Santo Elias, Profeta

É bem verdade que os grandes feitos tornam notórios muitos homens. Entretanto, o que dizer de quem obteve fogo do céu, fez cessar a chuva, e invectivou, ademais, rei, coorte e sacerdotes? O Antigo Testamento viu passar diante de si um ardoroso profeta:  Elias o “ígneo”.

 

A vida do Profeta Elias pode ser dividida em etapas: o enfrentamento com o Rei Acab e o arrebatamento num carro de fogo.

O homem do Deus de Israel

Na primeira delas, vemos Elias colocado diante do povo de Israel, bem amado de Deus, mas governado pelo Rei Acab, que por sua vez era dominado por sua esposa Jezabel, uma mulher ímpia. Esta havia introduzido o culto do deus imoral, impudico(1), Baal, entre o povo eleito.

Diante disso, Elias pregava contra Baal e fazia todo o possível para que o rei e a rainha se convertessem, dando assim o bom exemplo, e os judeus voltassem ao culto do verdadeiro Deus. Mas na realidade as palavras dele não tiveram resultado. Os soberanos continuaram na idolatria.

Compreende-se que dentro dessa situação de tal maneira péssima, a cólera de um homem altamente virtuoso como Elias atingisse limites extraordinários, pois não havia outro caminho. Começa ele, então, a dar o grande de sua vida.

“Quem sabe vosso deus está dormindo?”

Com efeito, naturalmente por ordem de Deus, ele trancou o céu e não choveu durante três anos. E aquele povo, que vivia da agricultura e da criação de gado, não conseguia mais se manter: as ervas definhavam, o gado não tinha o que comer; a fome, a desolação e a miséria se instalavam por todos os lados.

Passados três anos, por ordem de Deus, Elias foi ao encontro do monarca,  desafiando os sacerdotes de Baal a uma confrontação no alto do Monte Carmelo.

Elias, com majestade, obteve a sua vitória sobre os baalitas: “Escolham um novilho para o sacrifício e façam o altar! Depois iniciem vocês por pedir ao seu deus que envie fogo e consuma a vítima em holocausto. Eu farei depois o mesmo. O deus que ouvir será o verdadeiro”.

Eles começam a implorar, a chamar e a executar danças religiosas, provavelmente impúdicas, pois Baal era o deus da imoralidade e da imundície; nada acontecia. Elias debicava deles: “Quem sabe se seu deus está dormindo! Gritem mais alto!” E eles gritavam, dançavam com mais frenesi e começaram então a se cobrir de sangue, cortando-se, para que Baal ouvisse.

Mas, quando o sol chegou a pino, o prazo designado por Elias cessou. Ele então, abstraindo da presença daquela gente, construiu um altar, molhou-o com abundância, para impedir qualquer dúvida de que houvesse algum artifício ou fraude, e depois invocou a Deus a fim de que fizesse descer o fogo do céu.

Imaginemos a grandeza da cena! O povo de Israel e diante dele um altarzinho singelo, mas enormemente respeitável, com um boi esquartejado em cima, tudo molhado e também cercado por um valo cheio de água; todos atentos.

Consideremos a majestade da hora da invocação de Elias. Homem venerável, já com a barba branca, provavelmente com uma túnica alva que lhe ia até os pés, ele reza ao Senhor, pedindo que afinal viesse o fogo do céu para provar ser Ele o verdadeiro Deus.

Elias, com uma prece simples, cheia de beleza, obteve a vinda do fogo. Podemos imaginar um fogo lindíssimo, com labaredas entre azul e vermelho, que desciam do céu e penetravam na carne daquele boi; um fogo de tal maneira devorador que consumiu as pedras do altar e fez evaporar toda a água colocada em torno dele. À medida que o fogo descia, Elias se tornava mais majestoso e grandioso, e, quando tudo estava queimado, o povo reconheceu: “Tu és verdadeiramente o homem do Deus de Israel”, prosternou-se por terra e adorou a Deus.

Exaltabit caput suum

A segunda fase da vida de Elias é misteriosa. Num carro de fogo, puxado por cavalos de fogo, ele é arrebatado num redemoinho.

Sua vida nos abre perspectivas certamente deslumbrantes. Porque para ser glorificado assim é preciso ter passado por humilhações sem conta. Só fundam as instituições muito seguras os homens que passaram por todas as inseguranças! Só fundam as nações muito intrépidas os homens que se expuseram a todos os riscos! Só abrem grandes sulcos de glória na História os homens que sofreram toda espécie de humilhações! “De torrente in via bibet, propterea exaltabit caput suum — Beberá da torrente no caminho; por isso, erguerá a sua fronte”(2). Quer dizer, trata-se de parcelas de gelo que se derretem e descem ao longo dos morros; e um viajante pobre e desamparado de recursos se põe de quatro para beber no chão, como um animal. Esse está no último da humilhação. Ele bebeu da torrente. Por isso, sua cabeça, sua fronte, será exaltada!

E sua glória se manifestou a eles

Devemos nos lembrar também de outro fato grandioso: Elias no monte Tabor, no dia da Transfiguração. Que predileção extraordinária! Nosso Senhor Jesus Cristo vai Se transfigurando e sua glória interna vai se manifestando aos Apóstolos que não cabem em si de deslumbramento. Ao lado d’Ele duas figuras aparecem. Nosso Senhor, não contente de manifestar a sua grande glória, quis mostrá‑la em dois servos eminentes, por Ele especialmente amados: Moisés e Elias.

Imaginemos todas as glórias que houve na História: os generais que obtiveram as vitórias mais brilhantes; os demagogos aclamados pelas multidões mais estrepitosas; os monarcas que receberam as homenagens mais reverentes; os sábios que tenham sido objeto de veneração dos homens mais ilustres e mais admirativos; os Santos diante dos quais se tenham dobrado as maiores multidões. O que tudo isso representa em comparação com a glória de Elias ao lado de Nosso Senhor no Tabor?

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 20/7/1991, 24/11/1990 e 20/7/1983)

 

1) Palavra grafada como o autor a pronunciava, procurando dar-lhe melhor sonoridade.

2) Sl 109, 7.

Catedral de York: Obra-prima de bom gosto e arte

Comentando a imponente e aconchegante catedral de York, Dr. Plinio procura ensinar a arte de saborear belezas subtis que, à primeira vista, podem causar certo choque; mas por isso mesmo, quando bem compreendidas, são motivo de ainda maior admiração.

 

Gostaria de comentar uma catedral bastante conhecida, porém não célebre. Ao menos não me parece que o seja. Esta catedral é de York, na Inglaterra, cidade conhecida no mundo inteiro, sobretudo pelo fato de seus habitantes terem fundado a Nova York, nos Estados Unidos; mas também por ser uma cidade muito importante na vida cultural, política e econômica da Inglaterra.

É preciso saber saborear

A catedral apresenta algumas características que, à primeira vista, impressionam pouco, e cuja beleza é preciso saber saborear.

Por exemplo, a torre sem ponta. O gosto pelo princípio de unidade e transcendência nos levaria a desejar que a torre central terminasse bem mais alta, devendo ser constituída por uma série de lances menores, terminando com uma ponta altiva e elegante.

Se analisarmos a construção que está ao lado — provavelmente deve ser a sala capitular —, com uma ponta cônica, veremos como a ponta a torna bonita. Mas, na torre central não há ponta.

Considerando ainda as duas torres do fundo, as quais não têm ponta, vemos que nos ângulos delas estão flanqueados florões que causam à primeira vista a impressão de torreões.

Onde está a beleza dessa torre assim? Não se diria tratar-se de uma torre inacabada, portanto, não tendo toda a beleza sonhada pelo arquiteto?

A poesia do cone inexistente

A resposta, a meu ver, é a seguinte:

Assim como o Fujiama tem sua beleza própria por não ter cone, há qualquer coisa nessas torres que faz sonhar vagamente numa ponta que não existe. Assim como na ordem da natureza as sombras têm sua beleza, e, às vezes, são mais belas do que a realidade, assim também os cumes e as pontas que não existem, quando o que está embaixo é feito com talento, ficam insinuados. E, por essa insinuação, qualquer um pode formar uma ideia, ainda que vaga e subconsciente, daquilo que não existe.

Então, nas duas torres do fundo, há algo que ajuda a imaginação a se elevar até o cone. Na torre do meio não: é rasa mesmo! Mas, de fato, prestando atenção, desprende-se dela uma certa poesia: é a poesia do cone inexistente!

Aconchego do convívio íntimo entre as pedras 

Eu queria chamar a atenção para outro aspecto da questão.

Observando a catedral, vê-se ser toda ela, por assim dizer, imbricada dentro de um casario, o que se nota, sobretudo, no tocante à peça mais avançada, octogonal, a qual está quase imersa no meio de um emaranhado de dependências da catedral e de casas que estão ao seu redor. Próximo desta está um arvoredo; este também está um pouco entrelaçado com as construções.

Aí se nota o contrário do urbanismo moderno, no qual nada é entrelaçado. Segundo esta concepção, se deveria derrubar todo este casario, para com isso a catedral ficar à vista de todos os lados; naquela área se faria uma praça vazia com gramado, e esse casario, se existisse, deveria existir para longe.

O resultado é que se perderia algo da sensação do aconchego do convívio íntimo entre pedras diferentes.

Note-se também que tais casas são um tanto ligadas umas às outras, sem nada de muito ordenado. Porém, formam um todo agradável e interessante, diferente do perpétuo quadrilátero, ou então do sinuoso, artificialmente poético, das ruas das cidades modernas. Este conjunto formado em torno da catedral causa a impressão de um urbanismo vivo.

Fruto de almas católicas

Hoje a catedral não é católica, mas foi construída por almas católicas, para orações católicas se erguerem daí de dentro, junto ao Santíssimo Sacramento, e aos pés das imagens de Nossa Senhora e dos santos.

A beleza da ogiva e da harmoniosa galeria lateral dá-nos uma ideia de dignidade, de majestade, de recolhimento. Tem-se impressão que a forma da ogiva ajuda as orações a se levantarem ao Céu, até o trono de Deus.

Acho de uma harmonia, de uma distinção e de uma beleza admirável essa catedral, e de um equilibro extraordinário.

Chama a atenção a beleza da pedra, de um colorido que dá a impressão de ser feita de uma espécie de mel claro, de um tom parecido com o da madeira.

Na entrada do coro vê-se uma sucessão de nichos, e entre cada duas colunas um santo; essa parede separa a nave central do coro. Nas asas laterais é muito bonito ver aqueles maços de colunas que se entreveem, e em cima, a construção que não chega até o teto, mas termina com uma balaustrada de colunetas góticas. Todo esse conjunto é uma verdadeira obra-prima de bom gosto e arte.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/5/1985)

Conhecimento de Deus através do belo

Por meio da contemplação dos esplendores que o Criador espargiu pelo universo, chega-se ao amor de Deus. Seria necessária, diz Dr. Plinio, uma escola desses exercícios de admiração para inaugurar uma nova e rica via de conhecimento divino, sobretudo conveniente para aqueles que vivem na era da “civilização da imagem”.

 

No seu livro sobre a estética medieval(1), Edgar de Bruyne se refere à escola vitorina(2), o que nos faz pensar na conveniência de haver tratados do amor de Deus ensinando, por meio do belo, a praticar a admiração e o elevar-se ao Criador, ao mesmo tempo metódica e degustativamente, assim como há tratados para outras vias da vida espiritual.

Um novo caminho para a piedade

Compreende-se melhor a oportunidade de um tal ensinamento se considerarmos que, em matéria de livros para formar as almas no amor divino, um tratado dessa espécie seria o único capaz de reeducar as pessoas da “civilização da imagem”, porque parte da figura e tende, através desta, para uma reflexão que nunca se distancia inteiramente da imagem, nem sequer em seu ponto terminal. E constitui, entretanto, um profundo pensamento.

A esse título, trata-se de um caminho novo de piedade e vida espiritual.

Exemplifico. Tome-se, digamos, a estrada de ferro que liga Curitiba ao porto de Paranaguá, no Paraná. Um trajeto famoso pela beleza dos panoramas que ele percorre. Ora, dever-se-ia mostrar fotografias desses cenários e, com essas imagens na retina, explicar como através dos esplendores naturais ali contemplados se chega ao conhecimento e amor de Deus.

Do mesmo modo, com outras incontáveis belezas esparsas pelo Brasil e pelo mundo, seria mais do que benéfico proceder a tais exercícios — atraentes e sistemáticos — de elevação da alma às coisas celestiais. Isto significaria, como acima dissemos, inaugurar para os homens uma nova e rica via de conhecimento divino.

A beleza do espírito transparecendo na da matéria

A arte gótica, aliás, é fecunda no favorecer exercícios dessa natureza. Por exemplo, o Castelo de Saumur, cujos torreões parecem dispostos desordenadamente dentro de um quadrilátero muito rigoroso — e o gênio francês é exímio em unir elementos díspares — nos remete para realidades superiores às terrenas.

Nesse sentido, porém, embora arquitetada num estilo próprio, creio ser mais audaciosa a igreja de São Basílio, em Moscou. Ao vê-la, tem-se a impressão de que suas torres, como que nascendo do solo, são minúsculas e carregam tetos imensamente maiores que elas. Estes, por assim dizer, quase esmagam o edifício, mas são coberturas magníficas. É um conglomerado de torres onde quase tudo é teto, constituindo um jogo de fantasia e imaginação em extremo bonito, e, a seu modo, elevando a alma para o infinito esplendor de Deus.

Dessas análises se deve concluir que, na beleza da arte engendrada pelo talento humano, importa fazer transparecer a beleza mais alta de caráter espiritual que nos fala de Deus.

Então se pergunta: como uma pessoa, percebendo a transparência do espírito na matéria — desde que tal transparência apresente essas qualidades sobre as quais acabamos de falar — tem a noção do belo?

Ela o tem, porque nota através do elemento material que lhe cai comumente sob os sentidos, uma realidade ontológica mais elevada. De algum modo, ela percebe a riqueza de espírito ali presente e, de certa forma, a beleza do próprio Deus. Ou seja, é um degrau para a consideração do Onipotente, do Ser perfeito, eterno e criador de todas as coisas.

A habilidade do artista enriquece a obra

Portanto, não basta dizer — e esse ponto acrescenta algo às nossas elucubrações anteriores —  que a pessoa, ao contemplar a obra de arte, percebe uma virtude e, através disso, Deus. Há outra coisa: ela conhece melhor, com uma cognição mais preciosa que a comum, o espírito humano que concebeu aquela beleza artística, o qual representa uma realidade ontológica superior e independente de considerações de caráter moral, e que remete para Deus, puro Espírito.

Por isso, segundo de Bruyne, às vezes a mensagem espiritual transmitida pela obra de arte não consiste em que seja em si mesma muito expressiva, mas em revelar a enorme paciência e habilidade do artista, em nos dar a conhecer algo de sua própria alma.

Harmonia de opostos não contraditórios

Para concluir, um comentário a respeito da fórmula empregada por Cassiodoro e consignada por de Bruyne, para exprimir a harmonia das coisas opostas e não contraditórias: “ex diversis, non ex adversis”.

Julgo-a perfeita, lapidar e digna de ser retida. Parece-me muito agradável o emprego de palavras semelhantes — diversis, adversis — que, devido à inversão de uma sílaba ou de algumas letras, exprimem conceitos distintos, tornando o pensamento mais nítido ao espírito.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 23/4/1973)

 

1) Todas as referências a Edgar de Bruyne nesta seção reportam-se à sua obra L’Esthétique du Moyen Âge [A estética da Idade Média].

2) Escola de pensamento fundada em Paris por Hugo de São Vitor e Ricardo de São Vitor.

Santo Elias

Pelas narrações da Escritura e pelas imagens que o representam, Santo Elias nos aparece como um perfeito modelo de varão temente a Deus, sério, digno, majestoso, com o  coração imbuído de zelo no serviço do Altíssimo. A fisionomia possante, a barba espessa e farta, o fulgor do olhar de quem transmite os ditames divinos para o mundo, os  gestos, as atitudes, tudo nele reflete a ênfase — quase diria a pompa — dos profetas do Antigo Testamento.

E se não bastasse ser um espírito incendiado de amor ao Messias que viria, Elias teve por um de seus mais valiosos galardões a devoção à Santíssima Virgem, séculos antes  de Ela nascer.

Foi, com justiça, o precursor das gerações e gerações de filhos que louvariam e aclamariam Nossa Senhora como Bem-aventurada até o fim dos tempos.

Plinio Corrêa de Oliveira (“Santo Elias enfrenta o Rei Acab” — Igreja de São José, Madri)

Santa Macrina, modelo de educadora

Ao contrário do corre-corre e da dilaceração da existência nos dias de hoje, Santa Macrina cuidava dos afazeres domésticos, levando uma vida recolhida, calma e distendida, com muito espírito de oração. Dentro de sua casa, ela educou seus irmãos menores, que depois se tornaram grandes santos.

 

Tenho em mãos uma síntese biográfica de Santa Macrina, virgem, tirada da obra “Vidas dos Santos”, do Padre Rohrbacher(1).

Quatro irmãos santos

Nascida em Cesareia no ano de 327, Macrina, a Jovem, era filha de Emélia e Basílio, o Antigo, e irmã de Basílio, Bispo de Cesareia, de Gregório, Bispo de Nissa, de Pedro, Bispo de Sebaste.

Macrina era a mais velha, a “mãezinha”, a protetora, a incansável, da qual São Basílio, com emoção, fala que foi educadora perfeita.

A mãe inspirou-se na Escritura santa para formar a filha, buscando na Sabedoria de Salomão luzes para educá-la, ao passo que o Saltério foi o preceptor da jovenzinha.

Aos doze anos, ficou noiva, mas morrendo o pretendente não pensou noutra coisa mais, senão em se consagrar à educação dos irmãos.

Em 373, Emélia faleceu. Os filhos, já formados, de vez em vez vinham visitar a “Grande Macrina”, como a chamavam nos tempos da longínqua infância.

Quando doente, já perto da morte que a levou em 379, Gregório encontrou-a sobre uma tábua, com o cilício. Tomou-a carinhosamente e pô-la no leito, onde a moribunda, evocando o passado, pôs-se a render graças a Deus por tudo aquilo que, bondosamente, dignou-se conceder-lhe:

“Senhor, Tu acabaste com o medo da morte. Por Ti, a verdadeira vida começa quando se acaba a vida atual. Dormimos por uns tempos, depois nos ressuscitarás ao som da trombeta”. Depois: “Tu nos salvaste da maldição e do pecado, vindo por nossos pecados e nossa maldição”.

Com o Crucifixo de ferro, que encerrava uma relíquia da Cruz do Salvador, que sempre trouxera consigo, morreu em paz, sendo enterrada perto do pai e da mãe.

Vemos aqui o que é uma alta genealogia; os pais tiveram quatro filhos santos: São Basílio Magno, que superou o pai; São Gregório de Nissa, também grande santo e Padre da Igreja; São Pedro de Sebaste e Santa Macrina.

Pedagogia inspirada no Livro da Sabedoria e dos Salmos

A mãe inspirou-se na Escritura santa para formar a filha, buscando na Sabedoria de Salomão luzes para educá-la, ao passo que o Saltério foi o preceptor da jovenzinha.

Bons tempos aqueles em que a mãe abria o Livro da Sabedoria para aprender como deveria educar os filhos. Hoje, a maioria das mães não se lembra disso. E se puserem esse Livro nas mãos de algumas delas, não entendem ou não concordam.

Em 373, Emélia faleceu. Os filhos, já formados, de vez em vez vinham visitar a “Grande Macrina”, como a chamavam nos tempos da longínqua infância.

Portanto, eles souberam agradecer a educação que receberam desta irmã.

A ficha colhida parece ser um pouco vazia porque, afinal de contas, narra quem são os pais e os irmãos dela, conta que ela ajudou sua mãe a educar seus irmãos e, depois, diz que ela morreu, e nada mais.

Esse vazio pode ser preenchido com algumas considerações a respeito da vida feminina naquele tempo. Creio que daí virá algo de útil para nós.

O papel da mulher é ser o centro natural da família

Uma verdade elementar, acessível a qualquer pessoa, é que sendo a mulher e o homem pertencentes ao gênero humano, são, contudo, muito diferentes, devendo também caber, a cada um, tarefas diversas nesta vida. E se é próprio ao homem velar pela manutenção da família, é próprio à mulher permanecer dentro de casa e proporcionar ao homem um verdadeiro tesouro: uma casa habitada.

Quer dizer, a mulher deve ter seus filhos e educá-los. Depois de terem completado a sua educação, os filhos se casam. O papel da mulher é de ser o centro natural da família. De maneira que sua residência é o ponto de encontro dos filhos, dos netos. E o normal é que ela passe a maior parte de sua vida dentro de casa. Não quero dizer que a mulher deva sempre ficar em sua residência; mas o sair todos os dias de casa não é próprio a uma mulher com espírito feminino completamente bem formado.

A distração, o entretenimento da mulher, o ambiente onde ela completa a sua personalidade é dentro de sua própria casa e das residências dos parentes muito próximos, os quais ela deve visitar com uma relativa assiduidade, de acordo com as circunstâncias. Mas precisa encontrar a sua satisfação em estar dentro de sua própria casa.

Fazendo o que dentro de casa? Recebendo os seus, tomando conta do lar, rezando, e rezando bastante, e levando uma vida recolhida, calma e distendida. É o que a natureza da mulher pede.

Enquanto a natureza do homem requer que ele saia, exerça alguma atividade, lute, a natureza da mulher pede esse tipo de vida especial, que lhe proporciona as circunstâncias dentro das quais ela verdadeiramente se salva, e pode se santificar.

Eu conheci senhoras para as quais o normal era não sair de casa. Quando saíam, era aos domingos para ir à Missa, e uma vez ou outra a fim de fazer compras ou alguma visita. No período em que as filhas deviam contrair matrimônio, elas tinham que sair um pouco mais. Fora disso estavam dentro de casa, onde levavam sua vida habitual.

Essa vida impregnada de calma, de piedade, podia conduzir, conforme fosse o espírito da mulher, a um alto grau de santidade, ou a uma virtude comum. Mas na maior parte das vezes, era uma virtude sólida que dava um eixo, um sustentáculo moral à vida de família.

Esta foi, sem dúvida, a vida de Santa Macrina.

Cuidar dos afazeres domésticos com espírito sobrenatural

Depois de ter cumprido a sua missão na Terra, educando três santos para a Igreja, e transmitindo-lhes a educação que recebera, ela não entrou para um convento. Poderíamos esperar que, sendo uma santa, tivesse resolvido entrar para um convento, ou então ir para uma Tebaida, um lugar remoto. Não. Ela ficou em sua residência e ali levou a vida de uma dona de casa. Fez o menu, cuidou que as coisas não se deteriorassem, dirigiu as criadas, manteve um certo número de relações que era natural que mantivesse, e consagrou o principal de seu tempo à oração. Fez tudo isto com espírito sobrenatural, tornando-se uma grande santa.

É um modo de santificar-se nas condições normais de uma existência sadia, razoável, e não o corre-corre e a dilaceração da vida nos dias de hoje, tão contrária à natureza da mulher e mesmo do homem. Normalmente, uma mulher virtuosa, vivendo aquela vida e impregnando-a intensamente do sobrenatural, se salva. Compreende-se que, não tendo recebido de Deus uma vocação especial, Santa Macrina permanecesse em casa com seus pais.

E essa sua vida foi coroada, em primeiro lugar, pela presença de um tão grande santo, irmão dela, para assistir à sua morte. Foi coroada também pelas lindas palavras que ela proferiu antes de morrer. Palavras de Fé, de quem sabia que não ia terminar, mas ressuscitaria depois, confiante de que a misericórdia divina a receberia no Céu.

Ela levou até o fim da vida uma cruz de ferro, dentro da qual estava embutido um fragmento da verdadeira Cruz. Podemos notar, através desses dados, que ela morreu como tinha vivido, quer dizer, santamente, e foi objeto da veneração dos três santos por ela formados e que a chamavam a “Grande Macrina”.

O que essa “Grande Macrina” fez? Aparentemente nada. Ela educou três crianças, que depois se tornaram grandes santos. E o que mais? Educou-os em sua casa, magnificamente, rezando e vivendo piedosamente uma existência normal. Com isso ela se santificou, adquiriu uma virtude heroica e está no Céu. A Igreja a canonizou. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 24/7/1971)

 

1) Cf. ROHRBACHER, René François. Vidas dos Santos. Vol. XIII. São Paulo: Editora das Américas, 1959. p. 178-179.

 

Admiração transformante

A experiência da vida nos confirma o princípio segundo o qual aquilo que admiramos penetra em nossa alma e nos transforma. Exemplo arquetípico dessa verdade encontramos em Nosso Senhor. Percorramos as páginas do Evangelho sob este ângulo e veremos como Ele, durante todo o tempo de sua passagem pelo mundo, procurou despertar admiração.

O povo que O ouvia não cabia em si de tanto admirá-Lo. E como se tal não bastasse, o Divino Mestre ainda se transfigurou no Tabor. Para quê? Para transformá-los, para obter o amor daquela gente, pois o autêntico amor começa pela admiração.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 30/9/1969)

União dos espíritos e dos corações

Um extraordinário poder concedido pela Providência às almas unidas por um verdadeiro amor à Cruz de Cristo. Assim entende Dr. Plinio o valor e a força desse profundo liame espiritual — ressaltado por São Luís Grignion de Montfort em sua Carta Circular aos amigos da Cruz —, capaz de infligir, por sua simples existência, tremendas derrotas ao demônio.

 

Escreve São Luís Grignion:

Uni-vos fortemente pela união dos espíritos e dos corações, infinitamente mais forte e mais temível ao mundo e ao inferno do que o são, para os inimigos do Estado, as forças exteriores de um reino bem unido.

Princípio valioso

Eis um belo trecho, que encerra um abismo de sabedoria e de realidade. União de espírito e de corações significa vínculo de princípios e de vontade, mais poderoso do que o liame no qual se aglomeram os soldados de um exército bem unido.

Cumpre observar que São Luís Grignion de Montfort viveu durante o reinado de Luís XIV e no período da Regência, quando a Europa se achava conturbada por guerras diversas. Assim, a imagem utilizada por ele, de um reino com tropas armadas invadindo outra nação, não era descabida, e ele a empregou para reforçar seu valioso pensamento.

 Aprofundando essa idéia de São Luís, podemos constatar que existe uma espécie de porosidade universal da sociedade humana — semelhante à osmose, que é um fato natural — por onde tudo que se passa em algumas almas acaba atingindo todas as outras, ainda que não se conheçam. Donde a força incalculável dessa união de espíritos.

Sentido profundo da união em torno da Cruz

Contra isso levantar-se-ia a objeção de que é uma fantasia. Respondo: antes da descoberta do rádio, se se afirmasse que através de uma caixinha seria possível ouvir, nos mais diversos idiomas, notícias do mundo inteiro, muitos sorririam e diriam tratar-se de fantasia. Quando surgiu o rádio, ficaram boquiabertos. Porém, diante do fato espiritual, continuam a pensar que dito fenômeno é contra o bom senso…

Se pensarmos na analogia com a osmose, percebemos a veracidade de tal princípio. Algumas almas que se unam de modo fervoroso em torno da Cruz de Nosso Senhor, junto à qual se encontra Nossa Senhora — que nos alcança e nos distribui as graças de Deus —, essas almas assim inteiramente unidas têm o dom de desferir um golpe no demônio mais terrível que as armas de todo um exército.

Foi o que se deu, por exemplo, com Santo Inácio de Loyola e seus primeiros discípulos. Ao se reunirem com o propósito de constituir a Companhia de Jesus, naquele momento tal união de almas repercutiu nas piores falanges de calvinistas e luteranos, infligindo um tremendo golpe no foco essencial do adversário da ortodoxia católica.

Esse é o sentido mais profundo do apostolado dos amigos da Cruz, unidos, com amor e enlevo, em torno do seu ideal, na forma como essa união deve ser organizada. Insisto: ainda que fossem cinco paralíticos num hospital, portanto pouco prestigiados, se tivessem essa união, representariam um fator de alta importância para os desígnios da Igreja.

Admirável poder dado pela Providência

Compreendamos como esse é um admirável poder que a Providência nos concedeu a nós, católicos e amigos da Cruz. Pois mesmo que nos faltassem os recursos materiais, que nos negassem todos os meios de ação, ou fôssemos perseguidos e lançados em cárceres diferentes, mas permanecêssemos unidos nesse vínculo de almas, estaríamos combatendo os adversários da Igreja e da Civilização Cristã de modo extraordinariamente eficaz.

É o que se depreende do pensamento de São Luís em sua Carta Circular. Um pequeno grupo de amigos da Cruz, fortemente unidos, são como um exército em marcha vitoriosa para derrotar o inimigo. Lembra-nos a afirmação de Nosso Senhor no Evangelho: o Reino dos céus está dentro de vós (Lc 17, 21). Embora eu não seja exegeta, creio não me enganar ao considerar que o corolário dessa verdade é: nossa vitória está dentro de nós. Sejamos o que devemos ser, o triunfo será como que automático. Ou seja, mais do que qualquer outra coisa importa procurarmos ser o que devemos ser.

Santa Teresa e suas freiras

Nesse sentido, chama a atenção que todos os historiadores mencionam a reforma do Carmo feita por Santa Teresa, a Grande, como um dos fatos dominantes da Contra-Reforma. Porém, a quase totalidade deles abstrai o fato da comunhão dos santos e consideram apenas os aspectos naturais dessa reforma. Ora, sob o ângulo meramente natural, tendo em vista uma reação, o erro estratégico por excelência consiste em fundar uma ordem contemplativa. Pois tomar um grupo de freiras que podiam estar agindo e pregando pela Espanha contra o protestantimo, trancá-las atrás de grades e obrigá-las ao silêncio, seria prestar um imenso favor ao adversário. Significava inutilizar os melhores instrumentos humanos do bem.

Entretanto, esses mesmos historiadores admitem o alcance concreto das fundações de Santa Teresa para o triunfo da Contra-Reforma. Quer dizer, de um pequeno grupo de freiras, no fundo de um convento, permeia, filtra e voa um dardo vigoroso contra o mal. E quanto maior for o amor a Deus e o ódio ao demônio com que essa união se faça, tanto maior será o golpe desferido no inimigo da Igreja.

Batalha invisível dos amigos da Cruz contra o mal

Em sentido contrário, é preciso considerar, não raro se vê famílias ou instituições desmoronarem moral e até materialmente. São muralhas da velha tradição católica que se desfazem. A causa próxima dessa ruína geralmente é indetectável. Mas o motivo remoto, profundo, é este: nos antros do demônio houve requintes de pecado, enquanto entre os católicos não houve requintes de virtude. E então o pecado também voa em sentido oposto ao bem. Essa é a grande batalha, invisível e superior, dos amigos da Cruz, dos que pertencem à cidade de Deus (para usar a imagem de Santo Agostinho), aqueles que levam o amor do Altíssimo até o esquecimento de si mesmos, contra os amigos da satisfação, do deleite desenfreados, filhos da cidade do demônio que levam o amor de si mesmos até o esquecimento de Deus.

Compreendemos, assim, como Nossa Senhora, os anjos e nossos santos padroeiros nos olham do Céu e nos acompanham em nossa trajetória espiritual, esperando que tenhamos esse impulso ardoroso de alma, capaz de contrariar as ações do demônio e seus sequazes.

Fundamento do apostolado da Contra-Revolução

As palavras seguintes de São Luís confirmam ainda mais tudo o que acima consideramos. Diz ele:

Os demônios se unem para vos perder. Uni-vos para derrotá-los.

Portanto, é a visualização da luta como o confronto entre duas uniões, as quais não significam coligações estratégicas de forças, mas de amores contrários, que definem a vitória ou a derrota, antes de tudo pela sua diferente intensidade. É o lado estático e superior da luta, supereminente em relação a seu aspecto dinâmico.

Os avarentos se unem para traficar e ganhar ouro e prata; uni vossos trabalhos para conquistar os tesouros da eternidade, encerrados na Cruz.

O avarento recolhe para si, sendo o oposto do que tem amor de Deus: este é o “avarento” das coisas da eternidade, dos tesouros encerrados na Cruz de Cristo.

Os libertinos se unem para se divertir; uni-vos para sofrer.

Eis um empolgante contraste! Se tantos se unem para se divertir, como vencer essa coligação de libertinos? Sofrendo sozinho? Não: sofrendo unidos. Formando dessa maneira o bloco coeso dos bons, desferindo o maior impacto que se pode infligir ao mal.

Creio que essas palavras de São Luís Grignion de Montfort contêm o fundamento do apostolado contra-revolucionário, pois essa união de espírito e de corações é a mais eficiente arma na luta entre a Revolução e a Contra-Revolução.

 

(Continua em próximo artigo.)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 20/5/1967)

 

Garras na terra, "alma" no céu…

Torres fortes, presas ao solo como garras e sem medir os anos e os séculos, suportam com decisão e arrojo a grandiosa e feérica massa do Castelo de Saumur.

Assim robustas e firmes, erguem-se do chão até as primeiras janelas. À medida que vão se elevando, tornam-se mais leves e lá no alto parecem desaparecer, como que se dividindo num mundo de agulhas, de setas, num bimbalhar de cores e de flechas, todas elas tendendo para as etéreas vastidões do firmamento.

E todas arvoram no topo uma figura simbólica: ora é um galo, representação da França e da Igreja; ora uma flor de lis, emblema da monarquia francesa; ora alguma outra imagem, grande e dourada, de semelhante e pitoresco significado.

Quando sobre esse conjunto magnífico incidem os raios do sol do meio dia, o castelo dá a impressão de que, num supremo arroubo de suas flechas e agulhas, destacar-se-á de suas bases sólidas e voará em direção às nuvens tingidas de ouro como ele.

Poder-se-ia imaginar esse castelo durante a noite, com lindos vitrais de fundo de garrafa coruscantes, fazendo dele um escrínio de pedras preciosas luminosas, acesas na luz indecisa das velas.

Nos dias em que conheceram vida, glória e prosperidade, essas torres eram quase inacessíveis. Tão altas, tão protegidas, que quaisquer adversários, antes de lograrem encostar nelas seus aparatos de guerra, seriam repelidos e postos em derrota. Um castelo assim não se atacava.

O acesso de seus moradores e visitantes era feito por uma rampa e uma ponte levadiça. Sem essa passagem, o que se tinha era um fosso repleto de água, circunjacente a todo o perímetro da imponente construção. Castelo fortíssimo, mas de uma delicadeza maravilhosa, com as garras na terra — portanto, é pão-pão, queijo-queijo — mas a “alma” no  Céu.

Uma esplendorosa imagem de como deve se apresentar o espírito do católico. Nas suas culminâncias, cumpre ser sutil, pronto a se mover inspirado pela graça, impulsionado pelo serviço de Deus; elevado e tendendo para o Céu como a chama de uma vela. Porém, no que se diz de prático, é firme, decidido, agarra, pega, faz e ordena!

Dessa fabulosa jóia da arquitetura medieval e cristã, dessas torres de força admirável e de requintada beleza, restam apenas algumas partes cobertas de gloriosas reminiscências e evocações.

O castelo de Saumur, como no-lo faz conceber e imaginar as iluminuras e desenhos de outras épocas, não existe mais…

Santo Elias

Santo Elias constituiu a primeira ordem religiosa que houve na História, antes mesmo do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo. Seus membros, que moravam nas encostas e no alto do Monte Carmelo, foram os precursores da Ordem do Carmo.

Foi ele um príncipe entre profetas, verdadeiro condutor do povo de Deus. Lutou contra os erros do seu tempo, num momento em que a nação eleita estava muito deteriorada, e salvou-a da ruína.

Escolhido para dirigir o povo de Deus num momento de hecatombe, ele concentrou em si todo o espírito que o Criador queria dar à nação judia a ser ressurgida. Nesse espírito derivado da Providência Divina foi formada uma rede de eleitos, sendo o mais famoso deles Eliseu, que pediu o duplo espírito de Elias, e o obteve.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 20-7-67)

O esplêndido palácio da coerência

Movida por seu ódio a Deus e à Igreja, a Revolução Francesa supliciou grande número de eclesiásticos e religiosos, além de uma quantidade incontável de leigos. Entre suas vítimas, encontram-se as carmelitas de Compiègne que foram guilhotinadas, única e exclusivamente, porque amavam ardorosamente a Religião Católica.

 

Em 17 de julho comemora-se o martírio das 16 carmelitas de Compiègne(1), guilhotinadas nesse dia, em 1794. Com frequência, a Igreja celebra a festa dos mártires no dia de sua morte, porque foi o mais glorioso dia de suas vidas, e também porque nasceram para a vida eterna.

Firmeza heroica diante do tribunal revolucionário

A respeito de uma delas, Irmã Marie Henriette de la Providence, que contava com 34 anos por ocasião do martírio, escreveu a Irmã Marie de L’Incarnation, biógrafa das santas mártires:

Quando as religiosas entraram no tribunal, Irmã Henriette distinguiu-se sem pretensão por uma atitude de firmeza verdadeiramente heroica; tendo ouvido o acusador público tratá-las de fanáticas, interpelou-o deliberadamente:

 “Queira, cidadão, dizer-nos: o que entende por essa palavra ‘fanática’?”

O juiz, irritado, respondeu-lhe com uma torrente de injúrias que vomitou contra ela e suas companheiras.

Nossa Santa, nem um pouco desconcertada, disse-lhe com um tom de dignidade e firmeza:

— Cidadão, vosso dever é honrar o direito a uma pergunta de uma condenada. Eu vos peço, portanto, que nos responda e nos diga o que entendeis pela palavra “fanática”.

— Eu entendo — respondeu Fouquier-Tinville — o vosso apego por vossas tolas práticas de religião.

Irmã Henriette, depois de haver agradecido, voltou-se para a Madre Priora e disse:

“Minha querida Madre, minhas irmãs, vós acabais de ouvir o acusador declarar que é por nosso apego a nossa santa Religião que vamos ser mortas. Todas nós desejávamos esse testemunho e nós o veneramos. Graças imortais sejam dadas Àquele que, em primeiro lugar, nos abriu o caminho do Calvário. Oh! que felicidade morrer por nosso Deus!”

Segundo outra versão, Fouquier-Tinville teria respondido:

— Pelo que quereis conhecer, saibais que é por vosso apego à vossa religião e ao rei.

Ao que Irmã Hentiette teria dito:

— Agradeço, cidadão, essa feliz explicação.

 E, voltando-se para as companheiras, teria declarado:

“Minha querida Madre, minhas irmãs, exultemos e regozijemo-nos na alegria do Senhor, porque morremos por causa de nossa santa Religião, nossa Fé, nossa confiança na Santa Igreja Católica, Romana”.

Irmã Henriette foi a última a morrer, antes da Priora, e até o fim exortou suas companheiras à coragem.

Quando uma pessoa caridosa ofereceu água a uma das religiosas, como esta ia aceitar, Irmã Henriette impediu-a, dizendo: “No Céu, no Céu, minha irmã, nós tomaremos longos tragos”.

Caracterizado o martírio

Para que ficasse constando, “ad perpetuam rei memoriam”(2), serem elas mártires, era preciso que o acusador público declarasse o motivo da condenação. Ficava, assim, caracterizado o martírio. Isso foi um consolo na resistência delas. Eis a razão da pergunta, à qual se seguiu a resposta. De fato, elas eram mártires porque estavam sendo condenadas por causa da Igreja Católica.

Como vimos, há duas versões desse fato. Uma diz que Fouquier-Tinville não teria falado do rei, mas somente de religião. A outra afirma que ele declarou estarem elas morrendo por causa do rei também. Esta segunda versão parece-me muito mais provável porque, uma vez que ele matava todo mundo por causa da fidelidade a Deus e ao rei, o normal é que ele tenha se referido também ao monarca.

Mas o essencial era Deus, Nosso Senhor. E quando souberam disso, todas se alegraram, e a Irmã Henriette acompanhou-as até à morte.

Depois, veio o belo episódio do copo d’água. Por certo, era uma religiosa que estava com muita sede, abalada, naturalmente, do ponto de vista emocional, pelo trauma de quem está se sentindo às portas da morte, e uma morte trágica, violenta. Essa religiosa quis aceitar um copo d’água que alguém lhe oferecia.

A Irmã Henriette pensou: “Esse pequeno sacrifício vai ser uma pérola a mais para a glória de Deus. Para que beber água? Para que ter esse pequeno consolo na hora em que se pode oferecer mais um pouco de sacrifício?”

Então ela teve essa expressão magnífica: “No Céu, no Céu, minha irmã, nós beberemos grandes tragos”.

É claro, porque ali estão as fontes de água viva, Nosso Senhor Jesus Cristo, a contemplação de Deus face a face e, portanto, a felicidade perpétua.

A outra religiosa atendeu e, ao receber a coroa do martírio, tinha uma estrela a mais nessa coroa, por toda a eternidade, por causa desse pequeno sacrifício.

Diversidade das escolas de vida espiritual

Podemos estabelecer um contraste entre essa narração da Irmã Marie de L’Incarnation e aquela famosa figura da peça teatral(3) de Bernanos, Irmã Blanche de la Force, carmelita que, pelo simples fato de ouvir falar da morte, ficava apavorada, e, dominada por uma espécie de complexo, acabou fugindo do convento. Ao saber que suas irmãs do Carmelo estavam indo para o patíbulo, quis assistir à execução.

Quando as últimas religiosas, que subiam ao cadafalso entoando o Veni Creator Spiritus, se encaminhavam à guilhotina, a Irmã Blanche saiu do meio da multidão e, cantando também, entrou na fila, galgou o patíbulo e morreu.

Outra comparação caberia também entre esta personagem e sua Superiora, que representava uma escola espiritual oposta à psicologia da Irmã Blanche.

La Force é o nome da família francesa dos Duques de la Force, e significa “a força”. Ela chamava-se, portanto, Branca da Força. Ora, essa Blanche de la Force, segundo o “Diálogo das Carmelitas”, era uma pessoa com uma espécie de psicose de medo, possuindo verdadeiro pavor de morrer.

A Superiora, ao contrário, era como a mulher forte da Escritura: coerente, varonil, de grande personalidade, dessas que veem aproximar-se a morte de longe, e que vão de encontro a ela, passo a passo, em holocausto. E, no momento da dor e da imolação, cumprem um ato de vontade ponderado e maturado antes, profundamente, durante anos inteiros. Portanto, o esplendor da coerência e da grande escola clássica de vida espiritual.

Essa Superiora poderia morrer tendo nos lábios aquelas palavras de São Paulo: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a Fé. Desde já me está reservada a coroa da justiça que me dará o Senhor, justo Juiz…”(4)

Em contraposição a ela está a Irmã Blanche de la Force: fraca, frágil, suscetível a pânicos, muito desejosa de ser fiel, mas tendo até a miséria de, por psicose, fugir do convento para escapar da guilhotina. Mas, depois — triunfo da fidelidade dos fracos —, subindo ao cadafalso, na última hora, e deixando-se matar juntamente com as outras.

A oposição das duas escolas insinua a possibilidade — que existe mesmo — de uma alma ter essa estrutura e, entretanto, ser muito bem intencionada e fiel.

O perigo está no fato de isso poder ser legítimo, mas ao mesmo tempo muito parecido com o contrário da virtude, com a covardia, a incongruência. E, por essa razão, a divulgação de uma coisa dessas, muito legítima, tanto pode fazer muito bem, em alguns casos, como muito mal em outros, pois de um lado contribui para animar as pessoas fracas chamadas a uma grande santidade, mas pode também servir de pretexto à fraqueza de almas sem generosidade.

O caso dessas carmelitas de Compiègne é bem o contrário disso.

Pulcritudes da Santa Igreja

Li o parecer de um Delegado Apostólico que esteve com elas, alguns anos antes da Revolução Francesa, e que dizia ter feito uma visita longa, pormenorizada, severa, e as achou, em tudo e por tudo, de tal maneira perfeitas que ele nem sequer sabia como lhes aconselhar para melhorarem.

Não se pode fazer um elogio mais magnífico do que este. Percebe-se que a visita, para ele, redundou em embaraçosa porque, provavelmente, elas diziam: “Padre, nós estamos descontentes conosco, queremos melhorar, indique-nos novas virtudes!” E elas estavam num tal ápice, que ele não sabia o que lhes aconselhar para terem uma virtude ainda maior.

Então elas foram colhidas como fruto maduro, quer dizer, a virtude nelas tinha alcançado seu apogeu, quando chegou a Revolução, a qual foi de encontro a elas, o que significava também a morte. Mas com a morte, era o Esposo que vinha de encontro às virgens. E elas eram as virgens fiéis, cujas lâmpadas se encontravam repletas de azeite, e cujas chamas cintilavam com o maior brilho. De maneira que, chegando o Esposo, realmente elas estavam prontas para o martírio.

Foi lindíssima a morte dessas religiosas! Todas elas, antes de subirem ao patíbulo, passavam diante da Superiora e pediam licença para morrer; a Superiora concedia, dava-lhes a bênção, e elas iam para a guilhotina. Saíam, assim, diretamente das mãos do carrasco para as mãos imaculadas de Nossa Senhora.

Essas coisas são de uma beleza angélica, supra terrena!

É uma trajetória em linha reta, toda feita de força, de coerência, que consola, anima e estimula a quem, como em nossa época, é obrigado aos zigue-zagues das incoerências, das exceções, dos conformes.

Ali, não! É como o voo da águia; não tem incoerências nem transigências. Vai direto da torre ao mais alto rochedo, olhando para o Sol numa linha reta que verdadeiramente nos entusiasma!

O que devemos deduzir disso?

Há almas fracas a quem esses exemplos enregelam e paralisam. Entretanto, não os recordo para causar-lhes terror, mas a fim de que compreendam e amem todas as vias dentro da Igreja Católica. Há moradas para todos; e cada um deve amar sua morada e também as moradas dos outros. Porque é o conjunto dessas moradas que constitui, na Terra, a Igreja militante, e no Céu formará a Igreja triunfante.

E reconheçamos que a morada dessas carmelitas é esplêndida, um verdadeiro palácio. É o palácio da coerência, da previsão e do grande estilo da vida espiritual.

São as vias diferentes da Providência Divina para as almas, e as várias maravilhas que Deus opera nas pessoas que Ele escolhe. A algumas, por exemplo, Ele chama por meio desse ato da Irmã Henriette, que é o contrário da Irmã Blanche de la Force. Vê a morte de longe, encara-a, enfrenta com alegria o acusador, fá-lo declarar o martírio para todas, ajuda-as a aceitar a morte, e só não morre depois da Priora porque a ordem hierárquica pedia que esta morresse por último.

É um caminho de Deus, um modo de guiar as almas e de modelá-las. Mas Ele é infinitamente belo na unidade e na variedade desse caminho. Exatamente por serem os santos tão diversos e haver escolas espirituais distintas dentro da Santa Igreja Católica, cada uma delas refletindo uma beleza de Deus, compreendemos algo da pulcritude da Igreja.

Assim, temos uma ideia do que pode ser a beleza no Céu, onde não só vemos Deus face a face, mas O contemplamos pela formosura incomensurável de cada uma das almas que ali se encontram; cada Anjo, cada Santo e, sobretudo, Aquela que compendia em Si e supera indizivelmente a beleza espiritual de todos os Anjos e todos os Santos: Maria Santíssima.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências  de 23/6/1965, 23/7/1969 e 1/8/1972)

 

1) Cidade próxima a Paris.

2) Do latim: para a perpétua memória do fato.

3) “Diálogo das Carmelitas” (título original: Dialogue des Carmelites), de Georges Bernanos (*1888 – †1948).

4) 2Tm 4, 7-8.