa Gibitrudes. Ela ofereceu sua vida pela superiora e, ao morrer, teve até uma visão esplêndida na qual contemplava a revoada dos Anjos com seus hábitos. Naturalmente, é um símbolo, pois sendo puros espíritos os Anjos não usam hábitos. Levada ao juízo divino, recebeu a comunicação de que havia três freiras de quem ela guardava birra, e ela não podia estar na presença de Deus mantendo com esse defeito.

Vemos nisso um misto da sublime bondade e condescendência do Criador, e sua sublime intransigência. Deus é tão sublimemente intransigente que uma freira para quem Ele fizera milagre tão excelso, não queria, entretanto, suportá-la na sua presença, enquanto ela tivesse aqueles defeitos.

Mas Ele é tão sublimemente misericordioso que praticou este milagre: levou a freira à sua presença e denunciou o pecado que ela, certamente por própria culpa, não via. Mandou-a de volta à Terra para pedir perdão pelo pecado e expiar. Tendo ela expiado e implorado perdão, então levou-a para o Céu. Notem a misericórdia extraordinária d’Ele com ela, ao lado da severidade. E como a severidade e a misericórdia, longe de se excluírem, se completam.

Nós vemos isso na própria alma da Santa. Para Nosso Senhor fazer por ela tudo quanto realizou, é óbvio que é uma grande Santa. Entretanto, tais são as contradições que cabem na pobre alma de uma criatura humana, que esta pode ser elevada em virtudes debaixo de muitos pontos de vista e, portanto, atrair de fato o amor de Deus, mas ter alguns defeitos dos quais ela precisa ser purificada e que a Providência não tolera.

E é neste modo contraditório de ser das criaturas que brilha de uma maneira especial a justaposição da justiça e da misericórdia de Deus. Justo para com um defeito, misericordioso para com o próprio defeito em atenção às altas qualidades, e escolhendo um modo magnífico para curar a freira, no fundo, de uma falta que não era um pecado mortal, pois se o fosse o Criador não faria isso. Não levaria essa alma em estado de pecado mortal para a própria presença d’Ele, para ver os Anjos. Evidentemente eram faltas veniais. Entretanto, naquela alma, sobretudo, Deus não queria tolerar essas faltas. Ele poderia dar graças comuns para ela se arrepender e ir ao Céu sem esse milagre. Mas quis fazê-lo para provar, por essa narração, quanto Ele ama excepcionalmente as almas que O amam excelentemente. E não poderia haver para ela um castigo mais glorioso do que a punição que ela recebeu. Ela poderia chamar-se “a Santa do glorioso castigo”.

Que glória nessa punição!  Que estupendo ser amada de tal maneira que, para receber esse castigo, ela é tirada desta vida, colocada na presença de Deus, sua alma é novamente reintegrada a seu corpo, e lhe é restituída a vida, tendo recebido do próprio Deus a lição que precisava receber. Ele poderia mandar um Anjo fazer isso, mas Ele mesmo o realizou. Pode haver maior glória e maior prova de amor? Era castigo, entretanto.

Olhar luminoso para perceber nossos próprios defeitos

Alguém poderia perguntar: “Mas por que Deus fez isso assim? Foi só por essa Santa?”

Se fosse só por ela já estaria perfeitamente bem feito. Isso se deu no século VII. Nós estamos no século XX, que já vai caminhando para seu fim. Quantos séculos depois, em terras que ninguém imaginava, naquele tempo, que existissem, está-se comentando essa ficha e a sucessão desses fatos! E nós ainda estamos nos extasiando com a maravilha operada por Deus, com esse jogo complexo e de variados aspectos de que estou dando notícia.

Quer dizer, isso foi feito para ficar brilhando na História da Igreja até o fim dos tempos. Quando acabar o mundo e chegar o dia do Juízo Final, é possível que algum daqueles sobre os quais meus olhos estão caindo neste momento, encontre uma Santa que lhe esteja sorrindo de modo particular. E a Santa use como insígnia uma chibata luminosa mais do que muitos sóis, e feita de uma matéria mais preciosa do que o ouro. E a Santa se aproxima de um de nós e diz: “Sabes quem sou? Eu sou Gibitrudes, a Santa do glorioso castigo. Rezei por ti naquela noite em que soubeste do meu castigo e de minha glória. E agora te encontras perto de mim e estamos todos salvos. Olhemos para Nossa Senhora e glorifiquemo-La e, por meio d’Ela, Nosso Senhor Jesus Cristo”.

E nós, então extasiados com a glória de Santa Gibitrudes, nos lembraremos desta pobre conferência, e daremos glória a ela. E nos sentiremos associados à santa alma dela.

Como é bom, então, encerrarmos esta reunião dizendo: “Santa Gibitrudes, rogai por nós. Dai-nos a graça de não nos acontecer o que ia vos sucedendo, ou seja, ter alguns defeitos que por culpa nossa não vejamos. Se não merecemos um castigo tão glorioso quanto o vosso, é verdade também que nós tivemos, pelo menos, uma ajuda luminosa que foi a vossa. Tínhamos defeitos ocultos, mas o vosso exemplo, séculos depois, nos trouxe à presença de vossa biografia. E foi um convite para, na noite de 26 de outubro de 1976, nós vos pedirmos: Santa Gibitrudes, tornai luminoso nosso olhar no exame de consciência, de maneira a percebermos tudo o que está oculto, e nossas almas compareçam diante de Nossa Senhora límpidas como foi a vossa, na segunda vez em que diante de Deus aparecestes. Santa Gibitrudes, rogai por nós!”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/10/1976)

 

1) ROHRBACHER, René François. Vidas dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. Vol. XIX, p. 42-45.