São Francisco Solano, um apóstolo exímio!

Para agradar o povo, São Francisco Solano costumava andar pela cidade tocando violino e cantando canções populares. Vendo-o, as crianças se interessavam e logo o seguiam. Ele, então, parava e ministrava-lhes um curso de Religião.

Ora, como acorriam inúmeras crianças para esse gracioso catecismo, os mais velhos ficavam curiosos e também passavam a comparecer.

Quando percebia que também os pais estavam bastante empenhados em assistir ao curso ministrado para os filhos, ele transformava a aula em sermão e increpava os maus hábitos renascentistas que se espalhavam em seu tempo, incutindo naquelas pessoas o desejo de praticar a virtude.

Ou seja, pela candura dos inocentes ele formava uma roda de pessoas e fazia um apostolado exímio.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/8/1974)

O papel do belo sensível no conhecimento humano

No ambiente medieval, iluminado pela luz da Igreja Católica, o “pulchrum” sentia-se em casa, como a lamparina no candelabro. Os primeiros sintomas da decadência da Idade Média se manifestam quando o belo, em vez de servir à pureza e à ortodoxia, começa a ser empregado nos romances de amor e coisas análogas.

 

O  homem tem em comum com o anjo uma cognição intelectiva, a qual faz com que seja capaz de ver o “pulchrum” em certas coisas pelo raciocínio. Como considerar o “pulchrum”, na distinção entre a visão angélica e a humana?

Necessidade da beleza sensível para o conhecimento humano

Há no homem algo inferior ao anjo por onde essa cognição meramente intelectiva não lhe satisfaz, e precisa ser completada com a beleza sensível.

O que falta na cognição do homem para o belo sensível ser necessário? O anjo conhece a essência da coisa, enquanto o homem precisa do “pulchrum” sensível para ter uma ideia exata. O ver dá um conhecimento direto que o espírito angélico possui, e a nossa inteligência não tem.

Não se trata de um defeito do homem, mas é uma característica por onde ele é inferior ao anjo. “Minuisti eum paulo minus ab angelis… — Fizeste-o pouco menor do que os anjos…”(1). Mas o homem não é, por isso, um aleijado, um estropiado. 

Há, contudo, uma coisa na influência do “pulchrum” sobre o homem que é especialmente interessante.

Em nossa natureza concebida no pecado original, a capacidade que a vontade tem de se revoltar contra a razão — capacidade defectiva, má — é diminuída e, às vezes, como que congelada pelo “pulchrum”. Quando o homem se encontra diante de certas formas de beleza, ele fica como que paralisado, sem poder agir mal. Isso indica que esse modo inferior de conhecer dá à inteligência uma superior capacidade de controlar sua serva, a vontade.

E aqui entra um ponto muito importante para a perseverança do homem: até onde o “pulchrum” pode ser levado, em todos os seus aspectos, de maneira a garantir uma estabilidade, a maior possível, secundando a ação da graça?

É preciso notar que, a partir do Renascimento, certas formas mais ativas de beleza fugiram do acampamento católico e começaram a luzir no acampamento da Revolução.

No ambiente medieval o “pulchrum” sentia-se em casa, como a lamparina no candelabro. Antes de a Idade Média começar a decair, o mal era feio. Os primeiros sintomas da decadência se dão quando o belo parece ter mudado ligeiramente de acampamento e, em vez de servir à pureza e à ortodoxia, começa a ser empregado nos romances de amor e coisas desse gênero.

A beleza existente no Paraíso terrestre ajudava o homem a resistir à tentação

Imaginemos um Paraíso terrestre do qual o ser humano não tivesse sido expulso. Pelo fato de tudo ali ser belo, o homem teria uma certa dificuldade para cometer alguma falta, reduzindo ao mínimo a probabilidade de pecado, pois as condições terrenas fariam com que o aspecto e o modo pelo qual as coisas atingiriam os sentidos, tornasse notório para o ser humano o absurdo que havia no uso não reto ou no conhecimento superficial das criaturas.

O homem, no Paraíso, conhecia os animais pelo que havia mais de interno na natureza deles, e dava-lhes o nome. Como corolário disso, suponho que ele possuísse também um conhecimento, muito mais profundo do que tem hoje, de todo o resto da natureza. Esse conhecimento não podia ser uma mera notícia, mas um conhecimento analítico, ordenado a conhecer melhor a Deus, a ver a imagem e semelhança do Criador nas criaturas.

Isso tornava a sabedoria natural sumamente apetecível pelo homem nos seus impulsos naturais. E o ser humano inteiro caminhava para a sabedoria natural, não só levado por sua inteligência, mas também pela atração, que fazia com que todo o jogo de sua personalidade se sentisse atraído para isso. Mas também o mau uso da coisa natural tornaria muito mais patente ao homem que ele estava violentando e prejudicando aquilo, agindo contra a natureza.

Tomemos, por hipótese, um descendente de Adão que fosse tentado pelo demônio a agir irrefletidamente diante de uma ave bonita, digna, por exemplo, um faisão, e desse um pontapé no faisão e o machucasse. Tornar-se-ia muito mais sensível aos seus próprios olhos e de todos os outros homens, o horror da intemperança e o que esta deixou de feio nele.

A beleza da temperança e o pânico de pecar contra a temperança protegeria muito esse homem contra o risco de tentação, embora ele estivesse em estado de prova. Quer dizer, ele podia ser tentado, mas seria muito protegido contra o risco de cair na tentação.

Deus quis que o homem estivesse em estado de prova, e que no momento da tentação houvesse uma ilusão possível no espírito humano, como existiu no caso do fruto proibido. A tal ilusão maldita por onde o homem tem uma convicção de razão de que não deve fazer uma coisa, mas acompanhada de uma espécie de vivência por onde lhe parece que a razão está sendo desmentida por uma experiência imediata, e, por mais evidente que seja o fato de que aquilo é mal feito, alguma coisa lhe diz que, se ele fizer, age bem. Essa evidência é dada por um descolamento entre o mundo das realidades sensíveis exteriores e a realidade profunda.

Minha impressão é de que, no Paraíso, isso se daria muito menos, pois talvez o homem só pudesse ter essa queda por uma tentação do demônio, porque sua natureza íntegra não estaria inclinada ao pecado.

Devido ao pecado original rompeu-se o equilíbrio no homem

Com o pecado original, quebrou-se o equilíbrio e o homem ficou habitualmente tentado a não ver o belo como corolário normal do” verum” e do “bonum”. E, por causa disso, sujeito a toda espécie de arbitrariedades: fazer o belo que não é “verum” nem “bonum”; ou, pelo contrário, optar pelo “verum” e “bonum” e rejeitar o belo.

Com isso, ele conhece menos e está muito mais sujeito a uma revolta, porque fica propenso a amar um “pulchrum” que não é “verum” nem “bonum”, sujeitando-se, assim, a toda espécie de desordens.

Põe-se, então, a pergunta: o que o conhecimento do “pulchrum” acrescenta ao conhecimento do “verum” e do “bonum”? Nos eclipses do “pulchrum”, a que o homem fica sujeito?

Eu seria levado a dizer que a verdade só é cognoscível inteiramente quando se a conhece também bela. Há qualquer coisa no conhecimento puramente intelectivo da verdade, por onde falta algo.

Daí vinha o interesse com que eu sustentava a conveniência do Céu Empíreo. É para que o homem pudesse ter algo na sua natureza por onde ela inteira fosse apta, orientada propriamente a degustar.

Como temos uma natureza animal, embora nossa cognição intelectual seja inteiramente suficiente, a nossa natureza aspira por ter a notícia animal, a qual equivale, para a natureza animal, ao que para a natureza intelectual é o conhecimento racional. E essa notícia animal tem que estar em correlação com o conhecimento intelectual. Se faltar uma correlação nesse ponto, há qualquer coisa de psicologicamente rompido dentro do homem. E a notícia animal do “verum” e do “bonum” só pode ser o “pulchrum”.

A meu ver, essa distinção entre o conhecimento animal e intelectual no homem pode ser feita didaticamente, mas cada homem constitui uma pessoa integral, e não um anjo vivendo dentro de um animal, como a lâmina de uma espada no interior da bainha. Nós não estamos embainhados no animal. Deve haver, portanto, na nossa capacidade intelectual, um certo ponto por onde a notícia animal, enquanto tal, lhe acrescenta algo; como deve haver algo na notícia animal, susceptível de algum melhoramento pelo fato de ter sido compreendida.

A riqueza do instinto materno

Para exemplificar, eu mencionaria o seguinte: os Anjos têm entre si a relação maravilhosa que nós sabemos, mas não possuem a relação da paternidade e da maternidade, nem podem ter. Ora, esta relação acrescenta à nossa inter-relação uma beleza.

O papel do Anjo da Guarda com cada um de nós é lindo. Mas, por algum lado, o amor materno é mais bonito enquanto causador, porque o Anjo não nos causou. E, no amor materno, é muito belo fazer a distinção entre o papel desse amor enquanto virtude, conhecida pela razão e seguida pela vontade, e enquanto instinto. O instinto materno faz parte da animalidade, mas acrescenta algo ao amor como é no homem, que faz com que Nosso Senhor tenha se comparado a uma galinha que quer reunir seus pintinhos sob as asas.

No momento em que se percebe o instinto materno humano pôr-se junto com a razão para defender o filho, há uma riqueza que, por algum lado, é mais bonita do que o próprio Anjo da Guarda quando defende outra criatura. Então chegamos à conclusão de que, como o “pulchrum” é o deleitável da coisa, ele é indispensável ao instinto para que funcione.

O que se passa, por exemplo, com o instinto materno?

Ele conduz à tendência de imaginar o filho mais belo do que é; em atribuir-lhe qualidades mais altas para poder desenvolver-se inteiramente, enquanto instinto. De tal maneira as qualidades são necessárias num ser razoável, para que o próprio instinto possa exercer-se plenamente.

Ademais, o instinto materno faz descobrir no filho algumas qualidades que outros não descobririam. Por outro lado, ao sublimar o filho, mas de um modo virtuoso, a mãe cria o ideal da educação.

Poderíamos deduzir, então, que os símbolos, as pessoas, e tudo o que nos fala à nossa natureza humana integral, corpo e alma, devem fazê-lo, tanto quanto possível, consociados com a beleza e com o deleitável da coisa, de maneira a atrair a vontade inteira.

Isso é um postulado do que a ordem natural das coisas tem de mais profundo, porque quando o “verum” e o “bonum” são vistos naquilo que é deleitável pela natureza humana, em virtude dos instintos, há um ato mais completo. E, debaixo de certo ponto de vista, poder-se-ia dizer mais inteiro do que o angélico.

Temos uma melhor noção dessa realidade ao considerarmos, como acima fizemos, o modo pelo qual o amor angélico — em si, muito maior que o humano —, carece de qualidades que só o amor de mãe possui.

Encarnando-Se, Deus quis honrar toda a Criação

Uma pergunta muito bonita seria a seguinte: Tendo o Verbo de Deus, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Se feito carne para habitar entre os homens, não haverá conexo com isso um dizer de Deus aos homens que é, por alguns lados, mais alto do que o dizer de Deus aos Anjos?

Fico muito na dúvida, porque não refleti ainda sobre isso e, infelizmente, não tive tempo de ler sobre a Encarnação do Verbo o suficiente para dar uma resposta. Mas acho que é possível haver aí um caminho muito fecundo para uma série de interpretações das relações Deus-homem, a partir da Encarnação, de que não se tenha uma ideia exata.

Por exemplo, uma outra questão: Muita coisa que Nossa Senhora sabe a respeito de Deus não foi dada aos anjos conhecerem, em parte e a um título secundário, por causa da natureza humana d’Ela?

Que Deus pode ter revelado a Ela coisas que não revelou aos anjos, isso eu dou por certo. Entretanto, algo disso teria sido em consideração à natureza humana d’Ela? Aí vem todo o mistério da Encarnação.

Quem sabe se Lúcifer, ao tomar conhecimento da criação dos homens, e sendo-lhe revelada a Encarnação, revoltou-se ao saber que uma criatura tão inferior quanto o homem seria capaz de alguns conhecimentos que ele, anjo, não poderia ter…?

A afirmação de que Deus, encarnando-Se, quis honrar toda a Criação, contém uma profundidade talvez meio inexplorada para um bom número de estudantes de Teologia. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/3/1984)

Revista Dr Plinio 196 (Julho de 2014)

 

1) Sl 8, 6.

 

O temperamento medieval

Pode-se falar em temperamento ideal, modelo para o homem contemporâneo? Partindo da descrição do ambiente de um castelo medieval, Dr. Plinio responde a esta pergunta ao expor o temperamento que caracterizava o homem e a sociedade durante a Idade Média, mostrando o que nele há de perene e válido para os povos de todos os tempos.

 

Em primeiro lugar, devemos procurar definir o que entendemos por temperamento nesta exposição.

Os diversos tipos de temperamento

Sabemos que as espécies animais têm um temperamento coletivo, ou seja, próprio a toda a espécie.

Chamamos de temperamento a uma certa nota fundamental que comanda e marca todas as manifestações de vida do animal. Assim nós podemos dizer que a águia tem um temperamento que não é o da pomba. O leão tem um temperamento que não é o do cordeiro. São entes irracionais nos quais o comportamento não decorre de nenhum modo de um pensamento, de uma reflexão, de uma doutrina, mas de algo que existe espontaneamente dentro deles.

E toda espécie — os leões, por exemplo — tem um temperamento.

Podemos dizer que o leão é feroz, majestoso e seguro. Não podemos afirmar, no mesmo sentido da palavra, que um gato é feroz, mas sim que ele tem sua ferocidade, suas seguranças, suas distinções; mas o gato é variável e tem um temperamento diferente do temperamento do leão.

Podemos dizer que dentro de uma mesma espécie os indivíduos têm temperamentos diferentes. Assim, de águia para águia, de cordeiro para cordeiro, de pombo para pombo, de leão para leão, de gato para gato há diferenças temperamentais também.

Transpondo isso para a escala humana, veremos que no homem o temperamento é algo ligado à biologia, ao corpo, à vida animal do ser humano, e que influencia, impregna, marca tudo aquilo que o homem faz. De maneira que todos os primeiros movimentos, as primeiras ações, as primeiras reações, os primeiros impulsos e, às vezes, muito mais do que os primeiros, são influenciados pelo que esse temperamento tem ou por aquilo que lhe falta, isto é, pelas carências desse temperamento também.

Nesse sentido, podemos afirmar existir também temperamentos de países. Há países com temperamentos diferentes uns dos outros.

Por exemplo, um prussiano e um italiano têm um temperamento marcadamente diverso. Muito menos diversos — porque na América do Sul as diferenças são menores —, mas também muito característicos, são os temperamentos do brasileiro, do argentino e do chileno.

Se quiséssemos aprofundar, poderíamos dizer que há diversidade temperamental de região a região, de cidade a cidade, e de indivíduo a indivíduo.

Tudo isso é conhecido, mas estou apenas lembrando para facilitar o desenvolvimento do que passarei a expor. 

Assim como as nações, também as épocas históricas têm o que se poderia chamar “temperamento coletivo”.

Quando vemos, por exemplo, fotografias de pessoas da “Belle Époque”(1), isto é, dos anos que se estendem mais ou menos das últimas décadas do século XIX até o começo da Primeira Guerra Mundial, notamos todos os homens com o peito erguido e posto para a frente, colarinhos e gravatas grandes, bigodões e umas fisionomias imponentes.

Aquilo não é mera representação, mas entra muito do estilo de vitalidade que o ocidental tinha naquele tempo, e que é uma vitalidade um pouco à Kaiser.

Se consultarmos um livro de gravuras do século XVIII, anterior à Revolução Francesa, compararmos com o período da Revolução Francesa, e depois com os anos de 1850, portanto, bem antes da “Belle Époque”, notaremos uma diversidade enorme de temperamento, que corresponde até a uma diferença de estrutura física.

Essas notas temperamentais, no homem, não ficam reduzidas puramente ao animal. Os reflexos da alma são condicionados pelo corpo, mas a ação dos princípios, das condições, dos hábitos modela, por sua vez, o físico. Há, portanto, o que se chama uma interação, uma ação recíproca alma-corpo, corpo-alma, que faz com que as coisas se componham e o temperamento de uma determinada época seja a resultante de determinadas condições biológicas e fisiológicas, mas também de um certo estilo de vida e de pensamento, de um certo gênero de atividades que as circunstâncias da época impõem. Assim, são muitos os elementos que modelam o temperamento da época.

Se explicitarmos estas ideias, chegaremos à conclusão de que há um temperamento pró-revolucionário e outro contrarrevolucionário.

O temperamento contrarrevolucionário é o do homem medieval, quando a Idade Média chegou à sua plena expressão.

O temperamento que é pró-revolucionário ou, se preferirem, o temperamento revolucionário é o que foi entrando no modo de ser do homem a partir do momento em que a Revolução começou.

Quando vemos gravuras, iluminuras, vitrais, castelos, tapeçarias, armas da Idade Média, somos introduzidos pelo espírito para um ambiente que forma um temperamento muito diferente do que se constituiu nas épocas posteriores da Renascença, do protestantismo, do “Ancien Régime”(2) ou de nossos dias.

Haveria, para o homem contemporâneo, um modelo de temperamento segundo o qual ele se deve adequar?

O temperamento medieval

A meu ver, esse modelo se encontra — não ponto por ponto, para ser copiado exatamente, mas ao menos nas suas linhas gerais — na Idade Média.

Vou tentar descrever o temperamento medieval para depois mostrar que consonância isso tem com a Doutrina Católica. Por esta forma compreenderemos o que há de perene nisso, válido para todos os povos de todos os tempos.

Creio que poderíamos ter um pouco a ideia disso fazendo o seguinte trabalho interior, de ordem psicológica.

Tomemos qualquer castelo medieval e imaginemos que devêssemos viver, não trancados nele, mas envoltos em sua atmosfera a vida inteira.

Torres altas, portas com ponte levadiça suspensa, fosso do lado de fora. Quando entramos no castelo, aparece um guarda no alto da torre, olha e, conforme for, baixa a ponte. Atravessamos uma espécie de corredor entre duas portas, formado por duas torres enormes, sombrias. Olhamos para cima e vemos buracos feitos para descerem barras de ferro em caso de batalhas, e impedir o inimigo de entrar.

Transpondo esse longo corredor, temos a sensação de estar calcando aos pés a base do castelo, na qual nós sabemos que há armazéns, depósitos e também prisões sombrias onde se encontram homens acorrentados, às vezes acorrentados junto à parede, e que recebem a luz do dia por uma réstia de sol vinda através de uma seteira.

No pátio do castelo tem um poço, e a presença do poço nos sugere uma profundidade enorme da qual a água é tirada. Em alguns desses poços joga-se uma pedrinha, e até a pedrinha bater na água e fazer barulho, pode-se acompanhar no relógio, tal é o percurso que a pedra tem a fazer.

Não há água encanada nos quartos nem todas as comodidades daí decorrentes.

Olhamos para cima, muralhas altas. De repente detemos a atenção sobre a estrutura de ferro que encima o poço, com a roldana e o balde, e é uma peça graciosíssima, um ferro delicado terminando em cima por uma flor de lis sobre a qual está um passarinho se sacudindo, todo alegre.

Um pouco mais à frente está uma capela. Do lado de fora do pórtico, uma Madona risonha com o Menino Jesus no colo. Entramos na capela, é uma joia: vitrais, santos austeros no alto dos altares, candelabros grossos com velas grossas, bancos de carvalho, o assento do senhor feudal colocado junto a um trono; tudo leva a uma espécie de recolhimento, de sacralidade.

Fazemos uma oração diante do Santíssimo Sacramento presente na capela, saímos e olhamos para a casa do senhor feudal.

Na pracinha pública interna do castelo ouvem-se vários ruídos: é o ferreiro trabalhando, outro que trabalha em couro, o carpinteiro que, cantando, está fazendo um móvel. Sente-se um cheiro de comida que sai da cozinha da habitação do senhor feudal.

Do lado de fora do terraço de sua residência, o senhor feudal sentado num trono de pedra e, a seus pés, pessoas discutindo. Ele está julgando causas, por vezes triviais, de súditos em litígio: é a propriedade de um boi, quando não de um porco… E a coisa é discutida, às vezes, calorosamente, de camponês a camponês.

O senhor feudal, que é um guerreiro, mas também um camponesão, ordena: “Cale a boca!” E, dirigindo-se ao outro súdito, diz: “Agora é você quem fala”. Se o sujeito não obedece, ele chama um alabardeiro. Este vem portando na cabeça um capacete de ferro, revestido de uma cota de malhas, cingindo uma espada e, com uma alabarda, ameaça o rebelde que, por fim, fica quieto.

Se entrarmos na casa do senhor feudal, encontraremos um ambiente bonito, tapeçarias vindas do Oriente, novamente vitrais majestosos, lindos móveis de carvalho, ouve-se uma voz melodiosa, e é a castelã que canta acompanhada de um alaúde, e a castelã tem cabelos louros e que estão trançados com pérolas ou com pedras vindas de não sei onde, seda vinda de não sei onde, e os filhos do senhor feudal estão num outro quarto aprendendo a ler e a escrever. É a vida cotidiana do castelo.

Imaginemo-nos chamados a viver um ano nesse ambiente pomposo, enorme, forte, onde os aspectos mais graciosos, mais mimosos contrastam com os aspectos mais guerreiros e sombrios.

Quem de nós garante que, ao cabo de um ano, não estaria com saudades da respectiva capital onde mora? E de onde vem a incerteza de que conseguiríamos viver no castelo?

Estou certo de que, ao transpormos os umbrais do castelo, ficaríamos encantados. Não se trata, portanto, de uma objeção doutrinária, mas de uma falta de integridade na adesão temperamental.

Nisso vemos bem um choque entre o temperamento medieval e o nosso. E enquanto não conhecermos a razão desse choque e não tratarmos de tender para esse temperamento, não estaremos modelando nosso temperamento segundo a sã doutrina, e haverá um conflito entre nossos princípios, que são conformes àquilo, e nosso temperamento, contrário àquilo. Isso provoca uma ruptura interna.

O que parece contrariar o homem contemporâneo

Caberia aqui descrever quais são os traços do temperamento medieval, e no que esses traços me parecem contrariar o homem contemporâneo, dando-lhe uma sensação de claustrofobia. Esses traços são próprios a qualquer civilização cristã, pois defluem da Doutrina Católica.

O fundo do temperamento medieval é uma certa estabilidade, por onde o medieval é animado pela noção de que tudo aquilo quanto ele faz é destinado a uma longa duração, porque o normal é que todas as coisas durem muito, e até indefinidamente. E que as coisas novas não sejam o contrário, mas sejam um desdobramento harmônico das antigas.

Tomemos uma catedral medieval como Notre-Dame, por exemplo. Quem a construiu teve a intenção de edificar uma igreja que devia durar até o fim do mundo. Assim, o intuito de quem fez aqueles castelos, muralhas, mosteiros, etc., era o de realizar obras perenes.

Em cada século medieval há uma modificação na arte, mas sempre seguindo uma certa continuidade, por onde a enorme estabilidade não prejudica a mobilidade, porque esta se faz na linha do que já foi feito. É uma linha reta, coerente com o passado, e que se desenvolve indefinidamente.

Isso tem uma repercussão no modo de ser das pessoas. Como o medieval é no que ele constrói, assim também é ele na direção de sua própria vida. Em geral um casal que se constitui na Idade Média, se muda de casa uma vez na vida é muito. Ele é mais pobre no começo da vida, a certa altura está mais rico e faz uma casa nova. Nesta casa ele fica até o fim de seus dias. Se a casa é grande, os filhos vão viver nela, e uma família inteira vai passar séculos naquela residência, considerando a hipótese de uma mudança como a coisa mais absurda.

Se possui uma propriedade rural, a família se fixa ali. Eventualmente, pode até adquirir outra, mas não deixa aquela, e sempre haverá membros daquela família morando naquela propriedade rural, séculos e séculos. Naquele campo plantarão árvores que deverão tomar seu tamanho normal dali a cem anos, para os descendentes se beneficiarem, porque estão certos de que a família nunca sairá de lá. Tudo o que se faz é estável, sólido, durável.

Também os hábitos familiares tendem a ser estáveis. As gerações de sucedem e vão se fixando no modo de ser da família que tende a ficar definitivo. É uma prodigiosa tendência ao estável, porém não ao imóvel.

Notamos essa tendência nos gestos do homem medieval representados nas iluminuras. Se não está combatendo — única cena em que o homem da Idade Média avança com velocidade —, o medieval nunca aparece correndo. Ao vermos aquelas iluminuras, não temos a sensação da pressa.

As pessoas pintadas num vitral, se estão em pé, dir-se-ia que criaram raízes no chão. Quando sentadas, tem-se a impressão de fazerem um só todo com a cadeira. As pessoas que estão trabalhando executam seu trabalho sem pressa e sem relaxamento, com normalidade e continuidade. E se estão se divertindo, são representadas com um aspecto mais leve e gracioso do que o da vida de todos os dias, e com uma nota de parêntesis de diversão em meio ao trabalho e à luta, convictas de estarem fazendo algo que é bom, na medida em que não seja feito sempre.

Estabilidade, sabedoria, lógica e sublimidade

A razão profunda dessa estabilidade é a virtude da sabedoria.

Como a natureza humana é uma só, enquanto um todo, mas dotada de peculiaridades, conforme os povos, é razoável que as nações sejam organizadas de um determinado modo, as casas dispostas de um determinado jeito, a arte realizada de uma determinada forma e o progresso siga uma determinada linha. A razão iluminada pela Fé encontrou a fórmula. Trata-se de seguir nessa fórmula até o fim. Isto é um dos traços do espírito medieval.

Esse traço tem o seguinte corolário.

O homem medieval é amigo de levar todas as coisas sem afobação, sem ímpetos temperamentais, sem explosões. A explosão, o ímpeto, é um vício. Ele é legítimo na guerra, e explicável na diversão; fora disso, é considerado uma desordem.

Por isso, na mentalidade, no espírito do medievo não há lugar para a contradição. Tudo se faz segundo imensas concatenações de raciocínios, imensos desdobramentos de ideias, fazendo com que no seu procedimento tudo seja uníssono e seu temperamento seja apetente de coerência, de harmonia, de uniformidade, de lógica.

Essa apetência da lógica é um dos traços mais marcantes do temperamento medieval. Mais uma vez, a virtude da sabedoria, mas no que ela tem de mais alto.

Pelo fato de ser lógico assim, o medieval tem uma alma profundamente feita para ser modelada pela Igreja, fonte da verdade e de toda a lógica. E por ser modelado pela Igreja, ele é movido por uma certa noção de que a linha-mestra do pensamento humano, o fim da contemplação e da apetência humana é o maravilhoso, o sublime, o elevado.

Em qualquer coisa que o medieval faça, por pequena que seja, pode-se notar a presença de algo de sublime. O vulgar, se existe, é contrariamente ao espírito medieval. É como o crime ou a sujeira numa cidade: não estão de acordo com as regras da cidade; antes, são o contrário do que ela deve ser.

Encontramos, então, mesmo no ambiente da vida medieval mais miúda, uma nota de seriedade, uma apetência de sublimidade que ladeia e coroa essa coerência, e faz com que tudo na Idade Média tenha um aspecto cerimonioso, protocolar, religioso, sacral, do qual o mundo de hoje está completamente despido.

A vida familiar de um trabalhador manual

Para exemplificar, não falarei das cortes dos reis, mas sim da vida e da família de um trabalhador manual.

Na vida familiar de um trabalhador manual, o pai é um rei. Ele é tratado pela esposa com veneração, e pelos filhos com arqui-veneração. A sua palavra faz lei e o ambiente que o cerca é de verdadeiro respeito religioso. Este respeito se estende aos filhos maiores de idade, aos filhos casados, aos netos e aos netos casados, e ninguém ousaria tomar profissão, casar-se ou mudar de vida sem ouvir o parecer do patriarca e, em geral, sem pedir seu consentimento, pois sua vontade é absolutamente lei.

Vemos, então, a vida medieval organizada em torno de homens respeitáveis, sólidos, sérios, que encontram uma espécie de glória em atingir a idade madura e até a sabedoria da velhice; que não têm, como o homem moderno, a preocupação de estar continuamente bancando o mais moço; nimbados pela experiência da vida, pelos grandes sacrifícios feitos, pelas lutas, pelas incertezas que tiveram ao longo da vida, e cujas palavras são recebidas como oráculo que afina sempre com a Doutrina Católica, suprema lei do pensamento e suma regra do procedimento humano.

A chave de cúpula do temperamento medieval

Naturalmente, subindo de classe social iremos encontrando isso mais requintado. Compreendemos, então, que tudo na Idade Média visava o sublime, o maravilhoso, visava o celeste, o angélico.

A meu ver, esta é a verdadeira chave de cúpula do temperamento medieval. Esse horror ao vulgar, esse desejo do maravilhoso de maneira tal que na alma medieval há uma apetência de encontrar algo que nesta vida não se encontra. A arte medieval tende mais a pintar o Céu do que a Terra, colocando nossas almas diante de panoramas mais celestes do que terrestres.

Um vitral banhado de luz, por exemplo, é muito mais um pedaço do Céu do que uma representação terrena.

A atmosfera que banha os personagens de Fra Angélico é uma atmosfera celeste. A pompa de que se cerca um rei não é uma pompa grã-fina, não é uma exibição de dinheiro nem de força brutal. É a ostentação de uma finura sacral e de uma grandeza celeste. Quer dizer, o medieval está continuamente tendendo para o mais alto, para o mais sublime, para o celeste.

Havia um equilíbrio extraordinário dentro disso. Não se trata do pomposo meio engomado do século XIX, no qual se tinha a impressão de que aquelas pessoas, se sorrissem, desmanchar-se-iam inteiras.

O medieval não era assim. Ele compreendia e praticava o sorriso. Sorria com as coisas da natureza próprias a provocar o sorriso. Por exemplo, em catedrais medievais, em uma daquelas nobilíssimas colunas que se elevam até o começo de ogivas que vão até o teto, veem-se, de repente, um, dois, três esquilos de pedra “correndo” um atrás do outro. É uma brincadeira que o próprio escultor pôs naquela coluna tão séria. É um sorriso para esse lado risonho e aprazível da vida.

Ou então, em um vitral, a figura de um santo ou de um rei sentado no seu trono, e junto dele um cachorrinho. O que faz ali esse cachorrinho? É o sorriso do artista. Tornou-se célebre o fato de tal duque, que esteve nas Cruzadas e realizou tal feito heroico, ter tido um cachorrinho. Então, na hora de pintar um vitral representando o duque como benfeitor da igreja, ou como senhor feudal do lugar, põe-se o cachorrinho ao lado do duque. É uma forma de seriedade, porém não engomada, como a do século XIX. É uma seriedade angélica, que vê o gracioso, o pequeno e se encanta, numa ascensão contínua para o angélico.

Esse contínuo remeter para o celeste, para o religioso, repito, é a chave de cúpula da atmosfera da Idade Média; está presente em tudo e sem isso a Idade Média não se explicaria.

Essa coerência medieval é feita de exclusões, de rejeições e de certezas. Tanta força de fé, tanta estabilidade, tanta coerência, fá-la capaz de grandes movimentos de alma.  Sai de dentro dessa grande estabilidade um grande “não” como um grande “sim”. Por isso, nessa época, a meditação da Via Sacra, por exemplo, tem por correlato o espírito guerreiro do medieval que vai para o combate libertar o Santo Sepulcro. Isso nasce da força do seu ato de Fé. Isso explica também como o medievo, tão estável, se deslocava, paradoxalmente, para imensas peregrinações a pé, de ponta a ponta da Europa.

Tudo o que vimos como característica da Idade Média, na Religião Católica, constitui um matiz. E, a meu ver, Nosso Senhor Jesus Cristo foi assim, como também os Apóstolos. Na Europa medieval isso refulgiu com uma intensidade particular, tomando tal plenitude, a partir de Cluny(3), de maneira a conquistar o mundo inteiro. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/2/1971)

Revista Dr Plinio 196 (Julho de 2014)

 

1) Do francês: Bela Época. Período entre 1871 e 1914, durante o qual a Europa experimentou profundas transformações culturais, dentro de um clima de alegria e brilho social. Ver Dr. Plinio n. 172, p. 29-31.

2) Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.

3) Abadia beneditina francesa que deu início a um importante movimento de reforma espiritual e cultural da Europa.

Equilíbrio, força e obediência

Além de precisas, lógicas e claras, as exposições de Dr. Plinio frequentemente eram ricas em reversibilidades. Comentando um belo salto realizado por um cavaleiro em Andaluzia, ele analisa o céu, o campo, o cavalo, o cavaleiro, comparando este com o marinheiro e o aeronauta. E afirma que as qualidades do animal equino, transpostas para a natureza humana, definem o autêntico membro do Movimento por ele fundado.

 

A figura que vamos comentar caracteriza uma pessoa dando um salto a cavalo. É uma das mais belas, fiéis e expressivas manifestações da coragem humana, naquilo que ela tem de mais bonito, que é a capacidade de ousar e de avançar.

Sempre mais cristãos atrevimentos

O ápice da posição da alma humana consiste em crer, não em qualquer religião, mas na única Religião verdadeira que é a pregada pela Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Quando o homem acredita nas verdades ensinadas pela Igreja, elas projetam uma luz sobre sua alma que o ilumina e o torna capaz, por amor àquelas verdades, de empreendimentos extraordinários. É aquilo que o nosso grande Camões chamava “cristãos atrevimentos”(1).

No tempo desse autor português, as esquadras de Portugal cobriam os mares que levavam até a Índia, Japão e China, ou chegavam a pontos ainda ignorados do Brasil. Essas naus eram impulsionadas, em parte, pelo desejo de lucro dos mercadores, que fretavam e organizavam as esquadras; mas eram movidas principalmente pelo anseio de expandir a Fé Católica.

Então, Camões desejava que as naus navegassem para sempre mais “cristãos atrevimentos”.

Quando se está em Portugal, é uma beleza contemplar a Torre de Belém, de onde partiam as esquadras, e os reis iam ver, na foz do Tejo, os navios prontos se encherem das respectivas tripulações e partirem para lugares, por vezes inteiramente ignotos, para sempre mais cristãos atrevimentos.

É bonito ver o espírito humano posto nesta impostação da Fé, diante do tremendo desconhecido que era o mar naquele tempo, utilizando uns barquinhos que eram umas cascas de noz, em comparação com os navios mercantes de nossos dias. É belo contemplar o homem neste arrojo, no momento em que ele ousa, empreende e parte.

O cavaleiro, o marinheiro e o aeronauta

Nota-se muito menos essa beleza do espírito, na aeronáutica. Por quê? Porque na aeronáutica, com a parte material do avião e da técnica, devido a certo determinismo que há na máquina, mede-se perfeitamente e limita-se o grau de risco, que passa a ser muito menor do que o dos barquinhos de Colombo ou de Pedro Álvares Cabral.

No barco, é uma beleza ver o homem flutuar sobre as incertezas dos mares e rumar para um alto ponto distante. E esta também é a pulcritude do cavaleiro, quando dá um grande salto a cavalo.

Mas o cavaleiro tem uma vantagem sobre o marinheiro: aquele orienta uma coisa viva, mutável, cuja vitalidade e mutabilidade são governadas por ele. A vitalidade do cavalo depende de uma espécie de domínio, que eu chamaria de psicológico, do cavaleiro sobre o cavalo.

O cavaleiro muito ousado dá ousadia ao cavalo; ele pesa sobre o cavalo, mas ajuda-o a carregar o peso. O cavaleiro e o cavalo formam, por assim dizer, uma só ousadia, uma só força, e participam de um só voo.

Nessa fotografia, vemos o que é este voo do cavalo e, por cima dele, o voo do cavaleiro, de onde vem a impressão de que quase tudo ali é a alma do cavaleiro.

O cavalo constitui uma massa viva maior do que o cavaleiro, mas este, porque tem vida humana, possui mais domínio do que o cavalo. Também o corpo do cavaleiro ocupa uma matéria viva maior do que sua cabeça, mas esta tem a direção e, por causa disso, vale mais do que o corpo. Assim, a parte menor, onde cintila a inteligência, tem a responsabilidade e a glória pelo todo.

Duas ascensões simultâneas

Faço notar alguns pormenores realmente admiráveis.

Temos três elementos: dois que constituem o cenário, e um representado pelo cavalo e cavaleiro. Poder-se-ia dizer que são o contexto e o texto.

O céu da Andaluzia(2) é exatamente assim. Não há, portanto, embelezamento por meio de efeitos fotográficos. Se devêssemos imaginar o céu da eternidade, uma das ideias mais próximas seria essa.

Considerem o campo, a terra. É curioso, mas todas as coisas têm uma adequação própria. Sou entusiasta da grama inglesa, cor de esmeralda. Realmente é uma coisa admirável! Entretanto, se aqui houvesse essa grama, não daria certo. Essa vegetaçãozinha tem exatamente a altura que deveria ter; não deveria ser um chão raso, mas também não poderia ser uma grande vegetação. Precisava ser assim, para que, entre este solo e este céu azul, se realizasse este grande feito, fruto da força de alma.

Analisemos o cavalo. Ele está numa posição em que a luz bate nele com uma beleza perfeita, e o ilumina como talvez um artista não pudesse ter imaginado a iluminação. Notem como as formas do animal ficam evidenciadas, a musculatura, toda a força de corpo que faz dele uma espécie de avião de vida, posto nos ares.

À vista dessa luz, pergunta-se: este é um céu matutino ou vespertino? A indagação tem certo interesse, porque em função da resposta pode-se interpretar melhor a cena. Esta fica mais bonita imaginada de manhã ou à tarde?

Tenho a impressão de que é o céu da manhã. Há uma vitalidade matutina, uma alegria da natureza toda que desperta, causando a impressão de existir qualquer coisa de um desígnio de Deus realizado, no momento em que o Sol acaba de nascer, as luzes enxotaram as trevas da noite e o dia começa a dominar tudo. Então o Sol sobe, o cavalo e o cavaleiro sobem também. Há, portanto, duas ascensões simultâneas. Dir-se-ia que o cavaleiro está radiante nessa subida de todas as coisas, e de ser o rei da natureza, elevando-se no meio dessa ascensão. É uma coisa bonita.

Alegria de vencer o risco

Outro aspecto a considerar é o risco, porque o salto pode dar errado, e o cavaleiro quebrar a espinha, tornando-se um homem liquidado. Mas ele não está pensando no erro nem no risco. Vê-se que ele previu tudo e sabe perfeitamente o que precisa fazer com o cavalo; possui a alegria de vencer o perigo para o qual já tem a vitória assegurada. Por isso, não tem o medo do risco, mas a embriaguez da vitória.

O cavaleiro tem amarrado ao pescoço um lenço que o vento movimenta. Observem a forma heroica que o lenço toma. A ideia da confrontação com o vento que, por sua vez, faz levantar o lenço como o homem faz erguer o cavalo, o lenço tremulando atrás do cavaleiro; tudo isso dá a impressão do heroísmo, da vitória, da palpitação da glória.

O chapelão dele indica que é um de homem disposto a qualquer aventura.

Observem, agora, a crina do cavalo. Dir-se-ia que ela está tomada por um incêndio frio; a crina suspensa pelo vento parece uma labareda.

Os olhos do cavalo, um pouco arregalados diante do perigo, por ter menos segurança do que aquele que o dirige — o animal só tem o instinto —, entretanto como que está devorando o perigo. Sua boca está meio aberta. Dir-se-ia que ele está com fome de mastigar o risco. Vejam o movimento delicado das patas dianteiras! Ele todo está voando.

Distância psíquica

Em certo sentido, essa foto emoldurada constituiria um quadro que se poderia chamar: “Distância psíquica”(3).

Uma pessoa entendida em equitação disse-me que para o cavalo estar em condições de realizar este salto, exige-se dele equilíbrio, boa musculatura e flexibilidade.

Em termos humanos, flexibilidade quer dizer obediência, ou seja, fazer o que o cavaleiro manda. Equilíbrio poder-se-ia traduzir por equilíbrio nervoso; e musculatura por força. Equilíbrio, força e obediência é a definição do perfeito membro de nosso Movimento.

O cavalo obstinado, com “vontade própria” e que encrenca, é de pouco valor, empurra-se de lado; o de categoria é o que “sabe” obedecer. O cavalo nervoso, agitado, incapaz de fazer o que o seu dono manda não vale nada; mas o que executa as ordens do seu dono, porque tem equilíbrio nervoso e força, este é o cavalo autêntico.

São símbolos que Deus põe na natureza para a formação do homem. v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/11/1990)

Revista Dr Plinio 196 (Julho de 2014)

 

1) Cf. Lusíadas, VII, 14.

2) Região situada no Sul da Espanha.

3) Expressão utilizada por Dr. Plinio para significar uma calma fundamental, temperante, que confere ao homem a capacidade de tomar distância dos acontecimentos que o cercam.

A mais nobre e elevada das alegrias

Estamos numa época em que existe apenas contentamento pelas coisas do mundo. Quase ninguém tem a alegria da virtude. São Francisco Solano foi chamado por Deus para comunicar essa alegria, que não consiste em contar piadas, fazer brincadeiras, ser palhaço, mas em ter seriedade e procurar em tudo servir a Nosso Senhor Jesus Cristo.

A ficha que vamos comentar refere-se à biografia de um Santo espanhol, São Francisco Solano, que foi apóstolo da América do Sul. Os dados dessa ficha são tirados de um livro escrito por um franciscano do Peru(1).

Nobreza de sangue e de virtude

São Francisco Solano foi uma figura suscitada pela Providência para fazer parte da Contra-Reforma espanhola. Ele nasceu em Montilla, na Andaluzia, em 1549, de família nobre. Seu pai foi duas vezes governador de Montilla, capital do marquesado de Priemo. Sua mãe, tanto pela nobreza do sangue quanto pela nobreza da virtude, era conhecida como “a nobre” no lugar.

Esta conjugação da nobreza de sangue e da nobreza de virtude nos leva a evocar certo tipo de senhoras extraordinariamente virtuosas e dignas ao mesmo tempo, que houve no passado, em quem havia uma aliança maravilhosa entre a elevação de alma e a de maneiras. De forma que a elevação de maneiras não aparecia simplesmente como um adorno externo quase mecânico dos gestos e das atitudes, mas era a própria expressão da nobreza de alma da pessoa. E é grato ao homem encontrar formas exteriores elevadas que correspondam às interiores.

Vemos, assim, a mãe de São Francisco Solano ser chamada “a nobre” por excelência, pela nobreza conjugada da virtude, do sangue e das maneiras. Esta era aquela a quem a Providência deu a missão de formar quem? O missionário dos índios mais botocudos da América do Sul.

Esses são os contrastes dos desígnios da Providência. Quantas vezes ele teria se lembrado da “nobre”, atravessando as ruas da capital do pequeno marquesado de Priemo? Tudo isso tem a sua beleza e o seu sentido, e vale a pena registrar de passagem.

Quando ela esperava o futuro Santo, o consagrou a São Francisco de Assis, donde o seu nome. São Francisco Solano recebeu uma formação sumamente cristã dos pais e a completou no colégio dos padres jesuítas de sua cidade. Ele mesmo era uma pessoa de bom porte, agradável conversação, bela voz e um raro senso musical.

Como veremos, esses dotes foram todos previstos pela Providência para o esplendor de seu apostolado.

Comunicar a alegria pelas coisas santas 

Por influência do rei católico, para compensar o dano que a Religião sofria pela apostasia de muitos povos, houve um verdadeiro renascimento religioso na Espanha. Pelo seu zelo, brilhava entre as figuras desse renascimento religioso, na Ordem de São Francisco de Assis, o grande São Pedro de Alcântara. São Francisco Solano, atraído pelo exemplo e pelo prestígio de São Pedro de Alcântara e da Ordem Franciscana, saiu do colégio dos jesuítas e tomou o burel franciscano. Pelas suas virtudes e capacidades foi ele sendo designado logo para cargos diretivos. Caracterizou-se a virtude dele por uma nota: não tolerar que ninguém manifestasse em torno dele tristeza por estar servindo a Deus.

Nada de caras compridas, aborrecidas, porque é dura a vida, pensando como sofre um pobre religioso… Quando a pessoa começa a ter pena de si mesma e ficar com cara comprida, entra num caminho em cujo fim está a apostasia. Então, é preciso dar a alegria do serviço de Deus, comunicar o júbilo das coisas santas.

São Francisco Solano recebeu essa graça, quão rara e quão preciosa em nossos dias, de comunicar o gosto, a alegria pelas coisas santas. Hoje estamos numa época em que existe apenas contentamento pelas coisas do mundo. Quase ninguém tem a alegria da virtude, de estar servindo a Nosso Senhor. São Francisco Solano foi chamado por Deus para comunicar essa alegria. Não se trata de uma alegria tonta, de piada, de brincadeira, própria de um palhaço.

Trata-se de ter a alegria da seriedade, que é a mais nobre e elevada das alegrias. Veremos São Francisco Solano dar o exemplo disso por toda parte, e fazer este apostolado da alegria na luta, na seriedade, no sofrimento.

Movimento rítmico de grande candura, nobreza, elevação e pureza

Ele tomou o hábito de, quando viajasse, incluir em sua minúscula bagagem, junto com o cilício e disciplinas, um violino, que era o seu grande instrumento de apostolado.

Exatamente essa justaposição me parece querer dizer bem tudo: o violino sem o cilício é o caminho aberto para a apostasia. O cilício sem o violino perde algumas de suas expressões; porque o normal do cilício bem usado é dar alegria. Mais ou menos como o soldado que vai para a luta, ele parte alegre. Um soldado que vai chorando e pensando: “Ó pátria, como me dói deixar-te… Ó família querida, que mágoa… Ó pobres membros que as balas podem estraçalhar…” Ele recua, não vale dois caracóis.

O bonito é o soldado que avança por cima do perigo e até da morte, alegre no sacrifício e na dor. Assim também o religioso. É a alegria de carregar as obrigações, de arcar eventualmente com os votos, de pertencer inteiramente a Nossa Senhora, de não ter nada de próprio e de, por causa disso, ter tudo. Violino e cilícios. A fórmula parece-me tão magnífica que se poderia fazer dela um motivo de decoração, numa capela, lembrando esse apóstolo do continente onde existe o Brasil.

A alegria de São Francisco Solano era tão singular que quando ele estava diante do Santíssimo Sacramento, ou via uma imagem do Menino Jesus nos braços de Nossa Senhora, tinha tanta alegria que muitas vezes ia para o interior do convento e chamava os padres: “Padre venha ver, o senhor não se alegrou ainda? Olhe aqui como o Menino Jesus está tão bem aqui com Nossa Senhora nessa imagem! Assim vivamos na Terra; vamos nos alegrar!” E quando ele se tomava de muito entusiasmo, puxava o violino, tocava, cantava e dançava diante da imagem ou do Santíssimo Sacramento.

Era um movimento rítmico de grande candura, nobreza, elevação e pureza, evidentemente. Os sentimentos da alma podem se exprimir pelos ritmos da música e também pelos do corpo.

Aliás, antigamente havia danças diante do Santíssimo Sacramento. Eu acho isso um encanto. Imaginem qual seria nossa sensação entrando numa igreja e encontrando um Santo em êxtase, tocando violino diante do Santíssimo Sacramento ou de uma imagem de Nossa Senhora, cantando e dançando. Ficaríamos extasiadíssimos!

São Francisco Solano era muito zeloso da sagrada Liturgia. Por isso tinha um empenho enorme em que os frades aprendessem bem as rubricas e o cantochão, para dar todo o esplendor possível aos santos mistérios.

Exprobava os maus hábitos renascentistas 

Esses contrastes harmônicos me maravilham. Ele cantava e tocava canções religiosas populares para agradar ao povo, mas era um espírito elevadíssimo que compreendia a superior beleza da Liturgia, com todo o pensamento teológico, toda a piedade, todo o sobrenatural que há na Liturgia, portanto, também na arte, na música litúrgica, e que exigem esse esplendor. Quer dizer, o esplendor enorme abarca os dois extremos. Eu gosto de ver almas assim: largas, abertas, capazes de se entusiasmar pelos opostos, não contraditórios, mas extremos. Isso é categoria; assim era São Francisco Solano.

Muitas vezes acontecia que ele andava pelas ruas da Espanha tocando o violino e a criançada saía correndo atrás dele para ver, porque se interessava. Aí ele parava e dava um cursinho de Religião para os meninos.

Pode-se imaginar que curso gracioso, interessante. Como o curso atraía muitas crianças, os mais velhos iam assistir também. Quando percebia que os mais velhos estavam bem empenhados, ele transformava o curso de catecismo em sermão, e exprobava, increpava nos mais velhos os maus costumes e incutia a virtude. Os mais velhos estavam cativados pela candura dos inocentes e formavam uma roda. O menino ia ver o frade, o adulto ia olhar o menino, o frade falava para o adulto. Era um circuito perfeito. E aí ele caía em cima dos maus hábitos renascentistas espalhados em seu tempo. Um apóstolo exímio.

Como São Francisco Solano estava se tornando muito célebre na Espanha, seus superiores resolveram mandá-lo, a pedido dele, para a América. Então ele começou a percorrer a América espanhola a pé, estando no Panamá, Colômbia, Paraguai e Bolívia. Imaginem percorrer tudo isso a pé, nas estradas daquele tempo – quando as havia –, numa topografia torturada pelos Andes, subindo e descendo, escorregando… Depois, navegar por aqueles rios nas embarcações daquele tempo! Pois bem, ele foi até o Paraguai, chegou a descer à Argentina e fazer apostolado em Tucumán. O trajeto Panamá-Tucumán é próprio de um bandeirante!

Se fosse um bandeirante leigo, com certeza se falaria muito dele. Aqui está um que fez isso por amor a Nosso Senhor; provavelmente se fala menos dele do que dos bandeirantes…

Música acompanhando o gorjeio dos passarinhos e o murmúrio das águas

Ele se fixou uma boa parte da vida dele em Lima, então chamada Cidade dos Santos Reis, onde florescia a Ordem Franciscana, com 180 membros, naquele tempo tão ilustres pela sua virtude, que tornavam Lima famosa nos ambientes franciscanos da Europa, por causa da santidade que florescia lá. No tempo em que ele morou naquela cidade, era Arcebispo de Lima São Turíbio de Mongrovejo, e começava a sua carreira de santidade Santa Rosa de Lima.

Vemos, por esses dados, o que a América do Sul poderia ter sido. Porque quando esse é o ponto de partida, qual deveria ser o ponto de chegada?!

Depois de uma estadia em Lima, onde suas virtudes foram granjeando estima e cargos, ele mais uma vez fugiu.

São Bernardo dizia que a glória é como a sombra: quando fugimos dela, ela corre atrás; quando corremos atrás dela, ela foge.

Na região de Tucumán, ele procurou aproximação com os índios mais temíveis. Certo dia, ele estava já cansado, andando em plena floresta e sentindo-se vigiado de longe.

Os índios faziam muito isso: quando desconfiavam de uma pessoa, seguiam-na de longe, vigiando-a para ver onde ia; em certo momento, matavam-na.

Embora se sentisse observado, como estava muito cansado de andar e com sede, parou perto de uma fonte e curvou-se para beber.

A cena é linda, daria para uma iluminura medieval. Uma floresta virgem, um frade franciscano com aquele burel, que para junto a uma fonte borbulhante, se persigna e bebe aquela água. Depois sentou-se e descansou um pouco. Enquanto ele descansava, ouviu o cântico dos passarinhos, em grande número na floresta, e o murmúrio da água. E como ele tinha um gênio altamente musical, resolveu acompanhar com o violino o murmúrio das águas e o cântico dos passarinhos. Quer dizer, ele compôs. Notem a tranquilidade de consciência! Ele sabia que podia morrer durante aquela composição. Mas compreendia também que iria para o Céu tocando música, e os Anjos se encantariam com isso.

Quem de nós não teria um empenho enorme em conhecer a música com que ele acompanhou o gorjeio dos passarinhos e o murmúrio das águas?

Enquanto tocava, São Francisco sentiu uma seta passar perto de sua orelha e cravar-se numa árvore. Ele continuou. De repente, viu um carão emergir do meio da vegetação: era o cacique da tribo de índios ferozes que o Santo procurava. Ele deixou o violino e, todo irradiante de amor de Deus, dirigiu-se ao índio para o abraçar.

O cacique se comoveu, deixou-se tocar, levou-o para a tribo, e São Francisco Solano começou a evangelização dessa nação índia.

São Francisco de Assis, com que termos cantaria o irmão Francisco como ele, que converteu assim uma nação infiel!

Mas restava conversar. Como falar com aqueles índios? Ele começou a falar castelhano e se deu conta de que o dom das línguas tinha entrado nele, e os índios entendiam o castelhano com toda a simplicidade. Assim se faz apostolado!

Castidade: a única virtude que não se esconde

Durante treze anos ele esteve nessa região, empregando todos os recursos para apaziguar brancos e índios, resolver dissensões, cativar uns e outros para a Religião. São Francisco Solano, êmulo de São Francisco Xavier, ressuscitou mortos, curou doenças mortais, amansou feras bravias, fez surgir fontes em lugares áridos, de tal maneira que era veneradíssimo pelos brancos e índios com quem tinha contato.

É um fundador de uma nação! Homem que ressuscita mortos, fala em sua própria língua e os outros entendem nos seus respectivos idiomas! Assim se funda uma nação. Quantas coisas bonitas haveria para contar de Anchieta também, nesse sentido, o fundador do Brasil!

Certa vez, quando uma nuvem de gafanhotos devastava uma plantação dos índios, o Santo ordenou-lhes que se dirigissem para uma floresta vizinha.

Assim com essa facilidade: “Vão embora para a floresta!” E eles foram.

Então os colonos perguntaram por que ele de uma vez não exterminava os gafanhotos. E ele deu duas razões: primeira, porque gafanhotos daquela espécie tinham servido de alimento a São João Batista, no deserto.

Portanto, por amor a São João Batista, ele não mandava exterminar os gafanhotos.

Em segundo lugar, porque também os índios comiam gafanhotos e era bom que os irmãos índios não ficassem privados de sua alimentação.

Acho isso um encanto!

Esse homem tão extraordinariamente suave era imensamente austero.

Eu falei dos violinos, deixem-me dizer algo sobre os cilícios.

Ele não só era casto, mas era a única virtude que ele timbrava que o vissem possuir.

O que é altamente bem pensado, porque é a única virtude que não se esconde. Tem-se que mostrar.

E, por causa disso, ele nunca permitiu que mulher alguma chegasse a cem passos de distância de sua moradia, em todo o círculo em volta.

Será que compreendemos a responsabilidade individual de cada um de nós? De que história somos a continuação? Que promessas estão nas nossas mãos? E também que desilusões podem cair sob nossa responsabilidade, se não correspondermos à graça?

Aqui é uma tarefa individual, porque do bom procedimento e da dedicação de cada um de nós pode decorrer uma notável melhora ou piora em todo o conjunto.

Entregou sua alma a Deus, enquanto se cantava o Credo

Quando podia, mandava construir uma choupana ao lado do coro, na igreja, para ter sempre a presença do Santíssimo. Quando não conseguia, levava ao coro uma esteira e deitava-se no próprio coro, onde, depois de alguns momentos de descanso, inflamava-se de amor de Deus que traduzia nos famosos cantos e danças, acompanhados de violino.

Estando para morrer, no último momento, para traduzir seu amor e reconhecimento para com a Santíssima Virgem, pediu que lhe cantassem o Magnificat.

É sempre a alegria.

Lembrando-se em seguida de que era missionário, isto é, propagador da Fé, pediu que lhe cantassem também o Credo. E às palavras “Et incarnatus est de Spiritu Sancto ex Maria Virgine”, expirou precisamente naquele instante, quando os sinos do convento anunciavam o momento da elevação na Missa conventual.

Tudo ao mesmo tempo. Não pode ser mais bonito. Quer dizer, no convento, quando havia a elevação do cálice durante a Missa, se tocava o sino. Na cela dele, cantavam o Credo. Ao entoarem as palavras que acabo de citar, por coincidência fazia-se a elevação, os sinos tocavam e a santa alma de São Francisco Solano subiu ao Céu.

Isso é morrer! Ou, por outra, isso é nascer.

Depois de morto, tendo procurado certificar-se do rejuvenescimento que apresentava seu corpo, tão maltratado durante a vida pelos jejuns e penitências, um médico primeiro apalpou-lhe os pés e as mãos. Quando tentou apalpar-lhe uma das pernas, o Santo encolheu-a, dobrando o joelho. E é assim que é representado no retrato que foi feito dele no dia seguinte ao de seu enterro.

Quer dizer foi mais um milagre que ele fez. Para mostrar a presença de Deus pela sua graça, ele encolheu a perna a fim de manifestar quanto a Providência o tinha amado em vida e dava-lhe a possibilidade de fazer esse prodígio. Ele não se auto ressuscitou, mas o cadáver se moveu. Aquele que tinha ressuscitado tanta gente dava essa manifestação de vida.

O Vice-Rei, estando ausente da cidade, mandou que se adiasse o enterro para poder estar presente. E tanto o Arcebispo quanto o Vice-Rei entraram no cortejo para oscular humildemente os pés do Santo. Tendo o Vice-Rei visto que a almofada que sustentava a cabeça do Santo, no caixão, era de um tecido muito ordinário, ou pelo menos alegando isso, fê-la trocar pela de veludo bordado a ouro que tinha consigo. A outra, levou-a como relíquia.

São Francisco Solano foi beatificado em 1675 e canonizado em 1726. Mesmo antes de sua beatificação, já fora escolhido como patrono pelas cidades de Lima, Buenos Aires, Cartagena da Colômbia, Panamá e Santiago do Chile.

Com isto está apresentada a vida de São Francisco Solano.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/8/1974)

 

1) Não dispomos dos dados bibliográficos.

 

Prece a Nossa Senhora do Carmo

Meus olhos e minha alma se voltam hoje para Vós, Senhora do Carmo:

Vós que fostes a inspiradora de um grande veio de profetas, desde Elias até o carisma profético da Santa Igreja no Novo Testamento; Vós que ensinastes antes mesmo de existir, e fostes o modelo daqueles que creram no Salvador prometido pelas Escrituras; Vós que representastes o apogeu da esperança desses varões de Deus, pois fostes a nuvem da qual choveu o Redentor — Vós sois hoje a Arca da Aliança da qual há de vir a vitória para o mundo, conforme anunciastes em Fátima: “Por fim, meu Imaculado Coração triunfará!”

Inundai minha alma, ó Mãe, da certeza deste triunfo, e da coragem de estar de pé na derrota, na adversidade, esperando o dia de vossa glória.
Assim seja.

(Proferida por Dr. Plinio em 16/7/1971, Festa de Nossa Senhora do Carmo)

Santa Veronica

Além da dor física, os sofrimentos de Nosso Senhor provocavam n’Ele uma dor moral que nenhum homem pode calcular, pois transcende todo o entendimento humano.

Verônica, contemplando-O assim, teve pena. Ela teve coragem de ver a dor d’Ele, olhou de frente, e disse: “Meu Senhor e meu Deus”! Lancinada pela pena, ela foi correndo de encontro a Ele,  enfrentou o risco que isso constituía, e teve o famoso gesto de enxugar o rosto de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/3/1982)

Zelo pelo esplendor da Liturgia

São Francisco Solano era muito zeloso da Sagrada Liturgia, e por causa disso tinha um empenho enorme em que os frades aprendessem bem todas as rubricas e o cantochão, para dar todo o esplendor possível aos Santos Mistérios. Não obstante, ele cantava e tocava canções populares para agradar o povo.

Esses contrastes harmônicos me  maravilham: para agradar o povo, canta canções religiosas populares; mas é um espírito elevadíssimo que compreende a superior beleza da Liturgia, com todo o pensamento teológico, toda a piedade, todo o sobrenatural que nela existe, e também a arte litúrgica para o esplendor da Liturgia.

São Francisco Solano era, portanto, uma dessas almas largas, abertas, capazes de se entusiasmar pelos opostos não contraditórios, mas extremos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/8/1974)

Ponto de partida da Civilização Cristã

Um jovem de família nobre abandonou tudo para viver na solidão, numa gruta entre montanhas agrestes. Toda a natureza fazia eco aos seus ideais, e cada vez que ele dava um passo ascendente no caminho da fidelidade, os Anjos cantavam e os demônios rugiam. Esse foi São Bento, árvore da qual brotaram todas as sementes que se espalharam pela Europa, dando origem à Cristandade ocidental.

 

Subíaco foi o ponto de partida da Civilização Cristã, tomando em consideração a Cristandade na Europa Ocidental. Não me refiro, portanto, a Bizâncio e àquela parte do  Oriente, nem ao Norte da África, mas sim à parte da Cristandade que depois viria a se desenvolver mais, e da qual nasceriam a América e todas as expansões católicas pelo mundo.

“Eu me dou por inteiro”

Tudo estava na seguinte situação: os bárbaros tinham ocupado todo o Império Romano e havia restos de civilização romana; ao lado disso, pagãos e bárbaros em grande quantidade, formando um caos do qual era preciso que emergisse uma coisa diferente.

A Igreja estava trabalhando empenhadamente nisso, e agindo como ela o faz. A Igreja não trabalha sempre à raiz de grandes homens, mas sempre à raiz da graça. O grande  homem às vezes aparece, e quando ele é grande santo, humilde, casto, sai alguma coisa que preste. Então, na base da conjunção de todos esses fatores a Igreja ia fazendo o  seu dever, pregando, ensinando a cada um nas paróquias, nas dioceses, segundo a ordenação posta por Nosso Senhor Jesus Cristo, e que ela mesma, orientada pelo Espírito  Santo, ia completando, acomodando as circunstâncias, etc. Nisso tudo a Igreja, dia a dia, ia fazendo penetrar a graça nas almas que quisessem recebê-la. E muitas dessas  almas recebiam essas graças. E as acolhiam melhor do que se recebe a graça hoje em dia.

Mas poder-se-ia dizer que nessa situação em que a graça soprava por todos os lados e abria algumas flores de cá, de lá e de acolá, algo estava por acontecer de muito grande e  e muito bonito como desfecho desta semeadura semi bem recebida por toda parte. E o desfecho é exatamente o fato de que um jovem, de família senatorial, quer dizer,  família nobre, patrícia, São Bento, com um imenso chamado divino para a obra especial dele, resolveu dar-se totalmente. A graça lhe disse: “Meu filho, eu o quero e o quero  inteiro. Você se dá inteiro?” E ele respondeu: “Sim, eu me dou por inteiro”.

Mas para dar-se por inteiro a experiência mostrava que ele não poderia ficar naquele misto de barbárie e de cultura romana decadente, em que se encontrava a Europa. Ele então se retirou para um local a fim de ali morar só. E por quê? Para ser santo. São Bento provavelmente não notava que ele era a árvore da qual brotariam todas as  sementes a serem espalhadas pela Europa. Esse é o fato beneditino. E ele foi só, a fim de ser só de Deus e de Nossa Senhora, para um lugar completamente ermo, onde não  houvesse nada que perturbasse a inteira entrega dele a Nosso Senhor, e ali entregar-se à devoção, à meditação, à penitência, para que a graça tomasse cada vez mais conta da pessoa dele.

Através de São Bento, Deus tomou inteiramente conta da Europa

Nós o podemos imaginar jovem – como consta que ele era –, de boa apresentação, bem dotado, com os predicados de uma família senatorial, despreocupado de tudo isso, não pensando nos seus dotes nem como seria comovedor naquela gruta, ou naquele castelo de grutas, ou silvestre palácio de grutas em que ele se embrenhou, onde cada   gruta dava abertura para outra como em um palácio um salão dá acesso para outro. Não estava pensando como era comovente ver o isolamento  de um jovem da figura, dos antecedentes dele, com as possibilidades dele, renunciando a tudo e entregando-se a Deus. Porque não pensava em si, mas em Deus.

Naquela solidão, ele começava, portanto, a vida de virtude que faria da sua alma o elemento modelador de toda uma família religiosa, que se prolonga até hoje e se  prolongará até não sei quando. Eu tenho a vaga ideia de ter lido que a Ordem beneditina tem mais de dois mil santos canonizados. Isso sem falar de outras Ordens religiosas que são beneditinas na origem, mas tomam a regra de São Bento e dão outras acomodações, interpretações, são outras vocações dentro da Ordem beneditina: trapistas, cistercienses, olivetanos e outros ramos ainda.

São Bento cuidava apenas de se dar inteiramente a Deus. O Criador tomava conta inteiramente dele, para através dele tomar completamente conta da Europa.

Mas é preciso notar o seguinte: nesta situação, entregue a essa solidão extraordinária, ele recebia comida de um outro anacoreta que vivia em uma gruta acima, com quem não conversava nunca. O anacoreta recebia alimento de um corvo, se não me engano, amarrava a comida em uma corda e a passava para baixo, e ele comia o que mandavam. Mais nada. O único contato que ele tinha com o mundo exterior era numa certa hora na qual via uma corda descer. Ele comia e a corda subia. E nada dos dois ficarem se olhando, fazendo sinaizinhos, comentários como “o tempo hoje está ruim”. Solidão total, total, total.

Grutas que ouviram o eco dos seus passos, prantos e cânticos de alegria

Nesse ambiente, nessa solidão predestinada o espírito humano gosta de imaginar que até as ervinhas, as grandes árvores, a vegetação e as ondulações do terreno eram impregnadas de graças, que tinham um pressentimento profético do que ele deveria ser. E quem menos sabia o que estava para nascer era São Bento. Ele tinha os seus ideais, e todos os montes, vales, colinas – usando a expressão de Camões empregada para um fim muito inferior – e ervinhas davam repercussão, faziam eco aos seus ideais,  e os ventos quando sopravam cantavam; e tudo isso ele não notava.

E uma pessoa estando lá, hoje em dia, pode ainda encontrar aquelas ervas, remotas bisnetas das ervas da época dele. Aqueles montes ainda são os mesmos e na sua  imobilidade pétrea ou térrea ainda têm a configuração de outrora, aquelas grutas que são as mesmas e ouviram o eco dos passos, os soluços, os prantos dele durante as crises, as tentações, as orações, os cânticos de alegria, etc., durante toda a vida dele repercutiram ali, e algo se poderia sentir. E quem vai a um lugar assim procura de algum modo sentir esses ecos de uma história que lá se passou.

Locais que ficam impregnados por maldições ou bênçãos

Esta procura se dá, aliás, com histórias de outra natureza. Vou dar um exemplo horrendo, que me ocorre no momento. Parece que Judas se enforcou numa figueira brava,  que dá figos não comestíveis pelo homem.

Mas imaginem que ele se tivesse pendurado em uma macieira, a qual ainda estivesse viva e dando frutos. Há um homem no mundo que quereria comer uma maçã dessa árvore? E se alguém tocasse numa delas, dever-se-ia dizer-lhe: “Vá lavar suas mãos na água benta! Queime essa maçã! Sepulte nas entranhas da terra, onde os vermes irão  liquidá-las, as cinzas que dessa maçã possam resultar. Procure esquecer o lugar onde essa cinza ficou. Em todo caso, nunca mais passe por perto. Porque com Judas nada! É  um homem cujo nome próprio é ultraje. Chamar alguém de Judas é insultá-lo do modo mais pesado possível!”

Em volta dessa macieira nenhum de nós teria surpresa de saber que o cheiro é mau, quebrando aquele pau sai uma resina asquerosa misturada com vermes, e a doença, a  maldição, a infelicidade, as tentações do demônio assediam a quem se aproxima da macieira da maldição. Por quê? Porque as coisas ficam impregnadas.

É assim também  com as bênçãos. Uma pessoa pensar, olhando de dentro daquelas grutas as montanhas: “Houve tardes em que o tempo estava bonito como o de hoje, e São Bento sentindo  que o dia tinha passado na virtude, e auscultando os movimentos interiores da graça, conjeturando com probabilidade que a noite seria tranquila, sentado no átrio externo dessa gruta, olhava o Sol se pôr e dava graças a Deus, porque tinha sido mais um dia aparentemente tão vazio para o homem, mas na realidade tão cheio  para ele”. Então visita-se um lugar desses procurando fazer a recomposição.

Estes são imponderáveis que talvez realmente existam no lugar por disposição da Providência, e que algumas almas têm feitio para pensar. Elas têm mais disposição, mais  aptidão, talvez um pouco mais de graça do que outras. É um lado. Mas também pode acontecer que algumas almas sejam mais poéticas, e tenham o dom de imaginar as  coisas como foram, e sabem que estão fazendo apenas uma poesia, uma irrealidade pela qual possam saborear um pouco a realidade que houve.

E muitas vezes o que se dá é uma coisa trançada: há uma poesia, uma imaginação que se sabe não ser real, mas existe qualquer palpitar da graça que diz: “Meu filho, há algo  verdadeiro dentro disso sem que você possa distinguir bem o que é, saboreie porque no meio desse gosto existe o sabor da verdade”.

Lógica, força e calma

Analisemos, então, algumas fotografias de Subíaco.

Isto certamente São Bento não viu. Portanto não fez parte do quadro que ele teve diante de si, porque foi construído depois. Homens chamados antes de tudo para a vida  religiosa se fixaram aqui, atraídos pela graça, certos de que a presença nesse lugar abençoado lhes trazia uma participação nas enormes graças que  São Bento recebeu.

Eu tenho tantas e tantas vezes elogiado a ogiva; deixem-me fazer um pouquinho de elogio do arco românico. Encontram-se na base quatro arcos desiguais.

O arco da esquerda é bem grande, e suporta sozinho uma parte maior do peso que vem de cima. Os dois arcos teriam talvez a metade do tamanho do arco grande; cada um sustenta um peso bem menor do que suporta o arco maior. E no extremo oposto há um arco o qual me parece ligeiramente ogival, e que provavelmente foi posterior. 

Também pode ter saído ogival mais ou menos por acaso, sem intenção nenhuma dos indivíduos de cultura românica que construíram isso. Mas esses arcos românicos dão  uma ideia de lógica, de força, de calma, que é muito bonita e não deixa até de ter sua majestade.

O mosteiro em cima  seria um edifício de favela. É construído com tanta irregularidade que as janelinhas, as portinhas fazem no andar térreo um zigue-zague, ora para cima, ora para baixo, que parece não ter finalidade ornamental.

Da terceira janela para a direita há uma janela solta pelo meio, e não se sabe bem por que ela é tão grandona; enfim, nada é bonito. Entretanto, o todo tem uma beleza  inegável,  indefinível, que se sente na situação de um monge beneditino passeando e rezando seu Rosário no terraço que fica em cima desses arcos todos.

Viver é olhar para o Céu

Imaginem um monge andando sozinho, rezando e meditando sobre São Bento, tal episódio da vida de Nosso Senhor, o Rosário, tal fato da vida de Nossa Senhora. Como teria São Bento meditado esses fatos? O Rosário ainda não existia no tempo dele; foi revelado por Nossa Senhora, em plena Idade Média, a São Domingos de Gusmão.

Mas vamos imaginar aquele monge andando de um lado para outro, sozinho, e posto nessa solidão onde não há nenhum barulho, porque não existe agricultura, não se vê  passar um homem, um bicho, nada se muda a não ser um arvoredo encaracolado que, às vezes, é seguido por uma grama escassa sobre uma terra feia e dura, e que parece  não servir para nada. É a negação de tudo, o vazio, mas ali está um monge com grandes ideias, grandes considerações, fenômenos místicos dos quais ele tem ou não tem  consciência e que o unem enormemente a Nossa Senhora. Dir-se-ia que os passos dele fazem eco aos passos de São Bento, e que esses arcos embaixo possuem algo da lógica,  da força simples, robusta e despretensiosa da alma de São Bento, o qual era uma alma em arcadas assim, imagino eu.

Veem-se duas montanhas que se encontram na base, formando uma espécie de “V”. Alguém perguntaria, por curiosidade: “O que há além?” Existe outro tanto igual a esse,  vazio, árido, inútil, servindo apenas para essa coisa também inútil, da qual vive a Terra: a solidão. A solidão dos homens chamados para a solidão. Mais adiante se forma  outro “V” e depois outro, e só o que se vê são montes assim. O homem se sente perdido na solidão, na terra árida, para ele a vida não reserva mais nada. Viver é olhar para o  Céu: “Pater noster qui es in coelis, sanctificetur nomen tuum…”

A Cristandade europeia estava nascendo

No prédio da esquerda há um pouco mais de arquitetura. Existem uma rosácea e um campanariozinho construídos muito tempo depois, certos adornozinhos quão pobres e modestos, o suficiente para, com os ecos do Angelus na aurora e no pôr do Sol, às seis da manhã e às seis da tarde, saudar a Nossa Senhora e fazer com que esses ecos  santifiquem aquelas solidões.

Notem aquelas montanhas. Nenhuma delas desce de modo bonito, não tem aquelas flexões e deflexões doces dos montes da Baía da Guanabara, nem é amiga da montanha  seguinte. Essas são montanhas agrestes justapostas pela mão de Deus, que não se conhecem umas às outras, e parecem dilaceradas diante do céu.

Em outra fotografia vemos a gruta. Tudo é desconforto, solidão. Devemos imaginar São Bento sentado lá, lendo um livro e pensando… Ele  não sabia, mas a Europa estava nascendo. Muito melhor que a Europa, a Cristandade europeia estava surgindo.

Ele não teria a menor ideia da quantidade dos peregrinos que iriam humildes, reverentes,  oscular esse lugar. Mas cada peregrino que vai ao Mosteiro de Subíaco leva uma gotasinha de glória extrínseca para São Bento no Céu.

Os Anjos cantavam e os demônios rugiam

Temos um conjunto bem construído, que foi edificado depois, com ogivas, etc. Construído a legítimo título, mas nos dá apenas um aspecto da glória de São Bento: homens com chamado menos excepcional do que o de São Bento, mas atraídos a alguma coisa que era o chamado dele. E então compreenderam que a graça os chamava a tornar um pouco menos hirto o isolamento naquele lugar, a viverem em grupo, mas no silêncio e em edifícios que amenizavam um pouco a gruta, porém não faziam desaparecer inteiramente o ar imponderável que aquela gruta traz consigo; estão escavados naquelas grutas.

Observam-se também construções do mesmo jeito, muito respeitáveis, veneráveis, até são pintadas, etc., onde viveu o cortejo enorme dos filhos menos excepcionais, menos fortes, mais fracos, mas que Deus chamou para serem assim, e que poderiam encontrar – e muitos encontraram – o seu lugar no Céu, pois foram canonizados, levando a vida  nessas condições – e não nas condições de São Bento –, e que estavam aí porque queriam respirar um pouco do ar que São Bento respirou.

Eu admito como provável, tanto quanto consigo cogitar nessas coisas, que, sem ter a certeza do que ia nascer de lá, São Bento sentia que qualquer coisa de muito grande se  jogava no Céu, cada vez que ele dava um passo ascendente no caminho da fidelidade. Os Anjos cantavam e os demônios rugiam. Ele percebia todo o ódio que o demônio punha contra ele e, portanto, quanto estava sendo hostil, nocivo ao demônio, resistindo às tentações jeitosas com as quais, a todo momento e de um modo tormentoso, o  demônio o assediava.

A bandeira que tremula ao vento ou cai ao longo do fuste

E quando São Bento se jogou naqueles espinhos para que atormentassem a sua carne e assim, chamando a atenção dele para a dor, a desviassem do desejo que a carne  concebida no pecado original pode ter sem o homem consentir – o anseio da lascívia, do pecado impuro –, embora sem saber o que seria tudo isto, ele sentia que tinha muito mais do que fazia. E com esta particularidade interessante: talvez a Providência lhe desse não uma certeza detalhada – pão, pão; queijo, queijo –, mas grandes e ventosas intuições, que passavam de cá e de lá e lhe deixavam um fundo de certezas imprecisas, as quais ele não sabia interpretar bem. E perguntava: “O que é isto? Uma  graça ou uma ilusão?” Mas que o ajudava a andar.

Eu digo isso porque em muitas vocações há coisas dessas. Em nossa vida mesmo existe algo semelhante: horas em que estamos como uma bandeira que tremula ao vento, quer dizer, sentimos a certeza do futuro e que realizamos uma coisa enorme, extraordinária, fazendo-nos  flutuar como uma bandeira ao vento.

Há momentos, pelo contrário, em que o vento cessa e a bandeira cai ao longo do fuste. E a pessoa pensa:  “Agora eu tenho que cuidar da roupa de cama e de mesa que vai para a lavadeira. Então vou mexer com a roupa suja, para ajudar a proclamar o Reino de Maria… Godofredo de Bouillon, Santo Inácio de Loyola, Santa Teresa onde estais?  Vós que fazíeis coisas tão grandes e tínheis certeza da grandeza do que realizáveis, aqui está este católico, debaixo de certo ponto de vista vosso filho – porque nós somos  filhos de todos os filhos da luz –, contando as peças de roupa. Estou vendo o guardanapo sujo de vinho que tal irmão meu derramou desajeitadamente na mesa; mais adiante   toalha de mesa que está toda manchada porque tal pessoa pinga feijão na toalha; estou notando a nossa vida cotidiana, as misérias de cada um nas toalhas de mesa  que vão para a lavadeira. E isto é a escada de Jacó pela qual eu subo ao Céu?”

Um paradoxo cruel que se resolve numa ogiva sublime

Tenho certeza que alguma alma, contemplando aquelas montanhas, pensaria em coisas análogas. E se perguntaria se não é uma graça que São Bento está obtendo para ela no Céu. Naqueles montes ásperos, íngremes, naquela batalha da natureza, naquela inutilidade do que ele fazia, no paradoxo constante do homem, que por sua natureza é  social, a graça o chama para viver isolado. Isso não é uma contradição, mas um paradoxo.

Nesse paradoxo, que eu não hesitaria de chamar de cruel – no sentido em que o sacrifício da Cruz foi cruel –, o homem deve dizer: No fundo tudo isso se resolve numa ogiva  sublime, faz um sentido que eu compreenderei um dia no Céu. Continuarei a andar, andar. E sei que caminhando assim, contando as peças de roupa e vendo as falhas  morais nas manchas da toalha de mesa – são pequenas falhas morais, mas às vezes indicativas de algo tão maior –, pedindo a Deus que perdoe a eles e a mim, a todos que  têm essas falhas, e faça subir todos para o Céu, eu estou preparando uma glória enorme para daqui a duzentos anos.

Nas particularidades da nossa vocação, senão para daqui a duzentos anos, daqui a duzentos dias ou duzentos minutos, porque o dia da intervenção de Nossa Senhora é  incerto e poderia vir de uma hora para outra, como o esposo da parábola das virgens loucas e das virgens fiéis do Evangelho. As primeiras ficaram esperando, foram fiéis, e  eu devo esperar que meu Deus chegue de uma hora para outra e diga: “Meu filho, o cárcere da Revolução acabou. E se esse dia demorou para chegar, eu não fui frustrado.

Pelo contrário, fui glorificado. Esperei longamente, mas não perdi a esperança. A glória me chega como uma coroa”.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/11/1988)

Maravilhas do espírito da Igreja

Enquanto as areias dos circos romanos se embebiam do sangue dos mártires, os desertos se povoavam de eremitas e penitentes. Assim era nos tempos do Papa São Pio I, ele mesmo imolado por ódio à Fé cristã. Ao comentar a vida deste Sumo Pontífice, Dr. Plinio nos faz admirar a santidade da Igreja a qual, em meio às maiores vicissitudes, sempre triunfou sobre as portas do inferno, conforme lhe prometeu o Divino Salvador.

 

No dia 11 deste mês, celebra-se a festa de São Pio I, Papa e mártir do século II. Sobre ele encontramos alguns interessantes dados biográficos, extraídos da obra “Vie des Saints”, do Padre J. E. Darras. Narra-nos este:

São Pio I nasceu na cidade de Aquiléia [Itália], e sucedeu a Santo Higino na Sé Apostólica. Foi amigo de São Policarpo e São  Justino, o Apologista, lutando com eles contra a heresia gnóstica que assolava a Igreja. Fez um especial decreto para que o sacerdote, ao celebrar, cuidasse das espécies sagradas. Por exemplo, se por negligência deixasse cair uma gota do sangue de Nosso Senhor, deveria penitenciar-se por quarenta dias. Se o sangue caísse sobre o altar, e não no solo, a penitência seria somente de três, quatro ou nove dias, conforme a quantidade derramada.

Prescreveu o máximo respeito ao vinho e ao pão consagrados, exigindo que neles não se permitisse a mínima profanação. Testemunhava assim a grande fé da Igreja na presença real de Nosso Senhor na Eucaristia.

Consagrou ainda a igreja de Santa Pudenciana, no palácio onde São Pedro e São Paulo haviam trabalhado. Depois de ter governado a Igreja por nove anos, São Pio I foi martirizado sob o Imperador Marco Aurélio.

Nas catacumbas, um perfeito trabalho de estruturação

Trata-se, portanto, de um papa que exerceu suas funções ainda no período das perseguições, e em pleno apuro que cercava os católicos fez este trabalho admirável — ao qual muitos papas estiveram associados — de organização interna da Igreja.

A epopeia de São Pio I nos leva, assim, a considerar um fato muito importante e talvez pouco apreciado, que é o seguinte. Durante o período catacumbal a Igreja se viu perseguida, pisada, calcada aos pés, deitando sangue por todas as vertentes e por todos os poros. Quando Constantino a liberta, ela sai das catacumbas e passa a viver à luz do dia, apresentando desde logo uma organização perfeita e acabada. Possui uma hierarquia estruturada, um direito próprio, uma liturgia definida, um depósito estabelecido de doutrina, etc.

Quer dizer, desde a chegada de São Pedro a Roma e das viagens dos apóstolos — especialmente as de São Paulo — até o momento em que a Igreja adquire a emancipação, houve dentro das catacumbas um imenso trabalho de organização. E surge uma entidade se declarando e sendo imortal, de caráter universal, a primeira até então existente.

Estruturada com sabedoria, critério e acerto tais que, quando abandona os subterrâneos de Roma, basta-lhe continuar a viver. Vê-se por esse fato a maravilha de serenidade e sapiência que foi a Igreja em relação ao perigo. Dir-se-ia que uma obra tão delicada quanto a de fazer germinar a estrutura eclesiástica de dentro de suas próprias sementes pediria, normalmente, uma situação de calma e tranqüilidade invulgares, pois os homens atormentados com a perseguição não poderiam cogitar em outra coisa. Porém, o   contrário é a verdade. Durante todo aquele período em que se achavam acuados, acossados, no risco de caírem de um momento para outro nas mãos do carrasco, tais homens continuavam a pensar, a rezar, e nas catacumbas, entre as invasões dos soldados romanos, aperfeiçoavam uma parte da liturgia, estruturavam um ponto da doutrina, criavam um costume novo.

Havia, pois, essa calma e essa serenidade extraordinárias na perseguição, conjugando-se harmonicamente com a paz de alma da qual os cristãos davam provas na arena. Aquela sobranceria e tranqüilidade diante da morte não se manifestavam apenas na hora patética em que eram postos na presença das feras e dos verdugos, mas constituía todo um estado de espírito sapiencial. Esta sabedoria os levava a se conservarem confiantes e plácidos ante os perigos que sentiam, cuja profundidade às vezes lhes fazia  vibrar o instinto de conservação. Mas, apesar de tudo, fazia-os também construir, pedra por pedra, o edifício admirável da Igreja.

Florescimento do eremitismo

Ainda nessa época de São Pio I teve início uma das realizações mais belas da Igreja, como aspecto positivo de sua organização: o eremitismo.

Apavorados diante das crueldades e perseguições nos circos romanos, muitos cristãos fugiam para o deserto a fim de não serem presos pela polícia do imperador.  Principiavam então uma vida isolada, a existência eremítica de contemplação. Desta sorte, o estado contemplativo começou a nascer dentro da Igreja ao mesmo tempo em que floresciam os mártires.

Vê-se por aí quantas riquezas desabrochavam na Igreja e que panorama admirável de sua gesta naquele período nos é dado observar. Os mártires se multiplicavam, o apostolado crescia e a Esposa Mística de Cristo penetrava por toda parte. De outro lado, ela se enclausurava e o estado contemplativo se expandia. Tudo isso a uma vez, como produto, expressão, fruto de uma germinação admirável!

Ação do Espírito Santo na Igreja ao longo dos séculos

Poder-se-ia perguntar o que há por trás de todo esse espetacular desenvolvimento. E a resposta recairia sobre algo para o qual é preciso sempre chamar a atenção: a presença do Espírito Santo na Igreja Católica Apostólica Romana.

O que constitui propriamente a Igreja não é apenas o fato de ela ser uma sociedade de pessoas definidas, isto é, o Papa, os bispos, os clérigos e os fiéis. Além desse elemento humano, há algo que se chama o espírito da Igreja. E este espírito é a continuidade, dentro dela, de uma determinada mentalidade, de uma sabedoria, da fé e da virtude que  existem na Igreja, não por obra do homem, mas devido a um fator sobre-humano.

Trata-se dessa ação do Espírito Santo pela qual, através dos séculos, em todos os lugares os bons católicos se entendem, se conhecem, se apoiam. Eles são um só, e quando morrem, outros lhes sucedem com a mesma mentalidade, o mesmo espírito e até mais característicos que seus antecessores.

Por exemplo, tenho a satisfação de me dirigir a pessoas provenientes de alguns países hispânicos, bem como a brasileiros de todos os quadrantes que receberam a  hereditariedade de inúmeros contingentes de imigração. Entretanto, nos entusiasmamos por formas de pensar e sentir, estilos de vida, pelo espírito de uma era que não  conhecemos, que é a da Igreja do século II. E temos entusiasmo porque isto não foi inventado por nós, mas resultou de uma tradição transmitida por nossos maiores. É o  espírito da Igreja, ou seja, é o Divino Espírito Santo, que realiza essa continuidade entre nós e aqueles que “nos precederam com o sinal da Fé”, marcados com a mesma cruz.

Somos fagulhas da fogueira da Igreja

A esse propósito, lembro-me de que certa vez um sacerdote me ouviu com fisionomia muito embevecida quando lhe falei a respeito de nosso grupo. Percebendo-o tão agradado, perguntei-lhe.

— Padre, o que o senhor está apreciando nesses meus comentários?

E ele me disse:

— É o lado teológico da coisa, porque na efervescência desse espírito e dessa atividade dos senhores está a vida da Igreja. É exatamente o espírito dela que os orienta e os  move a essas realizações.

Portanto, nós não somos senão rebentos da Igreja Católica Apostólica Romana. Sem dúvida, todos já tiveram oportunidade de observar uma fogueira acesa durante a noite. 

E verificaram este fato: de vez em quando se desprende uma fagulha, eleva-se pelos ares e cai de novo no meio do fogo. Assim também, somos fagulhas que se evolam da  Igreja Católica, porém sempre ligados a ela. Não somos senão pedras do seu edifício, amorosas e encantadas de pertencerem a ela. E qualquer coisa que em nós possa haver  de bom, é fruto dessa pertencença à Igreja, templo do Espírito Santo, do qual nascem todas as formas de boas disposições, de virtudes, de Contra-Revolução, etc. Esse é o  processo espiritual pelo qual se forma um movimento como o nosso.

E vale dizer, existe uma semelhança de situação entre os fiéis do tempo de São Pio I e o nosso grupo. Certo, não sofremos em nossos países a perseguição cruenta, mas sim a incruenta, manifestada pelo fato de sermos muito combatidos. Contudo, Nossa Senhora nos ajuda para, em plena luta, irmos construindo pedra por pedra nossa obra, a qual vamos estruturando, explicitando sua doutrina, estabelecendo uma organização, tornando cada vez mais protuberante um determinado espírito, a fim de que, quando chegar o dia do triunfo do Imaculado Coração de Maria, a Igreja tenha recebido um contributo de filhos que a serviram com dedicação.

Estas são algumas reflexões que a festa de São Pio I nos deve sugerir.